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A governadora de Pernambuco Raquel Lyra ao lado da vice Priscila Krause
Boa noite, gente. Que bom poder estar aqui hoje com vocês. Quero iniciar minhas palavras cumprimentando Priscila Krause, vice-governadora eleita, companheira de jornada. Obrigada, Priscila. O que vem pela frente ainda é muito melhor e maior do que a gente construiu até agora. Que Deus nos abençoe.
Eu quero começar esse meu primeiro discurso como governadora de Pernambuco em um dia histórico para a nossa sociedade me dirigindo especialmente às mulheres. Pela primeira vez desde que nos tornamos uma unidade federativa, uma mulher igual a cada uma de vocês, eleita pela vontade do povo vai ocupar este lugar. É uma honra, um orgulho e uma enorme responsabilidade que esta mulher seja eu. Tendo ao meu lado Priscila Krause, vice-governadora eleita.
Tenham a certeza e a confiança que assim como as heroínas de Tejucupapo, estaremos alertas, vigilantes e determinadas a defender nossa terra, seja qual for o desafio. Junto conosco estão os sonhos e as esperanças de muitas outras. De minha mãe, Mércia Lyra, minhas irmãs Nara e Paula, de tantas Severinas, Marinas, Vanessa, Paulas, que têm esperança de um futuro melhor.
Esperança, essa palavra feminina que junto de uma outra, a coragem, vão levar Pernambuco para um novo tempo. Quem se dirige a vocês no dia de hoje é a nova governadora de Pernambuco mas, antes de tudo, a mãe de João e Nando, amores da minha vida. E que me deram a força para chegar até aqui. Vocês, meus filhos, tenham a certeza de que tudo que farei aqui será sempre para que no final de cada dia vocês tenham orgulho da mãe que têm.
Se cheguei aqui hoje é porque eu tive ao longo de muitos anos um parceiro de fé inabalável que sonhou meus sonhos comigo, lutou minhas lutas e, dessa maneira, fez com que todo sonho e toda luta não fossem apenas meus, mas fossem nossos. Deu certo, ‘nego’. Você estará comigo aqui hoje e sempre.
Eu quero nessas primeiras palavras trazer a inspiração do que vi na vida. Do que a política me mostrou de melhor. Porque é pela política que podemos garantir a democracia, unir pessoas e melhorar a vida delas olhando de forma especial para os que mais precisam da ação do poder público. Aquelas que se sentem invisíveis porque governo nenhum chega nelas.
Há muitos anos eu ainda era uma menina e meu pai, João Lyra, então prefeito de Caruaru, me levava junto com minha mãe para rodar a cidade inteira, ver quais eram os problemas. Os buracos nas ruas, olhar nos olhos das pessoas, conversar. Numa dessas andanças lembro de algo que me marcou para sempre. Eu vi a fome, o rosto dela. Seus cabelos e olhos escuros. Era uma mulher e seus filhos. Uma família que tinha muito pouco, quase nada. Só tinham a si mesmos e a esperança de que alguém fizesse por eles.
Passados tantos anos, aquela menina está aqui diante de vocês como governadora. Mas a fome ainda permanece no rosto de milhões de mães, pais e filhos de Pernambuco. Não podemos seguir com esse que é o sinal mais claro e doloroso da falta do Estado na vida do povo. É por aí que a mudança vai começar, com mães de Pernambuco. No auxílio financeiro que vai chegar para quem mais precisa para ajudar a colocar comida no prato.
Meu tio, Fernando Lyra, que foi o ministro da Justiça que assinou a Lei que acabou com a censura no Brasil afirmou certa vez que o maior problema brasileiro era o apaartheid social. Como se existissem países diferentes dentro do mesmo território. Como se existissem Pernambucos diferentes dentro de um mesmo território. Dividindo os mais ricos e os que não têm nada.
Diminuir estas fronteiras levando educação, trabalho, moradia, saúde, cidadania e dignidade não é apenas uma meta para mim. É, antes de tudo, uma definição de vida. É o que me motiva a estar aqui. É o que vamos perseguir diariamente.
Neste novo ciclo que começamos a construir juntos a partir de agora, ainda há mais a ser feito do que havia em 2007, quando Eduardo Campos e João Lyra assumiram o Governo de Pernambuco. Muito do que foi construído em um passado recente foi perdido nos últimos anos.
O Pernambuco que recebemos lidera indicadores nacionais de desemprego, miséria, violência e desalento. Não podemos aceitar sermos uma sociedade em que parte das pessoas não come enquanto outra parte não dorme com medo da violência.
Os ingredientes da paz social são o amor, o trabalho e o pão. A pobreza novamente é um desafio a ser enfrentado exigindo de todos nós unidade, capacidade de dialogar e entrega de trabalho. Sabemos que as pessoas esperam de nós uma gestão pautada, Priscila, pela Justiça. Sensível às desigualdades, criativa em busca das soluções e com agilidade para fazer mais.
Dom Helder Câmara costumava dizer que é graça divina começar bem. Graça maior, persistir na caminhada certa. Mas, graça das graças, é não desistir nunca e a gente não desiste. O nosso governo persiste e não desistirá. Não podemos mais dar raízes para os problemas. temos que dar gotas das soluções.
Para combater a violência que aflige nosso Estado, vamos construir uma política pública eficiente, chamando todas as forças envolvidas nesse processo para participar e ajudar a pacificar as ruas.
Quem mora aqu não pode continuar vivendo com medo. Quem vem nos visitar tem que voltar para casa com o desejo de retornar mais vezes à nossa terra. O Juntos Pela Segurança vai ser uma das nossas prioridades, assim como a saúde que anda tão combalida.
É preciso requalificar os hospitais e construir novas instalações. Agir emergencialmente para reduzir as filas de exames e consultas. Não é do dia para a noite que a gente resolve essas questões. Mas a gente vai trabalhar exaustivamente para que pouco a pouco, passo a passo, elas passem a ser solucionadas.
Como afirmamos durante a campanha olhando nos olhos das pernambucanas e pernambucanos, vamos trazer de volta as oportunidade para que o povo tenha trabalho. Para que os jovens possam estudar, se qualificar e depois tenham uma vaga de emprego. Para que as mães vejam filhas e filhos crescendo com segurança.
O Governo tem a tarefa de induzir o desenvolvimento, de preparar o Estado e facilitar a vida de quem quer empreender e gerar os novos negócios no nosso estado. De quem vive aqui e de quem pode chegar de fora para investir no Estado que já foi líder do Nordeste brasileiro, gerando um ambiente de negócio que seja dinâmico, arrojado e ativo.
O Desenvolvimento não pode e não estará restrito a apenas uma região do nosso Estado. Sou filha do Interior. A primeira a ser eleita governadora de Pernambuco. Eu sei das dificuldades para quem vive e quer trabalhar por lá. Conheço esse Estado inteiro, cada região. Sei das suas diferenças, das suas vocações e possibilidades.
Mas sei também que ninguém faz nada só. Não iremos governar de cima para baixo, sob a força da caneta, da coação e nem do medo. Vou continuar percorrendo Pernambuco, escutando as pessoas e fazendo as escolhas com elas. Quem tem habilidade para escutar mais certamente vai errar menos.
Desde os tempos em que éramos uma colônia portuguesa, Pernambuco sempre teve uma postura de liderança. Mesmo sendo um Estado pobre, Pernambuco se fazia ouvir e respeitar com voz, altivez, coragem e atitude. Esse protagonismo estava apagado, está apagado. Teremos importância e relevância no cenário nacional. Tenho convicção: esse tempo acabou. Essa página está virada.
Nós vamos trazer de volta a força dos pernambucanos. Nos colocando nos debates nacionais, participando e discutindo a pauta brasileira. Pernambuco sempre foi e vai novamente fazer questão de ser ouvido. Nossa bandeira e nossas mãos vão estar o tempo inteiro prontas a erguer pontes, mas sem nunca deixar que sejamos subjugados ou colocados em segundo plano.
Estamos assumindo no dia de hoje, no Governo do Estado, em uma casa que ao que tudo indica está bagunçada e mal cuidada. E nisso, o olhar de não apenas uma, mas muitas mulheres que entram nesse governo junto comigo, fará toda a diferença.
Teremos dificuldades, mas vamos superá-las. teremos dias ruins, mas se seguirão de dias bons. teremos pedras no caminho, mas o nosso caminho nunca foi fácil. Dessas pedras construiremos as pontes que nos levarão ao futuro.
Aqui, bem perto das pontes que caracterizam nossa capital. Que unem os dois lados do capibaribe, eu reafirmo que vocês terão em mim uma líder capaz de construir o Estado construindo pontes, jamais muros.
Pontes com os nosso representantes no Legislativo, a quem agradeço a confiança, a presença. No Legislativo Estadual, no municipal, aos milhares de vereadoras e vereadores que tem no Estado de Pernambuco, na Câmara dos deputados e no Senado federal. Com nossos prefeitos e prefeitas, como um governo amigo das cidades, sempre atendo às suas demandas e às suas especificidades. Pontes com o Judiciário, com o Ministério Público, com os representantes da sociedade civil e ponte com o Governo Federal.
Estarei em Brasília em breve para apresentar nossas demandas emergenciais e aquelas que são estruturais. Farei isso quantas vezes for necessário. Eu torço para que o presidente Lula, eleito pela vontade do povo brasileiro, que também tomou posse hoje, não falte ao nosso estado e trabalharei para que isso não aconteça.
Se somos conhecidos como Leões do Norte, coragem temos de sobra para buscar os recursos, apoios e parcerias necessários a garantir os investimentos para que Pernambuco saia desse estado de marasmo.
O Brasil e boa parte do mundo vivem um momento em que a polarização política deixou de fazer adversários para fazer inimigos. As eleições acabaram, não há mais palanques na praça. Nosso mandato foi dado pelo povo de Pernambuco e queremos governar para todas as pessoas. As picuinhas e desavenças não vão nos ajudar em nada nem nos levar a canto algum.
Aprendi que um governante precisa estar disposto a conversar com franqueza e serenidade. Diferente de nós, é um direito que só a democracia nos dá e é por isso que ela é tão delicada. Respeitar a opinião dos contrários e encontrar nas críticas motivos que nos façam refletir, mostrar a maturidade de quem governa.
Estou sempre pronta e de coração aberto para as pessoas que quiserem debater Pernambuco mas, sobretudo, construir um novo Pernambuco independente das suas preferências políticas. Com a mesma serenidade que me trouxe até aqui irei governar o nosso Estado.
Eu e Priscila. Olhando para as pessoas, fazendo o agora acontecer e mirando o futuro. Temos a pressa de quem precisa caminhar veloz porque o tempo não vai nos esperar. Temos a fé de nossa gente, a certeza da caminhada e a raça de uma mulher pernambucana.
Sem ódio, sem medo e com o coração tomado de coragem, amor e esperança. Que Deus nos proteja nessa nossa jornada. Eu conto com vocês.
Gilberto Gil, quando fala, compõe. Ele compõe enquanto fala, ele é músico à procura da letra, o que fica mais claro quando reitera palavras, expressões, na busca. Refrão e degrau para o movimento seguinte
Um dos gênios baianos do mundo, um dos gênios brasileiros portanto, Gilberto Passos Gil Moreira completou 80 anos. Estamos todos de parabéns por sua vida fecunda. Creio que não será excessiva a lembrança de uma complicada entrevista que ele me concedeu no Recife, há 15 anos. Vamos ao texto escrito e gravado.
As dificuldades de um repórter! Esta entrevista foi feita a duras penas com o então Ministro da Cultura, Gilberto Gil, em fevereiro de 2007, mas merece ser relida também por revelar os ossos do ofício, e o périplo que é gravar em alguns minutos as opiniões de um superstar-ministro.
A entrevista que vão ler durou somente 17 minutos. Mas isso não foi conseguido com facilidade, nem foi construído em 17 minutos. O compositor, cantor, músico, agitador cultural, então ministro Gilberto Gil, pelo cerco e pelo assédio da imprensa, pela corte que lhe segue, pela roda de pessoas excitadas com a sua presença, pela quantidade de fotos e imagens que a todo minuto lhe tiram, pelos interesses econômicos, financeiros, culturais que o envolvem, que o desejam a todo instante, o senhor Gilberto Gil é um pop star. Com a diferença, em relação ao mundo pop, que o star é um homem que pensa, que teoriza, é um pop culto, e que está no poder político. Todos lhe sorriem. Todos lhe são simpáticos. Todos querem tocá-lo na aura, se possível com volta de algo mais concreto que a luz mística.
Esta entrevista ocorreu na noite do sábado 10.2.2007. Era o último dia do Ministro da Cultura no Recife, onde chegara para a Feira Música Brasil. Ainda que houvesse acertado dois dias antes, e só o deus Mu Dança sabe que forças intestinas arranquei para isso, por várias vezes pensei desistir. Não fosse a minha mulher, eu teria desistido da entrevista. Fugido, corrido. Aos meus desabafos, enquanto caminhava ao longo de um préstito real, sufocado, quando eu dizia, “vou desistir”, a senhora Francesca era mais prática, como sói acontecer com todas as mulheres de indivíduos desastrados: “Você fez o mais difícil. Não pode mais desistir”. E por isso eu segui, com o mesmo sentimento dos que seguem a caminho da primeira viagem de avião. Talvez na porta, um segundo antes do voo, eu pudesse desistir, pensava. E por isso eu seguia e fui.
Entendam a razão. Quando o Ministro e Compositor desceu do palco no qual respondera a perguntas de um auditório, ao me acercar dele, recebi cotoveladas, discretos empurrões, golpes elegantes no ventre, passagens bloqueadas com ares de acaso. Todos cometidos pela elite cultural e artística. As pessoas educadas, finas, se agridem com etiqueta. Impossível não lembrar de O Anjo Exterminador. Com a diferença de que, agora, todos podiam sair e não queriam. Desejavam todos estar em torno, bem próximos, e o inimigo era quem pensasse igual e à sua maneira. Todos queriam estar perto, conversar, receber um olhar, um incentivo, sair na foto com o Ministro, que vem a ser a mesma pessoa do compositor mundialmente famoso. Senti-me sob constrangimento por ser um, mais um dos que lhe sorriem, que procuram ser simpáticos, úteis, camaradas. Tão íntimos somos, não é? Em resumo, o escritor que lhes fala era mais um dos que adulavam o pop star. O sorriso deles, o ar prestimoso, obsequioso, era o meu. Eu os censurava e os repetia. Que imagem, meus amigos. Isso não foi nem era o meu espelho inesquecível.
“Eu vou desistir, eu vou…”. A simpática assessora Nanan Catalão me concedeu: “Você tem um máximo de 20 minutos”. Certo. Mas onde? Iremos para algum lugar sossegado, uma reserva de paz nessa agitação? – A realidade tem a perversão de não ser conforme o nosso desejo. Eu não sabia que o mundo pop está acostumado a conversas sob luzes e câmeras e público ao redor. Para reforço do “eu vou desistir”, o compositor sentou-se em um banquinho, bem à vista de todos, à entrada do teatro. Um círculo de circo se abriu em torno de nós dois. Ficamos em uma arena. “Aqui mesmo”, Nanan apontou. Passei então a sorrir. Tiravam fotos do ministro, e se não houver uma segura edição, haverá um sujeito barbudo, perdido, a pensar em uma delas, “virei papagaio de pirata”. Aquele papagaio que aparece no ombro do pirata, bem sabem, no rótulo do Ron Montilla. Mas fotos não revelam pensamentos, podem apenas revelar caras assustadas, a sorrir. Menos mal. Ao trabalho. Já que chegaste até aqui…
Entre as minhas habilidades de repórter a pior delas é trabalhar com o gravador. Bom, eu estava com uma só fita cassete, cassete, isso mesmo, de uma entrevista com padres sobre a crise da Igreja em Pernambuco. Não havia outro remédio, eu deveria gravar por cima. Certo. Mas o que fazer com meu roteiro prévio, com a pesquisa feita durante todo o dia, em que alinhavei perguntas, intervenções, ditos espirituosos, que seriam ditos em sala fechada, eu e Gilberto Gil, quem sabe durante a noite inteira? “A sua vez é agora”, eu ouvi de Nanan. Era agora ou nunca, e eu não conseguia mais ler as perguntas anotadas em razão da miopia. Perguntas inúteis, naquela hora e circunstância. Então vamos, eu me disse, com uma resolução dos náufragos, se é que os náufragos têm alguma resolução. Notei então que a fita no gravador estava no fim – pelo menos à minha vista pareceu. E procurei, enquanto o Senhor Ministro esperava, achar o miserável e misterioso caminho por onde a fita seria retirada. Olhei para a minha mulher, e a sua cumplicidade me fez achar o caminho. Descobri, mudei o lado da fita. Muito bem, apertei a tecla vermelha. Gravando. Pergunto então ao compositor Gilberto Gil como foi o seu exílio em Londres, quando expulso pela ditadura. Ele me responde com um solo maravilhoso, a cantar em inglês. Que momento, que privilégio, eu me disse, e a fita parou de rolar, porque atingira o fim! Perdi a música. Um amigo então, o DJ e músico Tales, repôs a fita no lugar. E me avisou, gentil: “Está gravando”.
Não toquei mais no gravador, e por isso pude ver, ouvir e prestar atenção à pessoa do artista. Gilberto Gil, quando fala, compõe. Ele compõe enquanto fala, ele é músico à procura da letra, o que fica mais claro quando reitera palavras, expressões, na busca. Refrão e degrau para o movimento seguinte. Certo, dirão, isso é comum a toda e qualquer pessoa. Sim, mas observem esse trecho da entrevista: “Pedir pra fazer outro sucesso, depois outro sucesso, depois outro sucesso, o mesmo sucesso outra vez”, para concluir, “eu não quero”. Isso escrito não permite ouvir as modulações e melodia que ele imprime na voz. O ritmo, enfim. Quando ele se referiu a Paulo Francis, houve um trecho em que deu uma entonação ao adjetivo “inaceitáveis”, que procurei dar uma pálida ideia com um ponto de exclamação seguido de reticências. Ainda assim, se torna inaudível, na escrita. Direi então que o adjetivo “inaceitáveis” veio como uma ênfase, um trecho de um coco cantado por Jackson do Pandeiro. Percebem? Nele houve uma divisão silábica, que além da interpretação já é música. Inacei-táveis!… Diferente no entanto de Jackson, que era “esse jogo não é um a um, se o meu time perder eu mato um, é encarnado-preto-e-branco, é encarnado-e-preto”, para quem as coisas, os fenômenos se definiam por oposição, o que é típico da formação de um homem do povo, de modo diferente o compositor Gilberto Gil compõe. Tem idas e vindas a sua fala, sem jamais chegar a uma definição que não admita nuances. Para ele não existe A ou B, para ele, sempre, as coisas são A e B ao mesmo tempo. Por vezes pode chegar à metafísica, mas é metafísica agradável, que guarda uma dialética, se nos expressamos à sua maneira. Ele poderá dizer, por exemplo, que as coisas não existentes existem, e completar, para maior espanto, que o não existente é o que existe. Formulação ina-cei-tável em Jackson do Pandeiro.
Essa maneira, dizendo melhor, esse conteúdo de expressão, porque nele a forma é sempre o conteúdo, leva-o a evitar os substantivos mais simples, como se fossem primitivos, toscos, poderia ser pensado. Mas não. Isso é tático, quando não estratégico. Ou ambos, para escrever à sua maneira. Vocês irão ver nesta entrevista como ele se refere a uma parcela do público brasileiro que admirava o Tropicalismo. Em nenhum momento ele dirá que eram jovens militantes da luta armada, do foco. Ou melhor, dirá isso de outra maneira, por um método de aproximação. E no entanto, saibam, isso não é descoberta desses dias. Eu mesmo conheci jovens que aliavam sua prática de combate à ditadura a palavras do tropicalismo. Contrários ao mundo dos olhos claros, de Carolina e Januária na janela, do Chico Buarque daqueles anos, naquele tempo. E eram típicos, digamos assim, esses bravos militantes. Daí, também, que nessa busca Gilberto Gil crie neologismos, em mais de uma oportunidade. Ele está compondo, sempre. Como vocês verão, agora.
Desta vez é à vera. Gravando
(Vozes, murmúrios, de outra entrevista, palavras ao fim, de Gil: “Manda um beijão pra ele….”.)
Urariano Mota entrevista Gilberto Gil
Urariano Mota – Em 1969, você e Caetano foram expulsos do Brasil pela ditadura militar. Como é que você vê hoje, quando deu a volta por cima, primeiro com sua música, depois politicamente, porque é um ministro do governo. Que lembranças lhe dão o golpe de 1964?
Gil – Das lembranças que a gente tem normais, do passado. Com as boas e más lembranças do passado. Com a recordação dos bons momentos e dos maus momentos, do que os bons momentos fizeram de mal à minha vida, do que os maus momentos fizeram de bem à minha vida … (Ri) Tudo isso.. (E faz um gesto amplo, circular, com os braços.)
UM – Depois, quando saiu do Brasil, você compôs “Aquele abraço”.
Gil – Foi… Eu fiz já aqui no Brasil ainda, saindo. Na semana que eu estava indo embora, eu gravei. Na véspera de eu ir embora, eu gravei.
UM – “Alô, alô Realengo”… Paulo Francis, de quem a gente nunca pode dizer que era um amor de pessoa, ele chegou uma vez no Pasquim…
Gil – Não, até que um amor de pessoa a gente pode dizer. A gente pode dizer que talvez ele não fosse uma pessoa do amor. (Risos) Que ele era amável, em tudo. Mas renitente com esse exercício irrestrito da amorabilidade. Ele tinha coisas das quais ele não queria mesmo gostar e não queria que aquelas coisas fossem aceitáveis, que eram pra ele inaceitáveis!…
UM – Ele chegou uma vez a te elogiar num artigo no Pasquim, quando escreveu mais ou menos assim, “o Gil poderia estar mais do que rico depois de ‘Aquele abraço’, mas ele não é homem de repetir a fórmula que deu sucesso”.
Gil – Eu nunca fiz música pra, pra…
UM – Tocar no rádio?
Gil – Não, pra estabelecer uma linha de montagem, ou estabelecer uma reprodução do mesmo modelo, pra explorar os filões de mercado, coisa desse tipo nunca foi preocupação minha. Eu gosto de fazer sucesso, eu gosto de vender disco também, tudo, mas não, por exemplo, eu gosto de fazer sucesso, mas não gosto de fazer os mesmos sucessos duas vezes, por exemplo. (Risos) Eu não gosto muito. (Risos.) Pedir pra fazer outro sucesso, depois outro sucesso, depois outro sucesso, o mesmo sucesso outra vez, eu não quero. (Risos)
UM – Você esteve aqui no Recife em 67, passou dois meses, travou contato com o pessoal do Teatro Popular do Nordeste…
Gil – Com Leda Alves, Hermilo Borba Filho…
UM – Como foi essa sua passagem pelo Recife?
Gil – Ah, um mês eu fiquei aqui, aí eu conheci Teca Calazans, eu conheci Geraldinho Azevedo, eu conheci Marcelo do Quinteto Violado, conheci Toinho do Quinteto Violado, os meninos, conheci tanta gente, conheci Carlos Fernando, conheci tanta gente…
UM – Visitou Caruaru?
Gil – Fui a Caruaru. Ainda hoje eu fui a Caruaru com Fernando Lyra, que me recebeu em Caruaru, daquela vez, há 40 anos, enfim. Naquela época Carlos Fernando me levou pra Zona da Mata, me levou pra Nazaré da Mata, me levou pra os lugares todos, eu andei por tudo isso aqui. E ali o centro era o Teatro Popular do Nordeste, o TPN, era, toda a noite eu me apresentava lá, durante pelo menos duas semanas eu fiquei lá cantando, toda noite, e ali iam os músicos, e ali apareceu o percussionista, o nosso querido Naná Vasconcelos, que era baterista da banda da Aeronáutica naquela época.
UM – E você gravou Pipoca Moderna, não foi isso?
Gil – Gravei… Eu na verdade eu não gravei. Pipoca Moderna eu pus a gravação, abri meu disco Expresso 2222 com a gravação da Banda de Pífanos de Caruaru, que eu tinha feito em um gravadorzinho como este seu (aponta para o meu pré-histórico gravador da Sony), com Carlos Fernando, na época em que nós fomos a Caruaru. Há 40 anos. E eu pus essa música na abertura do disco Expresso 2222. Mais tarde Caetano fez uma letra para o Pipoca Moderna, e aí ele próprio gravou, e outros artistas gravaram Pipoca Moderna, como canção, cantada. Mas a primeira publicação dela foi feita através do disco Expresso 2222 com uma gravação doméstica da Banda de Pífanos de Caruaru.
UM – Você tem uma coisa interessante, que é como você une o popular à vanguarda. Como é que é isso?
Gil – Em todo o mundo a gente faz isso. Cada um tem o seu modo de fazer. O Chico faz isso, o Caetano faz isso, os Beatles faziam isso na Inglaterra, Bob Dylan fez isso nos Estados Unidos. Muita gente faz isso, é uma prática que se tornou comum, os artistas não querem ficar isolados, em um segmento só, confinados a um determinado só único mundo musical, música é um trânsito permanente entre… Todos nós tivemos música clássica em nossa infância, ouvimos Bach, ouvimos Beethoven, ouvimos isso, ouvimos aquilo, somos influenciados por esses contextos, e ao mesmo tempo temos a música da rua, a música de nossas cidades, a música de nossas feiras, de todos os lugares. Enfim, queremos misturar tudo isso, queremos fazer com que esses espaços dialoguem, uns com os outros, não é? Então eu tenho o meu modo de fazer isso. Às vezes, antigamente, por exemplo, naquela época aqui, eu peguei duas cirandas, utilizei excertos dessas cirandas, não é?, e complementei com canções que eu fiz. É o caso do Pé da Roseira, é o caso da Barca Grande, é… (Canta)
Isso é uma ciranda. (Canta)
Também é uma ciranda. E no entanto essas cirandas viraram trechos iniciais de canções mais longas que eu fiz. Há muitas maneiras.
UM – Villa-Lobos fazia isso.
Gil – Fazia isso também. Bartók fazia isso, Bach, não é?
UM – Você é um compositor que sem alarde, ou como se dizia naquela época, “sem dar bandeira”, você é um compositor muito político. Pelo que eu lembro da juventude da época, na ditadura militar, eu lembro que o movimento tropicalista era relacionado a determinada linha de combate clandestino. Você faz essa relação? Por exemplo, tinha ala da esquerda que era do lado de Chico Buarque, tinha ala da esquerda que era do Tropicalismo, você vê isso?
Gil – Acho que sim. Acho que era. As pessoas associavam sua política, seu compromisso… (tosse) a determinados campos, na própria política e no campo estético também. Então o Tropicalismo estava ligado às correntes mais … mais audaciosas, mais, que predicavam uma ruptura maior, que predicavam uma ruptura de um convencionalismo estético, artístico, e etc., e também político, não é? Nós gostávamos das correntes políticas mais autônomas, mais abertas, menos subordinadas a linhas programáticas clássicas.
UM – Quando você diz que pegava uma linha política mais aberta, menos amarrada a programas tradicionais, eu lembro que a sua trajetória de diálogo com a esquerda nem sempre foi ausente de conflitos.
Gil – Foi tangencial sempre. (Riso) Eu nunca mergulhei em nenhuma corporação, em nenhuma unidade da política das esquerdas, porque eu sempre fui uma coisa que o Partido Comunista naquela época costumava classificar como “linha auxiliar”. (Riso) Eu ajudava, mas eu não era propriamente um …
UM – Era um aliado?
Gil – Eu era um aliado. Eu tinha esse trabalho tangencial, onde nos pontos onde havia tangenciamento entre meu processo e o processo deles, a gente caminhava junto. Nos outros, eu ia solto.
UM – Você sabe o que ocorreu com Geraldo Vandré?
Gil – Não tenho tido notícias recentes dele… Notícias até tenho, não tenho tido contatos recentes com ele. Os últimos contatos que eu tive com Vandré já vão alguns anos atrás. Ele se envolveu num processo de mais reclusão, de mais afastamento…
UM – Esquizofrenia, parece.
Gil – É o que dizem dele. Ele teve o conjunto das questões dele, teve esse aspecto também de uma problematização psiquiátrica também. De formas que ele descontinuou um pouco o trabalho, propriamente. Vandré não deu continuidade ao trabalho dele.
UM – Você chegou a ser parceiro dele.
Gil – Muito, em algumas canções. Umas quatro ou cinco fizemos.
UM – Como estão hoje as suas relações com Caetano Veloso?
Gil – Isso é fácil. As mesmas de sempre. (Riso)
UM – As relações de amizade são ótimas.
Gil – São ótimas. As relações de convívio, nem tanto… por causa dos descaminhos, os nossos caminhos cruzam pouco hoje, porque eu estou com o Ministério, eu viajo muito, estou muito fora… (Tosse) do Brasil, fora do Rio, e tal. Então são muito poucas as oportunidades de sentar, conversar, conviver. Outro dia, a última vez em que nós estivemos juntos foi numa situação muito auspiciosa, que era um show dele em Porto Alegre, eu tinha ido a Porto Alegre para uma atividade ministerial, e havia um show de Caetano naquela noite em Porto Alegre. E eu fui, e depois do show, além de ter tido esse momento extraordinário de poder assistir a um show dele, ainda saímos juntos pra noite porto-alegrense depois.
UM – Fumaram o cachimbo da paz.
Gil – Fumamos … Não, não, o cachimbo da paz já está. A paz nunca deixou de existir entre nós. Mas nós pudemos conviver durante algumas horas numa forma como a gente não vinha podendo conviver.
UM – Agora, a pergunta que eu venho guardando desde o começo: se você não fosse um homem negro, que artista você seria?
Gil – Eu não faço a menor idéia. (Risos.) Eu não faço a menor idéia. Eu não teria essa sestrosidade rítmica que eu tenho, isso é uma coisa que eminentemente muita gente tem, outras raças, outros contextos étnicos propiciam, mas a vivência negra, da cultura negra… e quando eu digo raça, digo nesse sentido, de mais no sentido da cultura, de ser negro culturalmente negro me dá uma relação com a música, com o ritmo, com o mundo religioso, com tudo enfim que eu não teria não sendo negro, e portanto não seria o artista que eu sou. Seria outro. Outra pessoa. (Riso e sorriso.)
UM – E se você não fosse músico, o que você seria?
Gil – Arquiteto, talvez.
UM – Nada a ver com administração de empresas.
Gil – Não, porque eu me formei em administração de empresas, mas na verdade o campo de aplicação do meu talento mesmo, o campo de interesse da minha expressividade interior, etc. , se não na música se daria mais proximamente de uma coisa como Arquitetura.
UM – Seria ligado à arte de qualquer maneira.
Gil – É isso o que eu quero dizer. Mais do que administração. Ainda que eu goste de administração, tanto que eu fiz administração, e tanto que eu tentei aproveitar o que aprendi na formação, no campo prático, criei minha própria empresa, e coisas desse tipo. Me interessei por esse lado do empresarial, eu fui sem dúvida alguma muito estimulado pela formação da universidade.
UM – Eu visitei seu site oficial, e pude ver que você nasceu em Salvador, mas teve uma infância rural.
Gil – Nasci em Salvador circunstancialmente, em uma família que já habitava, que já morava no sertão. Ituaçu. Minha mãe veio pro parto em Salvador, porque era de família de lá, meu pai também, minha mãe ainda viva, está com 93 anos agora, meu pai já é falecido, mas eram ambos de Salvador, tinham ido pro sertão e casaram e foram pro sertão. Na hora em que nasceu o primeiro filho, voltaram para Salvador, porque era lá que as famílias deles estavam. Então era mais seguro, mais aconchegante… (Faz um gesto a indicar que está na hora de encerrar)
UM – Só uma última pergunta. Não existe um Gil. Existem Gis. Há muitas imagens físicas, fases, variações na sua vida…
Gil – Isso é comum a todos os seres humanos. Não existem indivíduos. Existem divíduos, como diz Gilles Deleuze. (Ri.) Ninguém é um. Todos nós somos muitos, somos múltiplos.
UM – Muito obrigado, Ministro.
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