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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

02
Jun23

"A coisa do é de hoje": o ovo da serpente estava ali, em 2013

Talis Andrade

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por Lenio Luiz Streck

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Já muitos nem lembram. O estopim inicial dos protestos ocorreu em São Paulo, no dia 6 de junho de 2013: um grupo de manifestantes se reuniu para protestar contra o aumento da tarifa do transporte público na cidade. E a coisa se espalhou.

Alia-se a isso os altos custos da Copa do Mundo de 2014, também usados como mote. Não é preciso aprofundar o protagonismo. Interessa é o resultado.

O progressismo brasileiro (não só ele) ingenuamente caiu nessa armadilha da história. E quem tomou as rédeas foi a direita e a extrema direita. O gérmen do fascismo à brasileira estava ali.

Lembro de queridos amigos que saíam antes do trabalho — alguns largavam a toga e a beca — e se dirigiam às passeatas. Escrevi sobre essas coisas à época. As redes ainda eram fracas. Avisei os amigos: cuidado — vocês estão se prestando a algo que mistura ódio à política e moralismo. Hobbes já tinha avisado do problema que isso ia dar. Pena que não lemos.

Dito e feito. O MBL está aí até hoje. Trocou o P do MPL (Movimento Passe Livre) pelo B. Com isso, cabos, coronéis e quejandos surgiram nessa onda. Sem 2013, não existiriam Zambelis e Joyce Hasselman (fez mais de 1 milhão de votos em 2018). Tampouco deputados como Daniel Silveira.

As jornadas de 2013 deram voz aos néscios; as redes apenas os capacitaram.

A tempestade perfeita estava nas jornadas de 2013 — cujos reflexos vemos também hoje no Chile.  Junte-se a criminalização da política e surgirão os outsiders — aqueles que dizem que a política só tem ladrões. E, lógico, eles, os novos, são o sal da terra.

Eis aí o sal da terra. Basta um rápido olhar e ao longe verão a peruca do deputado de Minas, com seus milhões de votos.

Lá vem o novo (ups), mas por baixo de suas roupas vemos os andrajos do velho. Olha o novo, saúdem o novo. Eis a fundação que seria feita por Dallagnol (de R$ 2,5 bilhões) com dinheiro da Petrobras; eis a outra fundação que seria feita em Brasília, com gente famosa dando aval.

O lavajatismo surge antes da "lava jato". Uma coisa que surge antes do nome. Em 2013 estava o ovo da serpente, da cascavel — crotalus terrificus.

São assim as coisas. Elas surgem antes que as nomeemos. Se a rosa tivesse outro nome... Bom, basta ver o bolsonarismo. O próprio lavajatismo. Alguém acha que isso é de um dia pro outro? Alguém realmente acha isso?

"A coisa do é de hoje" estava ali. A coisa cujo nome se deu depois. Poucos viram. A janela para os fascistas entrarem. Que passarem a morar nas neocavernas das redes sociais.

Foi a senha. As Eríneas da peça Eumênidas, deusas da raiva, do ódio, do moralismo, mudaram-se todas para as redes sociais. E fixaram residência. Vieram junto as sereias, com seu (em)canto mortal.

Enfim, uma tormenta arrasadora. O negacionismo de todos os matizes aliou-se ao Know Nothing (Saber Nenhum) denunciado por MacIntyre no livro Depois da Virtude (isso me fez escrever vários verbetes no Dicionário Senso Incomum, que lancei recentemente). Como no livro do escocês, o Know Nothing chegou ao poder.

Criminalizou-se a política. Veio a "nova" política, que é antipolítica que, no fim das contas, é igualzinha à velha. Só é "nova". Ah, o problema que isso deu... e ainda dá.

Lembro como, no auge dos anos lavajatistas, era difícil criticar a operação — que gente como Boris Casoy e quejandos continua apoiando, mesmo diante das revelações mais escabrosas já conhecidas de todos (imaginemos o que ainda não foi revelado). Como é possível isso?

Sem esquecer que, em 2016, o STF vitaminou a "lava jato" com a decisão contra a presunção da inocência. Muitos que eram radicalmente a favor da decisão do STF depois se tornaram felizes usuários da "maldita" garantia constitucional, que as ADCs 43, 44 e 54 trouxeram de volta. Ou, como dizia Dallagnol, "filigranas" ...!

Por esse raciocínio, Direito é "filigrana". Aliás, eis um grande embuste de quem quer parecer crítico sem ser. "Ah, a 'lava jato' passou por cima de formalidades..." Formalidades? Grampear escritório de advocacia? Ah, as "formalidades".

Isso sem discutir uma questão de segundo nível, já dando de barato. Porque, sem "formalidades", não há Direito. Mas não há condições de se discutir isso. Porque discutir isso já seria dizer que foram meras "formalidades". Oh, grande "formalidade" a lei proibir que um juiz atue de chefe de investigação.

Como fracassamos tanto? Como ainda pode ser polêmico denunciar a atuação de um juiz incompetente e imparcial que ignorou a Constituição e o CPP desde o início? Isso não é coisa de país sério. Desculpem-me. Mas não é possível isso. Que tipo de república aplaude a ilegalidade? Bem, qualquer uma. Só que não é uma república.

O tempora, o mores. E quanta gente se formou em Direito nesses dez anos sob esse imaginário que amaldiçoou as garantias constitucionais? Quantos alunos saíram dizendo que o que ocorreu na lava jato foram apenas pecadilhos? Quantos alunos e professores passaram a odiar a Constituição? Como resgatar essas perdas epistemológicas? Deveria haver uma ação coletiva contra os que provocaram esse retrocesso gnosiológico. Quantos reacionários formados?

Mas nunca é tarde. Saibamos interpretar o que nos diz a ave de Minerva, dez anos depois.

Luiz Augusto Fischer, do jornal Zero Hora, fez interessante análise do ocorrido. "A conta geracional: somando FHC duas vezes, Lula outras duas e Dilma até ali, estamos falando de uns 20 anos, o prazo de uma geração na história, o tempo em que a memória vivida perde viço e se esfumaça. Em 2013, uma juventude que só tinha vivido sob governos progressistas, interessados no desenvolvimento com redução da desigualdade, essa juventude achava pouco o que havia. E foi o combustível do destampamento das caldeiras da direita raivosa". Correto! Na mosca!

Para finalizar: o Reinaldo tem o programa O É da Coisa. E eu falo Da Coisa do É de Hoje. Ela — a coisa — estava ali em 2013. E só descobrimos o seu "é" bem depois.

Para isso serve a filosofia. Reinaldo tem denunciado muito bem o "é" da coisa. Precisamos pensar sobre a coisa do "é" também.

Dizendo de um jeito bem simplinho: jabuti não dá em árvore.

Muito tarde? Não se sabe. Talvez W. Benjamin tivesse razão, ao dizer que "convencer é infrutífero"...!

23
Jan23

Da lava jato à Presunção de Inocência: a minha procuração invisível!

Talis Andrade
 
 
O Livro das Suspeições: o que Fazer Quando Sabemos que Moro era Parcial e  Suspeito? | Amazon.com.br
 
 

 

Por Lenio Luiz Streck

 

1. Acepipes epistêmicos sobre os anos ius plúmbeos recentes

Evandro Lins e Silva falava de um "mandato popular invisível" — como uma "procuração invisível" para defender ideias. Fernando Fernandes me lembrou disso há alguns dias.

Aqui me permito fazer o mesmo — em 2.589 palavras. Reserve 12 minutos para a leitura. Passados os anos ius plúmbeos do império da lava jato e dos anos de suspensão da presunção de inocência, penso que devemos fazer um rescaldo, uma espécie de memória do que ocorreu. E verificar se fazemos (ou fizemos), com H.G. Gadamer, uma boa wirkungsgechichtliches Bewußtsein — isto é, uma análise acerca da força dos efeitos que a história tem sobre nós.

A história ensina. Ou não. Ensina mostrando, mais do que dizendo, wittgensteinianamente. O dia 8 de janeiro é um cutuco da história.

 

2. O ovo da serpente e o feitiço do autoritarismo: ele sempre está à socapa

Será que aprendemos com a história? Sentimos a força dos seus efeitos? Talvez. O ovo da serpente nunca é percebido suficientemente.

Contar a história faz parte da própria historicidade, corretamente compreendida. Conto, logo existo. É o que estou fazendo aqui. Com a "procuração" (invisível) a la Evandro Lins e Silva. E com a responsabilidade epistêmica de um jurista comprometido com o debate público, com a democracia, e com respostas corretas (que podem ser demonstradas).

Antes da lava jato houve o mensalão. Foi quando escrevi que "o direito, a partir de então, seria AM-DM (Antes e Depois do Mensalão). O texto é de 2012 (ver aqui). Uma pena que não errei. Avisei de há muito.

O fato é que o projeto de poder da lava jato encantou (até no sentido de "enfeitiçou") a comunidade jurídica, midiática e política. O ovo da serpente foi também um encantador de serpentes. Como na Itália com a Mãos Limpas. O velho e atávico udenismo (às vezes veste toga) sempre está no cio. Fórmula agora aperfeiçoada: amaldiçoar os políticos e no seu lugar colocar outsiders. Bem se viu (e se vê) o que fazem outsiders. Basta olhar pela janela. Eis aí o 8J.

O pesquisador Fábio de Sá e Silva sublinha, em bela entrevista à Folha: "Existe uma linha de continuidade entre Lava Jato e ataques golpistas". E eu digo: bingo, Fábio.

 

3. Destruíram a política. Com isso, de baciada, quase destruíram o país (eis o 8 J como prova).

Explico e demonstro. Com a criminalização da política, a fragilização das instituições é (i)mediata. A sede insana de autocratismo. Não é por nada que, dia sim e outro também, o artigo 142 era invocado para justificar intervenção militar e quejandices mil. O direito contra o direito. Uma hermenêutica às raias da delinquência de Hermes. O então presidente da República, militares, gentes do direito, ex-frequentadores de bingos, radialistas, pastores (tem um monte deles presos) — todos transformados em vivandeiras. Gozavam, ao bulir com os granadeiros...!

Poucos se deram conta do(s) ovo(s) da(s) serpente(s). De 2014 em diante (tudo já estava se desenhando em 2013).

Pergunto: quantos integrantes da comunidade jurídica perceberam que o lavajatismo incubava o autoritarismo e o próprio bolsonarismo que, paradoxalmente, já existia (dormitava) mesmo sem Bolsonaro? Muito poucos. Um pouco de poucos.

Muita gente progressista achou que a lava jato era a redenção... Mal sabiam que ali estava o ovo da crotalus terificus (cascavel). Por falar em nomes científicos, parabéns à OAB da Bahia. Lá propõem — e isso vai para ser apreciado na OAB nacional — que advogado que apoia golpe e golpismo "ganha" o certificado de inidôneo. Muito bom. Advogado que quer extinguir a democracia é um caracidio da espécie hoplas malabaricus (mais conhecido como traíra).

 

4. Do Fusca à Kombi, da Kombi ao ônibus e do ônibus à frota

No princípio eram os resistentes. Que só possuíam o verbo. No princípio mal enchiam uma Kombi (há poucos dias ainda conversava sobre isso com o nosso capitão do time do Prerrô, o querido Marcelo Nobre; ele tem isso muito claro!). E sofremos muito. Lembro de meu debate com Moro em 2015. Tempos difíceis. Recordo de um texto que escrevi, em 2015, mostrando o panorama: diagnosticava então, que o direito seria, inexoravelmente, ALV-DLV (Antes da Lava Jato e Depois da Lava Jato). Avisei de novo.

Em linguagem bélica, digamos que o lavajatismo foi uma blitzkrieg ou a guerra dos seis dias. À sorrelfa. Demorou para que os resistentes nos reorganizássemos. Juntar os cacos. Os tiros vinham de todos os lados.

Mas não bastava combater os desmandos (hoje plenamente demonstrados) da lava jato, a ponto de até o juiz Bretas, hoje, se autodeclarar incompetente.

A luta era desigual. Tudo era possível — e com o auxílio da grande mídia. Mas a lava jato tinha seu super trunfo. E qual era?

Respondo: algo que o próprio governo petista ajudou a construir: a delação premiada, premiadíssima. Uma autêntica pedra filosofal para obter condenações, pela qual os próprios acusadores escolhiam os advogados dos delatores (isso ainda está pendente de um encontro com a história; a ave de Minerva ainda há de levantar voo).

 

5. O fim da presunção da inocência como vitamina para a lava jato

Em 2016 a tempestade ficou mais que perfeita. Falo do turning point do STF na presunção da inocência (HC 126.292). Naquela tarde, sem aviso, o ministro Teori tirou da manga esse HC. E o STF, por maioria, disse ser inconstitucional aquilo que ele mesmo havia decidido (2009) e que, por isso mesmo, havia sido transformado em lei em 2011.

O canto das sereias da "voz das ruas" fez com que se dissesse que a CF diz o que ela nunca disse. Fez com que se contrariasse dispositivo legal que repete exatamente o que diz a CF. Contrariando todo o espírito, toda a lógica estruturante da Carta, em sua densidade principiológica. Como o mundo é esférico e não quadrado, ele dá voltas, muita gente — agora enrolada — que antes esbravejava contra, ainda agradecerá a todos os que lutaram pela presunção da inocência.

Sigo. Hoje é possível afirmar que o giro jurisprudencial do STF em 2016 foi o combustível que faltava à lava jato. Além de ser o triunfo do que pregavam Moro e o MPF, facilitava prisões. A imprensa vibrava. O gozo indizível de ver o moralismo triunfar.

Repórteres, jornalistas e jornaleiros sabiam antes que os acusados das operações madrugadoras. Era a nova era da comunicação direta juiz-procuradores-imprensa. Rejeitaram a mediação até nisso.

E o interessante é que quase 70% da comunidade jurídica (os números são sujeitos a uma auditoria, mas que não seja a das Lojas Americanas — mas é por esse entorno) era contra a presunção da inocência... e coincidentemente a favor da lava jato. Um espelhava o outro.

 

6. Para além da lava jato, surge uma nova frente de batalha: as ADCs 43, 44 e 54

Então, ao lado do enfrentamento do lavajatismo alimentado por um lawfare sem precedentes, tínhamos que enfrentar o novo posicionamento do STF que, naquele momento, parecia render-se aos encantos da lava jato.

E entramos também de cabeça nessa nova frente. Fui um dos subscritores da ADC 44 (Kakay fizera minutos antes o protocolo da ADC 43 — os argumentos não eram exatamente iguais, frise-se, embora buscássemos a mesma coisa; a diferença era que a ADC 44, da OAB, não aceitava a "hipótese STJ", espécie de "terceira via").

Perdemos a liminar e aí começou a luta. Três longos anos. Longos, mesmo. De um lado, a poderosa lava jato e a mídia; de outro, a busca por pautar as ADCs. Até pautar era difícil. Pouca gente sabe, mas chegamos a ingressar com uma ADPF para demonstrar que a falta de pautamento das ADCs já era, em si, uma violação de preceito fundamental. O STF, porém, a fulminou. Para ver como foi difícil esse conjunto de batalhas.

 

7. A condução coercitiva, os processos e a condenação: o fator Lula

A luta foi crescendo. Com o passar do tempo já enchíamos um ônibus, por assim dizer. Aí entra o "fator Lula". Explico: quando ingressamos com as ADCs, Lula não era nem indiciado. E, no meio do caminho, Lula foi indiciado, conduzido à força ilegalmente [1], denunciado e julgado. E preso. Por quase dois anos.

Foram muitas frentes de lutas. Ainda por cima surgiu a guerra contra as Dez Medidas propostas por Moro e o MPF, que queriam introduzir — pasmem e se apavorem — prova ilícita de "boa-fé" e quase-acabar com o HC, entre outras barbaridades. Isso não é ficção. Existiu. Para verem que tempos vivenciamos.

Sim, veja-se a ousadia do lavajatismo. A sorte nossa é que o projeto das Dez Medidas funcionou como o dilema do trapezista morto: ao se achar tão bom e tão magnifico, pensou que poderia voar.

Sigo. Se de um lado fazíamos a peregrinação cotidiana pela presunção da inocência, de outro, sem procuração de Lula (porque ele tinha seus competentes advogados), lutávamos republicanamente por apontar aquilo que representava o começo do fim do devido processo legal em um Estado Democrático de Direito: um ministério público não-isento em conjuminação com o juiz pan(in)competente. Para piorar, no meio disso, até mesmo uma juíza tentou retirar as prerrogativas de ex-presidente de Lula, para cujos advogados fiz parecer pro bono mostrando os equívocos da decisão.

Decisões injustas. Porque na democracia o critério público, publicamente verificável, de "justiça" é o direito. Não a opinião pessoal do juiz, da juíza, sua ou minha. Juiz decidindo por convicção, mesmo sem provas. Inventaram novos métodos. Faltou só usar o pintinho envenenado da Tribo dos Azende.

O corolário de tudo foi a decisão do TRF-4, que explicitou a parcialidade e falta de isenção do MP. Disse a decisão (aqui): "Não é razoável exigir-se isenção dos procuradores da República, que promovem a ação penal".

O que mais precisa(va) ser dito?

 

8. O Grupo Prerrogativas e a busca dos fundamentos dos fundamentos: o dever de fazer constrangimentos epistêmicos

E aqui tenho de falar do Grupo Prerrogativas que se jogou de cabeça nessa "Operação Devido Processo Legal" (chamemo-la assim). Capitaneados por Marco Aurelio de Carvalho, não imaginávamos o nosso papel. Nem seu alcance, tamanho e dimensão política.

Tentando explicar a complexidade desse nosso modus operandi: fizemos aquilo que venho chamando de há muito de "constrangimento epistemológico", uma derivação daquilo que o grande Bernd Rüthers denunciou da doutrina alemã quando da ascensão do nazismo. Por isso ele escreveu o premiadíssimo livro Die unbegrenzte Auslegung (Uma Interpretação Ilimitada ou, assim prefiro, uma Interpretação Não Constrangida).

Sendo mais claro, fizemos por aqui, em terrae brasilis, o que a doutrina e a comunidade jurídica alemã não haviam feito naqueles anos plúmbeos da ascensão nazista. Denunciamos, nos processos da lava jato, o que Meier-Hayoz, endossado por Rüthers, chamou de — tenho adoração por esse conceito — "carência fundamental de fundamentos" (grundsätzliche Grundsatzlosigkeit). Isto é: o fundamento era o não fundamento — a simples vontade de poder.

No caso das ADCs, fomos vencedores por atuação direta, três anos depois de perdermos a liminar. A luta terminou no segundo semestre de 2019, culminando com a libertação de Lula. Isso gerou o livro O Dia em que a Constituição foi Julgada, coordenado por mim e Juliano Breda em edição da RT. Nesse livro aparecem todos os protagonistas, como Defensoria e tantas entidades valorosas. Está tudo ali, tim tim por tim tim.

Quanto à lava jato, tudo acabou com apertada maioria do STF julgando Moro incompetente e parcial. Nesse trabalho de convencimento, já aos poucos foi crescendo o número de juristas que se deram conta daquilo que o ovo da crotalus terrificus havia gestado, auxiliado que fomos nessa tarefa com o surgimento da Vaza Jato – cujos dados escabrosos nem foram necessários para a declaração da parcialidade de Moro, embora em termos de opinião pública tais revelações tenham sido de extrema importância. Inegável esse fato.

Escrevemos, o Grupo Prerrô — dois livros sobre a parcialidade de Moro: O Livro das Suspeições abriu a trilogia, com o subtítulo O que fazer quando sabemos que sabemos que Moro era parcial e suspeito?, organizado por Carol Proner, Lenio Streck, Marco Aurelio de Carvalho e Fabiano da Silva Santos. O segundo foi O Livro das Parcialidades. Completando a trilogia, em breve lançaremos O Livro dos Julgamentos. E falta talvez um quarto livro: que deveria ser escrito por Rochinha e Manoel Caetano. Seria ótimo!

Em termos de artigos, contabilizei incontáveis textos solo (são incontáveis mesmo) e mais outros tantos em coautoria com Marco Aurelio e Fabiano. Incluo aqui artigos publicados nesta ConJur, nos grandes jornais do país, mais periódicos e capítulos de livro. Foram mais de 200 escritos.

E também centenas de entrevistas em rádio, TV e sites como DCM, 247, TVT, Fórum, My News, Pannunzio (TV Democracia) e ICL que fizeram uma muralha de resistência contra as investidas neo-udeno-lavajatistas como a de um famoso jornalista que, dia sim e outro também, tocava terror na população, dizendo que, vencêssemos a batalha da presunção da inocência, 170 mil corruptos, estupradores, proxenetas e quejandos seriam imediatamente liberados (e isso me deu muito trabalho respondendo a esse jornalista). Tudo sempre devidamente respondido nos grandes veículos (Folha, O Globo e Estadão). Era bateu, levou. Cumprindo assim um dever republicano de participação no debate público, na esfera pública, desmistificando lendas urbanas e mentiras — informações falsas.

 
O Livro das Parcialidades - Editora Telha
 

9. De como nós, advogados, fôssemos médicos... haveria passeatas contra antibióticos ou "como garantias passaram a ser 'filigranas'"

E as garantias processuais-constitucionais passaram a ser chamadas de "filigranas". Assim começa essa nova fase (filigrana foi a palavra usada por Dallagnol quando um colega seu perguntou sobre se o que estavam fazendo não feria a CF; ao que respondeu: isso é filigrana). Agora o termo "filigrana" passou a ser usado contra a anulação dos processos de Lula.

Isto é, para quem pensou que a nossa "Operação Devido Processo Legal" havia terminado e os guerreiros pudessem descansar, iniciou a campanha política pela qual se desqualificava, cotidianamente, a decisão do STF que anulara as sentenças de Lula e considerara Moro suspeito-parcial.

Muita gente da mídia (coincidentemente os mesmos que amaldiçoaram a presunção da inocência) chamou as decisões do STF de "filigraneiras". Isto é: anularam por anular. STF "usou de formulismo", diziam.

E lá fomos nós novamente. Só nessa nova fase foram mais 60 artigos e mais de uma centena de lives e entrevistas em grandes e pequenos veículos. Somados com os 200 dos quais falei acima, calculemos tudo o que foi feito (falei disso também no Programa WW, CNN, dia 5/1/2023acesse aqui a entrevista).

Somando tudo — rádio, TV, mídia alternativa, textos escritos — foram mais de 700 inserções. Isso de minha parte, na modalidade solo e em coautoria (Marco e Fabiano). Agora imaginem se adicionarmos o que fizeram os demais membros do Prerrô (Pedro Serrano, Carol Proner, Kakay, Mauro Menezes, Fernando Fernandes, Cattoni e tantos outros — impossível citar a todos; a listagem aqui é exemplificativa).

Numa palavra final: como Evandro Lins e Silva, de posse de "procuração invisível", achei que "meus constituintes" mereciam uma accountabillity, a devida prestação de contas deste incomensurável "mandato sem papel e sem assinatura" que nos foi conferido — a mim e aos meus parceiros que primeiro enchiam uma kombi e que, ao final, enchemos muitos e muitos ônibus.

E, é claro, sempre haverá quem queira, mesmo chegando atrasado, sentar-se à janela e pegar ar fresco. Mas isso faz parte da própria democracia. É do jogo. Até porque não se deve ter compromisso com os erros do passado — por omissão ou comissão.

Pensamos que terminara? Chegou o dia 8 de janeiro.

E lá vamos nós de novo! Cá estamos!

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[1] Sugiro a leitura de dois textos: Lenio critica condução coercitiva e Crítica aos HC 126.292, de Marcelo Cattoni, Diogo Bacha, Alexandre Bahia e Flávio Pedro

28
Jan22

"É o processo, estúpidos!" — A bizarra guerra contra o Direito

Talis Andrade

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Por Lenio Luiz Streck

 

1. Juiz julga mal e a culpa é do Tribunal?

Já é de uso comum a metafórica resposta do assessor de Clinton, afirmando-lhe as razões pelas quais venceria as eleições: "É a economia, estúpido!"

Como todo mundo usa a expressão para explicar muitas coisas óbvias, uso-a aqui para esclarecer uma questão jurídica-civilizatória para néscios, oportunistas, mal-intencionados e cínicos (são os que sabem que mentem e continuam a mentir sobre o tema).

Depois das anulações de processos por crassos erros cometidos por juízes mal preparados e parciais como Moro, secundados por procuradores conluiadores como Dallagnol, virou moda bradar pelo fim do processo e das garantias. É chique criticar tribunais. Até mesmo tribunais criticam os tribunais.

 

2. As novas seitas (típicas) antijurídicas (e culpáveis!)

Alguns são mais explícitos como os sardenberguianos (é uma seita que bate todos os dias na tecla de que a Lava Jato foi a coisa melhor que já aconteceu no país e louva as ilicitudes cometidas); já outros buscam fazer alegorias como "anularam processos judiciais por filigranas" — fazem parte da seita "filigraneiros dos (santos dos) últimos dias”. 

Em comum nos discursos de ambas as seitas: o processo — e consequentemente o seu conteúdo, as garantias constitucionais — atrapalha a "boa justiça". Claro, a "boa justiça" feita por "bons juízes". Bons para quem? Em resposta, chamo o psicanalista Agostinho Ramalho, para dizer "Deus me livre da bondade dos bons".

A seita dos "filigraneiros dos (santos dos) últimos dias" apoiou fortemente o projeto das 10 Medidas, que exterminava com o habeas corpus e institucionalizava o uso da prova ilícita de "boa fé". Pelo projeto, valia de tudo — desde que o torturador (por exemplo) estivesse de boa-fé.

 

3. "Matem todos; Deus saberá escolher os seus": eis o lema do bom filigraneiro

Claro, óbvio: garantias como proibição de prova ilícita, obrigação de ser imparcial, garantia de juiz natural e do direito da aplicação da prescrição são "coisas dispensáveis". Afinal, um "bom juiz", mesmo que parcial, incompetente, saberá fazer a separação do joio do trigo. Algo como as palavras ditas pelo abade Arnoldo de Amaury, determinando a aniquilação total dos cátaros que se escondiam na fortaleza de Béziers, no Languedoc, em julho de 1209. É que dentre eles havia cristãos. Eram as cruzadas do papa Inocêncio 3º (1161-1216). Matem todos; Deus saberá escolher os seus!

Os cátaros eram dissidentes. Considerados hereges, não "rezavam" pela cartilha da Igreja. Eu sou, então, na cartilha dos "filigraneiros dos santos dos últimos dias", um herege processual.

Sim, em vez de dependermos de garantias processuais, os adeptos das diversas seitas sustentam que devemos depender do juiz Magnot. Que pode se transformar no Juiz Ilich, no Azdak e assim por diante. Quem garante? "Deus saberá escolher?"

 

4. Os gregos e os processualistas eram (ou são) burros?

Para os sardenberguianos e filigraneiros dos últimos dias, o bom direito não precisa dessas amarras. Claro, para eles, os gregos eram burros. Todos os juristas de escol que dedicaram vidas para estudar o processo são idiotas. Inteligentes, mesmo, são os defensores da tese "os fins justificam os meios".

Sugiro tese de doutorado que pode ser orientada por algum professor que acredita que a anulação de processo por vicio processual é filigrana. Título: "Por uma epistemologia das filigranas jurídicas: de como filigranas no dos outros é colírio". Dá prêmio Capes.

Assim, em vez de criticarem os maus juízes que desrespeitam garantias processuais, os adeptos das seitas matam o mensageiro. Atacam os tribunais que anulam processos mal feitos.

 

5. De como os causídicos dos filigraneiros deveriam ser proibidos de usarem "filigranas"

Já mostrei aqui que grandes empresas jornalísticas (por exemplo), nos quais trabalham muitos dos adeptos das seitas acima nominadas, são useiras e vezeiras de usarem "filigranas". Evidente que, nesse caso, a favor deles, não são filigranas. São direitos.

Ah, bom. Vamos fazer assim: todas as defesas nos processos movidos contra as empresas e os jornalistas que criticam garantias processuais ficam, desde já, proibidas de usar coisas como prescrição, decadência, juiz natural, juiz imparcial, prova ilícita, direito a não autoincriminação, enfim, qualquer preliminar prejudicial, nem mesmo coisa julgada. Afinal, filigranas atrapalham...

É a hipocrisia, estúpido. Ou "É o processo, estúpidos".

Conquistas civilizatórias. Leiam os clássicos. Leiam as Eumênidas (é uma peça escrita por Ésquilo — atenção: não é esquilo).

 

6. Até na Inquisição o processo importava e ensejava absolvição por questão formal (defeito da prova)

Por fim, como um anti charlatanismo praticante, recomendo a leitura da tese de doutorado de Alécio Nunes Fernandes — uma preciosidade — contando como era "A DEFESA DOS RÉUS: processos judiciais e práticas de justiça da Primeira Visitação do Santo Ofício ao Brasil (1591-1595)". A tese foi defendida na UnB. Um achado.

Os filigranistas de hoje, em suas diversas seitas, deveriam se inteirar. Há quase quinhentos anos o processo já era fundamental.

Que feio para os sardenberguianos e demais seitas. O sujeito, em pleno processo inquisitório (a pena era a fogueira!!!!), não entrava já condenado (como se vê muito hoje em dia — veja-se a lava jato), como conta Alécio. O processo era importante. Fazia a diferença. E, atenção: tem de ver e compreender isso no contexto de um processo inquisitorial stricto sensu.

Embora a barbárie da inquisição, também nela se anulavam processos (absolvições) por suspeições das testemunhas e dos delatores. Isso nos diz algo? Céus: as filigranas livraram muitos de morrerem torrados na fogueira. Isso não é pouco. Essas filigranas...

As aberrações de hoje não aparecem ainda mais claramente?

Sim? Não? Preciso desenhar?

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10
Jan22

Os Imperdoáveis do Direito ou "podemos parar o sol e matar mais gente"

Talis Andrade

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Por Lenio Luiz Streck

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1. 2021: Desconstruindo mitos

É o penúltimo texto de 2021. E tem mais de dez linhas. Quem conseguirá chegar até o final?

Começo falando de um filme. Falo de "Os Imperdoáveis", com Clint Eastwood — um faroeste ruptural. De fundamental, o filme desconstrói mitos. Nada é o que parece. No Brasil de hoje, há que desconstruir mitos. Temos de ter sangue frio, como diz o personagem Willian Munny.

No faroeste não dá utilizar raciocínios teleológicos. Por que? Simples. Não dá para atirar primeiro e depois colocar o alvo. É o que alvo não espera...!

Também no faroeste não dá para usar o Target Effect (Efeito Alvo): primeiro atira a flecha (ou dispara o projétil) e depois, sorrateiramente, pinta o alvo ao redor. Ou seja, decisões jurídicas com viés de confirmação não dariam certo no faroeste. O contraditório é verdadeiro no faroeste, se é que me entendem.

 

2. Resistindo desde há muito: cumprir a CF é um gesto revolucionário

Fiz meu primeiro controle de constitucionalidade pós-1988 no dia seguinte ao do nascimento da Constituição. Continuo na resistência.

E desde 2015 afirmo que cumprir a Constituição é, em um país periférico, uma atitude revolucionária. De que modo resistiremos?

Talvez devamos buscar o que denomino de "Paciente Zero da Epidemia que Assola o Direito": descobrir por que, quem e como, de dentro do Direito, nega-se o próprio Direito. Isso para quem considera o Direito importante na democracia. Para quem acha desimportante, pule esta parte.

 

3. O desdenhamento do Direito e o perdoável

É até compreensível (e, quiçá, perdoável para quem não conhece história) que, no campo político, gente da esquerda e da direita desdenhem do Direito — claro que o fazem por razões distintas. Assim, no campo da política, é até perdoável que pessoas justifiquem o agir estratégico1 de um ex-juiz medíocre (no generoso sentido de Montesquieu) como Moro, cuja obra, fora do exercício já declarado parcial/suspeito pelo STF, nada, mas nada mesmo acrescenta ao mundo jurídico-político. Qual é a tese, o argumento, a teoria...? Qual é a contribuição concreta — além do legado fantástico de desprezo ao devido processo? Qual é o legado, a não ser o péssimo exemplo de como não deve ser ou agir um juiz?

Explicando melhor: Moro passou seus anos na magistratura fazendo aquilo que Charles Peirce chamou de "raciocínio fingido" — não é o argumento que determina a conclusão, mas a conclusão é que determina o argumento. E isso não é Direito e nem direito: é mero exercício de poder. Fundamentação ad hoc não é fundamentação.

Nesse mesmo contexto é até compreensível que pessoas — como jornalistas e jornaleiros — achem "normal" (sic) o comportamento de um (ex)procurador que entrou pela porta do lado do MPF e saiu pela porta dos fundos, deixando para trás uma frustrada fundação de bilhões abortada pela rápida ação de sua Chefe Raquel Dodge, além de um processo disciplinar prescrito graças a dezenas de adiamentos espertos — sendo agora um próspero candidato a cargo eletivo, embora oficialmente desempregado, deixando para trás um invejável emprego que, com diárias e penduricalhos, andava sempre em torno de 50 mil pratas. Não é pouca coisa, pois não?

No mais, os diálogos revelados pela operação spoofing bem demonstram a "expertise" dos procuradores (um deles demitido) que, entre outras coisas, pela ânsia de ter poder, perderam — e essa é a parte triste — até mesmo a capacidade de se enternecer com a morte de pessoas. Mais: desdenharam das garantias — chamadas de "filigranas" pelo chefe Dallagnol. Para quem quer saber o que é garantia (filigrana — sic), basta conhecer o teor das defesas de Dallagnol e do procurador demitido. O que tem de preliminar...

No mais, isso tudo não pode passar assim. É preciso, mesmo, que se faça uma espécie de iluminismo brasileiro, para esclarecer para a malta quem foram e o que fizeram nos verões passados essas pessoas. Para dizer que não pode ser assim.

 

4. O desdenhamento do Direito e o imperdoável

Todavia, o que é imperdoável — e chamemos o personagem Munny — é que professores, juízes, membros do MP, ministros, gente que deve(ria) cuidar do Direito, façam malabarismos retóricos com a estilística mervaliana — que faz inveja ao filólogo defensor do candidato Nebraska, da machadiana A Sereníssima Repúblicapara justificar justamente o descumprimento do Direito. Nem vou falar de jornalistas que fazem o jogo dos velhos acordos que fizeram com que o Brasil seja o que é: um país que, tendo sido o último a abolir a escravidão, tem um imenso, incomensurável passado como futuro.

O paradoxo é que, se os estrategistas do Direito vencerem, eles perdem e perdemos todos nós. Porque estratégia não é Direito. É... estratégia. É política. É moral. É economia. Só não é... Direito. Pode ser qualquer coisa, menos Direito, uma vez que contraria os fundamentos e os princípios que são condição de possibilidade para o Direito ser o que é.

Bacharéis, gente formada em direito, professores e quejandos que justificarem, compactuarem com ilegalidades e cumplicidades antijurídicas, não podem ser perdoados. Afinal, quem perdoaria médicos que proscrevessem os antibióticos, em vez de os prescreverem? Proscrever e prescrever: eis a diferença! E o juramento de Hipócrates se transformaria em uma rendição hipócrita?

São, pois, imperdoáveis os membros da dita comunidade jurídica quem, em vez de prescreverem (o) Direito, proscrevem-no. Predadores internos. E eis o problema: quanto mais medíocres, mais perigosos.

Há que se ter muito sangue frio para preservar direito o Direito a termos direitos. Sem isso, é a barbárie. Os gregos já sabiam disso.

 

5. Não dá para pedir para parar o sol (ups — na Bíblia a terra é plana)... e assim matar mais amorreus

Vamos falar sério. Muita gente tem defeitos. Não há virtuosos de origem. Não sou ingênuo. Sou dos que leram a (liberal) Fábula das Abelhas do Barão de Mandeville. Aliás, sou dos que leem muito.

Agora, cá para nós, não venham personagens como Moro e Dallagnol quererem, depois de amarrarem as mãos do goleiro e, depois do jogo, compor a direção do adversário, pedir a Deus para "parar o sol" e, assim, matar mais amorreus (Josué, 10, 1-28). Não contem essa história bíblica para as crianças (spoiler: os cinco reis foram pendurados em árvores ao sol — afinal, este ficou "esperando" o fim da batalha, não "permitindo que escurecesse" — e ficaram secando).

Aí não.

 

6. O sempre delicado Estado Democrático de Direito

Quando rompemos o casco do Direito, começa entrar água. E o buraco vai aumentando. Até que o barco afunde. Onde se puxa uma pena, sai uma galinha. Ou um marreco.

Há pouco, no inicinho de setembro, havia gente querendo matar o Direito. Por um dólar furado. Queriam duelar ao pôr do sol. Uma cavalgada de proscritos.

2021 não foi fácil. O passado do Direito brasileiro, hoje tomado por um reacionarismo proveniente de cursos jurídicos que se tornam um criatório dessa nova-velha espécie de negacionistas epistemológicos, é um emaranhado de teses superficiais, que, estranhamente, já não são "coisas do Direito".

São, quando muito, teses estratégicas de exercício de poder (hoje tem muita gente sedizente crítica que acha que o direito é só estratégia!), nas quais o Direito ocupa apenas o lugar de "argumento da flecha". "Vende-se tinta para pintar o alvo": eis o argumento coaching do Direito. Isto é: um não direito!

É preciso ter sangue frio, diz Munny. Sim, de fato, não se pode perdoar certos personagens. Ninguém é santo nesta República. Mas aí é que está o busílis. As abelhas virtuosas se estreparam. Leiam a fábula do barão.

Por isso, volto ao filme. Os Imperdoáveis desmitifica o velho oeste — ele é não é épico; é machista e cheio de velhacos. E a prostituta retalhada...? Bem, a reação começa aí. É que o xerife tinha lado. Era absolutamente suspeito. Usava a violência para impor a sua visão de justiça. Só que sua visão era parcial. E, como se diz na Europa, pena que é bem longe daqui,  "Justice must not only be done; it must also be seen to be done".

Pelo menos no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (e no velho Oeste), ser parcial é imperdoável.

 

1 Observe-se que, na esquerda ou campo progressista, também há lavajatistas ou ex-lavajatistas.

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19
Jun21

O desprezo do lavajatismo pelo processo penal na democracia

Talis Andrade

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por Danilo Pereira Lima /ConJur

O processo penal é uma boa chave de análise da qualidade de uma democracia. Por meio dele podemos avaliar de que forma o Estado se relaciona com a liberdade de seus cidadãos, qual é a eficácia dos direitos e garantias fundamentais e se a persecução penal é feita na perspectiva do Estado de Direito.

Diante disso, se encontramos nos órgãos jurisdicionais uma forte cultura inquisitória, podemos constatar que o Estado mantém uma relação autoritária com os indivíduos, no sentido de vê-los muito mais como inimigos do que como cidadãos.

Por outro lado, se os órgãos jurisdicionais veem o processo penal como uma garantia do acusado e exercem sua função institucional dentro dos limites do sistema acusatório, podemos concluir que a interdição penal — necessária para o processo civilizatório — acontece dentro dos parâmetros do Estado de Direito.

Com base nesse critério, podemos observar que infelizmente a situação não é muito boa para o Brasil. Em tempos de lavajatismo, e após a divulgação das conversas entre o juiz Sergio Moro e "seus" procuradores da República, o lado mais sombrio do Estado brasileiro tornou-se ainda mais explícito: muitos juízes e membros do Ministério Público persistem numa posição de desprezo pelo Estado de Direito.

Apesar da promulgação de uma Constituição que rompeu com 21 anos de ditadura militar, ainda permanece a noção de que o acusado deve ser tratado não a partir dos limites estabelecidos por seus direitos e garantias fundamentais, mas sim como inimigo do Estado. Uma noção sempre utilizada por regimes de exceção e que, antes do paradigma constitucional instaurado em 1988, se fez presente por meio da doutrina de segurança nacional. Por sinal, foi com base nessa doutrina que a ditadura militar suspendeu a garantia do Habeas Corpus para pessoas enquadradas na Lei de Segurança Nacional.

Passaram-se muitos anos desde a aprovação do Ato Institucional nº 5 e o país se redemocratizou. O ministério Público deixou de ser um mero auxiliar do Poder Executivo e tornou-se fiscal da lei. O Poder Judiciário reconquistou sua autonomia funcional. Mas o entendimento de que os direitos e garantias fundamentais não passam de meros detalhes permaneceu entre alguns agentes públicos. Foi o que os procuradores federais da lava jato manifestaram em diálogos pelo Telegram logo após a divulgação ilegal da interceptação telefônica das conversas entre Lula e a então presidente Dilma Rousseff.

Diante do vazamento, o procurador Januario Paludo sustentou que a ilegalidade da divulgação não passava de filigrana jurídica. Opinião seguida por Deltan Dallagol ao defender que, "a questão jurídica é filigrana dentro do contexto maior que é político". Ou seja, no tratamento oferecido ao inimigo, ilegalidades podem ser praticadas.

Em regimes democráticos, o sistema acusatório determina que a acusação e o órgão jurisdicional atuem de forma separada, de maneira a garantir a imparcialidade do juiz no julgamento do processo penal. Nos tempos da "Santa" Inquisição, a mesma pessoa encarregava-se do julgamento, da investigação e da acusação. Sem esquecer, é claro, do uso da tortura como um meio para obter a confissão do acusado. O tempo da fogueira inquisitorial passou, mas a operação lava jato não abriu mão do sistema inquisitório nas suas intenções quase "messiânicas" de guerra "santa" contra a corrupção.

Em vez do Ministério Público Federal atuar com independência ao longo das investigações, o que se viu foi a total subserviência dos procuradores em relação ao verdadeiro chefe da operação, o juiz Sergio Moro. Em muitas mensagens os procuradores afirmavam que, antes de tomarem alguma posição, o juiz Moro precisava ser consultado.

Foi o caso da mensagem do procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, que em conversa com seus colegas confidenciou a preocupação de manter "o russo [Sergio Moro] informado, bem como [permanecer] atento aos humores dele". Nesse sentido, o órgão jurisdicional e o ministério público deixaram de ser instituições separadas, com autonomia funcional, para atuarem como se fossem um mesmo órgão sob a chefia do juiz Moro.

Para que o juiz permaneça na posição de expectador durante todo o processo, também é importante garantir que a gestão das provas permaneça sob a responsabilidade exclusiva das partes. Sempre levando em consideração a presunção de inocência, que no caso transfere para o acusador toda a responsabilidade pelo ônus da prova. Se no decorrer do processo penal as provas para a condenação são insuficientes, prevalece o princípio do in dubio pro reo.

Não cabe ao juiz produzir provas ou orientar como as partes devem usá-la. No entanto, apesar das limitações impostas pela Constituição, o juiz Moro mais uma vez abandonou a imparcialidade para determinar que o ministério público devia incluir uma prova contra um réu da lava jato. De acordo com as conversas do Telegram, Deltan comunicou a procuradora Laura Tessler que o juiz Moro havia chamado a atenção para a ausência de uma prova na denúncia contra Zwi Skornicki.

"Laura no caso do Zwi, Moro disse que tem um depósito em favor do [Eduardo] Musa [da Petrobras] e se for por lapso que não foi incluído ele disse que vai receber amanhã e dá tempo. Só é bom avisar ele", diz Deltan.

"Ih, vou ver", responde a procuradora. 

No dia seguinte a esse diálogo, a procuradoria incluiu um comprovante de depósito e o juiz Moro aceitou a denúncia.

A operação "lava jato" não foi um ponto fora da curva. O juiz Sergio Moro e "seus" procuradores seguiram a tendência dominante dentro do processo penal brasileiro, baseada na cultura inquisitória. Mas, além do comportamento Torquemada de muitos juízes e promotores, o que também é possível atestar por meio da permanência da cultura inquisitória é a resistência de muitos agentes públicos contra qualquer controle constitucional de suas funções. Sendo assim, em vez do processo penal ser compreendido como uma garantia de que o acusado terá um julgamento justo da parte do órgão jurisdicional do Estado; o que se percebe é que, nas mãos de quem vê os direitos e garantias fundamentais como meras filigranas jurídicas, o processo penal é apenas um instrumento de poder e repressão, numa noção típica de agentes públicos que resistem ao Estado de Direito por meio do mandonismo.

Desse modo, ao medir a qualidade da democracia brasileira por meio do processo penal, podemos concluir que o entulho autoritário de outras épocas ainda insiste em deixar a Constituição cidadã de lado para manter de pé o paradigma amigo/inimigo.

20
Fev21

O desprezo do lavajatismo pelo processo penal na democracia

Talis Andrade

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Por Danilo Pereira Lima

O processo penal é uma boa chave de análise da qualidade de uma democracia. Por meio dele podemos avaliar de que forma o Estado se relaciona com a liberdade de seus cidadãos, qual é a eficácia dos direitos e garantias fundamentais e se a persecução penal é feita na perspectiva do Estado de Direito.

Diante disso, se encontramos nos órgãos jurisdicionais uma forte cultura inquisitória, podemos constatar que o Estado mantém uma relação autoritária com os indivíduos, no sentido de vê-los muito mais como inimigos do que como cidadãos.

Por outro lado, se os órgãos jurisdicionais veem o processo penal como uma garantia do acusado e exercem sua função institucional dentro dos limites do sistema acusatório, podemos concluir que a interdição penal — necessária para o processo civilizatório — acontece dentro dos parâmetros do Estado de Direito.

Com base nesse critério, podemos observar que infelizmente a situação não é muito boa para o Brasil. Em tempos de lavajatismo, e após a divulgação das conversas entre o juiz Sergio Moro e "seus" procuradores da República, o lado mais sombrio do Estado brasileiro tornou-se ainda mais explícito: muitos juízes e membros do Ministério Público persistem numa posição de desprezo pelo Estado de Direito.

Apesar da promulgação de uma Constituição que rompeu com 21 anos de ditadura militar, ainda permanece a noção de que o acusado deve ser tratado não a partir dos limites estabelecidos por seus direitos e garantias fundamentais, mas sim como inimigo do Estado. Uma noção sempre utilizada por regimes de exceção e que, antes do paradigma constitucional instaurado em 1988, se fez presente por meio da doutrina de segurança nacional. Por sinal, foi com base nessa doutrina que a ditadura militar suspendeu a garantia do Habeas Corpus para pessoas enquadradas na Lei de Segurança Nacional.

Passaram-se muitos anos desde a aprovação do Ato Institucional nº 5 e o país se redemocratizou. O ministério Público deixou de ser um mero auxiliar do Poder Executivo e tornou-se fiscal da lei. O Poder Judiciário reconquistou sua autonomia funcional. Mas o entendimento de que os direitos e garantias fundamentais não passam de meros detalhes permaneceu entre alguns agentes públicos. Foi o que os procuradores federais da lava jato manifestaram em diálogos pelo Telegram logo após a divulgação ilegal da interceptação telefônica das conversas entre Lula e a então presidente Dilma Rousseff.

Diante do vazamento, o procurador Januario Paludo sustentou que a ilegalidade da divulgação não passava de filigrana jurídica. Opinião seguida por Deltan Dallagol ao defender que, "a questão jurídica é filigrana dentro do contexto maior que é político". Ou seja, no tratamento oferecido ao inimigo, ilegalidades podem ser praticadas.

Em regimes democráticos, o sistema acusatório determina que a acusação e o órgão jurisdicional atuem de forma separada, de maneira a garantir a imparcialidade do juiz no julgamento do processo penal. Nos tempos da "Santa" Inquisição, a mesma pessoa encarregava-se do julgamento, da investigação e da acusação. Sem esquecer, é claro, do uso da tortura como um meio para obter a confissão do acusado. O tempo da fogueira inquisitorial passou, mas a operação lava jato não abriu mão do sistema inquisitório nas suas intenções quase "messiânicas" de guerra "santa" contra a corrupção.

Em vez do Ministério Público Federal atuar com independência ao longo das investigações, o que se viu foi a total subserviência dos procuradores em relação ao verdadeiro chefe da operação, o juiz Sergio Moro. Em muitas mensagens os procuradores afirmavam que, antes de tomarem alguma posição, o juiz Moro precisava ser consultado.

Foi o caso da mensagem do procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, que em conversa com seus colegas confidenciou a preocupação de manter "o russo [Sergio Moro] informado, bem como [permanecer] atento aos humores dele". Nesse sentido, o órgão jurisdicional e o ministério público deixaram de ser instituições separadas, com autonomia funcional, para atuarem como se fossem um mesmo órgão sob a chefia do juiz Moro.

Para que o juiz permaneça na posição de expectador durante todo o processo, também é importante garantir que a gestão das provas permaneça sob a responsabilidade exclusiva das partes. Sempre levando em consideração a presunção de inocência, que no caso transfere para o acusador toda a responsabilidade pelo ônus da prova. Se no decorrer do processo penal as provas para a condenação são insuficientes, prevalece o princípio do in dubio pro reo.

Não cabe ao juiz produzir provas ou orientar como as partes devem usá-la. No entanto, apesar das limitações impostas pela Constituição, o juiz Moro mais uma vez abandonou a imparcialidade para determinar que o ministério público devia incluir uma prova contra um réu da lava jato. De acordo com as conversas do Telegram, Deltan comunicou a procuradora Laura Tessler que o juiz Moro havia chamado a atenção para a ausência de uma prova na denúncia contra Zwi Skornicki.

"Laura no caso do Zwi, Moro disse que tem um depósito em favor do [Eduardo] Musa [da Petrobras] e se for por lapso que não foi incluído ele disse que vai receber amanhã e dá tempo. Só é bom avisar ele", diz Deltan.

"Ih, vou ver", responde a procuradora. 

No dia seguinte a esse diálogo, a procuradoria incluiu um comprovante de depósito e o juiz Moro aceitou a denúncia.

A operação "lava jato" não foi um ponto fora da curva. O juiz Sergio Moro e "seus" procuradores seguiram a tendência dominante dentro do processo penal brasileiro, baseada na cultura inquisitória. Mas, além do comportamento Torquemada de muitos juízes e promotores, o que também é possível atestar por meio da permanência da cultura inquisitória é a resistência de muitos agentes públicos contra qualquer controle constitucional de suas funções. Sendo assim, em vez do processo penal ser compreendido como uma garantia de que o acusado terá um julgamento justo da parte do órgão jurisdicional do Estado; o que se percebe é que, nas mãos de quem vê os direitos e garantias fundamentais como meras filigranas jurídicas, o processo penal é apenas um instrumento de poder e repressão, numa noção típica de agentes públicos que resistem ao Estado de Direito por meio do mandonismo.

Desse modo, ao medir a qualidade da democracia brasileira por meio do processo penal, podemos concluir que o entulho autoritário de outras épocas ainda insiste em deixar a Constituição cidadã de lado para manter de pé o paradigma amigo/inimigo.

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09
Fev21

Com a palavra, o STF: como recuperar o Direito do 'Plano Deltan'?

Talis Andrade

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por Lenio Luiz Streck

Em 1989, uma figura estranha, muito estranha, assumiu a Presidência da República. Vinha como o antipolítico. O "caçador de marajás" se alçava ao poder, sob o aplauso de uma incauta malta (claro, logo depois já todos se esqueceram de que votaram n'Elle). Mas imaginem o que Collor diria, na campanha, se, à época, cinco funcionários públicos tivessem recebido mais de R$ 3 milhões em diárias? Oh, tempora, oh, mores.

Elle veio para fazer rupturas. A ministra da Economia era Zélia Cardoso de Melo. Foi a responsável pelo "Plano Lava Jato da Economia". Zélia era a chefe da Força-Tarefa do Plano Econômico.

Como um Deltan de saias, congelou os ativos de todos os brasileiros. Os mais jovens não lembram. Era como se hoje congelassem todas as contas dos brasileiros e cada um ficasse com R$ 2 mil ou R$ 3 mil para sacar.

Na entrevista coletiva do lançamento do plano, perguntada sobre a inconstitucionalidade do congelamento dos dinheiros da malta, respondeu: "Não me venha com filigranas jurídicas". Fez escola.

Sim, a Constituição, para Zélia, era uma filigrana.

O tempo passa. Oh, tempora! Vinte e sete anos depois, em 2016, Deltan disse, por duas vezes, o que dissera Zélia, uma economista. Sim, Deltan, fiscal da lei e das garantias constitucionais (assim diz a CF sobre a função do MP, no qual ingressei em 1986), disse, em duas oportunidades, que as garantias constitucionais eram filigranas. O que vale é a política (sic). Se DD conhecesse teoria do Direito, saberia que isso tem nome: uma vulgata de realismo jurídico. E retrô. Claro. Retrô e sem epistemologia. Um haraquiri institucional.

Sigo. Deltan foi secundado por seu colega Januário. Ele concordou com DD no sentido de que o que valia, mesmo, não era o jurídico; o que valia era a política. Igualzinho ao que Zélia, a economista, dissera para justificar o confisco da grana da patuleia. Não o Direito filtrando a política, mas o contrário. (Claro, isso só vale em duas condições: quando se tem o poder na política e quando a grana é da patuleia...!).

Os procuradores (DD e Januário) disseram que o Direito era filigrana no entremeio de conversas quando discutiam entre si o vazamento dos diálogos de Lula e Dilma, diálogos esses "liberados" por Sérgio Moro sob o argumento de que tudo é público. Pois bem: usando Moro contra Moro e DD contra DD, digo eu que que todos os diálogos devem ser publicizados. Todos. Principalmente esses descobertos pela operação "spoofing".

Bom, agora mesmo o presidente do STJ se deu conta da gravidade, pedindo inquérito ao PGR contra DD. Até mesmo alguns ferrenhos ex-apoiadores da "lava jato", como Demétrio Magnoli, agora despertaram. No Globo do dia 8 de fevereiro, disse, sem peias: "A gangue de Curitiba suprimiu do processo legal o juiz imparcial".

Sigo. Zélia Cardoso, a economista, destruiu a economia. Um desastre tal que fez com que surgisse o Plano Real, depois do impeachment d'Elle. Zélia sumiu. Mais ninguém a viu.

Deltan, apostando no uso estratégico do Direito — o que vale é a política —, tisnou a imagem e a credibilidade do Ministério Público e da Justiça, como bem disse a procuradora Debora Duprat.

Deltan agiu como um médico que dissesse: "Antibióticos são filigranas. O que vale é chá de carqueja ou a velha sangria".

Por isso, a incrível semelhança entre DD e Zélia: ambos subiram, destruíram e desceram. Deltan se prestou a um papel. Personagem. Não vou adjetivar Deltan como ele gosta de fazer (inclusive a mim, de forma ofensiva), em grupo de Telegram usando dinheiro público. Ele, DD (ou Deltinha, como o chama Januário), é quem gosta de processar jornalistas como Reinaldo Azevedo. Eu poderia processá-lo. Mas não o farei. Não faço críticas pelas costas, à socapa e à sorrelfa. A questão é que eu sou "mal-educado". Como disse Ariano Suassuna, "falar mal se faz pelas costas; pela frente é falta de educação". Por isso, como "muito, muitíssimo mal-educado" que sou, faço as críticas sempre pela frente, técnica e publicamente. E sem ofender. Sem baixar o nível. Fica feio. Para quem faz.

De todo modo, uma coisa é certa: o papel feio que Dallagnol desempenhou incentivou a formação de um imaginário que fez com que certa choldra pedisse o fechamento do STF e a volta dos militares. Viva o AI-5, postava um advogado choldreu...! Essa rafanalha toda agradece, efusivamente, ao filigranismo de DD. É tudo política, afinal...

Daí que temos de fazer uma epistemologia do filigranismo. Para saber das condições de possibilidade pelas quais alguém que é pago para defender as garantias e a CF se comporta ao avesso ao afirmar que direitos fundamentais são filigranas. Fora o restante que já se sabe.

Zélia é passado. DD ainda é presente. Assim como o ex-juiz Moro. A diferença é que o estrago provocado por Zélia pôde, à época, ser consertado, depois do impeachment do seu chefe, por meio do Plano Real.

A questão é saber se a credibilidade do Direito e a credibilidade das instituições ainda podem ser salvas com um "Plano Jus Real".

Sou um otimista e penso que o "Plano Jus Real" existe. Basta anular tudo o que Deltan e seu grupo, conjuminados com Moro, fizeram.

Nesse momento, quem pode fazer o "Plano Jus Real" é o STF. Sem congelamentos de "jus ativos". Sem filigranismo. Para impedir os estragos do PDM — "Plano Deltan-Moro".

Ou isso ou os nossos livros, centenas deles, escritos fazendo ode às garantias e ao devido processo legal, serão corroídos pela "jus inflação" provocada pelo filigranismo do Plano PDM. Se não pararmos o PDM, deveremos extinguir os 150 programas de mestrado e doutorado em direito do Brasil, porque se tornarão anacrônicos. Nulos. Írritos.

Se o "Plano Moro-Deltan" não for parado, restarão filigranas. Jurídicas. E o Direito já não servirá para nada. Assim como nossos salários já não serviam para nada em uma hiperinflação como a provocada por gente como Zélia. Zélia, a filinagreira da economia. DD, o filigraneiro do Direito.

A ver!

 

15
Out20

"Lava Jato serviu como plataforma para a extrema direita"

Talis Andrade

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Bruno Lupion entrevista Fabio de Sa e Silva

DW - No ímpeto de fazer avançar operações contra corrupção, a Lava Jato acabou por enfraquecer a democracia e o Estado de direito e reproduziu estratégias adotadas por populistas e líderes iliberais, que buscam minar as instituições em benefício próprio. Esse discurso, potencializado pela imprensa, ganhou as ruas e acabou por favorecer a eleição do presidente Jair Bolsonaro.

A análise é de Fabio de Sa e Silva, professor de estudos brasileiros na University of Oklahoma, nos Estados Unidos, a partir de pesquisa que codificou 194 entrevistas concedidas por membros da Lava Jato e pelo juiz Sergio Moro de janeiro de 2014 a dezembro de 2018, somando mais de mil páginas de conteúdo. O estudo foi publicado no último sábado (10/10) no Journal of Law and Society.

Em entrevista à DW Brasil, Sa e Silva afirma que as entrevistas indicam que a Lava Jato tinha uma "gramática política" estruturada, que incluía pressionar pela mudança de normas em benefício da própria força-tarefa, classificar os que resistiam a alterações como inimigos do povo e contornar a lei quando necessário para alcançar objetivos políticos.

Para ele, a retórica dos integrantes da Lava Jato indica que eles "estão muito mais próximos da ideia de identificação e perseguição do inimigo do que propriamente da contenção de arbitrariedade no exercício do poder, que é a chave do liberalismo”.

O professor da University of Oklahoma identifica na força-tarefa um discurso iliberal, conceito aplicado a líderes que enfraquecem as instituições e regras que garantem a limitação do exercício de seu poder, e aponta ser "difícil negar que a luta anticorrupção serviu como plataforma para a extrema direita no Brasil".

 

DW Brasil: Por que o senhor decidiu pesquisar o discurso dos integrantes da Lava Jato?

Fabio de Sa e Silva: O objetivo era escapar do debate sobre o caráter partidário da força-tarefa, pois isso imobiliza muito a discussão no Brasil, saber se foi ou não uma operação contra o PT. Busquei compreender os efeitos de longo prazo da Lava Jato, para além da controvérsia política imediata. O repertório cultural que ela trouxe segue produzindo efeitos, é um recurso que as pessoas passaram a usar para interpretar o mundo à sua volta.

Além disso, há hoje um debate sobre o declínio da democracia e uma discussão sobre o papel do direito e dos advogados na resistência a giros autocráticos. Uni os dois pontos para indagar se o repertório da Lava Jato tem um conteúdo de defesa do liberalismo político ou não.

Muita gente entendia esses promotores e juízes como agentes do liberalismo político, que estavam tornando o Brasil um país com mais accountability e transparência. Mas, na minha pesquisa, noto que eles articulam uma visão sobre a ação anticorrupção e o Estado de direito conflitiva com o liberalismo político. Eles têm uma visão iliberal.

 

O que significa ser iliberal?

É uma categoria que se tornou popular nos últimos tempos para descrever figuras que, uma vez no poder, começam a minar as condições democráticas que permitiram a sua própria eleição. Como o que [Nicolás] Maduro fez na Venezuela, aprovando novas Constituições e trocando a composição da Suprema Corte. Ou, mais recentemente, como [Donald] Trump vem aparelhando o Departamento de Justiça dos Estados Unidos.

É minar as instituições e regras que garantem a limitação do seu poder. Porque a democracia liberal é a combinação entre a possibilidade de elegermos alguém que nos governa, mas também a certeza de que essa pessoa não irá abusar do poder que lhe foi conferido.

 

O senhor aponta uma idealização das carreiras jurídicas e o papel que elas desempenham na defesa da democracia. De onde vem esse fenômeno?

Há uma idealização na literatura acadêmica e no debate cotidiano. Existem algumas evidências de que profissionais do direito, como advogados, promotores e juízes, tiveram papel histórico importante na defesa da democracia, sobretudo na Inglaterra e na França no século 19. E há quem queira extrapolar dessas experiências, propondo que esses profissionais sempre terão papel liberalizante nas sociedades. Mas também existe uma literatura que entende que esse papel é circunstancial e contingente a fatores locais, e não algo intrínseco à profissão. Isso pede que a gente investigue as circunstâncias.

Minha agenda de pesquisa é entender o que são as profissões jurídicas no Brasil e como elas foram constituídas historicamente e sociologicamente. E, portanto, o que podemos esperar delas, não por idealização nem por extrapolação de outros momentos e outras realidades, mas por evidências. Por exemplo, a imprensa tem destacado muito alguns aspectos das carreiras jurídicas, tais como os supersalários, as desigualdades de gênero e de raça. Será que convém apostar que carreiras com essas características serão promotoras de liberdade e igualdade?

 

Ao analisar as 194 entrevistas, que características identificou no discurso da Lava Jato?

Embora no começo da força-tarefa houvesse um argumento de que a Lava Jato foi possibilitada pelo direito, depois o direito passa a ser um obstáculo que precisa ser denunciado. Vem a campanha das "Dez medidas [contra a corrupção]" capitaneada pelo Deltan [Dallagnol] e a defesa de reformas para ampliar o poder dos próprios agentes que conduzem a iniciativa anticorrupção.

Quando surge uma resistência de setores da sociedade e do Congresso a essas reformas, há um procedimento de denúncia daqueles que resistem, como sendo inimigos do povo que querem que a corrupção reine. Usando uma linguagem alarmista, eles constroem uma oposição entre o povo e as elites, que desejariam perpetuar uma situação de corrupção endêmica.

Por fim, quando o obstáculo do direito se coloca de maneira frontal ao que a Lava Jato está fazendo, não apenas se contorna o direito, como busca-se justificar o contorno como algo necessário para proteger o povo e a sociedade. Isso acontece no episódio da liberação das gravações do Lula pelo Moro e em outros eventos.

As pessoas da força-tarefa estavam realmente imbuídas dessa lógica. Não era só uma questão de retórica. Há mensagens reveladas pela Vaza Jato mostrando que eles tinham clareza de que estavam fazendo algo ilegal, mas entendiam que politicamente era o passo a ser dado. [Em um dos diálogos, no qual os procuradores discutem a divulgação de uma conversa telefônica entre os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, Deltan escreve a um colega: "No mundo jurídico concordo com vc, é relevante. Mas a questão jurídica é filigrana dentro do contexto maior que é político”.]

 

Estimular a oposição entre o povo e a elite é uma das características do populismo. A Lava Jato era populista?

No conceito de populismo há essa ideia de uma oposição entre o povo e os "inimigos” do povo, sendo que o líder se coloca como alguém capaz de proteger o povo. Isso sem dúvida está muito presente na Lava Jato, é só olhar a forma como os agentes da força-tarefa eram representados, e o Moro como um super-herói. Não foi só uma cobertura acrítica de parte da mídia que permitiu que eles chegassem lá, eles trabalharam conscientemente para se posicionaram como esses protetores.

 

O estudo também identifica que a Lava Jato se apresentava como defensora da nação contra uma "ameaça existencial”, fazendo uso de metáforas biológicas. Que papel isso representa?

Essa parte foi algo que me surpreendeu na análise, é uma linguagem que se repete e se expande. Começa com a ideia do monstro, de que a corrupção é um monstro. Depois, que a corrupção é um câncer. E que o câncer está em metástase. E precisa de um tratamento. E o tratamento são as "Dez medidas".

Uma das maneiras pelas quais o poder do [Vladimir] Putin, uma liderança iliberal, se afirmou foi construindo a necessidade de proteger a Rússia da União Europeia, que seria um inimigo, uma fonte de promiscuidade e práticas culturais contrárias à identidade nacional russa. Tinha a ideia de que a Rússia era um corpo virgem, puro, sendo vilipendiado por uma força externa maligna. É um pouco o tom do argumento da força-tarefa no Brasil.

 

Há relação entre o discurso propagado pela Lava Jato e a posterior eleição de Bolsonaro e a deterioração da democracia no Brasil?

Tomamos como pressuposto que a ação dos integrantes da Lava Jato era voltada à promoção da transparência e da responsabilidade. Mas, se analisarmos o repertório cultural que eles foram construindo, vemos que isso dá margem para outras coisas, que são contrárias aos ideais de transparência e responsabilidade. Estão muito mais próximas da ideia de identificação e perseguição do inimigo do que propriamente da contenção de arbitrariedade no exercício do poder, que é a chave do liberalismo. É uma gramática política que pode ser invertida e mobilizada contra os ideais do liberalismo.

Moro foi compor o governo do Jair Bolsonaro e lá encarnou a dimensão da lei e da ordem, e a defesa da possibilidade, se não da necessidade, de violar direitos individuais em nome do bem-estar coletivo. É uma linha de continuidade, representada na figura do Moro e manifestada em alguns dos atos dele como ministro. Como na questão da violência contra presos em presídios federais e ao abrir inquéritos com base na Lei de Segurança Nacional contra indivíduos que criticaram Bolsonaro.

Esse discurso é consistente com a ideia de que existe alguém que será capaz de proteger o país de uma ameaça — no caso do Bolsonaro, a ameaça do crime ou do comunismo. E que se a gente não der a esses agentes as condições necessárias, seja silenciando a oposição ou restringindo direitos individuais, esse mal vai prevalecer.

 

Na sua opinião, os integrantes da Lava Jato tinham essa intenção?

Existe esse debate, se a Lava Jato deve ser considerada culpada de tudo o que acontece no Brasil desde 2016 e se a força-tarefa tinha ou não a intenção de fragilizar a democracia no país. Mas, como disse no início, não estou interessado nas intenções, estou mais interessado nos efeitos gerados a partir da interação entre aquilo que eles fizeram com aquilo que outros fizeram, circunscrevendo a análise a esse campo cultural. Nesse sentido, é difícil negar que a luta anticorrupção serviu como plataforma para a extrema direita no Brasil. Se foi construída como esse fim, ou se foi instrumentalizada, deixo para outros responderem.

20
Set19

As motivações políticas da Lava Jato

Talis Andrade

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Ana Paula Lemes de Souza

Para falar com Kelsen, mas, igualmente, contra Kelsen, não existe um “Direito Puro”. A construção teórica do direito puro, completamente despido de outros interesses, tais como os políticos e os econômicos, deve ser fruto do ópio dos modernos, esse discurso esterilizante ao mesmo tempo em que hipnótico e analgésico, por meio do qual se tentou construir o ideal do direito purificado de todas as paixões, junto com a estruturação da imparcialidade, que, ao longo do aprofundamento da lógica da racionalidade moderna do Estado burocrático, gerou a supremacia do direito sobre a política. Aliás, esse argumento da suposta autonomia positivista do direito serviu, ao longo da história ocidental, menos como frenagem e mais como o motor legitimador das mais diversas arbitrariedades.


Interesses políticos se colocam em tela, seja através da luta epistêmica pelo “dizer o direito” entre os tribunais, com suas relações de forças, conflitos e jogos de poder, seja através da produção de sentido entre forças nitidamente sociais, como entre as doutrinas dominantes e outras formas de produção de saberes, nos conflitos entre centros e periferias, diferenças de escalas e escolas, perspectivas e visões de direito – para não falar em choques de mundos! – ou, ainda, através de alianças momentâneas com os interesses ditos impuros, como os industriais, os econômicos e os estatais. Não se discute se existe ou não política no direito – pois o direito está mesmo repleto de política! – ainda mais se considerarmos, assim como na perspectiva proposta por Viveiros de Castro e Danowski, que a política dita dos ocidentais é apenas um departamento da cosmopolítica.

 

O que se coloca em jogo na Lava Jato não é a mera existência de política e, sim, o papel que essa dita “política” exerceu sobre as atuações das organizações jurídicas, as motivações da operação, as alianças indisfarçáveis que vão se tornando cada vez mais nítidas entre as forças que geraram, primeiramente, algumas escoriações no Estado democrático de direito e que, agora, deixam-no cada vez mais capenga. É esse o esforço ao longo desse texto, mostrar que, em que pese a existência de política no direito, tal reconhecimento não pode entravar a sua busca e reivindicação por autonomia, a constante restrição de sua discursividade, exigindo alianças cada vez mais consistentes. Embora o direito seja também política, sabe-se que ele não é somente isso.

 

O grande problema da Lava Jato, para falar com Deltan Dallagnol, é que a questão jurídica é filigrana dentro do contexto maior, que é o político.

 

O problema da Lava Jato não é somente quando existe alguma política norteando as decisões, mas quando esse Estado fica tão moribundo que a questão jurídica se torna filigrana dentro do contexto “maior”, que é o político, em sentido oposto do qual deveria ser pensada a discursividade do mundo do direito, em que o contexto político é que deveria ser a filigrana.

 

A Lava Jato se torna um absoluto quando adquire o poder do rei, quando passa a ser incontestada, dona da verdade e da bondade; quando não se envergonha de utilizar métodos neofascistas de tortura para atingir os seus objetivos, tal como quando cinicamente autorizou devassa na vida da filha de um acusado da operação, com o claro objetivo de amedrontar e martirizar o seu pai; ou quando demonstra desdém e absoluto desrespeito perante a morte dos familiares dos investigados, “esses que não são gente como a gente”, tal como no falecimento da esposa e neto de Lula, chegando ao absurdo higienista e separatista da procuradora Thaméa Danelon afirmar que a presença e humanidade de um membro do MP no funeral era mesmo uma traição, demonstrando “partidarismo”; claro, os partidários são sempre os outros!

A Lava Jato vira soberana quando, passando a ocupar o lugar de Deus, Onisciente e Onipotente, a posição do Neutro, ignora seus próprios problemas, inclusive, a sua própria corrupção e política, e passa a perseguir a corrupção e a política dos outros, esses sim, essa “gentalha política corrupta e atrasada”, que é menos “gente” que eles, tal como os nazistas, em outros tempos, contextos e proporções, mas que também construíram os judeus como outros que não humanos, demarcando o fim da humanidade ao menos como pensada pelo humanismo iluminista.

Isso se torna claramente um problema quando, não podendo atuar sobre os poderes nas urnas, investe-se pesadamente no messianismo jurídico que, enquanto projeto de poder, tem por objetivo utilizar as estruturas do direito e a “supremacia moderna” de suas organizações, para atingir os fins que somente seriam possíveis de serem atingidos através da política, agora, no sentido “moderno” do termo, quando este se torna, para falar como Isabelle Stengers, uma restrição leibniziana, um modo de construção de sentido possuidor de suas próprias regras de ingresso e disputa.

 

Não importa que exista política na Lava Jato, o que interessa é quando a Lava Jato se torna propriamente a política, só que disfarçada de direito; quando existe tal discursividade norteante, bailando e maculando cada ato da operação e seus atores.

 

É quando roboticamente e obsessivamente o coordenador da Lava Jato, Deltan Dallagnol, fala em um membro do MP concorrendo ao Senado por Estado, o que, nos termos de Dallagnol, equivaleria a um partido da Lava Jato, o que não é difícil de se imaginar, ainda mais em tempos de conflitos entre Sergio Moro e Bolsonaro, quando o messianismo de Moro, o faxineiro moralizante da política, sobrepõe-se ao “Messias” de Jair Messias Bolsonaro, tal como apontado pela Datafolha recentemente, que aponta o índice de aprovação do “superministro” de 52% (cinquenta e dois por cento), enquanto, em período coincidente, sobe a reprovação de Bolsonaro para 38% (trinta e oito por cento).

Esses propósitos de Dallagnol seriam ainda mais perniciosos se não fosse a morte prematura da tal “organização” ou, melhor falar, “partido” da Lava Jato, formado com os fundos de R$ 2,5 bilhões da Petrobras, quando alguns agentes da operação viram nesta algo como a “galinha dos ovos de ouro”, um passo adiante da notável lucratividade da “luta” contra a corrupção, anteriormente colocada apenas a título de remuneração de palestras, livros e eventos. Naquela ocasião, a promessa era de que o fundo iria incentivar projetos “apartidários” anticorrupção, aquilo que, após ação de Raquel Dodge, foi suspenso pelo STF.

Instaura-se o paradoxo: a luta anticorrupção é boa, desde que não se fale em corrupção da própria “luta anticorrupção”: afinal, após o conflito interno no MPF, entre Raquel Dodge e Lava Jato, os membros ministeriais da operação informaram ter “desistido” da atuação – como se fosse possível desistir após o fracasso, como se restasse alternativa ao que já estava decidido, um modo de demonstração de poder, coerente ao projeto lavajatista, que Gilmar Mendes tão bem definiu como “projeto de poder”.

Agora, após o início da Vaza Jato, sabe-se bem quais são essas organizações “apartidárias” de Deltan Dallagnol, que seriam beneficiadas pelo fundo bilionário administrado pela Lava Jato, que, inclusive, foram utilizadas para forçar o impeachment de Dilma Rousseff. Outra influência direta da Lava Jato nos modos de operação da política foi a divulgação seletiva das conversas grampeadas de Lula que, ao longo das temporalidades da Lava Jato, desencadeou uma série de ações: nomeação de Lula para a Casa Civil -> que gerou cancelamento via decisão de Gilmar Mendes -> que aprofundou a crise do governo de Dilma -> que desencadeou, ao longo da série sucessiva de episódios, o golpe de Temer e a prisão de Lula. Talvez agora Gilmar Mendes se arrependa de ter alimentado o monstro, mas, ao que tudo indica, na cadeia de eventos no tempo, a sua atuação foi no mínimo fundamental para chegar onde chegamos.

Quanto à (i)legalidade da decisão de Moro, que autorizou a divulgação e anexou conversa entre Dilma e Lula ocorrida após o fim dos grampos, somada à problemática da incompetência quanto à divulgação da conversa da presidenta, que gozava de foro privilegiado, bastaram as “respeitosas escusas” à corte, nesta e em outras ocasiões, coisa que deveria ser o problema essencial a ser enfrentado pelo modo de operação jurídica.

Contudo, para falar como o procurador Andrey Borges de Mendonça, os filigranas jurídicos não iriam “convencer ninguém”, apesar de Dallagnol ter confessado que tal grampo ilegal era de “notável relevância no mundo jurídico”, que, diga-se, deveria ser a legítima preocupação dos membros do Ministério Público Federal.

Isso sem contar a confissão do ex-procurador lavajatista Carlos Fernando dos Santos Lima de que a Lava Jato teve lado nas eleições, que era o de Bolsonaro e não o “daquele outro” candidato, o do PT, “decisão óbvia”, mostrando o alinhamento partidário eleitoreiro dos agentes jurídicos e maculando mais uma vez a constituição e o Estado democrático de direito.

 

Quando o MPF cava a própria cova

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O mesmo se diz quanto ao Ministério Público, com a indicação de Augusto Aras para a Procuradoria Geral da República pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL), fora da lista tríplice, contrariando a autonomia do órgão que, desde 2003, é chefiado por pessoas que minimamente representam a investida democrática, já que a indicação presidencial se dá entre os três mais votados por processo de escrutínio interno da organização.

Ignorando completamente a lista e indicando Augusto Aras para o cargo de procurador-geral, trata-se de mais uma investida contra a autonomia do Ministério Público, mais uma queda para a Constituição da República, mais um ataque ao Estado democrático de direito. Isso sem contar o “duplipensar” inerente ao ato, já que, em que pese a defesa institucional do Ministério Público do meio ambiente e dos direitos das minorias, o escolhido eleito para representar essas defesas institucionais deve ser justamente aquele que não defende o meio ambiente e nem as minorias. O flerte de Augusto Aras com o cargo já tinha se tornado evidente há algum tempo, quando passou a declarar abertamente ser contra “ideologia de gênero” e assinou carta de compromissos com a Anajure – Associação Nacional de Juristas Evangélicos, em que se compromete a lutar por uma série de questões inclusive já pacificadas pelo STF – tal como atuar pela família monogâmica e heterossexual, contrariamente à posição do STF que aceita a relação homoafetiva, apoiar a “cura gay”, fora outras pautas igualmente bizarras, como o apoio às ideias de base da “Escola Sem Partido” e ao ensino religioso confessional nas escolas.

Ainda, deve ser lembrada a questão ambiental, que era fundamental para a escolha de Bolsonaro, pois o chefe da Procuradoria da República não deve ser “xiita ambiental” e deve tratar as “minorias como minorias”, coisa que Aras está bem “alinhado”, pois afirmou em abril desse ano que não se pode “radicalizar” a defesa do meio ambiente e da proteção aos povos indígenas, afirmações que, sendo missão institucional primordial do MP a defesa do meio ambiente e das minorias, deve ser radicalizado no sentido mais genuíno do termo. Ainda, afirmou que existem “minerais estratégicos” em reservas indígenas, discursivamente se relacionando aos desmontes ambientais que constituem o grande marco do governo de Bolsonaro. Esse “duplipensar” indica o pathos de desmonte generalizado, já que o mesmo ocorre em outros meios, inclusive com a nomeação de Marcelo Augusto Xavier da Silva, que assessorou a bancada ruralista e é declaradamente contra os indígenas e suas reservas, para chefiar o Funai – Fundação Nacional do Índio.

Cumpre observar que Augusto Aras é alinhado também da Lava Jato, indicando os membros higienistas da operação para compor sua equipe, tal como Thaméa Danelon, cujo o cinismo e mau caratismo vêm sendo dissecados pela “Vaza Jato”. Mais uma vez, é Dallagnol quem assume a postura neutral do Sirius e advoga apenas em causa própria, ignorando o desrespeito à lista tríplice do Ministério Público e defendendo “ação conjunta” com Aras, convocando seus pares zumbificados e mortificados para levantar do túmulo, afinal, tudo vale pela sua pseudo-luta “contra” a corrupção; é questão de fé, mesmo que isso signifique, no dizer popular, “vender a alma para o diabo”, pois, ao que tudo indica, os portões infernais já foram abertos.

Por fim, cumpre observar que, em que pese a própria cova que o Ministério Público tem cavado para si próprio, ainda leva junto consigo a Constituição. É claro que a definição do que o direito é nunca é neutra. Ela é historicizada e confere direitos e deveres aos seus autores. Ela ao mesmo tempo exclui e inclui, proíbe e cria um modelo. Mas alimentar politicamente as organizações do direito é dotar a política de novas formas de ingresso na disputa, o que – deveria ser desnecessário dizer! – é uma relação duplamente perigosa, tanto para a legitimidade do direito, quanto para a política. E salve-se quem puder: as fumaças escuras parecem nunca nos abandonar, enquanto as covas são incansavelmente abertas.

10
Set19

Tá lá um corpo estendido no chão! É a filigrana! É a Constituição!

Talis Andrade

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por Lenio Luiz Streck

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Tomando café da manhã no domingo, detalhava a Rosane, minha esposa, os últimos diálogos publicados pela Folha e Intercept. Lia, da tela do celular, o diálogo de Deltan com seu colega Andrey, que lhe alertara acerca da ilegalidade dos grampos telefônicos e da ilegalidade da divulgação da conversa entre Lula e Dilma, naquele fatídico dia 16 de março de 2016. Deltan diz, então:

“Andrey, no mundo jurídico concordo com você, é relevante. Mas a questão jurídica é filigrana dentro do contexto maior que é a política”.

Respondeu-me Rosane, sorvendo um gole da rubiácea que fumegava: Deltan agiu como o médico que abusa dos pacientes; ele abusou do o Estado de Direito. Perfeita a análise da bela Rosane. Um agente político do Estado, detentor das garantias máximas da magistratura, comporta-se como um militante político. Um militante político apaixonado pela causa. Disposto a tudo.

Para ele, a Constituição, que jurou defender quando assumiu o nobre cargo de Procurador da República, é filigrana. Aliás, Dallagnol só conseguiu permanecer como Procurador com decisão judicial, porque prestou concurso fora dos pressupostos legais – ou seja, já começou mal, sendo salvo por uma tese que hoje é rejeitada no STF, o “fato consumado”.

Filigrana: coisa sem importância, pormenor, minúcia. Esse é conceito que Deltan tem da Lei Maior. É isso que Deltan pensa do Direito brasileiro. Mais não precisa ser dito. Estou escrevendo um dicionário de direito constitucional e terei que colocar esse novo conceito, que já fora usado por Zélia Cardoso, quando lhe perguntaram sobre o congelamento da poupança, em 1989: a Constituição? Ah, isso é filigrana.

Aliás, filigrana é palavra comum nos diálogos. Nas conversas reveladas no dia 8.9.2019, os procuradores Januário e Carlos Fernando também consideram o Direito apenas filigrana. Pensemos então: como acreditar na Lava Jato se os acusadores consideram o Direito uma filigrana?

Pior é que, mesmo com tantas evidências, os procuradores e Moro continuam justificando tudo o que fizeram. Sem autocritica. Sem nenhuma vergonha.

Um agente político do Estado que desdenha da morte de familiares do réu e que chama o réu de “9”, fazendo chacota (rs, na mensagem) da falta de um dedo do ex-Presidente, o que dizer disso? Será que isso não é “parcialidade chapada”?

Pergunto: O que mais precisa vir à tona para colocar luz – e justiça – nessa conspiração (os diálogos mostram exatamente isso: uma conspiração) que envolveu o afastamento do ex-Presidente do cargo de Chefe da Casa Civil (os diálogos mostram que a Força Tarefa e Moro esconderam diálogos), da condução coercitiva e das ações penais?

Nossas autoridades vão dizer que tudo é normal? Que vergonha que sinto. Quase trinta anos de Ministério Público e tenho de ver alguns membros fazerem isso com a Instituição que a Constituição encarregou de garantir o Estado democrático, os direitos de todas as pessoas, inclusive os réus.

Participei dos preparativos para a Constituinte. Estava ingressando no Ministério Público, então. Os constituintes fizeram um ótimo trabalho. Colocaram o Ministério Público como algo à parte, como que a homenagear aquele que considero patrono da instituição, Alfredo Valadão (quem escreveu sobre isso na década de 50 do século passado), cujo mantra recitei na minha prova de tribuna, verbis:

o MP é instituição que, para além dos Poderes tradicionais, deve defender a sociedade, denunciando abusos, vindos deles de onde vierem, inclusive do próprio Estado (leia-se, o próprio MP e o Poder Judiciário).

Pois é. E hoje descobrimos que o MP agiu como militante político. Confessadamente conspirador. Quem diz que o Direito não importa conspira contra a democracia e contra o rule of law. E não venham dizer que não reconhecem os diálogos. Uma Procuradora, envergonhada, já pediu desculpas por ter ofendido a honra dos familiares mortos do ex-Presidente.

Há algo mais a dizer? O que diriam os médicos do Conselho de Medicina, depois de verem vídeos em que médicos abusaram de pacientes? Na alegoria, pergunto: o que dirão os juristas e as autoridades judiciárias e do MP diante das imagens de abuso do Estado de Direito reveladas (mais uma vez) pela Folha de São Paulo-Intercept?

Tá lá um corpo estendido no chão… (é de uma música famosa e eternizada no bordão do narrador Januário de Oliveira, quem a repetia quando um jogador estava deitado, esperando a maca – quem olhar o vídeo, verá a narração de Januário – Deltan é o zagueiro quem faz a falta!).

É a filigrana…quer dizer, a Constituição…que está lá estendida no chão.

Deltan conseguiu provar, em uma frase, que há dois mundos: o do direito e o da política. Para ele, vale mesmo é o da política. Vale tudo. Tudo vale. Os fins justificam os piores meios.

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