Aí está esse é o Deputado Federal ,Eduardo Bolsonaro que afirma ter pena da cobra usada na tortura contra uma mulher, contra uma torturada a jornalista Miriam Leitão isso revolta.
Discurso de ódio e apologia da cruel e sangrenta ditadura militar de 1964, que durou 21 anos de prisões políticas, sevícias, sofrimento, deportações, assassinatos e construções de cemitérios clandestinos
247 -O deputado Eduardo Bolsonaro revoltou internautas neste domingo (3) ao debochar da tortura que a jornalista Miriam Leitão, colunista do Globo, sofreu durante a Ditadura Militar.
Eduardo Bolsonaro reagiu a tweet em que Miriam divulgava sua coluna que falava que Lula e Jair Bolsonaro não são iguais e que Bolsonaro é inimigo confesso da democracia. "Ainda com pena da cobra", respondeu o parlamentar.
Miriam Leitão se manifestou sobre a totura da qual foi vítima emreportagem do Globode 2014:
Dois dias depois de ser presa e levada para o quartel do Exército em Vila Velha, cidade próxima a capital Vitória, no Espírito Santo, a jornalista Míriam Leitão, na época militante do PCdoB, foi retirada da cela e escoltada para o pátio. Seu suplício, iniciado no dia 4 de dezembro de 1972, até ali já incluía tapas, chutes, golpes que abriram a sua cabeça, o constrangimento de ficar nua na frente de 10 soldados e três agentes da repressão e horas intermináveis trancada na sala escura com uma jiboia. A caminho do pátio escuro, os torturadores avisaram que seria último passeio, como se a presa estivesse seguindo para o fuzilamento", narra a reportagem.
Míriam Leitão
Qual é o erro da terceira via? É tratar Lula e Bolsonaro como iguais. Bolsonaro é inimigo confesso da democracia. Coluna de domingo
Única via possível é a democracia | Míriam Leitão - O Globo
O problema dos candidatos da terceira via é a falta de clareza sobre a base das suas propostas. Os projetos têm se apresentado por oposição e não por definição.
Eduardo Bolsonaro
@BolsonaroSP
Ainda com pena da (o safado careca, tão covarde quanto o pai que tem o corte de cabelo à Hitler, apagou o post de apologia ao crime, à tortura, à cruciação ensinada e praticada pelo coronel Ustra, à sevícia do delegado Fleury do esquadrão da morte, assassinado pelos comparsas, pelos cúmplices dos porões da ditadura como queima de arquivo, à Pedro Seelig, que torturou e matou o próprio filho adolescente.
Eduardo Bolsonaro
@BolsonaroSP
Ainda com pena da …
educarvalhol
@educarvalholl
Nojento. Você é nojento. Nojento.
xico sá
Nojento
Ti★ZONAHilda Resende - PT
O nojento me bloqueou, mas proveito aqui para dizer que vi o print e tenho nojo!
o sincerão
Nojo. Ódio e Nojo.
Distopia Brazil
Vera Magalhães VACINA SIM
Miriam Leitão foi torturada grávida pela ditadura que essa família apoia. O deputado federal por São Paulo faz um comentário nojento e indigno desse. A infâmia está tão normalizada que faz o que faz e não sofre nenhuma punição do conselho de ética. Pessoa baix
EDSON FILHO
O bolsonarismo é muito nojento, Eduardo Bolsonaro defende e zomba da tortura sofrida por Miriam Leitão no regime militar e Gabriel Monteiro é um estuprador nojento que praticou relações sexuais com adolescentes o #Fantastico hoje tá recheado
Wesley Teixeira
Não é possível que isso seja real. Meu Deus, quanta crueldade e perversidade... A Míriam foi torturada GRÁVIDA na ditadura e um dos castigos foi ela ter ficado presa com uma jibóia. Esse comentário do Eduardo só mostra o quanto esse governo é nojento e deplorável. Nojo define
Nilto Tatto - #ForaBolsonaro
À Miriam Leitão total solidariedade, ao nojento Bananinha ofensor, desprezo, à ditadura que tortura, fere a dignidade humana e mata, ódio e nojo infinito
Mônica Francisco
@MonicaFPsol
A família Bolsonaro é adoradora da ditadura militar e de torturadores. É nojento que o deputado federal, eleito por São Paulo, faça apologia às torturas a que Miriam Leitão foi submetida e o Conselho de Ética da Câmara não se pronuncie.
Renata Souza
@renatasouzario
É odioso e nojento! O filhote de Bolsonaro é misógino e faz apologia à tortura.
@miriamleitao estava grávida e tinha 19 anos. Minha solidariedade à Míriam! Os Bolsonaro merecem a latrina de nossa história
Randolfe Rodrigues
@randolfeap
Miriam Leitão foi torturada grávida pela ditadura que a família Bolsonaro apoia. Esse comentário é nojento, covarde e asqueroso, o que reflete o que é essa família. Está chegando a hora de mandar esses bichos escrotos de volta para o esgoto. Minha solidariedade à
Não chamem esse nojento de Dudu Bananinha, pq remete a um ser infantilóide!! É um adulto, desprezível, psicopata, que não tem sentimento por nada!! Vc pode discordar em tudo, mas não pode NUNCA fazer chacota com quem foi torturada enquanto estava grávida!! Ódio e nojo!!
Natália Bonavides
@natbonavides
A Câmara dos Deputados não pode aceitar que um deputado deboche dos crimes da ditadura. A solidariedade a Miriam Leitão, torturada aos 19 anos e grávida, precisa ser a punição de Eduardo Bolsonaro. Apresentaremos denúncia ao conselho de ética!
BESTAS=FERAS. A santíssima trindade da tortura na ditadura de 1964 – Morreu Pedro Seelig: como o coronel Brilhante Ustra e o delegado Fleury, todos impunes
Durante os anos mais turbulentos da ditadura militar de 1964, Seelig resumia na sua figura de delegado mais temido do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) o estágio supremo de violência e bestialidade
por Luiz Cláudio Cunha - Jornal GGN
O delegado de polícia Pedro Carlos Seelig morreu em Porto Alegre na terça-feira, 8 de março, fulminado por um infarto aos 88 anos, com sequelas da covid. Ficou dois meses internado, até sair para morrer em sua casa de vidros coloridos e revestimento de azulejo no bairro da Tristeza, zona sul da capital. Algum leitor desatento dos burocráticos, ineptos registros dos principais jornais e portais da internet poderia imaginar que era apenas a morte encoberta de um policial irrelevante, que não merecia mesmo a atenção da imprensa. Grave erro.
Durante os anos mais turbulentos da ditadura militar de 1964, Seelig resumia na sua figura de delegado mais temido do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) o estágio supremo de violência e bestialidade que a repressão política disseminou pelo Rio Grande do Sul e pelo Brasil. Foi o mais notório e intimidante torturador gaúcho, símbolo maior do terror de Estado que lhe garantiu lugar eterno no panteão dos grandes patifes da repressão brasileira. Seelig formou, ao lado do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, chefe do Departamento de Operações de Informações-Centro de Operações e Defesa Interna (DOI-CODI) do II Exército, e do delegado Sérgio Fleury, do DOPS de São Paulo, a santíssima trindade da tortura brasileira.
Ganhou espaço merecido na lista definitiva dos 377 brasileiros acusados de graves violações dos direitos humanos cometidas durante os 21 anos do regime militar de 1964-85, segundo o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Ali se misturam generais-presidente e sargentos, coronéis e inspetores, diplomatas e médicos legistas, policiais militares e civis e até um ex-piloto de companhia aérea. No topo da cadeia de comando da repressão, foram denunciados os 53 militares que comandaram o aparato repressivo brasileiro nas duas décadas de violência como política de Estado: os cinco generais-presidentes (Castello Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo) e os três ministros-militares da Junta Militar que governou o país por dois meses em 1969. Além deles, como cúmplices, são citados seis ministros do Exército, sete da Marinha, cinco da Aeronáutica, três chefes do Serviço Nacional de Informações (SNI), oito do Centro de Informações do Exército (CIE), onze do Centro de Informações da Marinha (CENIMAR) e cinco do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (CISA).
Logo abaixo, na pirâmide da repressão, são apontados pela CNV outros 84 militares, policiais e um diplomata, responsáveis em diferentes níveis pela gestão do aparato repressivo. O número 71 da lista é o coronel Brilhante Ustra, que organizou e comandou entre 1970 e 1974 o DOI-CODI paulistano da rua Tutoia, o mais letal do país, onde morreram 51 pessoas sob tortura. Finalmente, completando a relação dos torturadores, estão os 240 militares e policiais com responsabilidade direta naviolência física, os torturadores que fizeram o serviço sujo dos porões. Fleury é o número 367 da lista e Seelig, o 333.
O fã de Fleury
Quando estourou o golpe de 1964, Seelig estava há três meses no lugar certo: o DOPS de Porto Alegre. Aos 23 anos, tinha trocado o quepe de motorista de ônibus pela boina vermelha, a jaqueta, a calça cáqui com listra vermelho e o negro cassetete de borracha da tropa de choque da antiga Guarda Civil da capital gaúcha, formada por lutadores profissionais para dispersar tumultos. Aos 29, entrou na Polícia Civil como escrivão de 3ª classe. No primeiro semestre de 1964, teve uma rápida passagem pelo DOPS, antes de passar cinco anos na ronda de delegacias do interior. Com o curso de delegado, voltou para a capital e para o DOPS em junho de 1969, quando o país já amargava seis meses de AI-5.
Foi destacado para o Serviço de Investigações da sensível Divisão de Segurança Social do DOPS, cada vez mais atarefada pelo aquecido clima político nas ruas e universidades. No mês seguinte, julho, nascia em São Paulo a Operação Bandeirantes (OBAN), a mãe dos DOI-CODI, que integraria militares e policiais no estágio mais sofisticado e virulento da repressão política, excitada pelo combate mais intenso à luta armada nos centros urbanos.
Seelig era discípulo do colega mais famoso de São Paulo, o delegado do DOPS Sérgio Fleury, que ganhou fama internacional por sua ligação visceral com os meliantes do Esquadrão da Morte, de onde tirou o know-how para eliminar os militantes mais radicais da esquerda. Ficou amigo de um astro em ascensão na comunidade de informação, o major Carlos Alberto Brilhantes Ustra, antes ainda de sua notoriedade como comandante do sangrento DOI-CODI em São Paulo. Inspirado nesses notáveis exemplos, Seelig foi promovido em 1970, aos 36 anos, para a direção da Divisão de Segurança Social do DOPS, tornando-se o homem mais importante da repressão gaúcha no momento buliçoso em que o Estado convivia com sete organizações da luta armada: VPR, ALN, VAR-Palmares, M3G, POC, M-26 e FLN.
Nas duas maiores capitais brasileiras, Rio de Janeiro e São Paulo, o combate à guerrilha urbana era tarefa do Exército e seus DOI-CODI, onde morreram pelo menos 81 das 339 pessoas assassinadas sob tortura na ditadura – 51 no DOI paulistano da rua Tutoia, 30 no DOI carioca da rua Barão de Mesquita. Segundo documentos recolhidos pela Comissão Nacional da Verdade, os dois locais concentravam quase um quarto (23,8%) das vítimas oficiais do regime militar. No Rio Grande do Sul, essa tarefa literalmente bruta não sujou as mãos do DOI-CODI local. A missão foi delegada a Pedro Seelig e sua comprovada eficiência repressiva. Em janeiro de 1971, na fervura da política local, o DOPS de Seelig contabilizava a prisão de 256 esquerdistas e a apreensão de 15 metralhadores, 49 pistolas, nove automóveis, 27 mil dólares e milhares de cruzeiros (a moeda da época). Investigou 13 assaltos a banco praticados pela esquerda. Esquadrinhou a frustrada tentativa de sequestro do cônsul estadunidense Curtis Cutter por um comando desarrumado da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).
Na passarela do DOPS
O policial mais famoso do Rio Grande do Sul não tinha o figurino desgrenhado de um meganha rastaquera de filme noir : um ‘tira’ balofo de uma delegacia qualquer da periferia, com a barriga saltando dos botões torturados pela obesidade, a gravata cafona desarrumada e frouxa no pescoço gordo, o suor escorrendo pelo rosto. Nada disso. Seelig contrariava o padrão folclórico.
Em uma rua elegante, o vaidoso Seelig poderia ser confundido com um executivo arrogante e descolado da avenida Paulista ou do centro financeiro de Wall Street. Porte atlético, pose de galã, exibia músculos em vez de gordura espalhados pelo corpo esguio de mais de um metro e oitenta. Tinha alfaiate próprio e preferênciapor ternos de corte justo e conjuntos esportivos, tipo safári, nada comuns em delegacias. Pelo talhe elegante, Seelig parecia predestinado à passarela iluminada de modelo de loja de grife, não aos corredores sombrios das celas da repressão.
Sua alinhada cabeleira precocemente grisalha, repartida ao meio, caía em ondas disciplinadas sobre o pescoço, escoltando duas abundantes costeletas que quase escondiam as orelhas. O rosto anguloso, mais retangular, exibia traços duros, esculpidos por cinzel prussiano. Grossas sobrancelhas, mais escuras que os cabelos, acentuavam a frieza dos olhos, separados por um nariz maciço que ressaltava o tom marcial do rosto. O perfil nasal se impunha sobre os lábios finos e o queixo quadrado. A pele mais escura da face mostrava que os pelos rígidos da barba resistiam à lâmina matinal com rebeldia crônica, quase subversiva.
Aos sábados, passava rapidamente pelo DOPS, no segundo andar do Palácio da Polícia, sede da Secretaria de Segurança, na avenida Ipiranga, vestido imaculadamente de branco. Ninguém estranhava. Era o dia em que Seelig, sem demanda extra na delegacia, saía dali para jogar tênis no clube.
Olívio Lamas Baru Derkin/Coojornal Ricardo Chaves
Delegado Pedro Seelig era outro fora do ambiente funesto do DOPS: vaidoso, elegante, garboso, aprumado
No trabalho, conforme testemunho de sobreviventes, Seelig sabia alternar a fala mansa com o rigor e a rudeza necessários para extrair o máximo possível de informações dos presos políticos no tempo mínimo indispensável. Na sala de tortura do DOPS, apesar do capuz de praxe que os presos usavam para não identificar os torturadores, a presença de Seelig era antecipada pelo odor torturante do perfume dedo-duro que usava e pelo codinome ‘Major’ com que era tratado pelos subordinados. Com um sotaque levemente carioca, que ele achava ser moderno e charmoso, tentava ser claro e direto pelo uso de gíria e de palavrões dos mais jovens.
Em novembro de 1977, o repórter Rafael Guimarães, empossado dias antes no comando do centro acadêmico da faculdade de Jornalismo da PUC gaúcha, caiu numa blitz da Brigada Militar na avenida Independência, perto de casa. Com o uniforme da época – calça Lee, tênis, camiseta e bolsa a tiracolo –, Rafael parecia o suspeito de sempre. O caldo entornou quando acharam na bolsa um exemplar do jornal de esquerda Movimento, um livro de teoria política, um caderno de anotações e uma papelada em xerox com um título eloquente: “A redemocratização do país pelo desmantelamento do aparelho repressivo”. Foi levado direto para o DOPS de Seelig. Depois das perguntas de praxe do escrivão de plantão, apareceu o delegado. Rafael, hoje escritor e dono de uma bem-sucedida editora de livros, conta em depoimento publicado em 2021 no jornal eletrônico não.til:
Até que ele entrou na sala. Quer dizer, primeiro, entrou o perfume, depois o homem magro, mais baixo que eu pensava, cabelo grisalho repartido no meio, moderno na época, mas hoje absolutamente ridículo. Pedro Carlos Seelig, o símbolo da repressão no Rio Grande do Sul, o mais frio, eficiente e covarde torturador de que se tem notícia nestes pagos.
Na época, ainda era um mito. Só aparecia em fotos distantes e desfocadas e nos relatos dolorosos de dezenas de homens e mulheres por ele torturadas. Quando entrou, eu soube imediatamente de quem se tratava. Literalmente, tremi nas bases. Olhou para mim com desprezo e mostrou um desenho numa das páginas do meu caderno de anotações:
– Que mapa é esse? –. Era um mapa que tinha desenhado semanas antes, com base nas informações de um caminhoneiro, para chegar a uma cidadezinha na fronteira norte do estado onde eu tinha feito uma matéria sobre o cultivo da citronela, uma planta que serve de matéria prima para a produção de perfumes. Certamente, a mente paranoica da repressão via naquele mapa mal feito um plano subversivo ou um futuro foco de guerrilha. Não contive um esboço de sorriso com tal absurdo, que ele naturalmente percebeu:
– Tá rindo de quê? –. Comecei a contar a história da citronela, mas ele interrompeu:
– Olha pra mim quando fala. Que idade tu tem, seu merda? Teu pai sabe que tu anda metido nessas coisas? –. “Metido em quê”, eu ia dizer, mas calei. Seelig me olhava fixo, esfregava um lábio no outro e flexionava os dedos das mãos. Baixei os olhos e me senti o maior covarde da face da terra.
Ele saiu e não mais entrou. O escrivão faz mais umas perguntas que eu respondi de forma triste e desanimada. Sobrevivi sem sequelas físicas ao encontro com o temível Pedro Seelig, o ‘Pedrão’, ao contrário de tantos que apanharam, sofreram castigos hediondos e desapareceram em suas mãos.
O susto mortal no filho
A partir do segundo semestre de 1970, fase mais aguda da repressão política do recém-empossado governo do general Médici, os presos do DOPS de Seelig foram obrigados a usar capuz nos interrogatórios. O Instituto Médico Legal recebeu ordens superiores para não mais exigir de presos oriundos do DOPS de Seelig a anamnese, o histórico clínico do paciente anterior ao exame de corpo de delito. O objetivo era claro: convencer os médicos legistas a esquecer a fase de duro interrogatório aplicado pelo time do ‘Pedrão’.
Apesar do recato forçado, Seelig ganhou da imprensa o título de ‘Fleury dos Pampas’, seu sanguinário modelo do DOPS paulistano. A face violenta do delegado gaúcho está marcada pelas cicatrizes da Justiça na sua machucada folha funcional: em 1957, Seelig foi processado por crime de lesões corporais e, em 1958, por agressão. O momento mais difícil de sua carreira ocorrera em 1973, quando enfrentou uma CPI na Assembleia Legislativa e a ameaça de julgamento pelo Tribunal de Júri de Porto Alegre em processo de homicídio qualificado, acusado da morte por afogamento de seu filho adotivo, Luís Alberto Pinto Arébalo, de 17 anos.
Na manhã do dia 6 de fevereiro de 1973, suspeito de ter roubado uma pequena quantia em dinheiro de uma associação comunitária presidida por Seelig, o menor foi levado para uma das celas do DOPS para ganhar “um susto” – por ordem do pai adotivo. Passou por duas sessões de pancada na “fossa”, a principal sala de torturas no fundo do corredor do DOPS. Arébalo apanhou por meia hora. À tarde, ao ouvir a voz do delegado, chamou por ele. Seelig abriu a porta e se espantou com o que viu.
– O que fizeram contigo, cara? Não era pra fazer isso com o guri… – disse, olhando contrariado para três caras feias de sua equipe. Quando Seelig saiu, eles devolveram Arébalo à “fossa”. Mais vinte minutos de pau, desta vez enfiando uma mangueira de água na boca. O garoto se afogou, passou a noite agonizando, tremendo de frio, respirando mal, com dores no peito. Enrolado em um cobertor, suava diante de um grande ventilador ligado o tempo todo. Horas depois, mais machucado do que assustado, Arébalo foi transferido às pressas para o Hospital Sanatório Partenon. Sussurrou para a irmã Celsa, chefe do serviço de triagem do hospital:
– Aqueles caras me bateram…. Aqueles caras lá, né! – Morreu quatro horas depois, no dia 8 de fevereiro, e não foi de susto. O laudo de necropsia disse que Arébalo sucumbiu por “insuficiência respiratória aguda, consecutiva a afogamento parcial”, antecedida por traumas que debilitaram o jovem. O afogamento, escreveram osegistas, foi comprovado pela presença de plâncton mineral nos assustados pulmões do rapaz.
Arquivo Coojornal Ilustração Edgar Vasques Carlos Rodrigues
Arébalo, o filho de 17 anos, morreu afogado na tortura do DOPS: devia ser só um ‘susto’, rezava Seelig.
Indiferente a essas líquidas evidências, a maioria governista na CPI desensopou a denúncia e concluiu secamente – por quatro votos da ARENA governista contra três do MDB oposicionista – que Seelig poderia no máximo ser acusado de ‘abuso de autoridade’. Na Justiça, o juiz Luiz Carlos Castello Branco, alegando ‘falta de provas’, impronunciou o delegado. A defesa alegou que o ventilador assassino é que causou a pneumonia fatal no garoto. Emotivo, Seelig chorou perante a família e os amigos policiais. Humilde, dobrou-se diante dos fotógrafos dos jornais, persignado em um banco de igreja, e orou contrito na missa pela alma do finado filho adotivo. Parecia um pai devastado, não um delegado incriminado.
A mão amiga e verde-oliva
Seelig, no entanto, tinha mais fé na força terrena do que no conforto divino. Especialmente na força verde-oliva. Rosto compungido ainda de dor, pouco antes da sentença complacente do caso Arébalo, o delegado submeteu-se a uma reconfortante cerimônia castrense: a entrega solene pelo Exército da “Medalha do Pacificador”, honraria militar concedida sempre por indicação de um general e entregue apenas àqueles que se destacaram na luta contra a subversão. Ele tinha o amparo da força terrestre da ditadura, fiel ao seu lema: “Braço forte, mão amiga”.
Ricardo Chaves
Seelig e seu braço forte: o Exército vê o pacificador, não o torturador
O delegado, ao contrário do filho, era imune a sustos. Pedro Seelig era um dos intocáveis do regime. Depois do caso Arébalo, o delegado teve por duas vezes a refrescante sensação da boa imagem junto à opinião pública. Em 1974, quando ainda respondia ao processo por homicídio, Seelig comandou uma espetaculosa operação policial para libertar o estudante Alexandre Möeller das mãos de seus sequestradores. Depois que a família pagou o resgate, o garoto, de 13 anos, acabou sendo resgatado por agentes da Polícia Rodoviária Federal. Em 1977, em nova ação sensacional, Seelig coordenou as investigações sobre seis crianças de um bairro da capital, o Cristo Redentor, sequestradas pelo comerciário Santino Ferreira – mas o sequestrador, em outro desfecho frustrante para o delegado, acabou sendo preso por uma anônima patrulha da Brigada Militar.
Nessa época, o Internacional era o grande time do país, com Paulo Roberto Falcão, Paulo César Carpegiani, Batista, Manga e don Elias Figueroa. Para desespero dos gremistas, já acumulava o segundo título de campeão brasileiro de futebol. Era comum então encontrar Seelig, fanático torcedor colorado, nos vestiários do estádio Beira-Rio confraternizando com jogadores e dirigentes após as grandes vitórias, que ele assistia confortavelmente instalado em uma das cabines reservadas à imprensa
Durante o campeonato gaúcho de 1978, ele mesmo organizou o esquema de segurança do time colorado em alguns jogos mais arriscados do interior. O delegado circulava pelos corredores do DOPS e pelo gramado do Beira-Rio com muita familiaridade. Seu grande amigo e estrela principal do Inter, o meio-campo Falcão, era o terceiro melhor jogador do mundo em 1982 e 1983, segundo a revista inglesa World Soccer. O volante foi escalado em 2021 na melhor seleção brasileira de todos os tempos, ganhando a camisa 5 de um meio de campo de luxo que divide com Didi e Pelé, segundo a eleição de 170 jornalistas e narradores profissionais de esporte selecionados pela revista Placar.
Falcão tinha como procurador o então preparador físico do time, Reinaldo Jorge Salomão – filho de um cunhado de Seelig e também delegado do DOPS. O craque colorado retribuía sua presença no estádio visitando-o no DOPS.
– Olha, eu sou suspeito pra falar do Pedro, porque sou muito amigo dele. Conheci ele em 1972, no tempo em que o Salomão estava nos juvenis. Sou amigo dele desde 1974, quando às vezes eu ia lá na polícia. Até hoje a gente sai, vamos a festas juntos. Ele é bem relacionado – dizia Falcão, driblando com a elegância habitual as perguntas incômodas da imprensa.
O time do carcará
JB Scalco Olívio Lamas
Falcão e Seelig, dois amigos elegantes: só o craque não batia no seu local de trabalho
No futebol, ao contrário da leveza e classe de craque de Falcão, Seelig era um zagueiro de estilo duro e botocudo, que maltratava mais os adversários do que a bola. Como provaria depois no DOPS, gostava de bater. Por isso, alto e vigoroso, era o temido capitão do time de futebol da Secretaria de Segurança, nos idos de 1967. A família trazia a polícia no sangue: tinha uns dez ou doze parentes com o sobrenome Seelig servindo na corporação. Dava para formar um time – e formava.
A parentada integrava uma unida e exclusiva equipe doméstica chamada Carcará. Além do sobrenome, o que dava harmonia ao time era o lema – inspirado na música de 1965 de João do Valle – que atemorizava os adversários: “pega, mata e come”. O comissário de polícia Omar Seelig, primo-irmão de Pedro, definiu assim o time familiar para os repórteres Najar Tubino e Caco Schmidt, do semanário Coojornal, em 1979:
– No Carcará, do umbigo pra baixo é canela! Quando o cara não dá pau, a gente chama e diz: “Meu filho, qual é o teu negócio? Vai pra casa e bota uma sainha, vai…”
Passados 43 anos, essa corajosa reportagem de primeira página do bravíssimo semanário da Cooperativa dos Jornalista de Porto Alegre ainda é a única, solitária investigação sobre Seelig. O resto da imprensa calou-se, por quatro décadas, intimidada pela fama do personagem maior da tortura.
Arquivo CooJornal
A reportagem corajosa: um feito ainda inédito, passados 43 anos
No jogo bruto do DOPS, o estilo de atuação de Seelig ficou mais doloroso do que o do Carcará. Dos cabelos para baixo, tudo era canela, ninguém usava sainha, era puro pau. Em 1969, ao mesmo tempo em que nascia em São Paulo a Operação Bandeirantes, era criada em Porto Alegre a Divisão Central de Investigações (DCI). Quando a OBAN virou DOI-CODI, no ano seguinte, a DCI continuou ocupando o espaço central da repressão no sul. Na verdade, havia algumas diferenças.
Em São Paulo, o DOI-CODI, com a parceria do DOPS, fazia tudo – da análise das informações aos pedidos de busca e combate nas ruas, passando pela sangrenta fase de interrogatórios e torturas. Em Porto Alegre a DCI do coronel Attila Rohrsetzer processava as informações e coordenava o combate à subversão, mas delegava ao DOPS de Pedro Seelig o serviço sujo e perigoso – o suplício dos interrogatórios e as operações externas de combate. Embora formalmente ligada ao secretário de Segurança, a DCI se reportava diretamente ao comandante do III Exército e à 2ª Seção do Estado-Maior, ligados ao CIE em Brasília. O que o DOPS e o DOI-CODI somavam em São Paulo se concentrava em Porto Alegre, com vigor redobrado, na DCI e seu braço executor, o DOPS. Ou seja, o delegado Pedro Seelig era sozinho, em Porto Alegre, o que o delegado Sérgio Fleury e o coronel Brilhante Ustra representavam juntos em São Paulo em termos de truculência.
Os estádios dos torturados
Quase metade dos casos de tortura no Rio Grande do Sul que chegaram ao Superior Tribunal Militar (STM), instância máxima dos inquéritos contra presos políticos,aconteceu no quintal de trabalho de Seelig. Nunca se saberá o número exato de vítimas, porque nem todas as denúncias chegaram a Brasília. Segundo levantamento feito pelo projeto Brasil Nunca Mais, da Arquidiocese de São Paulo do cardeal Paulo Evaristo Arns, nos primeiros treze anos da ditadura – de 1964 a 1977 – houve 6.016 denúncias de torturas em todo o país, espalhadas ao longo de 707 processos julgados pelo STM.
Em uma simples conta aritmética, isso representa cerca de 8,5 denúncias de maus-tratos em cada causa levada ao tribunal. Quando o cardeal Arns acusou a ocorrência de 502 casos de tortura no DOI-CODI de São Paulo, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que comandou aquele inferno na fase mais dura, entre 1970 e 1974, ironizou:
– Não foram 502, foram mais de três mil pessoas que passaram lá. E ficam sempre inventando denúncias de torturas não comprovadas…
Nos 21 anos do regime militar brasileiro passaram 25 mil presos pelos cárceres da ditadura, que exilou outros dez mil. O Brasil Nunca Mais afirma que “dificilmente houve pessoas que passaram pelos processos de elaboração dos inquéritos policial-militares sem terem sido torturadas”. Se cada um desses presos representasse um processo, seria possível fazer uma estimativa assustadora sobre as fronteiras sempre imprecisas, ocultas, inóspitas da tortura. Nessa conta, segundo as projeções feitas sobre os números do STM, o Brasil contabilizaria 212 mil casos de tortura – o que lotaria quatro vezes a Arena ou o Beira-Rio, os estádios de Grêmio e Internacional, cada um com capacidade para 55 mil espectadores.
O quadro de denúncias formalizadas na Justiça Militar no período de 1964 a 1977 – mais da metade das duas décadas de ditadura – fotografa o endurecimento do regime ao longo do tempo. Em 1964, ano do golpe, houve 203 acusações de maus-tratos, número que se reduziu em 1965 (84 casos) e em 1966 (66 casos). Chegou ao seu ponto mais baixo em 1967 (50 casos) quando Costa e Silva sucedeu a Castello Branco. Voltou a subir em 1968 (85 casos) e em 1969 foi vinte vezes maior do que a marca de dois anos antes: 1.027 denúncias de tortura – segundo a meticulosa tese de mestrado de 2006 da historiadora da UFRGS Caroline Silveira Bauer – Avenida João Pessoa, 2050 – 3º andar: terrorismo de Estado e ação política do DOPS-RS (1964-1982).
O país tinha irrompido o ano já sob o império do AI-5, e 1969 acabou com o Brasil governado por uma patética junta militar, que ocupou por dois meses o vazio de poder provocado pelo derrame que matou Costa e Silva. O ano seguinte, 1970, que marca a promoção de Seelig como diretor da Divisão de Segurança Social do DOPS, registra também a estreia retumbante do general Médici e o ápice dos porões da repressão: foram 1.206 denúncias de tortura.
A taxa se manteve em nível elevado no período restante dos Anos de Chumbo: 788 denúncias de tortura em 1971, 749 em 1972 e 736 em 1973. Caiu dramaticamente no último ano de Médici, 1974, quando se registraram apenas 67 casos. A violência voltou a explodir em 1975, no primeiro ano do general Geisel no Planalto, com 585 casos de tortura – quase dez vezes mais do que o saldo do derradeiro ano de Médici no Planalto.
RS, maior concentração da tortura
Os parcos registros do STM assinalam apenas 122 denúncias de tortura no Rio Grande Sul nesses treze anos iniciais de ditadura. Embora distantes da realidade, os números mostram percentualmente o peso do DOPS de Seelig no terrorismo de Estado. Um total de 48 casos, 43% do total, se localizam nas dependências do segundo andar do Palácio da Polícia, quintal onde reinava Seelig e seus asseclas.
A pancadaria no DOPS de Seelig não era um exagero individual da repartição. Era uma prática institucional do regime, que acabava chancelando por cima o que se cometia por baixo. No mesmo período, o balanço do STM mostra outros 17 casos de torturas espalhados por sete quartéis diferentes de guarnições do Exército em quatro cidades distintas do Rio Grande do Sul – Livramento, Santo Ângelo, Cruz Alta e Porto Alegre. Trinta denúncias de tortura atingiram quartéis da Brigada Militar em Passo Fundo, Três Passos e na capital gaúcha.
A extensa fronteira seca do Rio Grande do Sul com o Uruguai e Argentina e o fato dos principais líderes depostos em 1964 terem se asilado em solo uruguaio explicam, historicamente, a alta concentração militar que fez do III Exército (hoje Comando do Sul) a guarnição mais poderosa do país, com as unidades reforçadas –especialmente Santa Maria, no centro do Estado, sede do maior destacamento blindado e de uma importante base aérea, com dois esquadrões aéreos de caça AMX, outro de helicópteros Black Hawk e um de aeronaves não tripuladas.
Ainda assim, é surpreendente que esteja no Rio Grande do Sul a maior concentração de instalações identificadas pela Comissão Nacional da Verdade como centros de tortura ou, na elegante terminologia da CNV, “locais de graves violações de direitos humanos (1964-1985)”. Os 230 centros revelados no país se espalham por 23 Estados (as exceções são Mato Grosso, Acre, Rondônia e Roraima) e o RGS é o primeiro da lista, com 39 locais de tortura, superando até mesmo o Rio de Janeiro (38) e São Paulo (26).
Veja o mapa da CNV:
Relatório CNV, Volume I, Cap. 15, pg 830
RS, campeão nacional de centros de tortura: o DOPS de Seelig é o maior e mais sangrento dos 39 no Estado
O trio parada dura de Seelig
É impossível dimensionar, com precisão, o tamanho do circo de horrores que Seelig imprimiu, com sangue, suor e lágrimas, na carne e na alma de tanta gente que passou por suas mãos. Nessa tarefa desalmada, teve ao seu lado um trio diabólico de policiais truculentos que obedeciam cegamente suas ordens e o poupavam de maiores esforços físicos. Os outros batiam por ele, mas seu perfume angustiante estava sempre ali, na sala de torturas, pairando acima dos corpos, excitando os comparsas, envenenando o ambiente de miséria e terror.
O trio era formado por três inspetores: Nilo Hervelha, Nelson Pires e Itacy Vicente, que atendia pelo sugestivo apelido de ‘Mão-de-Ferro’. Todos os três foram parceiros na sessão de tortura no DOPS com mangueira e ventilador que levou o jovem Arébalo à morte, após o ‘susto’ ordenado por Seelig, seu devotado pai adotivo.
O pior deles era Hervelha, codinome ‘Silvestre’, considerado o mais sádico e violento de um trio temido pelos sobressaltados frequentadores, nada voluntários, daquele martírio em terra gaúcha. Hervelha tanto fez e aconteceu, sob as ordens de Seelig, que acabou arranjando um lugar na lista de 377 torturadores do relatório final da CNV: é o número 318.
Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21 Correio do Povo
João Carlos Bona Garcia e seu torturador
João Carlos Bona Garcia era um jovem de 24 anos, militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), quando foi preso em abril de 1970 na feroz blitz da repressão desencadeada duas semanas após o frustrado sequestro do cônsul dos Estados Unidos. Foi levado diretamente para o DOPS de Seelig. Ele lembrou sua agonia no livro de memórias, Verás que um filho teu não foge à luta, lançado em 1989:
Entrei encapuzado e quando me tiraram o capuz vi sangue nas paredes, sangue no piso, pessoas ensanguentadas jogadas no chão e se arrastando, rostos inchados, corpos cheios de marcas e feridas, olhos em fogo, bocas contraídas mostrando coágulos no lugar dos dentes, gemidos e soluços, uivos de dor. Lembrei imediatamente do matadouro. Tive a sensação de estar num matadouro de gente.
No dia seguinte, marcado pelas queimaduras de ponta de cigarro, Bona Garcia foi levado para a “fossa”, a mesma sala do DOPS onde Arébalo começou a morrer. Bona Garcia conta:
Havia um gerador elétrico manual, a ‘maricota’, para dar choques elétricos. Conforme a velocidade na manivela, a voltagem ia subindo, até mais de trezentos volts (…) Foram me amarrando fios nas orelhas e dando choques na cabeça. A primeira vez dá uma sensação terrível. Com o choque nas orelhas se perde a visão, na hora fica tudo escuro (…) O pessoal da polícia ficava à volta, enlouquecido, gritando de prazer. Especialmente o Nilo Hervelha. Era o mais sádico, um dos piores torturadores, o mais cruel. Era também ligado ao tráfico de drogas. Durante as torturas chegava ao orgasmo. (…) Já o major Attila Rohrsetzer mostrava uma volúpia especial torturando mulheres. Especialmente nos seios e órgãos genitais.
Seelig e Hervelha devem ter ficado perplexos com os caprichos da História que, em apenas duas décadas, viraram o mundo de Bona Garcia de cabeça para baixo.
Na ditadura, Bona Garcia era assaltante de banco, terrorista e inimigo dos militares. Participou de duas ações da VPR atacando os carros pagadores do Banco do Brasil e do Bradesco. Foi banido do país, em janeiro de 1971, no grupo de setenta esquerdistas enviados para o Chile de Salvador Allende em troca do embaixador da Suíça, Giovanni Bücher, sequestrado no Rio de Janeiro por um comando da VPR liderado por Carlos Lamarca.
Na democracia, o ex-assaltante de banco virou executivo de banco. Em 1998, foi diretor do Banrisul, o banco estatal gaúcho, e presidente do Sindicato dos Bancos do Rio Grande do Sul. No regime civil, o subversivo caçado pela repressão, odiado pelos quartéis e banido pela ditadura virou subchefe da Casa Civil em 1986 do governador Pedro Simon e chefe da Casa Civil em 1998 do governador Antônio Britto. Acabou juiz da corte militar gaúcha no mesmo ano: o inacreditável ex-preso político e ex-torturado Bona Garcia sobreviveu a Seelig e a Hervelha e chegou em 2002 à presidência do Tribunal de Justiça Militar do Rio Grande do Sul. Morreu em 2021, aos 74 anos, vítima da covid-19.
Igor Sperotto/ExtraClasse Correio do Povo
Nilce Azevedo Cardoso e seu torturador
– Tira a roupa! – foi a primeira frase que a moça de 27 anos ouviu, no DOPS, logo após ser sequestrada em uma parada de ônibus no centro de Porto Alegre, na manhã de 11 de abril de 1972. Nilce Azevedo Cardoso, uma paulista que sonhava ser bailarina, ingressou na faculdade de Física quando a violência atravessou sua vida: “Entrei na USP em 1964 e, junto comigo, entraram os tanques do Exército”, dizia. No fim da década de 60 mudou-se para a capital gaúcha, já como militante da Ação Popular (AP), ligada à Igreja Católica. Em depoimento à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa gaúcha, em 1997, ela contou:
O delegado Pedro Seelig, junto com Nilo Hervelha e outros, arrancou minhas roupas. Perguntaram meu nome e eu disse: Nilce Azevedo Cardoso. Vieram então socos de todos os lados. Insistiram na pergunta, com socos na boca do estômago e do tórax. Mal podendo falar, eu disse que meu nome estava na carteira de identidade. Aumentou a violência. Ligaram fios e vieram os choques. Fiquei muda daí para a frente
Seelig mandou levar Nilce Cardoso para o pau-de-arara
Eram pontapés na cabeça e choques por todo o corpo. Minha indignação cresceu violentamente quando resolveram queimar minha vagina e meu útero. Enfiaram os fios e deram muitos choques. A dor, raiva, ódio, misturados com um sentimento de impotência, criaram-me um quadro assustador. E eu seguia muda. A raiva era tanta que eu não conseguia gritar (…). Quando eu pensava que estava morrendo, eles me tiraram dali (…).
Quando acharam que já estava melhor, eles me penduraram novamente. O meu sangue jorrava e eles enfiaram a mão pela minha vagina com jornais. Colocaram uma bacia no chão e o sangue continuava a cair. Molharam meu corpo e me arrebentaram com socos e choques. Não sei quanto tempo isso durou nem quantas vezes aconteceu esse ritual macabro. Assombrava-me ao perceber que, nos intervalos, eles comiam, conversavam, como se há instantes não estivessem cometendo aquelas atrocidades.
Nilce sofreu uma parada cardíaca. Ao tentar reanimá-la os policiais do DOPS acabaram provocando um esmagamento do seio e uma fratura no tórax. Foi levada para o Hospital Militar, ficou lá oito dias em coma. Depois voltou para o DOPS. Foi transferida para o DOI-CODI de Brilhante Ustra, em São Paulo, para novas sessões de pancada.
Voltou ao Sul e só escapou daquela tormenta de seis meses de suplício com o alvará de soltura, em julho de 1972. Tornou-se psicopedagoga e militante dos direitos humanos, trabalhando na Clínica do Testemunho, projeto que acolhe sobreviventes da ditadura, como ela. Morreu no dia 21 de fevereiro passado, aos 77 anos, 15 dias antes de Pedro Seelig.
O pintor pré-morto
Paulo Mello era um pacato pintor na praia de Xangri-lá, no litoral gaúcho, até ser preso em outubro de 1973. O DOPS não esquecera que meses antes ele integrava o MR-26, o movimento clandestino que o ex-sargento Manoel Raimundo Soares tentou infiltrar nos quartéis antes de aparecer boiando e com as mãos amarradas às costas nas águas do rio Jacuí. Foi recebido efusivamente no DOPS de Porto Alegre por Nilo Hervelha, que berrava enquanto o espancava:
– Brizolista! Comunista! Vais morrer nas minhas mãos, me fizeste de bobo muitas vezes!
O ex-tenente do Exército José Wilson da Silva, assessor de Leonel Brizola antes do golpe, relata no livro O tenente vermelho, de 1987, o que aconteceu com Paulo Mello:
Na primeira noite Pedro Seelig voltou para ver como andava o “serviço”. A sessão era debaixo da maior pancadaria. No segundo dia foi para a ‘fossa’, um cubículo sujo, escuro, com muitas marcas de sangue que Hervelha fazia questão de mostrar que tinha sido de outra pessoa que “quis bancar a durona”. (…) No “tratamento” junto com choques elétricos eram-lhe aplicados murros na cara e pauladas nas costas. Quebraram-lhe a boca várias vezes, passou pelo “telefone”, sangrava muito pelo nariz e ouvidos, o corpo todo inchado. Mesmo assim, não cedendo ao desejo das bestas, colocaram-no no pau-de-arara(…).
Num dia em que as forças estavam lhe faltando, chamaram o médico (…). [O médico] examinou-o, deu-lhe um remédio e disse a Seelig que não o espancasse mais, que o estado [de Mello] era de pré-morte.
Os boatos de que havia morrido debaixo de pau obrigaram o DOPS de Seelig a provar que Paulo Mello estava, ao menos, semivivo. Decidiram quebrar sua incomunicabilidade e permitir uma única visita – da mulher e do filho. Antes tiveram o cuidado de lavar e limpar o preso para lhe dar um aspecto mais apresentável. Não adiantou.
Ele surgiu diante da família com sangue purgando pelos ouvidos, olhos e nariz, além de hematomas no corpo. Ao ver o pai naquele estado, mais pré-morto do que semivivo, o filho sentiu-se mal. Teve que ser atendido por um médico. O pintor e ex-guerrilheiro foi libertado condicionalmente em 1975. Estava com os rins destroçados, os ouvidos rompidos, os nervos em frangalhos. Sofreu um derrame cerebral, ficou com o lado esquerdo do corpo paralisado. Paulo Mello nunca mais pintou.
DOI-CODI rejeita torturado do DOPS
Hilário Gonçalves Pinha, dirigente do PCB no Sul, foi preso em março de 1975 pelo Exército. Passou um mês incomunicável, mas ileso, na Polícia Federal e daí foi entregue ao DOPS de Seelig. Seu calvário começou ali, numa equipe de torturadores que incluía o irremediável Nilo Hervelha, o bate-estaca de Seelig. Pinha passou por sessões de afogamento, choque elétrico e pancada. Teve a barriga pisoteada, quatro costelas quebradas e os intestinos e o fígado rompidos em várias partes. Na madrugada de 24 de abril, desmaiado, com o abdômen inchado pela mistura de seis quilos de sangue e fezes, Pinha foi transportado pelo DOPS de Seelig até a base aérea de Canoas, requisitado pela Justiça Militar de São Paulo.
O estado dele era tão deplorável que o piloto da FAB, um oficial da Aeronáutica, exigiu uma prévia inspeção médica do paciente e o acompanhamento de um enfermeiro militar no voo. O preso estava tão machucado que nem o DOI-CODI de São Paulo quis receber aquela mercadoria tão estragada, ainda sem assistência médica. Ao ser transferido para o DOI-CODI de Ustra, o chefe do Estado-Maior do II Exército, general Antônio Ferreira Marques, exigiu um ofício atestando as condições deploráveis do preso remetido pelo DOPS de Seelig. O médico do DOI-CODI o mandou para o pronto-socorro e lá perceberam que ele precisava de uma cirurgia de emergência. Acabou sofrendo cinco intervenções cirúrgicas no abdômen no prazo de um mês no Hospital das Clínicas. Perdeu 80% dos intestinos e a capacidade de trabalhar. Devolvido a Porto Alegre em julho de 1975, Pinha foi submetido a mais quatro cirurgias no abdômen no Hospital Militar.
Em 1979, entrou com uma inédita ação pelas torturas sofridas. Em dezembro de 1981, o juiz Moacir Álvares, da 2ª Vara Federal de Porto Alegre, condenou a União como responsável pelos danos físicos produzidos pela tortura em Hilário Pinha. Foi o primeiro preso político do país a ter reconhecido o direito à indenização pelos maus-tratos da ditadura. Hilário Pinha morreu de câncer em Porto Alegre em 2006. Tinha 79 anos.
Naquela manhã de agosto de 1971, a estudante de Economia da UFRGS Marinês Grando, às vésperas de completar 24 anos, só conhecia a fama de truculência do inspetor Nilo Hervelha. Seria apresentada minutos depois ao seu estilo de trabalho, ao ser arrastada para um Fusca estacionado na avenida Salgado Filho, no centro de Porto Alegre, onde encontrou o companheiro preso cinco dias antes. Começou a apanhar já no banco de trás do carro, no curto trajeto de dez minutos até o DOPS de Seelig.
Hervelha lhe dava tapas no rosto e socos nos seios. Ao descer do carro foi levada ao segundo andar, passou por uma espécie de guichê e ingressou em uma sala grande, sem móveis, sem janela. Ali tudo escureceu. Sua cabeça foi coberta com um capuz, que dificultava a respiração com o forte fedor do vômito de presos anteriores. Ela foi despida e ficou por algumas horas em pé, rodando como pião sob gritos, ameaças, piadas obscenas e pontapés no traseiro. De repente, mudou o cenário.
Marinês, sempre encapuzada, foi levada através de um corredor com salas menores de um lado e outro e, no final, um banheiro. A superpopulação de presos obrigara o DOPS a transformar algumas salas em celas, onde jogaram colchões no chão para os presos dormirem, sempre com a luz acesa. Chegou enfim à sala de interrogatório – e a escuridão do capuz foi subitamente trocada pelo clarão ofuscante do holofote jogado sobre seu corpo nu, que tremia de frio, vergonha e medo.
Arquivo pessoal Correio do Povo
Marinês Grando e seu torturador
O holofote libidinoso na ruiva nua
Com cabelos ruivos e lisos, Marinês tinha pele clara, um rosto fino e uma fisionomia triste. Sob o brilho do holofote, ela percebia o intenso vai-e-vem na sala, como contou ao autor deste texto, em depoimento em 2008 para o livro Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios:
O interrogatório se prolongou pela noite adentro com muitas presenças, todas masculinas, todos agitados, entrando e saindo pela única porta daquela sala claustrofóbica, sem janelas. Eles todos no escuro e eu, nua, sob os holofotes. Diziam que queriam ver como era uma mulher ruiva, riam e batiam palmas. Na escuridão do lado de lá dava para eu distinguir a figura bem trajada do delegado Pedro Seelig, posicionado diante do bando de machos excitados e à frente do interrogatório.
Agitados pela rara visão daquela bela mulher de curvas bem delineadas no esplendor de seus 24 anos, toda nua e toda ruiva, eles se divertiam. Marinês chegoua pensar que seria estuprada, pelo grau de excitação no ar, mas ninguém a tocou. No limite entre a luz e a treva, o delegado Seelig, de terno e gravata, parecia controlar o foco de luz do holofote que lambia, libidinoso, o seu corpo indefeso.
Naquele teatro que misturava violência e degradação, Seelig fazia o papel do brincalhão, tentando se mostrar gentil e afável em meio a tanta sordidez. Durante todo o tempo, entre risos e piadinhas, Marinês ouvia perguntas sobre o POC (Partido Operário Comunista), suas ligações políticas e a atuação do grupo junto ao movimento estudantil.
Quando o show terminou, o holofote foi desligado e ela colocada em uma cela com outra mulher, uma paulista da luta armada que havia sido violentada nos cárceres do DOI-CODI de Ustra. Estava toda arrebentada pela tortura e, ainda assim, era ‘tratada’ por um médico do DOPS para aguentar a sessão seguinte de suplício. Desestruturada pela violência, ela imediatamente procurou o colo de Marinês. Embora adulta, a jovem encolhida em posição fetal comportava-se como um bebê desamparado, em busca do conforto materno.
A expressão melancólica de Marinês ficou ainda mais triste.
Na quinta-feira, 12, dois policiais levaram Marinês de volta ao seu apartamento. Entraram com a chave da presa e reviraram tudo, recolhendo alguns livros e deixando para trás tudo bagunçado. No dia seguinte Marinês completou 24 anos. A notícia se espalhou pelos corredores e celas do departamento. Todo mundo queria ver, de perto, aquela moça azarada que fazia aniversário em uma sexta-feira, 13 de agosto – e ainda presa no DOPS.
Marinês foi liberada quarenta dias após sua prisão. Ela saiu da cadeia enquadrada na Lei de Segurança Nacional, com hematomas na alma mais fundos que as dores no corpo. Ela perdeu o emprego na clínica médica onde trabalhava. Não houve explicação. Nem precisava.
Em liberdade, continuava vigiada e seguida a todo momento. Certo dia, em uma rua meio deserta do bairro Floresta, um sujeito de uns 25 anos se aproximou e lhe falou ao pé do ouvido:
– Eu te vi nua, eu te vi nua, eu te vi nua!…
Era um dos “machos do DOPS de Seelig”, que ela não reconhecia. Marinês saiu dali correndo, apavorada. Perdeu todas as cadeiras do semestre no curso da faculdade. Amigos esfumaram-se, parentes afastaram-se. Conseguiu um emprego provisório em um órgão de pesquisa estadual. Meses depois ele tornou-se a Fundação de Economia e Estatística (FEE), vinculada à Secretaria de Planejamento estadual, que a contratou como economista em 1974. Três anos mais tarde, ela fazia um doutorado na Universidade de Paris I quando se viu, inesperadamente, no centro da guerra de estrelas em Brasília entre Geisel e Frota.
Marinês era um dos 97 “comunistas” infiltrados na administração pública, segundo a lista dedo-duro que o general Sylvio Frota, ministro do Exército, divulgou na tarde de 12 de outubro de 1977, horas depois de ser demitido pelo presidente Ernesto Geisel. Nove nomes da lista atuavam no Rio Grande do Sul, quatro deles eram economistas na FEE – entre os quais Marinês Grando e uma colega chamada Dilma Rousseff. Marinês só não foi demitida, como os outros três, porque estudava na França, protegida por um acordo internacional que lhe garantia ficar por lá até a poeira baixar. Ela só voltou da França em outubro de 1978 – sete anos após sua prisão, às vésperas da anistia.
O tour de terror de Seelig
O DOPS de Seelig estava em temporada de caça ao POC, integrado por Marinês. O DOPS localizou três ‘aparelhos’ da organização em Porto Alegre e prendeu 30 militantes, entre eles sete universitários das federais de Porto Alegre e Santa Maria. Um dos comandantes do POC era casado com a secretária de um dos jornalistas mais famosos do Rio Grande e do Brasil: Paulo Totti, 33 anos, o respeitado chefe da sucursal da revista Veja em Porto Alegre, que depois teria fulgurante carreira em São Paulo e Rio, nas redações de Veja, Gazeta Mercantil, Jornal do Brasil, O Globo e Valor Econômico. Seelig avisou a sucursal que queria ouvir Totti, naquele momento fazendo uma cobertura jornalística na Argentina. “É um simples esclarecimento de rotina, coisa rápida”, tranquilizou Seelig.
Quando Totti voltou a Porto Alegre, na manhã de terça-feira, 10 de agosto de 1971, lá estavam no aeroporto a mulher e os dois filhos, de sete e quatro anos – e um cidadão elegante de terno, gravata e cabelos grisalhos, que ele não conhecia, mas se apresentou:
– Sou o delegado Pedro Seelig, do DOPS. Tu estás convidado a ir até lá hoje à tarde – falou, com a fidalguia de um recepcionista que dá as boas-vindas ao turista recém-chegado. Simpático, passou a mão na cabeça dos dois filhos de Totti, de sete e quatro anos, voltou a encará-lo e elogiou:. – Teus filhos são muito bonitos. E não falte, hein?
Ricardo Chaves Correio do Povo
Paulo Totti e seu torturador
À tarde, atendendo ao cordial convite de Seelig, Totti se apresentou no DOPS acompanhado pelo gerente da Editora Abril, Michel Barzilai. A dupla foi recebida cortesmente por Seelig, que os levou até sua sala, no segundo andar do DOPS. O delegado voltou a dizer que precisava de Totti para responder apenas algumas perguntas, que exigiriam só algumas horas de permanência ali.
– Ele será bem tratado – tranquilizou.
No embalo, escancarando um sorriso, Barzilai tentou ajudar:
– O Totti só pensa em trabalhar, delegado. Ele é um cara pacífico…
Seelig emendou, retribuindo o sorriso:
– Todos dizem isso, mas tu precisas ver os trabucões que eles usam – replicou, sem esclarecer quem eram “eles”. Barzilai ainda sorria quando o delegado o levou até a porta e o despediu com um abraço e um rijo aperto de mão. Mal fechou a porta, ao se virar Seelig já se transformara. Totti se levantava da cadeira quando o sorriso do delegado simpático à porta se desfez de repente. Seelig, de rosto crispado, aproximou-se e lhe desferiu uma violenta cutilada no ombro esquerdo. O golpe inesperado com a parte externa da mão direita do policial atirou Totti de volta à cadeira. A pancada doeu. Totti ficou surpreso com a violência repentina. Seelig sorriu:
– O que é isso, Totti? Não me leve a mal. É só pra mostrar que aqui a coisa é mais dura do que parece…
– Vou te mostrar nossas instalações – emendou o delegado, percorrendo os corredores do DOPS com o orgulho de quem mostra o conforto de um estabelecimento cinco estrelas. Apresentou as celas e uma delas, no final de uma sala grande, escancarou o inferno daquela hospedaria fora de catálogo: havia dois presos ali, pendurados no pau-de-arara como dois frangos expostos na vitrine.
Um deles era uma mulher pequena, encolhida, totalmente nua, que soluçava em um ritmo cansado. Ignês Maria Serpa de Oliveira, 21 anos, a Martinha da VAR-Palmares, estava naquele antro há quatro meses. Parecia ter chorado muito, durante muito tempo, e o soluço agora era sua última demonstração de alento. Seelig nem olhou para ela. Perguntou ao sujeito que estava ao lado, comandando o interrogatório:
– Tudo bem aí? Alguma novidade? – falou, como quem confere mecanicamente a mercadoria na prateleira. O homem respondeu com um grunhido, que soou como um “até agora, nada”, e Seelig entendeu. Fechou a porta e conduziu Totti para uma nova atração da casa: abriu a porta de outra sala e, com um gesto de mão, mostrou a cena à sua frente. Um homem no pau-de-arara, com a cueca vermelha de sangue. Na cadeira ao lado, outro preso, sentado, com os pés amarrados e fios enrolados em torno dos dedos. Tinha o rosto todo machucado, um dos olhos parecia saltar da órbita ensanguentada.
A visitação parecia ter chegado ao fim. Seelig levou Totti a uma cela onde havia mais duas pessoas e um beliche. Apontou para a parte superior da cama: – Tu vais ficar aqui, por enquanto. Amanhã vamos conversar. Acho que não vou precisar te levar para aquelas celas que visitamos há pouco, né? – disse, em tom que fundia ironia e ameaça.
Totti na “cadeira do dragão”
Nada aconteceu no resto do dia. Na manhã seguinte, quarta-feira, 11, Seelig voltou. Pediu que Totti descrevesse toda a sua vida, contasse o que pensava da política, do governo, do regime.
A “cadeira do dragão” é uma cadeira pesada, com assento, apoio dos braços e espaldar revestidos de zinco. Os pés e os pulsos de quem ali senta são amarrados e as pernas empurradas para trás por uma travessa de madeira. Na parte traseira existe um terminal onde se acopla o magneto que transmite a corrente elétrica, gerada manualmente pela manivela conectada a um dínamo. A “pimentinha” dos torturadores ardia no corpo dos torturados, graças aos cem volts que produziam uma corrente de dez amperes. Uma voltagem duas vezes menor já produz fibrilação ventricular. Com a pele molhada ou a voltagem aplicada diretamente na pele por eletrodos, uma carga de apenas quarenta volts pode ser letal. Um choque de meros dezesseis volts, aplicados diretamente no coração, leva à morte. A ponta dos fios conectados ao dínamo era fixada em pontos sensíveis do corpo – como o mamilo, situado exatamente sobre o músculo cardíaco. (Continua)
O ano eleitoral está aí e a força da farsa que conhecemos em 2018 será renovada.
Rememoremos: no 18 Brumário de Luís Bonaparte, Marx apontou para uma relação fundamental entre estética e política ao afirmar que a história se repete como tragédia e como farsa.
A farsa é uma imitação da tragédia que intensifica seu efeito utilizando o grotesco como estilo. Lembremos que a farsa do Ubu Rei de Alfred Jarry, que em tudo lembra Bolsonaro em seu desejo de comer e matar, já era uma imitação debochada da tragédia de Macbeth de Shakespeare.
Tragédia e farsa são duas formas teatrais, mas são também parâmetros estéticos da política. Se a tragédia pauta o mundo pelo heroísmo, pelo belo, pelo sublime e pelos altos valores, a farsa pauta-o pelo contrário disso tudo. Nesse contexto, a oposição entre Lula e Bolsonaro é evidente e dispensa explicações.
Todo o governo de Bolsonaro se dá no clima da farsa, cada um dos seus ministros é um farsante que destrói aquilo que deveria construir e ele é o próprio bobo da corte que usurpou o lugar do Rei preso por mais de 500 dias com a ajuda de personagem secundário, o juiz ladrão, que, com a ajuda da mão nem tão invisível do Império, resolveu ele mesmo ocupar o papel principal.
Não é demais repetir que o governo bolsonarista é uma farsa que imita a tragédia da ditadura militar, em si mesma farsesca. Moro é continuação da farsa, na condição de ex-ministro de Bolsonaro, o “Bolsonaro que sabe usar talheres” ou pelo menos não finge comer no cocho com direito a set de filmagem em volta, como ficou exposto nas redes há poucos dias. A produção cinematográfica de Bolsonaro está ainda na frente da produção jornalística da rede Globo que sabe muito bem como construir personagens e tramas. Contudo, as novelas do jornalismo não são tão bem feitas como as novelas propriamente ditas e o segredo do roteiro no qual o corrupto que grita contra a corrupção é, ele mesmo, um corrupto, está claro demais para conquistar espectadores para um próximo capítulo.
Antes se seguir com a análise dessa narrativa que está sendo construída diante dos olhos costurados com as próprias tripas dos espectadores, é preciso ter em mente que, apesar da desvantagem essencial de uma imitação, o efeito de poder continua vivo nela. A cultura do escamoteamento e da camuflagem serve para os procedimentos estéticos, como implantes capilares e dentes falsos atualmente em moda, para bolsas e roupas de marca fabricadas na China, mas também para a política. Porém, nesse jogo pérfido, quem tentar parecer melhor do que é, tende a se dar mal (isso vale para todo o espectro político).
Além disso, lembremos que os personagens infames, ridículos ou grotescos produzem efeitos de poder justamente por meio da desqualificação de seus discursos. No discurso desqualificado Moro é bom, mas ele ainda precisará intensificar a sua performance se quiser assumir o lugar de Bolsonaro. Quando se escolhe um ator para um trabalho, ele é escolhido justamente por competências prévias, mas a recepção das massas parece estar sendo mal calculada nesse caso. Os fascistas sempre subestimam a população e precisam emburrecê-la para poder contar com ela. A enganação precisa ser bem feita, porque as massas são maleáveis e podem mudar de direção se perceberem que outros podem ter razão.
Assim, para ser um bom candidato, Moro precisa de um pouco mais de apelação carismática, algo que e ele naturalmente não tem e que Bolsonaro esbanja. Para este último era fácil, bastava capitalizar o mau gosto, que é um capital maior do que nunca na cultura depois da guerra contra a democracia. Moro resiste a fazer esse papel. Em que pese a tentativa de começar a tentar falar grosso, evitando a sonoridade vocal que lhe rendeu o apelido de Marreco de Maringá, ele não tem a virilidade necessária exigida no momento fascista em que o machismo histérico tem sido bem importante (falaremos sobre isso em um próximo artigo).
Todos os personagens da direita-extrema-direita que querem aceder ao poder têm buscado se inscrever no padrão estético do grotesco ou do ridículo desde 2016. Nesse sentido, para Moro, melhor seria assumir o “marreco” do que tentar disfarçar. Ele poderia conquistar o voto de indignação ou o voto por deboche que levou figuras como Tiririca ao poder. Janaína Paschoal, Kim Kataguiri, Alexandre Frota e tantos outros chegaram ao poder em 2018 apenas porque se inseriram nessa mesma lógica estética.
Nesse contexto, Bolsonaro foi um sucesso a partir do Golpe de 2016 ao produzir um tipo de farsa na segunda potência. Ao assumir a sinceridade da farsa ele conseguiu re-enganar a todos e, senão livrar-se da marca da mentira, pelo menos redimensiona-la a seu favor. Para o seu eleitorado a sua paradoxal “sinceridade” vale mais do que tudo. Ele pode praticar todo tipo de crime e ilicitude e ainda será defendido pelas pessoas identificadas com o ídolo. A mentira diária de Bolsonaro é parte da retórica do desnorteio que ele pratica tão bem e que funciona num looping renovando diariamente o estupor dos críticos, assim como o êxtase de seus adoradores.
Bolsonaro não finge quando é falso. Eis o sentido da farsa autêntica. Por isso, pode aparecer encenando como um porco sem perder o seu eleitorado. Assim, enquanto Moro permanecer tentando parecer o que não é, não haverá futuro para ele. É preciso que ele assuma a sua verdade como um bom cínico deve fazer se quiser tornar o cinismo uma tecnologia de poder efetivo. Moro precisa fazer mais circo agora que não tem mais seu Lula preso e nem o espetáculo da Lava-Jato para se capitalizar como um punitivista como gosta a sociedade conservadora. Todas as vezes em que ele fez isso, ele cresceu na opinião pública. Ao resistir de se entregar ao Moro ele acaba com o seu maior potencial. Não basta ser ridículo, é preciso entregar-se ao papel.
A farsa é a forma da política na era da razão publicitária, uma estrutura estética, narrativa, teatral, performática. Ela é o único modo pelo qual muitos fazem política e chegam ao poder. E como há um viés de ficção na farsa política, e não de simples mentira, fica muito difícil para a população perceber que se trata de um jogo, de uma cena. A mentira se explicita, a ficção se escamoteia e tudo se torna tecnologia política. Uma tecnologia política é um dispositivo composto de estratégias e táticas, discursos e práticas, entidades e instituições, todas unidas pelo mesmo princípio.
Se a farsa é uma tecnologia política, isso quer dizer que o jogo é a mentira, a enganação, a desinformação em geral, daí as fábricas de fake news, as empresas que se alimentam de ódio, um afeto que ajuda a instaurar o clima de guerra necessário ao processo de conservação do poder. O gabinete do ódio é o maior negócio da nação e não há previsão de sua derrocada, ao contrário. O que deu certo em 2018 continuará em ação de modo turbinado em 2022.
Por isso, nesse momento, todos devem se unir contra a grande farsa fascista, mas sem consciência disso e lançados em jogos de poder, muitas vezes infantis, não será fácil superar a extrema-direita e suas habilidades inescrupulosas que reforçam a cada dia a força da farsa.
Filipe Martins e o gesto racista que o levou a ser processado criminalmente (Foto: Reprodução TV Senado)
por Marcelo Auler
No cruzamento dos dados levantados pela CPI da Pandemia destaca-se o nome do assessor internacional do Palácio do Planalto, Filipe Martins. Ele, junto com o vereador carioca Carlos Bolsonaro, o Carluxo, é apontado como um dos coordenadores do Gabinete do Ódio (GDO) criado na Presidência da República para atacar adversários do presidente Jair Bolsonaro com falsas notícias e mensagens de ódio.
Martins é processado criminalmente na 12ª Vara de Justiça Federal do Distrito Federal por racismo. Em 24 de março, durante uma sessão do Senado Federal, transmitida ao vivo pela TV daquela casa, foi flagrado fazendo gesto racial, comum aos supremacistas brancos. Com a mão esquerda sobre a lapela do paletó, fez o sinal de “OK” com três dedos retos, em forma de W. Com o formato do indicador e do polegar (conforme se vê na foto acima), o gesto representa as letras W e P, significando White Power, ou “Poder Branco”, em português.
Denunciado pelo Ministério Público Federal (MPF), a ação foi acatada pelo juiz federal Marcus Vinícius Reis Bastos. O assessor responderá por ter praticado e induzido discriminação e preconceito de raça e pode ser condenado à prisão, sujeito ainda a uma multa de R$ 30 mil e a perda do cargo público, onde foi mantido por Bolsonaro, como se nada tivesse ocorrido.
Carluxo e Martins espalham fakes de Bolsonaro e Olavo
Carluxo, com ajuda de Martins, espalha nas redes sociais as mensagens mentirosas decididas pelo pai
Informações recebidas pela CPI, Martins aparece, ao lado de Carluxo, como um dos “formuladores” no chamado Gabinete do Ódio. Significa que ele e o filho 02 do presidente elaboram as mensagens depois repicadas nas redes sociais pelos demais participantes do GDO. Nas investigações, aparecem, no mínimo, 50 pessoas e 25 sites envolvidos neste esquema de disseminação de falsas notícias e ataques a adversários do presidente.
Jair Bolsonaro e o suposto astrólogo Olavo de Carvalho são apontados como “formuladores”, em um nível diferente. Deles, pelo que se depreende, surgem as ideias. Algumas postadas nas redes sociais pelo próprio presidente. Mensagens que são espalhadas nas redes sociais por Carluxo e Martins.
Foi do presidente da República, após visita ao então presidente americano Donald Trump, a iniciativa de propagar a Cloroquina como remédio para combater a Covid. Pouco importou os cientistas garantirem que tal medicamento não serve a este propósito e ainda pode gerar problemas paralelos. Carluxo e Martins repassaram tais “formulações” que foram disseminadas nas redes sociais.
Pelo desenho que a CPI da Pandemia faz, os dois “formuladores operacionais” cuidam de espalhar para alguns sites de direita, comandados por bolsonaristas, as teses dos “formuladores”. Tão logo estes sites divulgam tais mensagens, há grupos que tratam de replicá-las.
PF já identificou 50 pessoas no Gabinete do Ódio
Frota, Crispin e Halssemann, ex-bolsonaristas ouvidos pela Polícia Federal
Entre estes, por exemplo, encontram-se parlamentares federais cujos nomes vêm sendo citados por aqueles que já se sabem que foram ouvidos pela Polícia Federal. Como nos depoimentos prestados por quatro deputados federais que se desligaram do bolsonarismo: Joice Cristina Hasselmann, Alexandre Frota de Andrade, Heitor Rodrigo Pereira de Andrade e Nereu Crispim.
É o caso dos deputados do PSL Bia Kicis, Carla Zambelli, Daniel Silveira, Filipe Barros, Cabo Junio Amaral e Luiz Philippe de Orléans e Bragança, que, conforme divulgado em maio de 2020 pelo O Globo, já foram intimados a depor nesse mesmo inquérito.
Não são os únicos. Entre os 50 membros do GDO já identificados aparecem a deputada federal Caroline (Carol) de Toni e o também deputado federal Hélio Lopes (PSL-RJ). São citados ainda diversos deputados estaduais tais como Gil Diniz (sem partido SP); André Fernandes (Republicanos – CE); Delegado Cavalcante (PTB-CE); Bruno Engler (PRTB-MG); Alexandre Knoploch (PSL – RJ) e ainda Douglas Garcia (PTB-SP).
Estes parlamentares ainda colocam a serviço do GDO alguns de seus assessores que cuidam de repassar as mensagens fakes. As investigações levantaram 11 assessores de políticos:
Tancredo dos Santos, José A Barros e Kavan Miranda são apontados como assessores do deputado estadual André Fernandes; José Henrique trabalha para o deputado federal Lopes; Guilherme Julian, Manuela Melo, Alex Melo e Jossely Duarte estariam lotados no gabinete do deputado estadual Delegado Cavalcante, no Ceará; Fernanda Salles é indicada como repórter/assessora no gabinete do deputado estadual mineiro Brino Engler; o blogueiro Davi Albuquerque surge como assessor do deputado Knoploch, na Assembléia do Rio de Janeiro; por fim, Bicholas Mello trabalha para a deputada federal Carol deToni.
Isso apenas mostra, provavelmente ainda de forma incompleta, como funciona a teia de retransmissão das mensagens mentirosas e de ódio elaboradas pelos “formuladores de conteúdo” do GDO, dentro do Palácio do Planalto.
Ali mesmo, no Planalto, outros quatro assessores são apontados, pela Polícia Federal como participantes do GDO: Tércio Arnaud, Felipe Mateus, José Mateus e Mateus Diniz. Sem falar no antigo Secretário de Comunicação, Fabio Waingarten. A eles soma-se ainda pelo menos um assessor de Carluxo na Câmara dos Vereadores do Rio, Natheus Sales.
Com esse time de assessores – e muito provavelmente outros ainda não relacionados – é que o GDO espalha as mensagens elaboradas por Carluxo e Martins. Elas, inicialmente, são divulgadas nos sites notoriamente de direita. Informações a que o Blog teve acesso citam, ao menos, 25 destes sites e/ou Twitter, a saber:
Crítica Nacional (@criticanac), Inspetor Alberto, Bolsonéas, Endireita Iguatu, @leandroruschel, Bolsonaro Nordetino 1.0, Filipebarrost, @oofaka (Faka), Lets_Dex (Left Dex), Endireita Fortaleza, Renova Mídia, TerçaLivre, @llantercallivre (oficial), República de Curitiba, Conexão Política, Admiradores de Bolsonaro, Brasil Paralelo, Jornal Cidade On Line, carteiroreaca, Vapor Waves, Os Brasileirinho @twitter, Leitadas do Loen, Patriotas, @bernardopkuster, TeAtualizei (@taokei1).
Eles são administrados por bolsonaristas conhecidos como o já famoso Allan dos Santos (preso recentemente) e alvo das investigações que tramitam no STF. Há ainda Paulo Enéas, José Bastos, Armando Schneider, Paulo Generoso, Davi Albuquerque (também assessor do deputado Knoploch), Gil Diniz (deputado estadual em São Paulo), e o conhecido paranaense Bernado P Kuster.
Três empresários citados nos relatórios
A partir dos repiques feitos por todos esses parlamentares e seus assessores, além de possivelmente outros personagens ainda não citados nas investigações que este Blog recebeu, estes sites recebiam dividendos através da conhecida monetização das redes sociais. Enriqueceu muitos bolsonaristas até o ministro Alexandre de Moraes determinar a suspensão destes pagamentos.
Hang, Fakhouru e Ling, empresários citados nas investigações em curso na Polícia Federal
Os ganhos, porém, não se resumiam a esta monetização. Há fortes indícios de que empresários bolsonaristas financiaram alguns destes blogs. Como o empresário Luciano Hang, conforme falaram na sessão de quarta-feira (29/09) da CPI da Pandemia.
As investigações mostram, ao lado de Hang, jo nome do empresário sino-brasileiro Winston Ling, na condição de “admiradores de Jair Bolsonaro”. Para a CPI da Pandemia, porém, Hang é muito mais do que mero admirador do presidente. É visto como provável financiador dos sites e campanhas que espalha fake news.
Já o empresário Otávio Oscar Fakhoury, ouvido quinta-feira (30/09) na CPI da Pandemia, sempre foi apontado como financiador de sites e campanhas de disseminação de fake news e de mensagens de ódio. Nesta condição é que foi ouvido e continua sendo investigado pela Polícia Federal. Suspeita-se ainda que tenha financiado também atos públicos que defenderam o fechamento do Congresso e do Supremo Federal.
Como foi demonstrado na sessão da CPI na qual ele próprio não escondeu todo o seu negacionismo – declarou-se contra as vacinas, contra o isolamento social tal como foi praticado, entendeu desnecessário o uso de máscaras e defendeu o uso de medicamentos que, cientificamente, não têm eficiência no combate à Covid.
Ou seja, ele próprio, ainda que respaldado em liminar concedida pelo Supremo Tribunal Federal, se auto-incriminou admitindo, ao ser confrontado pelo senador Fabiano Contarato, suas posições homofóbicas nas redes sociais.
Além de presidente do PTB em São Paulo, ele é vice-presidente do Instituto Força Brasil, organizado para disseminar idéias da extrema direita e que também se envolveu na tentativa de compra de vacinas, como a indiana Covaxin, para serem repassadas a instituições privadas.
Fakhoury não teve como esconder, ao ser confrontado pelos dados que a CPI obteve com o afastamento de seu sigilo bancário, as contribuições financeiras não declaradas ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para a campanha política de Bolsonaro, em 2018.
Contribuiu ainda, pelo menos até junho deste ano quando fez transferência de R$ 80 mil, com o Força Brasil. Outros R$ 200 mil foram doados, através do Instituto Conservador Liberal, a Eduardo Bolsonaro para a Conferência de Ação Política Conservadora – CPAC, ocorrido em setembro passado, no Centro de Convenções de Brasília
Embora tenha dito não ter relações maiores de amizade com o filho 03 do presidente, Fakhoury admitiu tê-lo procurado quando tentou assumir o comando de uma estação de rádio que ele pretendia transformar em porta-voz do conservadorismo.
Na mesma investigação que apresenta Fakhoury como financiador de sites que disseminam fake news e que cita Hang e Ling como “admiradores de Bolsonaro”, aparecem ainda os nomes de Sérgio Lima – ex-marqueteiro do Aliança pelo Brasil, partido que a família Bolsonaro tentou montar – e da escritora Madeleine Lakson. Não há nenhuma referência mais detalhada sobre os dois, a não ser o fato de terem uma ligação direta com o GDO.
Estranho que justo agora, quando a reeleição do presidente parece cada vez mais complicada, tenha sido tomada a decisão de reabrir o caso
por Juan Arias /El País
O Tribunal Regional Federal da 1ª Região, com sede em Brasília, acaba de reabrir, de surpresa, o processo sobre a facada contra Jair Bolsonaro, algo que já tinha sido encerrado duas vezes. Antes, decidiu-se que o agressor, Adélio Bispo, deveria ser absolvido por se tratar de uma pessoa com problemas psicológicos e que havia agido sozinho —ou seja, sem mandantes. Hoje, é consenso entre os analistas políticos que foi a facada desferida em Bolsonaro durante a campanha eleitoral que o ajudou em sua eleição, por dois motivos: primeiro, porque o transformou em um mártir, um mito protegido por um Deus que o salvou; também, porque o impediu de participar dos debates eleitorais com os demais candidatos. Algo decisivo, já que são conhecidas as dificuldades naturais do capitão.
O caso parecia encerrado, embora Bolsonaro e sua família nunca tivessem aceitado as investigações e continuassem com o sonho de poder provar que um terceiro —que seria um político e de esquerda— teria participado do atentado.
Não é difícil entender por que justo agora, já em plena campanha pela reeleição, voltem a ressuscitar a misteriosa facada sobre a qual se criou até a fantasia de que seria um falso ataque criado pelos seguidores do então candidato Bolsonaro. Tudo para criar a imagem do mártir, que teria, depois, milhões de votos dos evangélicos.
E não deixa de causar estranheza que, justo agora, quando a reeleição de Bolsonaro parece cada vez mais complicada, tenha sido tomada a decisão de reabrir o caso para tentar investigar se havia ou não um mandante e se era alguém de esquerda. Ao mesmo tempo, o recente documentário do jornalista Joaquim de Carvalho, Uma facada no coração do Brasil, desenterrou a inusitada hipótese de que o atentado foi apenas uma ficção criada pelos seguidores de Bolsonaro para mitificá-lo. E para provar isso difundiu-se a teoria de que não existe uma única foto de sua barriga ensanguentada depois do esfaqueamento e de que houve uma suposta cumplicidade entre os médicos que o atenderam e operaram.
Agora, segundo o jornal O Globo, o que se deseja com a investigação é saber se, além do veredicto dos que conduziram o caso (que insistiram que Adélio agiu sem cúmplices), houve algum mandante que forjou o atentado, usando uma pessoa que aparentemente havia pertencido ao PSOL. Agora que já se respiram ares eleitorais, Bolsonaro e seus filhos insistem que a família precisa saber se houve ou não alguém que planejou tudo. E o sonho dos Bolsonaros e seus seguidores sempre foi tentar provar que o mandante foi algum militante de esquerda para mudar o rumo das eleições.
O último gesto de mau gosto de Bolsonaro sobre o atentado ocorreu dias atrás, por ocasião da morte da jovem cantora Marília Mendonça, amada por todo o Brasil. O presidente, sem nomear a morte da artista, referindo-se apenas à dor de um filho que ficava órfão, aproveitou para relembrar seu atentado, algo que desencadeou uma lista de críticas nas redes sociais, condenando sua já conhecida falta de sensibilidade.
Quem também apareceu foi o polêmico advogado de Bolsonaro e de sua família, Frederick Wassef. Ele voltou ao jogo nos últimos dias para defender a tese de que houve um mandante do atentado. Segundo ele, “há fortes indícios e um conjunto robusto de provas de que a esquerda brasileira ordenou a morte do presidente”. Para ele e para a família Bolsonaro, as duas investigações realizadas pela polícia, que convergiam para a tese de que o agressor agiu sozinho, não teriam mais valor.
Parece não haver dúvida de que há um interesse especial em tentar provar neste momento que o agressor agiu instigado por um político de esquerda, já que, segundo todas as pesquisas, Lula poderia derrotar Bolsonaro ainda no primeiro turno. Seria, portanto, um sonho para o presidente que antes da data da reeleição a polícia descobrisse que o verdadeiro mandante era alguém à esquerda, o que se tornaria o tema central de todas as discussões eleitorais. Como escreveu o jornalista Ricardo Noblat em seu blog, se alguém está interessado hoje em desenterrar a já desmentida hipótese de que o atentado foi organizado pela esquerda, esse alguém é Bolsonaro.
As forças democráticas precisam estar atentas para que esse sonho de Bolsonaro e sua família seja abortado o mais rápido possível para que não obscureça uma eleição já carregada de ameaças. A última é a chegada de Sérgio Moro, considerado uma esfinge difícil de decifrar e que continua a acrescentar ambiguidade e confusão extra às eleições.
O fantasma que Bolsonaro deseja desenterrar justo neste momento de tensão pré-eleitoral pode ser, sem dúvida, um elemento novo e perigoso que acrescenta dramaticidade e intriga à já complexa eleição que ocupa o interesse de toda a vida política, enquanto se agrava a crise econômica, que, como sempre, afeta os mais desfavorecidos, que os políticos usam somente na hora de tentar comprar voto.
MICHEL TEMER FOI RECOLOCADOno tabuleiro do jogo político como uma peça importante. Logo após o ato golpista no 7 de setembro, Bolsonaro mandou um avião da FAB trazer o antecessor a uma reunião em Brasília. O objetivo era reconstruir pontes de diálogo com o ministro Alexandre de Moraes, indicado ao cargo pelo ex-presidente. Dias antes, Bolsonaro havia implodido o que restava das pontes ao dizer durante a manifestação em São Paulo que não cumpriria mais nenhuma decisão de Moraes. Mas diante da movimentação dos partidos pelo impeachment e da possível prisão iminente de seus filhos, o machão imbrochável sucumbiu e teve de pedir ajuda para acalmar o ministro o qual ataca há meses.
Não é de hoje que Temer tem atuado como um domador de Bolsonaro. Desde o início do governo, é um conselheiro informal do presidente em momentos de crise. Já entrou em campo para amenizar o mal-estar com a China e aproximá-lo do Centrão. Sua influência no governo Bolsonaro não é pequena. Segundo o ex-bolsonarista Alexandre Frota, Bolsonaro pediu para que ele, então secretário de Cultura, desse um cargo para Osmar Terra para atender a um pedido de Michel Temer. Terra acabou se tornou influente na condução desastrosa do combate à pandemia. Bolsonaro já se referiu ao negacionista Terra como a “principal autoridade na área da Saúde”.
Dias após ajudar a colocar panos quentes na relação do presidente com o Supremo, faixas pedindo “Volta, Temer” foram exibidas por dez gatos pingados na Avenida Paulista na manifestação pelo impeachment organizada pelo MBL — que mais parecia um ato de campanha eleitoral da terceira via. Cada um deles recebeu R$ 50 para estar ali, o que demonstra haver uma movimentação para recolocar Temer de volta no jogo eleitoral.
Isso se confirmou com o banquete oferecido por Naji Nahas em seu palacete para Temer e outros políticos e empresários. Foi um jantar exclusivo para pessoas muito ricas, poderosas e algumas envolvidas em escândalos, como é o caso do anfitrião, que chegou a ser condenado a 24 anos de cadeia em primeira instância por crimes contra a economia popular e o sistema financeiro e foi posteriormente absolvido pelo TRF-2. João Carlos Saad, fazendeiro e dono do grupo Bandeirantes, e Roberto D’Ávila, jornalista da Globo, eram os representantes da grande mídia no encontro. Gilberto Kassab, do PSD, e Paulo Marinho, ex-PSL e atualmente no PSDB, eram os representantes dos políticos que sonham com a terceira via.
O humorista André Marinho imitou o presidente para deleite da plateia de milionários.
Todos os presentes no jantar, sem exceção, foram apoiadores de Bolsonaro ou ficaram neutros no segundo turno, mesmo diante dos discursos fascistas do candidato. Alguns deles, como Marinho e seu filho, lideraram a campanha eleitoral da extrema direita. Agora todos gargalham das imitações que o filho do tucano faz caçoando da incompetência de Bolsonaro como se não tivessem nada a ver com isso. O que se viu ali naquela mesa é a chamada “direita civilizada” tentando reorganizar sua volta ao poder e evitar a vitória de Lula ou Bolsonaro. Tudo isso após ter patrocinado a ascensão do fascistoide que hoje taca fogo no país.
O vídeo que registrou o banquete de Temer com os ricaços foi estrategicamente vazado por Elsinho Mouco, o marqueteiro político do ex-presidente — aquele mesmo que confessou ter sido pago pela JBS para ajudar a derrubar Dilma. Elsinho já atuou como elo de ligação entre Bolsonaro e Temer em vários momentos. Foi ele quem articulou para que Temer chefiasse a delegação do governo Bolsonaro em viagem ao Líbano no ano passado. Também foi o responsável pela comunicação do candidato de Bolsonaro para a prefeitura de São Paulo, Celso Russomanno. O entrosamento político entre Temer e Bolsonaro não é de hoje e é mais afinado do que se imagina.
Não é possível cravar que Temer é o candidato da terceira via, mas está claro que um balão de ensaio da sua candidatura foi colocado na praça. Mas é um balão que encontrará muitas dificuldades para subir. Temer é um ex-presidente altamente rejeitado: foi eleito o mais impopular da história do país. Saiu do cargo que usurpou com 62% da população considerando seu trabalho ruim ou péssimo. Para se ter uma ideia do tamanho da sua rejeição, até a desastrosa gestão Bolsonaro tem uma desaprovação menor — 53% da população. A manifestação do MBL, que foi marcada pelo “nem Lula nem Bolsonaro”, foi um fracasso de público e oferece um indicativo de como será difícil levantar algum candidato da terceira via.
A grande imprensa também parece tentar renovar a imagem de Michel Temer. Os grandes veículos têm dado destaque para o republicanismo do ex-presidente e começaram a pipocar no noticiário colunistões tecendo elogios. Esses setores da mídia e do empresariado parecem dispostos a fabricar a sua candidatura à presidência ou, pelo menos, alçá-lo à condição de fiador de alguma outra candidatura da terceira via.
Um colunista da revista Veja publicou um texto que parece até que foi escrita por Elsinho Mouco. Intitulado “Temer e o sonho da terceira via”, o texto afirma: “Temer foi o vencedor da semana. O ex-presidente apareceu como estadista, foi e voltou a Brasília em um avião enviado pela presidência e acabou aplaudido em um restaurante em São Paulo como pacificador. No mesmo local, uma mulher disse a ele: ‘essa calma que estamos vivendo é graças a você'”.
Mesmo após atuar em conjunto do gângster Eduardo Cunha para usurpar o cargo da presidenta da qual era vice, Temer conseguiu, com o apoio da grande imprensa, manter a pose de republicano, conciliador e pacificador. Esse homem republicano virou um dos mais importantes conselheiros de um presidente fascistoide, tendo articulado no meio político para dar alguma governabilidade à barbárie bolsonarista.
Na falta de candidatos com apelo popular, as elites tentam fabricar a candidatura de alguém que ajudou a abrir as porteiras do caos institucional que vivemos hoje. Mas os patrocinadores da terceira via terão que suar muito para promover esse ressuscitamento eleitoral ou criar um novo nome com condições de disputar com Lula e Bolsonaro. Por enquanto, a terceira via só é possível nos sonhos das mesmas elites que contribuíram para a ascensão de Bolsonaro e a degradação da democracia.
Bolsonaristas estimulam radicalização de policiais, apostam em ruptura e aproveitam para antecipar suas campanhas eleitorais
por RENATO SÉRGIO DE LIMA E MARCO ANTÔNIO CARVALHO TEIXEIRA
A revelação feita pelo repórter Marcelo Godoy, do Estadão, de que o coronel da PM Aleksander Lacerda, responsável pelo Comando de Policiamento do Interior da região de Sorocaba, em São Paulo, compartilhava em sua página pessoal no Facebook conteúdos com ataques antidemocráticos contra autoridades e poderes caiu como uma bomba de gás lacrimogêneo para enevoar a cena política que antecede o próximo Sete de Setembro – data vendida pelo discurso ultrarradical e golpista de apoio ao presidente Bolsonaro como uma “nova libertação do país”.
Um grande temor de que um golpe será tentado no dia 7 tomou conta da mídia e ocupou diversos analistas. E não à toa, pois o episódio do coronel Aleksander Lacerda trouxe um elemento até então menos visível, o fato de o coronel estar na ativa e, por norma, não poder fazer manifestações político-partidárias. Até então os porta-vozes da infiltração bolsonarista nas polícias eram da reserva e/ou estavam em cargos políticos.
Levantamento da consultoria Arquimedes feito a pedido da piauí mostra que na segunda, dia 23, dia da reportagem, as convocatórias para o dia 7 dominaram as redes sociais, e o caso do coronel Aleksander foi vastamente utilizado para criticar o governador João Doria e chamar para os atos programados. Nas postagens, os porta-vozes são, como esperado, da reserva, mas tentam inflar o episódio e destacar o fato de um policial da ativa falar abertamente. Ganhou destaque o chamado para as manifestações feito pelo ex-comandante da Rota Ricardo de Mello Araújo, que hoje preside a Ceagesp e, em 2017, ainda na ativa, disse que “abordagens policiais nos Jardins e na periferia têm de ser diferentes”.
Dois outros oficiais da reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP) também tiveram destaque, sendo o primeiro o coronel Homero Cerqueira, que foi presidente do ICMBio durante a gestão de Ricardo Salles, quando a pasta do Meio Ambiente transferiu cerca de 19 milhões de reais para a PMESP oriundos de pagamentos de multas ambientais. Já o segundo, o deputado federal Coronel Tadeu Anhaia, eleito por São Paulo pelo PSL em 2018 com 98.373 votos, anunciou a locação de cinquenta ônibus para policiais se deslocarem do estado todo para a Avenida Paulista.
A partir da movimentação deste último, o roteiro do golpe ficou mais explícito, passando pelo assédio e pela cooptação das forças policiais da ativa. Ou seja, radicalizar posições junto a um eleitorado visto como cativo e se tornar visível faz parte não só do processo de ruptura institucional. Caso ela não ocorra, ajuda na estratégia de fazer frente ao fim das coligações partidárias, tema ainda em discussão no Congresso, e tentar se reeleger em 2022. E isso mostra-se ainda mais forte quando constatamos que, ainda segundo a Arquimedes, das dez postagens das redes sociais sobre o Sete de Setembro que mais geraram engajamento, duas delas eram da deputada Carla Zambelli, também eleita por SP pelo PSL, com 76.306 votos, e uma das mais proeminentes representantes do bolsonarismo radical.
Dito de outra forma, 2018 foi um ano eleitoral muito atípico – e nada disso deve se repetir em 2022. Na última eleição presidencial, o antipetismo turbinou o bolsonarismo e criou um resultado artificial para o repaginado PSL, partido que se propôs a abrigar o capitão. Movidos pelo antipetismo, paulistas e paulistanos deram, somados, quase 3 milhões de votos a Eduardo Bolsonaro e Joice Hasselmann. No total, somando votos nominais e de legenda, o PSL recebeu 20,90% dos votos válidos para deputado federal, mais que o dobro dos 9,80% destinados ao PT, partido com mais de quarenta anos de existência e tido como o preferido dos brasileiros. Foi essa enxurrada de votos que possibilitou a eleição dos peselistas Coronel Anhaia e Carla Zambelli, entre outros, já que sozinhos eles não chegariam nem perto do quociente eleitoral, que, em 2018, foi de 301,9 mil votos.
Além disso, o bolsonarismo está em baixa e, ao invés de atrair apoios fáceis como o Bolsodória em 2018, encontra dificuldades em angariar aliados. O PSL, por sua vez, rachou. Hasselmann é considerada estrela dissidente do bolsonarismo e hoje, junto com outra ex-estrela do PSL, Alexandre Frota, cerra as fileiras dos que pedem o impeachment do presidente. Eduardo Bolsonaro, assim como já aconteceu com Carlos Bolsonaro no Rio de Janeiro em 2020, deverá ver sua votação substancialmente diminuída.
Ou seja, a reeleição dos que permanecem fiéis ao bolsonarismo move a radicalização de seus discursos em busca sobretudo do eleitorado mais fiel ao “mito”. O episódio do coronel Aleksander caiu como uma luva para isso, pois envolveu João Doria, um dos principais antagonistas de Jair Bolsonaro, e um oficial da ativa da PMESP de São Paulo, cujo tamanho e história são chaves para a segurança de todo o país. O risco de esses bolsonaristas fiéis não se reelegerem aumenta exponencialmente o risco de erros de avaliação em relação ao que pode ser feito diante do comprometimento das polícias pelo bolsonarismo.
Na segurança pública, o bolsonarismo não é um pensamento único, mas hoje é a forma hegemônica por meio da qual os policiais compreendem o ser e fazer polícia no Brasil contemporâneo. As tentativas de radicalização e assédio protagonizadas por próceres bolsonaristas buscam criar um clima de mobilização e revolta entre os 650 mil policiais da ativa do país. Lembremo-nos de que o bolsonarismo, enquanto ideologia política, tem raízes históricas muito mais profundas do que a atuação direta do presidente Jair Bolsonaro durante os primeiros anos de sua gestão. Ele atualiza narrativas conservadoras e autoritárias que há séculos informam lugares institucionais, culturas organizacionais e representações sociais sobre como o Estado deve lidar com crime, medo e violência.
Olavo de Carvalho, astrólogo que se declara filósofo e é uma das grandes referências ideológicas da extrema direita brasileira, oferece gratuitamente, desde meados de 2019, seu curso online de filosofia para policiais brasileiros. O vereador no Rio de Janeiro Carlos Bolsonaro, filho do presidente e responsável pela comunicação de Bolsonaro nas redes sociais, reconheceu no seu perfil do Twitter que a oferta gratuita de cursos é uma “excelente estratégia para que as Forças de Segurança Pública possam se dispor a aprender mais sobre a cultura esquerdista maléfica que nos cerca […]”.
Tudo isso sob o aplauso e apoio de parcelas significativas da população. Pesquisa sobre medo da violência e a propensão a valores autoritários, de 2017, com base em um survey nacional que aplicou a famosa Escala F, de Theodor Adorno, calculou que, em uma escala de 1 a 10, o escore médio de apoio a posições autoritárias no país foi de 8,1. Entre as assertivas que mais se destacaram nesse estudo, a que se mostrou mais significativa foi a dimensão originalmente nomeada por Adorno como submissão à autoridade. Bolsonaro moldou-se perfeitamente ao perfil do imaginário social que vê a necessidade nacional de encontrar um “salvador”, que “coloque ordem na casa” e retome a “autoridade” perdida, segundo os discursos de ultradireita, para a agenda de direitos civis, políticos e sociais da Constituição brasileira.
A agenda de direitos foi e é vendida, portanto, como a responsável pela decadência “moral” e “cívica” da nação, não obstante termos visto que ela ainda é um projeto inconcluso no que diz respeito à segurança pública. Direitos coletivos e humanos têm sido associados a criminosos, enquanto são realçadas bandeiras como a defesa irrestrita da ampliação do porte e da posse e a revogação de qualquer política de controle e rastreabilidade de armas de fogo.
Há um reforço em temas morais e de costumes e, na medida em que a garantia da ordem social democrática inaugurada pela Constituição de 1988 é feita pelo Congresso Nacional e pelo STF (Supremo Tribunal Federal), por exemplo, o discurso bolsonarista busca desconstruir a legitimidade de tais poderes da República. Ataques contra integrantes desses poderes passam a ser parte do jogo político. A gravidade do problema aumenta exponencialmente quando esse projeto político e ideológico consegue mobilizar parcelas significativas dos policiais brasileiros a ponto de estes publicarem manifestações antidemocráticas aceitando que instituições da República sejam fechadas e que o presidente Jair Bolsonaro intervenha para romper com a ordem constitucional democrática do Brasil.
Isso é o que revela estudo do FBSP do ano passado, que mostra que o alinhamento ao discurso do bolsonarismo antidemocrático e radicalizado representa ao menos 12% de policiais militares, 7% de policiais civis e 2% de policiais federais que possuem contas nas redes sociais e interagem publicamente em grupos e páginas do Facebook. Se extrapolarmos a amostra do estudo, tais percentuais representam um grupo de aproximadamente 120 mil policiais convertidos para discursos golpistas e autoritários, que aceitariam rupturas institucionais sem maiores constrangimentos éticos ou morais. Tais percentuais não se resumem apenas aos apoiadores de Jair Bolsonaro. Revelam as visões de mundo que regem as representações sociais do conjunto dos policiais acerca de ordem social e pública. Nas redes sociais, apenas 68% dos policiais que criticaram o Congresso e o STF apresentaram interações diretas em ambientes ligados ao bolsonarismo radical. Ou seja, a força do discurso hiperconservador de Bolsonaro nas polícias é bem maior do que o engajamento em si dos policiais a um projeto político específico. Corroborando os números captados nas redes sociais, o instituto de pesquisa de opinião Atlas (2021) aplicou um survey especificamente junto a policiais e apurou que 21% deles (o equivalente a cerca de 140 mil policiais) são a favor da instalação de uma ditadura militar no Brasil.
Mas não é preciso uma ruptura radical para subverter o ordenamento democrático e colocar em risco a capacidade de o estado de direito lidar com suas forças de segurança. No plano do burocrata do nível da rua, a contaminação das tropas é algo já bastante visível, revelada pela quantidade cada vez maior de casos de policiais militares acusados de agir de forma político-partidária contra opositores do governo. Entre janeiro de 2020 e agosto de 2021, foram registrados ao menos dezessete casos de policiais militares atuando para reprimir ou prender adversários de Jair Bolsonaro, segundo levantamento do Estadão e do FBSP. Antes desses episódios, um primeiro caso ocorreu logo no início da gestão do atual presidente, quando a Polícia Militar do Estado de Minas Gerais proibiu um tradicional bloco de Carnaval da cidade de Belo Horizonte de desfilar fazendo críticas a Bolsonaro.
Seja como for, duas pesquisas, com metodologias diferentes (survey e tracking de redes sociais) e feitas por instituições diferentes, estimaram que entre 120 mil e 140 mil policiais aderiram ao discurso bolsonarista mais radical que defende medidas antidemocráticas e fechamento das instituições. Em termos comparativos, esses números representam cerca de 20% das forças policiais brasileiras. Bolsonaro reforçou, ao que tudo indica, uma tendência de conservadorismo dos policiais brasileiros que, associada ao quadro de disjunção política e organizacional da segurança pública do país, acende alertas importantes acerca da capacidade de contenção e/ou mitigação dos riscos de ruptura institucional.
Aquestão, portanto, não é apenas de convergência ideológica dos policiais. Bolsonaro se fortalece no amálgama de condições políticas, ideológicas, jurídicas e institucionais que dão forma ao modelo de ordem social e pública violento e desigual aceito e “naturalizado” pela maioria dos policiais brasileiros. Ao fazer isso, ele estimula que policiais não aceitem questionamentos ao seu projeto político e reprimam manifestações e movimentos sociais de oposição. A oposição passa a ser sinônimo de antipatriotismo, de “mal” e de desordem. Com o enfraquecimento de lideranças policiais tradicionais, que até o início da gestão de Jair Bolsonaro eram capazes de representar os anseios de suas categorias profissionais, os policiais assumem o culto da personalidade e da figura do “mito”, cuidadosamente construída pelos responsáveis pela comunicação do atual mandatário do Brasil. A nosso ver, esse é o principal risco da radicalização policial, o de confundir um líder populista com a própria noção de Estado, de Pátria e de Nação.
Polícias são instituições de Estado. Elas são o braço armado do Estado em tempos de paz e, se não reguladas, viram-se contra, até mesmo, os seus integrantes que destoam do pensamento hegemônico. A população está submetida à incerteza. Diante de tal quadro, o caso do coronel Aleksander serve para mostrar que, mesmo potencializados por políticos bolsonaristas, muitos deles oriundos das polícias, há problemas sérios que exigem a mobilização de governadores, Ministérios Públicos e Judiciário para que possamos interromper as rupturas democráticas já em curso. No planejamento de poder bolsonarista, o Sete de Setembro é só mais um passo para naturalizar a ideia de golpe e de ruptura. Por ele, as polícias são peça-chave mesmo que, ao fim e ao cabo, sejam esses mesmos policiais que, por serem da ativa, poderão ser processados e presos por motim ou revolta caso embarquem no canto da sereia da nau do capitão.
Depois do fujão Carlos Wizard e do "Véio da Havan", mais um empresário bolsonarista está na mira da CPI do Genocídio. O site Metrópoles informa que a comissão deseja investigar o Instituto Força Brasil, uma sinistra entidade que tem como vice-presidente o picareta Otávio Fakhoury, acusado de financiar disparos de fake news em plena pandemia da Covid-19.
A proposta de apurar as sujeiras da ONG foi apresentada pelo vice-presidente da CPI, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP). "Esse Instituto Força Brasil tem feito campanhas negacionistas em relação à pandemia, em relação às vacinas, e intermediou um negócio para uma vacina fake. Um golpe". A entidade teve as portas abertas no laranjal bolsonariano.
O sinistro Instituto Força Brasil
Conforme lembra o site, “o representante da Davati Medica Supply, Cristiano Carvalho, afirmou, em depoimento, que em 12 de março teve uma reunião com o Ministério da Saúde para tratar da venda de vacinas. Ela teria sido mediada pelo reverendo Amilton de Paula, da Secretaria Nacional de Assuntos Humanitários (Senah), e pelo coronel Hélcio Bruno, do Instituto Força Brasil”.
Cristiano Carvalho chegou a afirmar que o advogado da entidade dirigida por Otávio Fakhoury foi buscá-lo no aeroporto e o levou a uma reunião anterior na sua sede. “O Instituto Força Brasil, a meu ver, foi o braço que a Senah utilizou para chegar frente a frente com [o ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde] Elcio Franco”, afirmou o depoente.
Além disso, conforme enfatiza o senador Randolfe Rodrigues, “os personagens desse instituto são investigados na CPMI das Fake News. Encontramos um meandro entre o papel das fake na pandemia e a atuação de alguns destes no apoio ao governo”. O ricaço bolsonarista Otávio Fakhoury também deve estar com nó nas tripas – como seu ídolo hospitalizado.
Defensor da ditadura militar e de armas
Vale recuperar um perfil traçado pelo jornal O Globo, em maio do ano passado, sobre o empresário fascista e bravateiro. Diz o jornal:
“O investidor Otavio Fakhoury, 45 anos, trabalhou no mercado financeiro, foi sócio da Mauá Investimentos e hoje atua com um fundo próprio, que investe em imóveis. Colecionador de armas e frequentador de clubes de tiro, costuma chamar atenção até mesmo de seus pares conservadores pela defesa do período da ditadura militar, a quem atribui boa parte do desenvolvimento do país. Fakhoury se define como anticomunista, antiglobalista e apoiador voluntário de movimentos conservadores. Agitado e falante, costuma andar armado”.
“É apontado como financiador do site conservador Crítica Nacional, editado por Paulo Eneas, que ao lado do Vista Pátria, de Allan Frutuoso, foram apontados pelo deputado Alexandre Frota (PSDB-SP), que rompeu com Bolsonaro, como parte de um esquema que cria e replica campanhas de ódio ou difamação atribuídas ao chamado ‘gabinete do ódio’, comandado pelos filhos do presidente”.
Bem antes da eleição de 2018, ao ouvir pela primeira vez a massa de crentes políticos ovacionar Jair Messias Bolsonaro como “mito”, minha primeira reação foi horror. Horror por testemunhar que havia gente —muita gente— disposta a chamar aquele homem violento, obsceno e estúpido de “mito”. Tentei entender o porquê, mas sempre pensando na nomeação de “mito” como um tremendo equívoco. Agora, que o “mito” tornou-se o maior responsável pelo extermínio de mais de 525 mil brasileiras e brasileiros, percebo que Bolsonaro é, sim, um mito. E é por ser mito que está tão difícil fazer o impeachment mais do que justificado e mais do que urgente, o impeachment que é a melhor chance de evitar a ampliação da semeadura de cadáveres. É por Bolsonaro ser mito que (ainda) não conseguimos impedi-lo de seguir nos matando.
Não olho para o “mito” dos crentes políticos que seguem Bolsonaro, este que vem da popularização do termo nas redes sociais, pela palavra “mitou”, quando alguém faz ou diz algo considerado incrível. Ou “divou”. Também não olho pela lente do mito pop, como seria Marilyn Monroe ou Elvis Presley, por exemplo, parte da mitologia que alicerça o soft power dos Estados Unidos pela produção de Hollywood. Olho para o mito como a narrativa/imagem/enredo que explicam uma sociedade, povo, país. Bolsonaro é criatura-mito.
Neste exercício de interpretação, Bolsonaro inverte o percurso, ao realizar-se no plano que chamamos realidade para então nos levar a origens brutalmente reais, mas encobertas por mistificações como “país da democracia racial” ou “nação miscigenada” ou “povo cordial”, entre outras que nos falsificaram para nos formar —ou deformar.
Precisamos compreender que Bolsonaro é um mito para poder destruí-lo como mito. Parto dos gritos de “mito” da massa embrutecida para interpretar Bolsonaro como uma criatura mitológica feita de todos os nossos crimes. Ele é rigorosamente isto. Se fôssemos enumerar todas as violências que constituíram e constituem o que chamamos de Brasil, elas estão todas representadas e atualizadas em Bolsonaro. Este Messias é feito de cinco séculos de crimes, esta humana monstruosidade é constituída por todo o sangue criminosamente derramado.
Em Bolsonaro estão o os indígenas quase tão “humanos como nós”, estão os negros que “nem para procriadores servem mais”, estão as mulheres paridas nem da costela de Adão, mas de uma “fraquejada” do macho sujeito homem na cama, está a homofobia que prefere “um filho morto em um acidente de trânsito a um filho gay”, está a execução de todos aqueles que não são feitos a sua imagem e semelhança por “uma guerra civil, fazendo o trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil”.
Bolsonaro contém a trajetória completa. Da fundação do Brasil pela destruição dos povos originários ao último país das Américas a abolir a escravidão negra. Da política de branqueamento da população, executada desde o Império pela importação de europeus, à República fundada por um golpe militar e abalada ciclicamente por golpes ou tentativas de golpes militares. Se Bolsonaro é filho de seu pai e de sua mãe, ele é também e muito mais filho de todas as políticas que fizeram de um território não circunscrito, intensamente povoado por populações originárias humanas e não humanas, o estado-nação circunscrito que chamamos Brasil.
Bolsonaro realiza em seu corpo-existência todas as políticas que fizeram do Brasil o que ele é —todos os crimes que fizeram do Brasil o que ele é. E os afirma como valor, como origem e como destino. Seu DNA é Brasil. Se todas as políticas que alicerçaram os genocídios indígenas e negros, assim como as grandes violências, fossem convertidas em carne, elas seriam Bolsonaro. Elas são. Que essa criatura mitológica tenha irrompido no momento em que os negros ampliavam sua participação e sua demanda por participação, a população indígena crescia apesar de todos os processos de extermínio e as mulheres ocupavam as ruas com seus corpos não é, obviamente, coincidência. A criatura irrompe para interromper, barrar, interditar uma disputa que ameaça sua própria gênese.
Quando Bolsonaro invoca para si a “verdade”, neste sentido, o do mito, ele está rigorosamente afirmando a verdade. Ele é a verdade sobre o Brasil. Não toda a verdade, nunca toda a verdade, mas uma parte substancial da verdade da nação fundada sobre corpos humanos e não humanos, sobre a violação e esgotamento da natureza, sobre a corrupção dos corpos e do patrimônio comum. Nação fundada e ativamente assim mantida até hoje. O grande mentiroso mente sobre tudo, mas não sobre o que é —nem sobre o Brasil.
Quando Bolsonaro simula uma arma com os dedos, ou um de seus rebentos, ele está apontando para onde? Para a população. Para nós. E atira, como a pandemia nos mostrou. O que pode ser mais explícito? A criatura mitológica do país que mata parte do seu povo de forma sistemática só pode ser um matador compulsivo.
Eu, que gosto de literatura de fantasia, cinema de fantasia, séries de fantasia, fico imaginando um blockbuster. Um país que torturou e matou por cinco séculos de repente é assombrado por uma criatura humanamente monstruosa que passa a torturar e a matar à luz do dia, no centro da República. Em algum momento, passa a matar também as elites que a engendraram em suas igrejas, o “mercado” entre elas. Como ficção, Bolsonaro é um personagem ruim, plano e inverossímil. Como realidade, porém, é mais aterrador do que qualquer personagem de ficção.
Penso que precisamos criar ficção para enfrentar a realidade de Bolsonaro. Em 21 de abril, por exemplo, o movimento #liberteofuturo, que invoca a imaginação do futuro como instrumento de ação política no presente, fez o julgamento de Bolsonaro por genocídio numa plataforma de manifestação virtual (manifão). O artista Mundano criou o troféu “genocida”: uma escultura à base de lama de Brumadinho (80%) e resina (20%), com acabamentos usando óleo do vazamento do Nordeste, spray e um pedaço de luva emborrachada amarela. Imaginávamos o que lutamos para que aconteça, mas não acontece, imaginávamos justiça. Ao imaginar e realizar, interviemos no presente. Ao mesmo tempo, denunciávamos, por meio de um julgamento real, que produz realidade embora não possa colocar Bolsonaro na cadeia, a omissão tanto das cortes brasileiras quanto das internacionais diante do extermínio e do genocídio liderados por Bolsonaro usando a covid-19. Mais do que ficção, precisamos de arte para retomar o presente.
A dificuldade de fazer o impeachment de Bolsonaro, assim como a dificuldade de julgá-lo por seus crimes, é justamente porque Bolsonaro é mito. O que ele explica do Brasil está ativo, absolutamente ativo, no processo de impeachment. Arthur Lira (PP) tem o supertraseiro sentado sobre osuperpedido de impeachment e escorado pelos parlamentares de aluguel do Centrão. Entre os líderes da CPI que investiga a atuação de Bolsonaro e de seu Governo na pandemia, despontam Renan Calheiros (MDB) e Omar Aziz (PSD). Se a citação dos nomes não for autoexplicativa, basta fazer um Google. Assim, mesmo quando Bolsonaro, o homem, é investigado e enfraquecido, como está acontecendo agora, Bolsonaro, o mito, se fortalece, porque é o Brasil encarnado por Bolsonaro que está em ação. É o Brasil sendo Brasil, é um acerto entre semelhantes.
Bolsonaro precisa ser impedido dentro da Constituição, e quanto antes for, menos mortos haverá. Defendo o impeachment há muito tempo. Mais. Quero vê-lo no banco dos réus do Tribunal Penal Internacional, em Haia, julgado por extermínio contra a população não indígena e por genocídio contra os indígenas, ambos crimes contra a humanidade. Sem estes dois atos formais, não haverá justiça. Mas tudo isto se refere ao homem Bolsonaro. Para o mito, é muito mais complicado. E ainda mais importante.
O que está em curso hoje é (mais) um rearranjo. Um dos grandes, porque este é um dos grandes momentos da história do Brasil. Bolsonaro, o homem, levou a extremos a devoração da Amazônia e de outros enclaves da natureza, fez a ponte entre as milícias de cidades como Rio de Janeiro e as milícias da Amazônia, converteu parte das polícias militares em milícias autônomas. E, finalmente, o que não estava no programa, usou a covid-19 como arma biológica para matar —e matar muito mais os indígenas e os negros que estão mais expostos ao vírus. Matar os indígenas para eliminar a principal resistência à exploração predatória da floresta, os negros porque o racismo os declara como “a carne mais barata (e abundante) do mercado”.
Bolsonaro, o homem, usou a pandemia para levar a extremos a matança “normal” do Brasil, criando um “novo normal” de assassinatos em massa cometidos sem máscaras —em todos os sentidos— desde o centro do poder. E, assim, superou extasiado sua própria profecia: não 30 mil numa guerra civil, mas mais de 525 mil numa pandemia. O plano de disseminação do vírus para alcançar “imunidade de rebanho”, supostamente para manter a economia ativa, já está amplamente demonstrado. As últimas denúncias de corrupção na compra de vacinas mostram também que Bolsonaro pode ter atrasado a imunização da população para faturar e/ou deixar outros faturarem propinas. Puramente Brasil. Assassinato e corrupção amalgamados.
Bolsonaro, o homem, serve a Bolsonaro, o mito. Ele vem com a praga, é a própria praga gestada desde dentro. Mas, quando se torna praga, é apenas o homem a serviço do mito. Ao levar a matança declarada a extremos, Bolsonaro converte os protagonistas da destruição continuada, aquela que é tratada como “normal”, em lideranças “equilibradas”, “sensatas”, “respeitadoras da Constituição”. Democratas, até humanistas. Este serviço de lavanderia feito pelo homem é a melhor oferenda ao mito.
É a relação entre Ricardo Salles, até o mês passado ministro do meio ambiente, e Tereza Cristina, que segue sendo ministra da Agricultura. Salles fazia o serviço sujo de forma espetaculosa para que Tereza Cristina posasse como agronegócio moderno, costurando os ataques aos suportes naturais de vida em diligência silenciosa e persistente, como o recorde absoluto de aprovação de agrotóxicos. Esta estratégia é espichada até quase além de seus limites, e então Salles cai —não para mudar, mas para que a política de fundo não mude. O chanceler Ernesto Araújo foi mantido até quase além do possível, e então, quem o derruba? Katia Abreu, símbolo do ruralismo, articuladora importante das relações com a China, a grande potência mundial emergente, principal parceira comercial do Brasil, consumidora de mercadorias que antes eram natureza, potência que busca ampliar sua presença na Amazônia e no setor energético do Brasil.
Até aqui, eu cometi uma violenta imprecisão neste texto. Ela está no uso do “nós”. Não existe no Brasil esta unidade chamada “nós”. Nunca existiu. Há uma maioria massacrada e uma minoria que massacra. Esta é a história que Bolsonaro, o mito, nos conta. Em diferentes episódios, parte dos massacrados adere a seus próprios algozes na expectativa de faturar alguma sobra ou por acreditar que este é o único caminho possível para mudar de lugar. Como, em parte, aconteceu na eleição de 2018.
Em algum momento, que esperamos seja logo, o homem Bolsonaro será sacrificado para que o mito permaneça ativo. E mesmo aqueles que enxergam o tabuleiro inteiro precisam, devem ir às ruas pelo impeachment, para que menos morram. É preciso ter presente, porém, que quando Bolsonaro cair, seguiremos governados pelo mito e declaradamente por aqueles que só mudam de nome na história do Brasil. É preciso ter presente que não será possível respirar nem por um segundo.
A luta será então muito mais complexa, mais difícil e mais acirrada porque alguns dos mais nefastos jogadores, antes reconhecidos como nefastos jogadores, agora posam de democratas e até de humanistas. Não é outra coisa que Renan Calheiros, Omar Aziz, Tereza Cristina, Katia Abreu e até mesmo Luiz Henrique Mandetta fazem, entre muitos, muitos outros. Ou, pegando os novos nomes do velho sistema, que alquimia extraordinária Bolsonaro fez ao converter em democratas equilibrados figuras como Kim Kataguiri e outros milicianos digitais do MBL, que apenas ontem destruíram reputações com fake news, perseguiram professores de escola pública e levaram artistas a ser ameaçados de morte. Ou ainda a alquimia de tornar Joice Hasselmann e Alexandre Frota defensores da ética na política. Sem contar alguns expoentes da imprensa que colaboraram ativamente para que Bolsonaro fosse eleito e hoje se “horrorizam”, antirracistas e feministas desde o nascimento.
As diferenças fundamentais, hoje pasteurizadas pela cortesia de Bolsonaro ao prestar este serviço de lavanderia inestimável aos donos do país, ressurgirão. E a carnificina elevada a outro padrão seguirá sendo executada. O mito nasce da realidade. Só é possível destruir um mito alterando radicalmente a realidade que ele ecoa e representa. Sem a realidade, o mito se esvazia.
O que quero dizer é que devemos assumir o “nós”, mas sem perder a perspectiva das diferenças vitais, e lutar para derrubar —pela Constituição, sempre pela Constituição— o homem Bolsonaro. Aqueles que podem devem se insurgir nas ruas com vacina no braço, máscaras bem ajustadas no rosto e distância física rigorosa, se insurgir para que o Brasil não chegue a um milhão de mortos pela covid-19 propagada por Bolsonaro e pelo seu Governo. Mas o impeachment de Bolsonaro não é o fim. É só recomeço. Uma ruptura prevista na Constituição para a continuidade da luta de fundo. Porque só será possível derrubar o homem. O mito seguirá.
Para destruir o mito precisaremos refundar o Brasil. Os massacrados de cinco séculos, que são também a encarnação de uma capacidade de resistência monumental, porque sobrevivem mesmo depois de cinco séculos de destruição sistemática de seus corpos, devem tomar o centro que a eles legitimamente pertence para criar uma sociedade capaz de bem viver sem destruir os suportes de vida do planeta, as outras espécies e a si mesma. Só destruiremos o mito criando outra realidade, um Brasil que não negue sua origem de sangue, mas seja capaz de se inventar de outro jeito.
Esta é a luta. Porque não há tempo, ela precisará ser feita junto com o luto dos mortos e com a documentação da memória dos mortos. Ao destruir a floresta amazônica, o Brasil se tornou um dos líderes da corrosão do planeta. Estamos em emergência climática. O tempo está contra nós. A derrubada do homem Bolsonaro é um pequeno passo, a destruição do mito é o caminho. E ela é estratégica para que este planeta ainda possa ser uma casa.
A maior curiosidade da República gira hoje em torno do que o general Braga Netto, novo ministro da Defesa, ouviu dos comandantes militares na reunião em que, em tese, os demitiu, na manhã de quarta-feira, e o que levou para o presidente da República no Palácio. Mais à frente, saberemos. Mas, sem dúvida, foram argumento convincentes. Afinal, o mesmo Bolsonaro que deflagrou essa crise mandando demitir o general Paulo Sérgio acabou com ela nomeando Paulo Sérgio para o comando do Exército. Como diria Pazuello, manda quem pode, obedece quem tem juízo.
Para distinguir bem quem manda e quem obedece, procurei políticos experientes para fazer uma avaliação dessa crise militar, comparando-a com a última que foi tão grande como ela, a de 1977. Naquela, ocorria um embate entre concepções opostas. O então presidente Ernesto Geisel representava uma concepção moderada, de reabertura política, lenta, gradual e segura. Sylvio Frota, seu ministro da Guerra, representava a linha dura, queria fechar mais o regime, prolongar a ditadura, recuperar o direito de torturar.
Geisel teve firmeza e habilidade para cercar Frota. Quando o ministro percebeu, já estava demitido. Todos no Exército já sabiam disso, só ele não tinha percebido nada. Quando recebeu o bilhete azul, pensou em promover a quartelada e era tarde.
Na crise atual, tínhamos o Exército cumprindo suas funções constitucionais e um presidente que discordava, queria engajamento em maluquices como pressionar o Supremo e o Congresso, intimidar a mídia e, principalmente comprar a briga dele contra prefeitos e governadores que lutam para controlar a pandemia. O estopim, no qual ele se pegou foi a entrevista do general Paulo Sérgio ao Correio Braziliense defendendo as medidas restritivas contra a Covid-19 e alertando para o risco de terceira onda.
Bolsonaro mandou Braga Netto acertar na Defesa e no Exército a demissão do general. Braga Neto ouviu um não, deve ter se esforçado pouco para explicar o caso a Bolsonaro, contou também que os comandantes poderiam se demitir, coisa inédita e indesejada para o governo. Demitido Fernando Azevedo, seu sucessor havia pedido aos comandantes das três forças que não anunciassem nada, com certeza achando que ia pacificar a coisa.
No dia seguinte, Braga Netto chegou com a ordem do presidente de antecipar-se à demissão dos três comandantes presentes, na reunião com eles e com Azevedo. Sabe-se que ouviu poucas e boas. Ainda antes de acabar a reunião, já se falava em gritos e murros na mesa.
Bolsonaro avisou que iria nomear o comandante militar do Nordeste, o sexto na lista de antiguidade. Está na cara que os generais não aceitaram e mandaram Braga Netto ir lá dizer isso ao capitão. Tivemos mais de 24 horas sem decisão. Ao final, está muito claro, prevaleceu a posição dos comandantes. Nada de um general muito mais “moderno” no comando do Exército, porque além de burlar a tradição centenária da antiguidade, seria um sinal de que Bolsonaro tinha aparelhado o Exército para seus objetivos.
Da mesma maneira que Frota, em 1977, Bolsonaro custou a entender o que se passava. Mas, diferentemente do então comandante, não pensou em armar uma quartelada para derrubar o chefe porque, do ponto de vista formal, o chefe é ele. Foi enquadrado e só lhe resta sorrir amarelo e aguentar.