É difícil dizer qual o principal problema do Brasil, mas acredito que, entre eles, está a arrogância de nossas autoridades. Lembramos bem da empáfia do ex-ministroPaulo Guedesem suas falas, sempre com aquele tom de cima para baixo como se fosse o grande arauto da economia mundial. Não era: era apenas um instrumento para manterBolsonarono poder – quase quebrou o País e nem assim teve competência para atingir seu objetivo.
Agora que as consequências nefastas de suas decisões começam a aparecer, vemos que ele não apenas prejudicou o Brasil ao servir a um governo de extrema-direita, como fez mais barbeiragens que o Barbeiro de Sevilha.
Roberto Campos Neto, presidente doBanco Central, vai pelo mesmo caminho. Com exceção de seus colegas da Faria Lima, que lucram aos borbotões com a situação atual, muita gente séria no mundo defende que o patamar dos juros é absurdo e está destruindo a economia brasileira. Campos Neto, do alto de seu diploma da Universidade da Califórnia, afirma que todos eles estão errados – e ele está certo.
Curioso.Joseph Stiglitz, professor da Universidade de Columbia, em Nova York, e vencedor do prêmio Nobel de Economia em 2001, discorda de Campos Neto. Talvez o brasileiro entenda mais de economia que Stiglitz. Talvez o presidente do BC seja tão genial que ainda merecerá oNobelde Economia algum dia por estar vendo hoje algo que poucos especialistas no mundo vêem.
Stiglitz esteve no Brasil recentemente para participar do seminário “Estratégias de Desenvolvimento Sustentável para o Século XXI”, promovido pelo BNDES, Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri). O gênio norte-americano criticou o BC por manter a taxa de juros elevada para combater a inflação, sem levar em conta a necessidade de investimentos. “Um Banco Central independente e com mandato não é o melhor arranjo para o bem estar do país como um todo”, afirmou. E continuou: “A taxa de juros do Brasil é chocante. Uma taxa de 13,7%, ou 8% real, é o tipo de taxa de juros que vai matar qualquer economia. É impressionante que o Brasil tenha sobrevivido a isso, que seria uma pena de morte”, afirmou Stiglitz.
Campos Neto poderia aprender um pouco com Stiglitz, mas dá a impressão de que ele acha que entende mais de economia que o vencedor do prêmio Nobel. Apenas para lembrar alguns de seus feitos à frente da instituição: em 2022, a inflação do País ficou acima da meta do BC pelo segundo ano consecutivo, ambos os períodos sob sua presidência. Em janeiro veio a “grande marca” de sua gestão: o Banco Central cometeu um erro de “apenas” R$ 14,5 bilhões no cálculo do mercado de câmbio. Você compraria um carro usado de um banqueiro que comete um erro de R$ 14,5 bilhões?
A verdade é uma só: o Brasil hoje é refém das ideias de Roberto Campos Neto. Tomara que ele esteja certo, mas e se estiver errado? É justo 200 milhões de brasileiros pagarem a conta de seus equívocos? A ideia de um Banco Central independente é excelente, mas os países precisam ter maturidade política e institucional para isso. De qualquer maneira, o bom senso recomenda que, quem sabe menos, deve ter a humildade para aprender com quem sabe mais. Thank you, Mr. Stiglitz.
Documento da Aliança em Defesa dos Territórios detalha o avanço do garimpo ilegal nos últimos anos, sua ligação com outros crimes e as saídas para o problema
O avanço do garimpo ilegal sobre as terras indígenas na Amazônia brasileira nos últimos anos foi objeto de um detalhado relatório recém-lançado pela Aliança em Defesa dos Territórios, articulação política dos povos Yanomami, Munduruku e Kayapó. O documento esmiúça os mecanismos que promovem a atividade na região, aponta as fragilidades institucionais da cadeia do ouro e lista medidas necessárias para combatê-las.
De acordo com o documento, intitulado “Terra Rasgada: como avança o garimpo na Amazônia brasileira”, entre 2010 e 2020 o garimpo ilegal nas terras indígenas aumentou 495%, sendo os territórios Kayapó (PA), Munduruku (PA) e Yanomami (RR) os mais impactados pela atividade.
Segundo dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), o garimpo ilegal saltou mais de oito vezes entre 2016 e 2022. Somente nos anos do governo de Jair Bolsonaro (PL), a permissividade a esse tipo de atividade e o desmonte das estruturas de fiscalização levaram a sucessivos e sensíveis aumentos.
Em 2016, por exemplo, o avanço do garimpo sobre a área indígena foi de 12,87 km², número que seguiu aumentando, mas que cresceu sensivelmente no primeiro ano de Bolsonaro, passando para 97,24 km². Um novo salto ocorreu em 2021, quando foi para 114,26 km². Somente no último ano de seu governo a atividade caiu para 62,1 km², ainda muito acima do que o registrado seis anos antes.
Porém, embora movimentos sociais, entidades indígenas e ambientais e veículos de comunicação venham denunciando há anos essa situação —que leva doenças, fome, miséria, violência e morte, sobretudo para as populações indígenas, além do desmatamento, da mortandade animal e poluição ambiental — somente mais recentemente, com a explicitação da crise humanitária vivida pelos yanomamis e a tomada de medidas por parte do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), é que grande parte da população tomou conhecimento da situação.
Sob o governo Bolsonaro, a questão não apenas era abafada como a atividade ilegal era direta ou indiretamente estimulada, enquanto aumentavam a tragédia dos indígenas e o desmatamento da Amazônia.
No que diz respeito aos fatores políticos que influenciaram a expansão do garimpo em terras indígenas na Amazônia nos últimos anos, diz o relatório “é preciso destacar, de partida, que, embora não se restrinja ao contexto do governo Bolsonaro, o problema tomou uma dimensão inédita a partir de 2019, em comparação a todo o período após a Constituição de 1988. Não é novidade o amplo e irrestrito apoio de Bolsonaro à expansão do garimpo em terras indígenas — que se materializou não apenas no seu discurso, mas também em proposições como o PL 191/2020 [que autoriza a mineração em terras indígenas], entre outras. Por outro lado, é fundamental observar que, aliado a esse posicionamento e à formulação dessas proposições, ocorreram, de maneira sistemática, o aparelhamento da Funai e o desmonte da fiscalização ambiental”.
Além disso, o documento lembra que a exploração garimpeira na Amazônia “se revelou uma das questões mais críticas da região, da produção viabilizada localmente por organizações criminosas (e amparada, não raro, por corrupção e outros crimes envolvendo agentes públicos), às movimentações milionárias de empresas brasileiras e estrangeiras suspeitas de crimes financeiros e fiscais na compra e venda do metal”.
Ao se debruçar sobre os crimes conexos ao garimpo, o relatório traz evidências que mostram essas relações e ressalta ainda que além da exploração ilegal feita em Terras Indígenas e Unidades de Conservação, “a produção de ouro em garimpos é, em numerosos casos, acompanhada de outras infrações penais, configurando verdadeiras organizações criminosas”.
De um lado, diz o documento, “a rotina do garimpo ilegal é permeada por condutas ilícitas que vão da prática de crimes ambientais e contra o patrimônio público ao tráfico de pessoas, exploração sexual de mulheres e crianças (indígenas e não indígenas) e condições de trabalho análogas à escravidão. De outro lado se conjugam, tanto à produção como à comercialização de ouro, esquemas criminosos direta ou indiretamente vinculados à atividade garimpeira, como tráfico de mercúrio, de drogas e de armas”.
Além disso, o relatório aponta as responsabilidades de órgãos públicos para a piora dessa situação. No caso da Agência Nacional de Mineração (ANM), destaca, entre outras, a omissão fiscalizatória e a ausência de implementação de um sistema eletrônico de controle da cadeia de custódia de ouro; déficit de fiscalização das Permissões de Lavra Garimpeira (PLG) e quanto ao recolhimento da Contribuição Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM) e interpretação equivocada da legislação.
Também são apontadas responsabilidades do Banco Central quanto a deficiências de fiscalização das Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários (DTVM), entre outras, e da parte da União (Receita Federal), a não implementação da Nota Fiscal de Aquisição de Ouro na modalidade eletrônica e a autorização de exportação sem exigir comprovação de origem do ouro exportado.
Por fim, o relatório detalha as medidas necessárias, de acordo com as entidades, pare enfrentar o garimpo ilegal nas terras indígenas. Entre essas estão eixos como a proteção integral de terras indígenas, com ações para reprimir o avanço do garimpo ilegal e impedir novas frentes de invasão — com o aumento da fiscalização, o bloqueio de estradas, a destruição de pistas de pouso clandestinas, de meios de transporte e maquinário e a interrupção de serviços como o de internet para os garimpos dentro das terras indígenas, entre outras —, além do controle da cadeia do ouro, com a implementação de mecanismos já existentes e a criação de novos mecanismos.
REUTERS Crimes ambientais na Amazônia têm participação de facções, diz pesquisador
por Leandro Machado /BBC News
A atuação de facções que controlam o tráfico de drogas está cada vez mais influenciando o aumento de crimes ambientais na Amazônia, como desmatamento, grilagem,garimpo em terras indígenase extração ilegal de madeira, segundo o geógrafo Aiala Colares Couto, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Professor da Universidade do Estado do Pará (UEPA), Colares Couto até cunhou um termo para explicar essa conexão: narcoecologia.
“Há uma relação do tráfico de drogas com crimes ambientais. O narcotráfico atua como parceiro e financiador, porque percebeu que essas redes ilegais são importantes para ampliar recursos e a lavagem de dinheiro”, explicou Couto, em entrevista à BBC News Brasil no último sábado (11/3).
Um dos dados mais preocupantes da pesquisa é o aumento exponencial das mortes violentas na região amazônica. Entre 1980 e 2019, a taxa de homicídios cresceu 260% nos Estados da região Norte, enquanto no Sudeste esse índice caiu 19%.
Segundo Couto, há várias explicações para a violência, como conflitos fundiários, crescimento de mercados ilegais e, mais recentemente, a presença de facções criminosas tanto regionais como oriundas do Sudeste.
Nesse último caso, chama a atenção o crescimento do Primeiro Comando da Capital (PCC), surgido nos presídios de São Paulo, e do Comando Vermelho, do Rio de Janeiro.
Segundo o pesquisador, atualmente o PCC organiza e investe nas rotas de tráfico pela Amazônia em uma lógica empresarial - o objetivo, diz, é transportar cocaína até mercados lucrativos na Europa. Já o Comando Vermelho controla territórios e a venda de drogas em grandes cidades e regiões metropolitanas.
“A Amazônia é estratégica para o narcotráfico”, diz o professor.
Nascido no quilombo Menino Jesus de Petimandeua, em Inhangapi, no Pará, o geógrafo Aiala Colares Couto também milita no movimento negro e coordena o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Universidade do Estado do Pará.
Leandro Machado entrevista Aiala Colares Couto
BBC News Brasil - O que significa o termo 'narcoecologia'?
Aiala Colares Couto -Narcoecologia é um conceito que eu criei como resultado de uma pesquisa realizada entre 2020 e 2021. Neste estudo, analisamos as conexões do narcotráfico com os crimes ambientais.
Percebemos que há uma aproximação do tráfico com o mercado de extração ilegal de madeira, com a grilagem de terras e com o garimpo em terras indígenas, sobretudo em Roraima.
Entendi que essa relação dinâmica da economia do tráfico contribui para o avanço dos crimes ambientais, como desmatamento, poluição e redução da biodiversidade .
Mas essa conexão também contribui para o avanço da força política do próprio narcotráfico, que compreendeu que essas redes ilegais são importantes para ampliar seus recursos ilícitos e a lavagem de dinheiro.
BBC News Brasil - Por que a Amazônia é importante para as facções como o PCC?
Colares Couto -A Amazônia é estratégica para o narcotráfico, porque é uma região de passagem da cocaína e, mais recentemente, do skunk (um tipo mais forte de maconha). Essas drogas vêm de outros países que fazem fronteira com o Brasil, como Peru e Bolívia, e atravessam a Amazônia até pontos de saída com destino à Europa.
Grupos que antes atuavam só no Sudeste, como PCC e Comando Vermelho, ganharam força na região Norte a partir de alianças firmadas dentro do sistema prisional.
A transferência de presos de um Estado para outro acabou colocando em contato membros das facções do Sudeste com integrantes de grupos regionais.
Isso levou a uma interiorização das facções para diversas regiões amazônicas, e também a uma associação desses grupos com madeireiros e garimpeiros.
O tráfico é um parceiro e financiador desses mercados. Em alguns pontos, como em Roraima, as facções expulsaram os antigos garimpeiros e se apropriaram dessa atividade.
BBC News Brasil - Você comentou que a Amazônia é uma região de passagem de cocaína que vem de outros países. Por onde essa droga sai do Brasil?
Colares Couto -Hoje, um dos principais pontos de exportação de cocaína é o Porto Vila do Conde, em Barcarena, no Pará. Essa droga vai principalmente para a Europa.
Em várias das apreensões no porto, a cocaína estava embalada junto com madeira contrabandeada. Esses grupos ganham dos dois lados, com droga e madeira.
BBC News Brasil - Mas como o PCC atua nesse transporte?
Colares Couto -Existe uma disputa pelo controle do transporte de drogas.
Uma das principais entradas da cocaína de origem peruana é o vale do Rio Solimões, que hoje é uma área disputada entre vários grupos, pois não é fácil dominar uma região enorme como essa. É uma operação bem complexa.
Antes, esse ponto era controlado pela Família do Norte, que perdeu a disputa para o Comando Vermelho. Atualmente, quem comanda parte dessa rota é um grupo chamado Os Crias, mas o PCC também se faz presente.
O que a gente percebeu é que o PCC trabalha mais com a organização dessas rotas de tráfico, tanto que ele tem membros trabalhando nos países vizinhos.
Ele tem uma atuação transnacional, em uma lógica empresarial e mais articulada, fazendo a cocaína chegar aos mercados mais lucrativos na Europa.
Com o aumento da vigilância contra o tráfico na Europa, a cocaína ficou ainda mais cara. É uma atividade ilícita que gera muito dinheiro.
BBC News Brasil - Além do PCC, há outras facções no Norte do país. Como elas se dividem no controle de atividades criminosas?
Colares Couto -Como eu disse, o PCC atua de maneira mais empresarial, principalmente em Roraima e em áreas do interior.
Mas eu diria que o grupo mais hegemônico na Amazônia é o Comando Vermelho, que controla muitos territórios em uma tática de guerrilha e de guerra urbana. Isso acontece principalmente nas grandes cidades e regiões metropolitanas, como Belém, Altamira e Parauapebas.
Aqui, a facção age como milícia, cobrando mensalidade dos comerciantes, pagando propina, mas também controlando a venda de drogas no varejo.
Em Manaus, onde a Família do Norte era mais forte, o Comando Vermelho também está se tornando hegemônico.
A Família do Norte perdeu muito espaço em Manaus depois de assassinatos e prisões de várias lideranças. Está praticamente extinta.
Mas surgiram outros grupos locais, como o Cartel do Norte, os Revolucionários do Amazonas e Os Crias, que são dissidências da Família do Norte, e que não entram em conflito com o Comando Vermelho.
BBC News Brasil - Como as facções afetam a vida dos indígenas?
Colares Couto -Já houve casos de indígenas que se envolveram com o tráfico, adquiriram dívidas e acabaram assassinados pelo Comando Vermelho.
As drogas e o alcoolismo são problemas graves nas comunidades indígenas e quilombolas.
Há muitas ameaças e pressões psicológicas, todo tipo de violência imposto por um grupo armado que controla um território.
BBC News Brasil - Implantar um sistema de garimpo em regiões remotas, como ocorreu na Terra Indígena Yanomami, não é barato. Custa muito dinheiro levar e instalar as máquinas de extração do ouro. Como as facções participam desse sistema?
Colares Couto -Em 2018, houve uma fuga do sistema prisional de Boa Vista. Os detentos se refugiaram em áreas de garimpo.
Esses pontos ficam em terras federais, onde só a Polícia Federal, o Ibama e o ICMBio podem entrar. As polícias Militar e Civil, comandadas pelos governos estaduais, não podem atuar nessas áreas.
O garimpo virou lugar de refúgio para membros e até lideranças do PCC. Foi então que integrantes da facção começaram a trabalhar com contrabando de ouro, e perceberam que era importante controlar essa atividade.
Mas não apenas.
Também passaram a controlar as casas de prostituição e a venda de drogas.
BBC News Brasil - O número de homicídios nos Estados do Norte cresceu muito nas últimas décadas. O que poderia ser feito para diminuir esse índice?
Colares Couto -A região Amazônica é um foco de disputas por terra, uma questão mal resolvida.
Um decreto da época da ditadura militar federalizou muitas dessas terras. São áreas da União, e Estados e municípios não têm poder sobre elas.
Esses territórios passaram a ser disputados por posseiros e grileiros, estabelecendo conflitos fundiários que se tornaram violentos. É um problema que precisa ser resolvido.
Outro ponto é aumentar o efetivo de segurança pública em áreas controladas por facções.
A cidade de Altamira (PA), por exemplo, historicamente tem problemas ambientais e de conflitos fundiários. E ela cresceu muito nos últimos anos, atraindo facções como o Comando Vermelho.
Outra questão é resolver o problema histórico de demarcação de terras indígenas, e afastar a exploração de garimpeiros e madeireiros.
BBC News Brasil - Parte da periferia de Belém chegou a ser controlada por milícias chefiadas por policiais e ex-agentes de segurança pública. Essa situação continua?
Colares Couto -As milícias estão mais camufladas agora, não aparecem tanto como antes, mas ainda existem.
No bairro do Guamá, por exemplo, temos a presença de sete milícias dividindo o território. É o único bairro na periferia de Belém onde não há pichações do Comando Vermelho proibindo roubos na comunidade.
As milícias também se espalharam para cidades da região metropolitana de Belém, como Ananindeua, Santa Bárbara, Benevides e Castanhal.
JÁ ESTÁ CLAROque a tragédia vivida pelo povo Yanomami não é meramente fruto da omissão do governo Bolsonaro. É muito mais que isso. É consequência da retomada de um projeto antigo das Forças Armadas que se iniciou nos primeiros anos da ditadura militar. Como bem lembrou Carla Jimenez na última newsletter doIntercept, “a ditadura militar foi pródiga em dizimar indígenas em nome do progresso”.
A Funai foi criada pelos militares três anos após o golpe de 64 e foi comandada por militares guiados pelo lema da bandeira nacional: Ordem e Progresso. A política indigenista da ditadura tinha como objetivo integrar o indígena ao “mundo civilizado”. Em 1970, durante o governo Médici, o regime militarcomandou o Plano de Integração Nacional, com objetivo de expandir as fronteiras internas do país, abrir rodovias e criar novas cidades. Para isso foi necessário perseguir, prender, torturar e assassinar lideranças indígenas que lutavam pelos seus territórios. Em 1972, o general Ismarth de Araújo, superintendente da Funai,disseque “índio integrado é aquele que se converte em mão de obra”. Os indígenas que se rebelaram contra esse projeto acabaram mortos.
O ex-capitão do Exército Jair Bolsonaro, que sempre foi reconhecidamente um deputado vagabundo, trabalhou bastante contra os povos indígenas — especialmente contra o povo Yanomami — durante sua passagem pelo parlamento. O então deputadoatuouincansavelmente pela extinção da etnia. Em 1992, ele apresentou um decreto legislativo que previa a extinção da reserva Yanomami, que tinha sido demarcada no ano anterior. O projeto foi arquivado, mas Bolsonaro tentou emplacá-lo em outras quatro oportunidades. Em um dos seus discursos no plenário em defesa do decreto, Jair Bolsonaro disse: “a cavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema no país”.
A ascensão do bolsonarismo ao poder possibilitou a continuação desse projeto militar. Assim como na ditadura, a política indigenista do governo Bolsonaro oferece duas opções aos povos indígenas: a integração forçada ou a extinção. As cenas de homens, mulheres e crianças Yanomami subnutridos, com os ossos do corpo inteiro aparecendo, retrata o sucesso da retomada desse projeto. A desnutrição e a fome são consequência direta da ocupação de seus territórios por garimpeiros ilegais. A garimpagem na região impede o povo Yanomami de exercer suas atividades produtivas básicas.
Não me recordo de uma tragédia mais anunciada do que essa. Durante os últimos quatro anos, o avanço do garimpo ilegal e a saúde dos povos indígenas foram assuntos de destaque no debate público nacional. Reportagens e órgãos públicos como o Ministério Público Federal,o STFe aCorte Interamericana de Direitos Humanosalertaram sobre a gravidade da situação. Desde o primeiro ano de governo Bolsonaro, o MPFfez pelo menos oito recomendaçõesrelacionadas à falta de atenção básica de saúde nas terras Yanomami.
Deputada Joênia Wapichana e Dario Yanomami em reunião com o Vice-Presidente Hamilton Mourão. Foto: Divulgação/Planalto
Em 2020, o MPF fez o primeiro alerta ao governo sobre a fome dos Yanomami em Roraima. O órgão determinou que a Sesai, a Secretaria Especial da Saúde Indígena, deveria providenciar a compra de alimentos para abastecer a comunidade. Absolutamente nada foi feito. Claro, durante o governo Bolsonaro a Sesai serviu ao projeto iniciado no regime militar. Nesse período, elafoi comandada por militaressem nenhuma experiência em saúde indígena. O primeiro a assumir a pasta foi o coronel do Exército Robson Santos da Silva. Depois, foi a vez de outro coronel: Reginaldo Ramos Machado,amigo pessoal de Jair Bolsonaro. Ambos comandaram a destruição da estrutura de atendimento da pasta. Cargos e departamentos importantes do órgãoforam encerrados. Mecanismos de controle e participação social como os Conselhos Distritais de Saúde Indígena (Condisi) e o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) foram extintos. A fome dos Yanomami é resultado de uma política muito bem planejada pelas Forças Armadas e pelo governo Bolsonaro.
A garimpagem na região impede o povo Yanomami de exercer suas atividades produtivas básicas
As digitais dos militares estão impregnadas em todos os pontos da tragédia vivida pelos Yanomami. O ex-vice-presidente e hoje senador Hamilton Mourão presidiu por três anos o Conselho Nacional da Amazônia Legal. O general não convidou ninguém da Funai e do Ibama para integrar o conselho. Escolheu 19 militares da sua confiança. A função desse conselho é prestar assistência aos povos indígenas da região, mas Mourão e os militares fingiram não ver o descalabro.Em entrevista ao Jornal da Globo, a liderança Dário Kopenawa contou que conversou pessoalmente com Mourão em julho de 2020. A principal reivindicação foi a retirada dos garimpos ilegais de ouro instalados no território indígena. O garimpo nessa região é comandado maciçamente porempresas clandestinas ligadas ao contrabando e ao crime organizado. General Mourão ouviu o pedido dos Yanomami, publicou foto com Kopenawa e não tomou absolutamente nenhuma providência.
A reivindicação não foi atendida, pelo contrário. Os militares bolsonaristas atuaram para legalizar a garimpagem no território dos Yanomami. No fim do governo Bolsonaro, antes de apagar as luzes, o general da reserva Augusto General Heleno, ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional, o GSI, autorizou o garimpo de ouro em área próxima à Terra Indígena Yanomami.
A pessoa agraciada com a autorização é uma garimpeira que já cumpriu pena por tráfico de drogas e já foi acusada pelo Ministério Público por receptação de pneus roubados. Essa é a política da “ordem e progresso” beneficiando diretamente uma garimpeira com histórico de envolvimento com o crime em detrimento da saúde de povos indígenas. Trata-se de um episódio bastante representativo da hipocrisia que integra a essência do bolsonarismo.
Não é que os militares simplesmente permitiram a garimpagem em áreasy indígenas. Eles atuaram em conluio com os garimpeiros. Militares do Sétimo Batalhão de Infantaria da Selva por exemplo,chegaram a ter um grupo de WhatsAppcom garimpeiros da região Yanomami para poder avisá-los sobre eventuais ações desencadeadas ali. Esse é apenas um exemplo. Há uma pororoca de outros que mostram como os ataques dos militares contra os povos indígenas.
Vejamos algumas manchetes que pipocaram no noticiário nos últimos tempos:
Não é que os militares simplesmente permitiram a garimpagem em área indígenas. Eles atuaram em conluio com os garimpeiros
A ministra dos Povos Indígenas Sônia Guajajara iniciou uma desmilitarização da Funai. Já foram demitidos 43 militares que boicotavam a proteção dos povos indígenas. Esse é o começo de um longo processo necessário para reconstruir o órgão. É urgente que o país puna severamente os militares e todos aqueles que encamparam esse projeto de dizimação dos povos indígenas desenhado durante a ditadura militar. Trata-se de um crime de lesa humanidade. As Forças Armadas precisam ser enquadradas para que não tentem retomar esse projeto no futuro. Não é possível mais ver uma importante instituição da democracia brasileira trabalhando diretamente pela destruição dos povos originários, enquanto atua em conluio com garimpeiros, golpistas e terroristas.
É preciso que fique claro que o genocídio sofrido pelos Yanomami não foi um mero caso de incompetência e omissão de um governo, mas um projeto de governo dos militares.
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As agências missionárias estavam lá quando a tragédia começou. Mas, confortáveis sob a proteção do governo Bolsonaro, não denunciaram e não agiram.
Ladrões de Floresta. Ministério do Meio Ambiente de Bolsonaro abriu mão de defender 8 milhões de hectares na Amazônia, Pantanal e Cerrado, por Fernanda Wenzel
Pasta não apenas se omitiu de buscar novas áreas para preservar como entregou de bandeja outras 39 que poderia transformar em unidades de conservação.
Quando a máfia dos cassinos encontra a ultradireita e os evangélicos
por Luis Nassif
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Peça-chave no financiamento e apoio à ultradireita, o lobby dos cassinos está entre os setores que mais ambicionam destruir regulações civilizatórias, transitando na fronteira da ilegalidade.
Desde que assumiu o governo, quando indagado, Jair Bolsonaro faz jogo duplo.
É pressionado pelo Centrão a legalizar os jogos de azar, o que motivou inclusive, Paulo Guedes, a defender em fevereiro de 2020 a entrada dos cassinos no país e junto com este grupo está o seu filho, Flávio Bolsonaro, lobista de cassinos em Las Vegas. Do outro lado, está a pressão da bancada evangélica a vetar a proposta. Resultado: Bolsonaro se compromete com o veto, sem esforços para impedir que o Congresso o derrube.
Jogos e cassinos têm uma ligação histórica com a máfia e com a contravenção.
Nos Estados Unidos, Las Vegas foi construída pelos grupos da máfia. Na Europa, máfias italiana, francesa e espanhola disputavam o controle dos jogos e dos cassinos. No Brasil, desde o Império o crime organizado dominou o jogo do bicho e, depois, os bingos e máquinas caça-níqueis. E não apenas pela exploração da compulsão dos usuários por jogos de azar, mas porque se prestam perfeitamente à lavagem de dinheiro e ao fluxo de narcotráfico.
A internacionalização do jogo explodiu com a Internet e os jogos eletrônicos online. Especialmente porque exigiam uma nova tecnologia, e um domínio das ferramentas de difusão na Internet.
O primeiro grupo internacional a investir pesadamente no país foi a Gtech, ligada à máfia de Los Angeles. Entrou pela porta da Caixa Econômica Federal, na gestão Danilo de Castro, no governo Itamar Franco. Danilo afastou a estatal Datamec e contratou os serviços da Racimec, empresa nacional, mas que já tinha, por trás, a Gtech.
O prestígio da Gtech podia ser medido pela influência do seus lobistas, dentre os quais Rick Davis, gerente da campanha de John McCain, candidato republicano à presidência dos Estados Unidos. Ela cuidava também da loteria estadual do Texas quando Bush Filho governava o estado.
O contrato da Racimec passou pelo governo Itamar e se consolidou no governo Fernando Henrique Cardoso, graças às benesses garantidas pelo presidente da CEF Sérgio Cutollo, mesmo contra pareceres técnicos desaconselhando o novo contrato.
Com a entrada do PT, o bicheiro goiano Carlinhos Cachoeira se aproximou de Rogério Buratti, da República de Ribeirão Preto, liderada por Antônio Palocci, e ofereceu seus préstimos para a renovação do contrato da Gtech no valor de US$ 130 milhões.
O plano de Cachoeira era parceria com a Gtech para dominar o mercado de apostas online. Ele já havia feito as primeiras incursões, estendendo suas atividades para Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Paraná e Rio de Janeiro.
Desde o início, Cachoeira contou com a parceria da revista Veja – que o livrou de uma CPI da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro detonando o deputado que a propôs. E depois se tornaria sua parceira preferencial em um sem-número de escândalos visando afastar competidores de Cachoeira.
A manobra não deu certo, provavelmente bloqueada pelo então presidente da CEF, Jorge Matoso – posteriormente sacrificado injustamente no episódio em que Palocci conseguiu quebrar o sigilo do caseiro da tal República de Ribeirão.
Cachoeira perdeu uma quantia calculada em R$ 50 milhões. Em represália, divulgou o vídeo com Valdomiro Diniz, primeira trinca grave na imagem do governo Lula.
Logo após o impeachment, aproveitando o quadro inicial de terra arrasada, Temer e seu grupo tentou aprovar a legalização do jogo e a privatização dos jogos online, a Lotex. Não teve tempo de consumar a jogada.
Peça 2 – a frente fascista e o negócio dos cassinos
Por seu lado clandestino, de flertar com os limites da contravenção, o jogo sempre necessitou de blindagem política, razão para ter se tornado grande financiador de políticos em vários países.
Com o avanço da Internet, os diversos braços do crime organizado perceberam um mercado político promissor na aliança com os grupos de ultradireita que ascendiam nas diversas partes do planeta.
Hoje em dia, o avanço da ultradireita mundial está fundado em uma rede de negócios articulada diretamente pelo presidente norte-americano Donald Trump. É o que explica a aproximação de Trump com a Arábia Saudita em detrimento do aliado histórico Canadá. Essa frente político-empresarial fomenta intolerância, golpes na democracia, com a intenção de consolidar alianças políticas que abram espaço para seus negócios. O alerta é do candidato democrata Bernie Sanders, em artigo recente no The Guardian.
“Já deve estar claro que Donald Trump e o movimento de direita que o apóia não são um fenômeno exclusivo dos Estados Unidos. Em todo o mundo, na Europa, na Rússia, no Oriente Médio, na Ásia e em outros lugares, vemos movimentos liderados por demagogos que exploram os medos, preconceitos e queixas das pessoas para alcançar e manter o poder.
“(…) Além da hostilidade de Trump em relação às instituições democráticas, temos um presidente bilionário que, de uma maneira sem precedentes, incorporou descaradamente seus próprios interesses econômicos e de seus companheiros nas políticas do governo.
“(…) Devemos entender que esses autoritários fazem parte de uma frente comum. Eles estão em estreito contato, compartilham táticas e, como no caso dos movimentos de direita e europeus e americanos, compartilham até alguns dos mesmos financiadores. A família Mercer, por exemplo, apoiadores da infame Cambridge Analytic, foi a principal patrocinadora do Trump e do Breitbart News, que opera na Europa, Estados Unidos e Israel para promover a mesma agenda anti-imigrante e anti-muçulmana. O megadoador republicano Sheldon Adelson doa generosamente a causas de direita nos Estados Unidos e Israel, promovendo uma agenda compartilhada de intolerância e iliberalismo em ambos os países”.
Em uma das visitas de Bolsonaro a Trump, na Casa Branca, um dos temas tratados foi o da legalização dos cassinos no Brasil. Poucos dias depois, o Ministro do Turismo anunciou que o governo iria propor no Congresso Nacional um debate sobre cassinos integrados a resorts – justamente o modelo de Sheldon Adelson, presidente da Las Vegas Sand Coorporation.
Portanto, trata-se de uma demanda negociada diretamente por um filho de Bolsonaro, o representante empresarial da família. A apresentação da proposta, por Paulo Guedes, é apenas uma troca de favores, visando reduzir as suspeitas sobre as articulações, já que Sheldon é um dos principais articuladores do grande pacto de negócios que une a ultradireita mundial.
Ele foi um dos financiadores da mudança da embaixada norte-americana para Jerusalem. Na inauguração, a família Sheldon foi colocada em lugar nobre, ao lado do primeiro ministro Netanyahu, da filha e genro de Donal Trump, Ivanka e Jared Kushner. Não por acaso, a ultradireita israelense liderada por Netanyahu acumula em série suspeitas de corrupção.
Peça 4 – a rede mundial da contravenção
O governo Bolsonaro vem desarmando, uma a uma, as restrições regulatórias em todos os campos de atuação das milícias e das máfias internacionais. Todas suas intervenções econômicas visam atender interesses de negócio de seu entorno. A legalização dos cassinos é apenas o último passo nessa escalada de parcerias com o submundo empresarial.
Os desaparecimentos do sertanista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips ecoam como um trágico grito de socorro da floresta amazônica e de seus habitantes originais. Hoje, todo o mundo sabe que ali, naquele monte de folhas que se vê pelo Google Maps, onde fica a Terra Indígena Vale do Javari (a segunda maior do Brasil), dois heróis empenharam suas vidas individuais para defender as vidas coletivas, destruídas diariamente pelo garimpo, pela ganância, pelo ouro, pelo agronegócio, pelo narcotráfico, pela pesca predatória e, até, por missionários religiosos, inescrupulosos defensores de um deus da morte.
Bruno Pereira não era para estar lá. Ele já tinha sido vestido pelos genocidas com uma camisa desenhada com dois alvos: um na frente e outro atrás. Um terceiro estava estampado em sua testa. Ele era o cabra marcado para morrer.
O estudo dos boletins de serviço da Funai fornece provas eloquentes do compromisso de Bruno com a defesa dos povos isolados e de recente contato. No dia 2 de janeiro de 2020, por exemplo, o boletim registra que Bruno realizou “reunião com autoridades ref. ao assunto presente no documento sigiloso Ofício 219/Gabinete do Procurador/PRM/Tabatinga, de 17/06/2019, que trata da promoção de ações de combate a ilícitos na região do Alto Solimões, com presença de povos indígenas isolados.”
Em 3 de janeiro do mesmo ano, Bruno participou de ações de proteção, monitoramento e vigilância com o objetivo de realizar articulações estratégicas e proceder ao encaminhamento dos preparativos para a execução de Operação de Fiscalização no Jutaí em conjunto com as forças de segurança pública através de ações de coibição de ilícitos ambientais e de combate ao garimpo ilegal na TI (Terra Indígena)”.
Em agosto de 2014, Bruno participou de reunião e discussão no Ministério Público Federal sobre Saúde Indígena e ingresso irregular de missionários na Terra Indígena Vale do Javari.
No começo de 2019, Bruno integrou a “articulação para alinhamentos estratégicos e institucionais com o Comando Militar da Amazônia, Secretaria de Segurança Pública do Amazonas, Delegacia de Polícia Federal de Tabatinga, 8° Batalhão de Infantaria da Selva do Exército em Tabatinga, que se refere à segurança das equipes operacionais da FPE (Frente de Proteção Etnoambiental) Vale do Javari durante a execução do Plano de Contingência para Situações de Contato, e realizou articulações estratégicas e institucionais junto à Procuradoria da República, Ministério Público Federal do Amazonas em Tabatinga…”
Bruno foi responsável pela Coordenação Geral de Indígenas Isolados e de Recente Contato (CGIIRC) da Funai até outubro de 2019. Logo depois de coordenar uma operação que expulsou centenas de garimpeiros da terra indígena Yanomami, em Roraima, entretanto, foi exonerado do cargo sem qualquer tipo de justificativa interna.
A exoneração foi assinada no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro pelo então secretário-executivo do Ministério da Justiça e Segurança Pública, o ex-delegado da Polícia Federal (PF) Luiz Pontel de Souza, escolhido para o cargo pelo ex-juiz ladrão Sergio Moro. Para ocupar o lugar de Bruno, foi escolhido o missionário evangélico Ricardo Lopes Dias, que atuou entre 1997 e 2007 na Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), organização com origem nos EUA que promove a evangelização de indígenas brasileiros desde os anos 1950. Um coordenador “terrivelmente evangélico”, é claro! Para esses missionários, é preciso arrancar o coração dos indígenas para impor-lhes o Deus vingativo e cruel professado por algumas igrejas cristãs, comprometidas com a teologia da prosperidade. Vejaaqui.
Os registros dessas inúmeras notas nos Boletins de Informação da Funai mostram que as atividades de Bruno eram conhecidas por todos os agentes que deveriam zelar pela segurança do território. Que ele se reunia com o Comando de todas as forças repressivas, aí incluídos o Exército, a Polícia, a Marinha, o Ministério Público Federal, a Funai. Ele não era um aventureiro irresponsável, versão que o próprio Bolsonaro esforçou-se para impor à opinião pública mundial nas primeiras horas do desaparecimento.
Acontece que Bruno, depois da exoneração do cargo de Coordenador dos Índíos Isolados, nunca pretendeu para si o conforto de uma aposentadoria precoce. Inconformado, ele pediu para ser licenciado sem vencimentos por dois anos do cargo público. E voltou para o Vale do Javari, desta vez prestando consultoria à União dos Povos Indígenas da região, a Univaja, sobre com defender a Terra Indígena contra a intrusão de garimpeiros, traficantes e pescadores ilegais.
Ciente de que a preservação da terra indígena só poderia ser feita com a exposição para todo o mundo do drama humanitário e ambiental ali presentes, Bruno firmou uma parceria existencial com Dom Phillips, jornalista inglês, branco, colaborador de algumas das mais prestigiosas publicações do mundo: os jornais “The Guardian” e “New York Times”. A parceria ideal. Um sertanista e um jornalista. Um brasileiro e um inglês. E é agora, por causa dos desaparecimentos deles, que o mundo sabe: ali, naquele canto a oeste do Brasil, trava-se uma luta de vida ou morte, de preservação ou de destruição, de respeito às culturas originárias, ou de tributo ao deus Mercado, que vem neste momento se entesourando em ouro e metais preciosos, porque não sabe até quando o dólar se aguenta.
Há pessoas assim em todo o Brasil. Gente que segue resistindo, apesar de tudo, da perseguição, do risco de vida, do ostracismo, da criminalização.
Honrar essas vidas, agora, significa exigir não apenas a punição de quem interrompeu suas trajetórias heroicas. Não aceitaremos que fique tudo por isso mesmo e que a culpa recaia apenas sobre um sujeito miserável, descartável, meio branco, meio preto, meio indígena. Porque outro miserável será escalado para matar uma nova liderança indígena, um jornalista, um sertanista. Haverá uma comoção, um processo apressado que prenderá esse outro bode expiatório. E assim sucessivamente.
É preciso acabar com a máquina de guerra instalada no Vale do Javari contra o meio ambiente e os povos originários.
Quem é que paga as lanchas, as retroescavadeiras, os tratores, as imensas dragas, os aviões para transporte do minério, quem é que paga tudo isso?
Como é possível que, numa região fortemente militarizada, que conta com as presenças ostensivas de uma delegacia geral de Polícia Civil, uma Delegacia da Polícia Federal, um batalhão de Polícia Militar do Amazonas – PMAM, um presídio estadual, um efetivo da Força Nacional do Brasil, um Destacamento de Controle do Espaço Aéreo de Tabatinga (DTCEA-TT), um Comando de Fronteira do Exército (8º Batalhão de Infantaria de Selva), uma Capitania dos Portos da Marinha do Brasil e uma unidade do Corpo de Bombeiros Militar do Amazonas, as principais atividades econômicas locais sigam sendo o contrabando, o garimpo ilegal e o narcotráfico? Por que esse efetivo fortemente armado não cumpre seu papel, e a fronteira ocidental do Brasil segue sendo uma peneira para que ingressem na terra indígena todo e qualquer aventureiro que lance mão, como acontece no Brasil desde 1500?
Como o narcotráfico se conecta à atividade garimpeira, provendo recursos, explorando a prostituição, corrompendo militares, mantendo o fluxo de mão-de-obra necessária ao garimpo, sustentando o exército de assassinos de aluguel?
Como a pesca ilegal e predatória no rio Solimões e seus afluentes conecta-se ao narcotráfico? Como a atividade pesqueira foi “sequestrada” pelo crime organizado de modo a fornecer barcos e canoas destinadas ao escoamento da droga?
Como funciona o comércio de ouro em Tabatinga e cidades vizinhas? Quem compra e quem vende o ouro, nas lojinhas espalhadas pelas cidades do Alto Solimões e do Vale do Javari? É até estranho. São “lojinhas” tão banais e aparentemente inofensivas, quanto os pontos de jogo do bicho no Rio ou em São Paulo. Só que essas lojinhas são só aparentemente inofensivas, haja vista a fortuna amealhada por apenas uma empresa, responsável pela revenda de ouro para os mercados especulativos.
A FD Gold, por exemplo, de propriedade de Dirceu Frederico Sobrinho, também presidente da Associação Nacional do Ouro (Anoro), foi acusada em agosto de 2021 pelo Ministério Público Federal despejar no mercado nacional e internacional 1.370 quilos de ouro ilegal somente entre 2019 e 2020. Detalhe, Dirceu é muito próximo do general Hamilton Mourão (ex-comandante militar da Amazônia) e de altos dignitários do governo de Jair Bolsonaro.
Ah, mas isso é problema “deles” lá!
Errado: a sede da FD Gold, fica na avenida Paulista, coração financeiro de São Paulo.Em maio, a FD Gold declarou-se proprietária de 77 kg de ouro encontrados em um avião, em Sorocaba. A carga, avaliada em 23 milhões de reais, estava sendo escoltada pelo tenente-coronel Augusto Tasso, lotado na Casa Militar, responsável pela segurança do governador Rodrigo Garcia (PSDB), de São Paulo. Coincidência? Precisa desenhar ou é fácil perceber a conexão entre as forças de segurança e a exploração predatória da Amazônia?
Tudo isso só para dizer que não basta que as investigações sobre o desaparecimento de Bruno Pereira e de Dom Phillips detenham-se na prisão e condenação de um sujeito com o sugestivo apelido de “Pelado”. Esse está pelado de tudo. Sem dinheiro, sem prestígio, sem liberdade, sem nada. Amanhã, esse Pelado aparecerá morto, e todos diremos: “Mereceu”. Mas ele é só o “elo mais fraco” da cadeia de maldades, de cobiça e de horrores.
É preciso que sigamos o dinheiro e vinguemos nossos heróis, perseguindo e condenando os tubarões que financiam a morte dos povos originários e a destruição da floresta. Gente covarde, que usa pobres miseráveis como bucha de canhão enquanto permanecem escondidos atrás das paredes de prédios valiosos na avenida Paulista, refrescados pelo ar-condicionado a milhão e pisando o chão acarpetado do poder econômico.
Dom Phillips e Bruno Pereira! Seguiremos os seus exemplos de amor e solidariedade! Pelo fim imediato da exploração do ouro e demais riquezas das Terras Indígenas. Fora Bolsonaro e seu governo genocida!
Leia mais sobre os desaparecimentos de Bruno Pereira e de Dom PhillipsAQUI.
"Está contribuindo para a permanência dos assediadores de mulheres, a já prometida liberação geral do porte de arma, as milícias", escreve o jornalista
247 -"Ladroagem eleitoral". É assim que o jornalista Janio de Freitas, em artigo naFolha de S. Paulo, caracteriza a aprovação daPEC do estado de emergência pelo Senado, que autoriza o governo federal a gastar mais de R$ 40 bilhões por meio de benefícios sociais, a três meses das eleições.
Na coluna, ele criticou duramente os deputados da oposição que votaram a favor da PEC: "É injustificável e vergonhoso que a oposição, incluída a chamada esquerda, tenha votado e vote outra vez a favor desse golpe parlamentar-eleitoral, que cria até o perigoso estado de emergência. A alegação oposicionista, de que não poderia opor-se aos auxílios sociais infiltrados nessa mudança constitucional, é oportunista ou, em eventual sinceridade, obtusa. A mistura ardilosa e má-fé são explícitas".
"Bolsonarista ou oposicionista, quem votou no Senado e quem votar na Câmara pela emenda que derruba a proibição de gastos eleitoreiros nos 90 dias antes da eleição —fundamento das regras anticorrupção eleitoral—, não está dando um voto".
"Está contribuindo para a permanência dos assediadores de mulheres, a já prometida liberação geral do porte de arma, as milícias, o desmatamento e as extrações ilegais da Amazônia, o garimpo e o contrabando, os cortes de verbas da saúde e da educação, a repressão à cultura, os privilégios a militares e policiais, o racismo e variadas fobias desumanas", escreveu.
Em "A deliquência se desnuda", diz Janio de Freitas:
“É um sistema quadrilheiro que começa a desvendar-se. Ficam bem à vista duas estruturas que têm a Presidência da República como elo entre elas. Uma age dentro da administração pública, em torno dos cofres, e reúne pastores da corrupção religiosa, ocupantes de altos cargos e políticos federais e estaduais. A outra age do governo para fora, na exploração ilegal da Amazônia, em concessões injustificáveis, e em tanto mais. Duas estruturas independentes que se conectam na mesma fonte de incentivos, facilitações e proteção para as práticas criminais”.
“A perda do Bruno hoje seria exatamente a perda de um grande embaixador de relação com os povos indígenas do Brasil” - Antenor Vaz, Conselho de Proteção dos Povos Indígenas Isolados
“Agora que os espíritos do Bruno estão passeando na floresta e espalhados na gente, nossa força é muito maior” - Beatriz Matos, antropóloga, esposa de Bruno
por Jeferson Miola
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Ainda estamos muito longe de conseguir apreender e compreender a dimensão e as consequências do assassinato do indigenista Bruno Pereira, ocorrido de modo bárbaro junto com o jornalista inglês Dom Philips na terra indígena do Vale do Javari.
Para o sertanista Antenor Vaz, do Conselho de Proteção dos Povos Indígenas Isolados, o assassinato do Bruno representa “a perda de um grande embaixador de relação com os povos indígenas do Brasil”.
É como se tivesse sido rompido o último e frágil elo de contato respeitoso entre o Brasil e os povos originários, os primeiros ocupantes do território brasileiro. O que poderá significar, portanto, uma catástrofe étnica e humanitária de proporções horripilantes.
Quanto mais detalhes e informações surgem sobre a vida do Bruno, dedicada amorosamente aos povos originários do Brasil, mais somos assomados por uma estranha nostalgia de não termos conhecido a fundo essa figura grandiosa e essencial para o presente e para o futuro do país.
Bruno destacou que “[…] Ituna [PA], Jacareúba-Katawixi [AM] e Piripkura [MT] são de interesses fundiários e minerários monstruosos. São terras relativamente grandes e que valem milhões e milhões de reais”.
Ele denunciou que estas áreas “estão no arco do desmatamento e no interesse de gente que manda no país hoje. De gente que manda na Funai. Esses caras do agronegócio retrógrado”.
Na entrevista, Bruno não hesitou em afirmar por quem o presidente da Funai, o delegado da Polícia Federal Marcelo Xavier, é bancado: “Não tem ninguém de graça. O que segura ele são deputados e senadores. O que estiver ao alcance dele, do presidente da Funai, ele vai fazer”, afirmou.
Bruno tinha consciência de que os indígenas “precisam de proteção do território e agentes especializados sabendo lidar quando eles andam fora do território ou precisam de um contato para sobreviver”. E arrematou: “tirar terra do índio é matar o índio. É o que estão tentando fazer. Vira uma eterna fuga [dos índios isolados], uma diáspora em busca de sua terra. É a história do Brasil”.
No governo militar do Bolsonaro, a expansão de atividades econômicas criminosas em territórios indígenas avançou vertiginosamente.
E não se tratam de atividades legais e sustentáveis, mas de estruturas capitalistas erguidas em bases criminosas, como garimpo, desmatamento, agropecuária ilícita e predatória, mineração, narcotráfico etc. Tudo em conexão com interesses de grupos privados nacionais sediados no Rio, em São Paulo e em Brasília; e de grupos privados estrangeiros, sediados principalmente nas metrópoles europeias.
O assassinato do Bruno não pode ser considerado como uma ação isolada de “lobos solitários”, sem mandantes, como apressadamente conclui a PF bolsonarizada.
O assassinato do Bruno e do Dom é o modus operandi de organizações criminosas apoiadas – seja por ação, seja por tolerância, ou por omissão – pelo próprio Estado. Tratam-se de organizações criminosas que eliminaram um obstáculo central à política ecocida, etnocida e genocida do governo militar.
O assassinato do Bruno, em síntese, representa a eliminação de uma importante barreira à expansão do banditismo capitalista em territórios indígenas.
A Amazônia não “é uma terra sem lei”, como a Folha de São Paulo advogou em editorial [16/6]. A Amazônia tem lei, sim, e a lei da Amazônia está estabelecida no “Capítulo VIII – Dos Índios” da Constituição brasileira.
Sem lei é o governo militar criminoso, que promove uma verdadeira guerra de ocupação para a realização do mais brutal processo de saqueio e pilhagem do Brasil, jamais visto em toda a história.
Uma guerra na qual o Exército ocupante do nosso território, no entanto, não é nenhuma força estrangeira, mas as próprias Forças Armadas brasileiras que, partidarizadas por suas cúpulas conspirativas, foram convertidas em milícias fardadas.
Esta guerra, que criou uma oportunidade formidável para os grandes capitais criminosos – nacionais e estrangeiros –, é vetor para um processo radical de espoliação e recolonização do Brasil.
O herói Bruno Pereira, antropólogo e indigenista, foi uma vítima mortal desta guerra.
Como no “tá tudo dominado” dofunk,o Brasil já não se escandaliza com nada. Congresso e sistema judiciário, ainda que neste último surjam alguns gemidos do Supremo Tribunal Federal, vivem em completa anomia, onde padrões normativos de conduta e de valores enfraqueceram ao ponto de quase desaparecer.
Assistimos a um período onde se aceita do ( e no) governo, as maiores barbaridades, desde o achaque rastaquera de tomar o dinheiro de servidores de gabinete até o envolvimento com o crime organizado e suspeitas de execução de ex-parceiro marginais.
Até mesmo quando a imprensa publica, há quase um aceitar como “pitoresco” e “natural” que as instituições da República não reajam ao absurdo, como se fosse parte da hegemonia política a associação ao crime, inclusive os de morte.
Cumprida a missão de derrubar um governo eleito, o próprio Ministério Público Federal, que se apresentava – não dá trabalho recordar – como a vestal da Lei, intocável e intolerante, aceitou-se em berço esplêndido, no qual bale feito cordeiro.
Numa única frase, Janio de Freitas condensa a situação de nosso país:Não há polícia, não há Judiciário, não há Congresso, não há Ministério Público, não há lei que submeta Bolsonaro ao[que lhe é]devido.
Nenhum presidente legítimo, desde o fim da ditadura de Getúlio em 1945 —e passando sem respirar sobre a ditadura militar— deu tantos motivos para ser investigado com rigor, exonerado por impeachment e processado, nem contou com tamanha proteção e tolerância a seus indícios criminais, quanto Jair Bolsonaro. Também na história entre o nascer da República e o da era getulista inexiste algo semelhante à atualidade. Não há polícia, não há Judiciário, não há Congresso, não há Ministério Público, não há lei que submeta Bolsonaro ao devido.
As demonstrações não cessam. Dão a medida da degradação que as instituições, o sistema operativo do país e a sociedade em geral, sem jamais terem chegado a padrões aceitáveis, sofrem nos últimos anos. E aceitam, apesar de muitos momentos dessa queda serem vergonhosos para tudo e todos no país.
Nessa devastação, Bolsonaro infiltrou dois guarda-costas no Supremo Tribunal Federal. Um deles, André Mendonça, que se passa por cristão, na pressa de sua tarefa não respeita nem a vida. Ainda ao início do julgamento, no STF, do pacotaço relativo aos indígenas, Mendonça já iniciou seu empenho em salvá-lo da necessária derrubada.
São projetos destinados a trazer a etapa definitiva ao histórico extermínio dos indígenas. O pedido de vista com que Mendonça interrompeu o julgamento inicial, “para estudar melhor” a questão, é a primeira parte da técnica que impede a decisão do tribunal. Como o STF deixou de exigir prazo para os seus alegados estudiosos, daí resultando paralisações de dezenas de anos, isso tem significado especial no caso anti-indígena: o governo argumentará, para as situações de exploração criminosa de terras indígenas, que a questão estásubjudice. E milicianos do garimpo, desmatadores, contrabandistas e fazendeiros invasores continuarão a exterminar os povos originários desta terra.
Muito pouco se fala desse julgamento. Tanto faz, no país sem vitalidade e sem moral para defender-se, exangue e comatoso. Em outro exemplo de indecência vergonhosa, nada aconteceu à Advocacia-Geral da União por sua defesa a uma das mais comprometedoras omissões de Bolsonaro. Aquela em que, avisado por um deputado federal e um servidor público de canalhices financeiras com vacinas no Ministério da Saúde, nem ao menos avisou a polícia. “Denunciar atos ilegais à Polícia Federal não faz parte dos deveres do presidente da República”, é a defesa.
A folha corrida da AGU é imprópria para leitura. Mas, com toda certeza, não contém algo mais descarado e idiota do que a defesa da preservação criminosa de Bolsonaro a saqueadores dos cofres públicos. Era provável que a denúncia nada produzisse, sendo o bando integrado pela máfia de pastores, ex-PMs da milícia e outros marginais, todos do bolsonarismo. Nem por isso o descaso geral com esse assunto se justifica. Como também fora esquecido, não à toa, o fuzilamento de Adriano da Nóbrega, o capitão miliciano ligado a Bolsonaro e família, a Fabrício Queiroz, às “rachadinhas” e funcionários fantasmas de Flávio, de Carlos e do próprio Bolsonaro. E ligado a informações, inclusive, sobre a morte de Marielle Franco.
Silêncio até que o repórter Italo Nogueira trouxesse agora, na Folha, duas revelações: a irmã de Adriano disse, em telefonema gravado, que ele soube de uma conversa no Planalto para assassiná-lo. Trecho que a Polícia Civil do Rio escondeu do relatório de suas, vá lá, investigações. O Ministério Público e o Judiciário estaduais e o Superior Tribunal de Justiça não ficam em melhor posição, nesse caso, do que a polícia. São partes, no episódio de implicações gravíssimas, de uma cumplicidade que mereceria, ela mesma, inquérito e processo criminais. O STJ determinou até a anulação das provas no inquérito das “rachadinhas”, que, entre outros indícios, incluía Adriano da Nóbrega.
Desdobrados nas suas entranhas, os casos aí citados revelariam mais sobre o Brasil nestes tempos militares de Bolsonaro do que tudo o mais já dito a respeito. Mas não se vislumbra quem ou que instituição os estriparia.
Pesquisa inédita indica que, mesmo a cerca de 300 km dos garimpos ilegais do rio Tapajós, mais da metade dos moradores da zona urbana de Santarém apresenta níveis de contaminação por mercúrio até quatro vezes superior ao limite recomendado pela Organização Muncial de Saúde (OMS). Entre os ribeirinhos, a contaminação chega a 90%.
O consumo de pescados contaminados pelos garimpos ilegais, do alto e médio rio Tapajós, é apontado como origem da presença de altos índices de mercúrio no sangue da população de cerca de 306 mil habitantes do município de Santarém, no Pará. É o que revela o artigo publicado em 28 de fevereiro no International Journal of Environmental Research and Public Health.
O estudo, realizado pela Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) em parceria com a Fiocruz e o WWF, coletou o sangue de 462 pessoas entre 2015 e 2019 e concluiu que todos os participantes da pesquisa apresentam níveis elevados de mercúrio no sangue, sendo que 75,6% deles apresentaram concentrações do metal acima do limite de 10 μg/L (microgramas por litro) recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS). A média da concentração na população santarena é quase quatro vezes superior ao limite seguro da OMS.
Barcos no porto de Santarém
A estudante de nutrição Larissa Neves, moradora da cidade, se surpreendeu com a pesquisa. “Eu sabia que a água estava contaminada, porque sempre que me banho no Tapajós fico com coceira no corpo, mas eu não tinha me tocado da contaminação dos peixes”, afirma.
A estudante trabalha com a venda de marmitas e afirma que seria difícil reduzir o consumo praticamente diário de peixes. “Todo domingo na minha casa é sagrado peixe assado, porque meu pai pesca, leva peixe para casa e a gente prepara nas marmitas pelo menos outras duas vezes por semana, não tem como eu deixar de comer”, pondera.
Todo domingo na minha casa é sagrado peixe assado, porque meu pai pesca, leva peixe para casa.
Larissa Neves, estudante de nutrição
Dos participantes do estudo, 203 são moradores da área urbana de Santarém e 259 vivem em oito comunidades ribeirinhas do município paraense, sete delas localizadas nas margens do rio Tapajós e uma nas margens do rio Amazonas. Entre a população ribeirinha, a alta exposição de mercúrio, usado na separação de ouro pelos garimpos ilegais, chega a mais de 90%.
Mapa com a localização do centro urbano de Santarém e as 8 comunidades ribeirinhas que participaram do estudo. Imagem: PMC
A investigação conclui que 57,1% dos participantes moradores da área urbana de Santarém apresentam taxas de mercúrio no sangue acima do considerado seguro pela OMS, e que a exposição ao mercúrio não se restringe às áreas dos garimpos, “mas pode ocorrer em grande parte da bacia hidrográfica que é bastante impactada pela atividade garimpeira”. https://flo.uri.sh/visualisation/8941803/embed?auto=1A Flourish chart
Participantes da pesquisa que declararam consumo diário de pescados apresentaram maiores taxas de mercúrio no sangue. Os dados indicam que este hábito alimentar está relacionado a diferentes marcadores sociais, como local de residência e escolaridade. O maior nível de mercúrio foi detectado no grupo de analfabetos (45,8 a 50,9 μg/L) e o menor entre os com ensino superior (17,3 a 31,6 μg/L).https://flo.uri.sh/visualisation/8941660/embed?auto=1A Flourish chart
Segundo o artigo, a dependência dos pescados e falta de acesso a outras variedades de proteína, acentuada pela crise econômica e social desencadeada pela pandemia, além da preferência cultural por esse consumo, é um fator de maior vulnerabilidade para a contaminação. https://flo.uri.sh/visualisation/8941772/embed?auto=1A Flourish chart
Homens apresentaram maiores concentrações de mercúrio do que mulheres, e participantes com idade entre 41 e 60 anos apresentaram níveis mais elevados do que o grupo mais jovem, composto por pessoas entre 21 e 40 anos.https://flo.uri.sh/visualisation/8941601/embed?auto=1A Flourish charthttps://flo.uri.sh/visualisation/8941368/embed?auto=1A Flourish chart
A prevalência da exposição ao mercúrio também é maior entre os ribeirinhos que vivem às margens do rio Tapajós (59,5%) em comparação aos moradores da margem do rio Amazonas (40,5%).
“Independentemente do local de residência, a exposição humana ao mercúrio pode ocorrer, pois depende dos hábitos alimentares, mas também das próprias características individuais”, explica Heloisa do Nascimento Moura Menezes, pesquisadora do Programa de Pós Graduação em Ciências da Saúde da Ufopa e coordenadora do estudo. “Todos aqueles que têm o hábito de consumir peixe frequentemente estão sob risco de exposição ao mercúrio”, completa.
Independentemente do local de residência, todos aqueles que têm o hábito de consumir peixe frequentemente estão sob risco de exposição ao mercúrio.
Heloisa do Nascimento Moura Menezes, pesquisadora Ufopa
De acordo com a pesquisadora, alguns participantes que vivem na região urbana do município apresentam índices tão altos quanto os das populações ribeirinhas e o crescimento desenfreado da atividade garimpeira pode piorar este quadro.
O artigo explica que o uso “generalizado, não regulamentado e descontrolado” do mercúrio na atividade garimpeira já liberou milhares de toneladas de resíduos contendo o metal tóxico no bioma amazônico. “Na Amazônia brasileira, o garimpo foi considerado responsável pela contaminação ambiental, bem como pela exposição da vida selvagem e humana ao longo dos anos; no entanto, a magnitude da exposição permanece incerta devido à ilegalidade do setor, dificultando dados credíveis sobre a quantidade de mercúrio liberada no ambiente”.
Consumidores compram peixe na orla de Santarém. A atividade garimpeira já liberou milhares de toneladas do metal tóxico no Tapajós. Fotos: Julia Dolce
Riscos para a saúde
A pesquisa avaliou também alterações nos indicadores de saúde. O mercúrio é um metal pesado tóxico, frequentemente associado a danos nos tecidos e deficiências na saúde mental, além de alterações comportamentais, imunológicas, hormonais e reprodutivas. Alterações nos rins e nos fígados foram registradas entre os participantes santarenos, sendo que marcadores mais altos foram registrados segundo a concentração de mercúrio.
Segundo a coordenadora do estudo, a literatura científica sobre a contaminação por mercúrio mostra que, em geral, pessoas com níveis mais altos do metal apresentam sintomas mais graves, mas sintomas são observados também desde níveis baixos de contaminação. “Por isso é importante identificar precocemente a exposição ao mercúrio, para que os sintomas não se agravem”, pondera.
Segundo o médico Fábio Tozzi, coordenador do Programa Saúde Comunitária do Projeto Saúde e Alegria (PSA) em Santarém, estão aparecendo cada vez mais pacientes que trabalham em garimpo ou que sofrem diretamente as consequências do uso do mercúrio na atividade, apresentando sintomas neurológicos, digestivos, psiquiátricos e respiratórios. No entanto, segundo ele, a contaminação por mercúrio ainda é uma doença muito subnotificada. “O diagnóstico é pouco utilizado, mas pela grande quantidade de garimpos da região isso começa sim a ser um alerta muito grande e o sistema de saúde precisa ter resposta para as populações”.
Incluir a testagem dos níveis de mercúrio nos exames da atenção básica de saúde é uma medida apontada pelo médico para enfrentar o problema. “Os gestores devem estar preparados para identificar e mitigar os efeitos da presença do mercúrio na água e nos peixes”, afirma Tozzi, que atua no desenvolvimento de modelos de atenção básica para populações ribeirinhas em uma parceria entre o PSA, a Ufopa e a Secretaria Municipal de Saúde de Santarém.
Impacto socioeconômico
Um dos mais antigos feirantes de Santarém limpa o peixe antes de ser comercializado
Diante dos resultados da pesquisa, os vendedores de peixes no Mercadão 2000, localizado na orla de Santarém, se apressam para afirmar que seus peixes não estão contaminados. “Esse peixe aqui é de criação, não é do rio não”, afirmou o vendedor Valdenir da Silva Lima, enquanto limpava um tambaqui. Ele destaca os impactos econômicos que o setor teve com a preocupação da população santarena em relação à doença da “urina preta”, nome popular da Doença de Haff, que no segundo semestre de 2021 foi relacionada a uma toxina presente nos peixes. “Atrapalhou muito, ficamos quase um mês vendendo pouco”, revela.
Outro vendedor, que preferiu não se identificar mas revela ser um dos mais antigos do mercado, afirma que seus peixes vêm dos lagos da várzea do rio Amazonas e também lembra os impactos das notícias sobre a “urina preta”. “Acabou para nós aqui, tivemos que jogar um monte de peixe fora, doamos, agora que estamos voltando a vender”.
O motorista particular Ninito José Miranda de Souza tinha acabado de comprar uma peça de pirarucu, quando conversou com a reportagem. “Se tiver, eu como peixe o dia inteiro”, revela. No entanto, com o resultado da pesquisa, ele afirma que irá reduzir o consumo. “Vou ter que dar um tempo, se tá fazendo mal não posso ficar no erro”.
Na sacola, o motorista particular Ninito José carrega sua peça de Pirarucu
Já a aposentada Noêmia Pereira Duarte, natural de Itaituba (PA) e moradora da vila santarena de Alter do Chão, que também saía da feira do pescado após comprar pacu e acará, desconfia da pesquisa. “Toda a vida eu comprei peixe, não tem mercúrio nenhum, isso é mentira”, afirma.
Toda a vida eu comprei peixe, não tem mercúrio nenhum.
Noêmia Pereira, aposentada
A pesquisadora Heloisa do Nascimento Moura Menezes afirma que o estudo não tem como objetivo trazer impacto negativo para pescadores e feirantes. “Somos solidários a todos aqueles que direta ou indiretamente dependem da pesca. Não estou aqui para criar alarde, mas sim para trazer à tona uma discussão necessária e urgente”, explica.
Segundo Menezes, o resultado não indica que a população deva deixar de consumir peixe, uma vez que existem formas alternativas de se reduzir a exposição ao mercúrio. “Nossa recomendação não é restringir o consumo de peixes, o que sugerimos é uma mudança de hábitos alimentares, justamente porque temos a preocupação com todos aqueles que dependem da pesca para sobreviver”, explica.
De acordo com a pesquisadora, a população pode variar o tipo de peixe consumido, uma vez que alguns peixes, como os carnívoros, têm mais mercúrio do que os demais, reduzir as porções consumidas e a frequência de consumo e introduzir mais frutas, legumes e alimentos antioxidantes na alimentação. “O conhecimento é uma ferramenta preciosa quando se pensa em prevenção”, completa.
Menezes aponta também que o objetivo do estudo é promover uma discussão sobre práticas mais sustentáveis para redução do mercúrio no ambiente. “A redução da contaminação do rio e dos peixes pode levar anos, portanto, precisamos não só acabar com as atividades que liberam mercúrio no ambiente, como também buscar formas de proteger a saúde das populações que vivem na região amazônica e que ainda irão conviver por muitos anos com as consequências da exposição mercurial existente hoje”, conclui.
Desde que a fase de coleta das amostragens da pesquisa foi concluída, em 2019, o garimpo ilegal no rio Tapajós cresceu significativamente. De acordo com um levantamento do Instituto Socioambiental, apenas entre janeiro de 2019 e maio de 2021, a área devastada pelo garimpo dentro da Terra Indígena Munduruku, localizada no médio Tapajós, cresceu em 363%.MARCADO: garimpomercúriomineração ilegalouropescario Tapajós