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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

26
Out21

Quanto mais homicídios, mais frágil a democracia

Talis Andrade
A violência letal, intencional e armada tem sido um dos grandes desafios políticos para as instituições democráticas no contexto atual do Brasil urbano. Mais do que meramente um problema de segurança pública, a concentração de homicídios em alguns territórios metropolitanos ajuda a localizar, no mapa brasileiro, a ação de grupos armados e o domínio que exercem sobre bairros ou conjuntos de favelas, submetendo a população local aos seus próprios interesses. Seja pela constante ameaça ou mesmo pelo uso concreto da violência, tais grupos controlam diversos tipos de negócios legais e ilegais nesses territórios, garantindo lucros elevados para a sustentação e expansão de suas atividades, corroendo a institucionalidade democrática em nível local e apelando para a flexibilização do monopólio legítimo da força pelo Estado.
 
Essas disputas violentas pelo poder nos territórios possuem características em comum nos diversos estados do Brasil, assim como especificidades locais. Os próprios grupos podem ser mais ou menos estruturados, com ou sem comandos ou hierarquias; podem se financiar pela venda de drogas e outros tipos de atividades criminosas, bem como ter maior ou menor interface com negócios legais; podem ter participação de policiais ou funcionar como grupos paramilitares, bem como ter maior ou menor ligação com dinâmicas próprias do sistema penitenciário.
 
Nos territórios onde exercem ou disputam o poder com os rivais, porém, o resultado é parecido: esses grupos acabam impondo o silêncio forçado aos moradores, que precisam se conformar a viver rotinas de tiroteios e de corpos amanhecidos nas ruas, como se seus bairros estivessem fadados a seguir sob uma sombra eterna, inalcançados pelo Estado de direito e pela Justiça.
 
Quando esses grupos são mais bem estruturados, como ocorre no Rio de Janeiro, tendem a funcionar como uma espécie de governo territorial ilegal, assumindo o monopólio do uso da força em seus territórios e desenvolvendo com a população uma relação ao mesmo tempo tirânica, paternalista e clientelista.
 
Na capital fluminense, nas centenas de bairros controlados pelas facções criminosas – Comando Vermelho, Terceiro Comando Puro, Amigo dos Amigos e os grupos paramilitares – o poder político tende a ser medido pela quantidade de fuzis que tais grupos têm para se defender.
 
A rotina da cidade e do estado acaba dependendo das estratégias de ação desses grupos, com cotidianos de tiroteio ou calmaria dependendo da disputa do dia. Dossiê Segurança Pública de Bruno Paes Manso e Luís Felipe Zilli. Leia mais
 
 
 
 
19
Nov20

Primeira vereadora negra eleita em Joinville é vítima de racismo e ameaças de morte

Talis Andrade

Ana Lúcia Martins é a primeira vereadora negra eleita em Joinville

 

Professora e vereadora eleita Ana Lúcia Martins (PT) tem sofrido ameaças nas redes sociais de grupo ligado à Juventude Hitlerista. "A gente mata ela e entra o suplente, que é branco”

 

por Igor Carvalho /Brasil de Fato 

Depois de tornar-se a primeira vereadora negra eleita da história de Joinville, a maior cidade de Santa Catarina, no último domingo (15), a professora Ana Lúcia Martins tem sofrido ameaças nas redes sociais. Em uma das mensagens, uma pessoa afirma: “Agora só falta a gente matar ela e entrar o suplente que é branco (sic)".

“Sabia que não seria fácil. Estava ciente de que enfrentaria uma certa resistência em uma cidade que elegeu apenas na segunda década do século 21 a primeira mulher negra. Só não esperava ataques tão violentos”, afirmou Martins, em suas redes sociais.

“Por meio de um perfil fake, recebi, por duas vezes, ameaças de morte, evidenciando que o problema central era eu ser a primeira mulher negra eleita da cidade. Esse perfil fake destila no Twitter todos os tipos de preconceitos e discriminações possíveis e, em diversas situações, deixa claro estar organizado com outras pessoas de Santa Catarina, em uma denominada ‘Juventude Hitlerista’”, denuncia Martins.

Ainda de acordo com a vereadora eleita, na noite de domingo (15), após a divulgação do resultado, suas redes sociais foram invadidas. Mais tarde, sua equipe recuperou as contas de Martins.

No texto em que ameaça a petista de morte, um fanático afirma, também, que "não há como comemorar uma petista no poder novamente em Joinville" e que o "PT não deveria existir mais". 

Histórico

Com 3.126 votos, a professora e servidora pública aposentada Ana Lúcia Martins foi eleita a primeira vereadora negra da história de Joinville. A eleição de Ana Lúcia também marca o retorno do PT de Joinville à Câmara de Vereadores, que não havia eleito parlamentares nas eleições municipais de 2016.

Ela foi a única vereadora eleita pelo PT na cidade. O partido disputou também a eleição majoritária com o candidato Francisco de Assis, que fez 10.495 votos. A cidade terá segundo turno, disputado entre o deputado federal Darci de Matos (PSD) e o empresário Adriano Silva (Novo).

CuritibaImage

Nota deste correspondente: Curitiba também elegeu sua primeira vereadora negra, a historiadora e ativista Ana Carolina Dartora, do PT. A candidata foi a terceira mais bem votada na capital do Paraná.

 

23
Fev20

No Brasil, mistérios de um golpe de Estado judicial

Talis Andrade

moro golpe lava jato.jpg

 

A destituição da presidenta Dilma e o processo espetaculoso e a prisão de Lula, favorito nas eleições de 2018, fundaram-se num mesmo motivo: o combate à corrupção. Muitos observadores apoiaram essa vassourada dada em nome da justiça republicana – antes de perceberem que se tratava de um golpe de Estado que, ao final, favoreceu a extrema direita

por Perry Anderson

Le Monde

A Operação Lava Jato, ligada ao mais importante escândalo de corrupção da história brasileira recente, teve início em março de 2014. Ficou sob a responsabilidade do juiz Sérgio Moro, que tinha mostrado as garras em 2005 quando era assistente em outra questão muito midiatizada: o escândalo do Mensalão, concernente ao pagamento, pelo PT, de propinas a deputados em troca de apoio.

Moro descrevera seu modo de proceder em um artigo publicado em meados da década de 2000. Consiste em imitar os procedimentos utilizados por ocasião da Operação Mani Pulite [Mãos Limpas], que, no início dos anos 1990, derrubou os partidos de governo italianos, antecipando o fim da Primeira República. Em seu texto, Moro salienta a importância de dois aspectos desse método: o recurso à prisão preventiva, de modo a incitar a delação, e a divulgação na imprensa, calibrada para suscitar a ira da opinião pública e pressionar suspeitos e instituições. De acordo com ele, a cenografia midiática tem mais importância que a presunção de inocência.

Durante a Operação Lava Jato, o juiz brasileiro revelou talentos ocultos de produtor artístico. Ataques, prisões com grande espetáculo, confissões: apelos na imprensa e nas redes de televisão garantiram em cada etapa uma grande cobertura das operações que ele orquestrou. Cada uma mais dramática que a outra, elas foram numeradas e dotadas de código emprestado do imaginário cinematográfico, clássico ou bíblico: Dolce Vita, Casablanca, Aletheia (“verdade”, em grego antigo), Julgamento Final, Omertà, The Abyss [no Brasil, O segredo do abismo] etc. Os italianos se vangloriam de ter um senso inato de espetáculo? Moro os fez passar por amadores.

Durante um ano, as acusações miraram antigos diretores da empresa nacional de petróleo Petrobras, acusados de ter recebido propina, antes de provocar a queda do tesoureiro petista João Vaccari Neto e dos dirigentes das duas maiores empresas de construção civil e obras públicas do país: Odebrecht1 e Andrade Gutierrez. As manifestações de apoio a Moro ganharam força. Exigindo a punição do PT e a saída da presidenta Dilma Rousseff, elas pressionaram o Congresso. Só faltava ao presidente da Câmara, Eduardo Cunha, colocar na ordem do dia a destituição da presidenta.
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Juízes, justiceiros ou políticos

Isolada e enfraquecida, Dilma pediu ajuda ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ele utilizou sua habilidade de negociador para reparar as relações com o antigo aliado, o PMDB. Cunha, que parecia ter colocado vários milhões de dólares em contas secretas na Suíça, propôs um pacto de proteção mútua: ele interromperia suas investidas contra a presidenta se o governo lhe fizesse um favor. Lula solicitou a Dilma que aceitasse a mão que lhe era estendida; ela se recusou, com o apoio da direção nacional do PT, que temia que a cumplicidade fosse descoberta. Por fim, os deputados do PT apoiaram as acusações contra Cunha, que reagiu lançando o processo de destituição.

Por sua vez, Moro preparou o tiro fulminante. No início de março de 2016, ele desencadeou a Operação Aletheia. Lula foi interpelado nas primeiras horas do dia, diante das objetivas das câmeras, tendo a mídia sido avisada antes. Suspeitava-se que o ex-presidente tinha se beneficiado da generosidade da Odebrecht. Seguiram-se outras investidas. Moro interceptou – e divulgou para a imprensa – uma conversa telefônica entre Dilma e Lula, que ele grampeara. Nela, os dois dirigentes se referem à possibilidade de este se tornar ministro-chefe da Casa Civil. Como os funcionários de escalão ministerial e os membros do Congresso desfrutam de foro privilegiado, não há a menor dúvida de que se tratava de uma estratagema para impedir sua prisão.

A pressão da rua em favor da destituição chegou a seu paroxismo. Na Câmara, no entanto, nada indicava que a maioria dos dois terços seria obtida. Novas incursões divulgaram anotações da Odebrecht que detalhavam as quantias transferidas para cerca de duzentas personalidades pertencentes a quase todos os partidos. Na classe política, todos os sinais estavam vermelhos: um membro do primeiro escalão do PMDB foi gravado sem que soubesse dizendo a um colega que “é preciso estancar a sangria”. Ora, “os caras do Supremo Tribunal” lhe disseram que isso parecia impossível enquanto Dilma estivesse no poder, uma vez que a mídia estava contra ela. Não havia outra opção, explicou ele, a não ser substituí-la o mais rápido possível pelo então vice-presidente, Michel Temer, e formar um governo de união nacional apoiado pelo Supremo Tribunal e pelo Exército. Em menos de duas semanas, a Câmara aprovou a destituição da presidenta, deixando o campo livre para Moro se desembaraçar de Cunha, que tinha se tornado inútil. Este logo foi expulso da Câmara e acabou na prisão. O Senado validou a destituição da presidenta e Temer assumiu a direção do país.
 

No início de 2017, Lula foi acusado com base em suspeitas de corrupção ligadas à aquisição de um apartamento à beira-mar do qual jamais foi o proprietário legal. Julgado em Curitiba no verão do ano seguinte, foi condenado a nove anos de prisão. Na apelação, a pena subiu para doze anos. Com o primeiro presidente vindo do PT atrás das grades e a segunda destituída sob escárnio, o naufrágio do partido parecia total.

Duas análises do papel dos juízes surgiram então. A primeira os descreveu como justiceiros determinados a lançar por terra a corrupção; a segunda, como agentes políticos prontos a qualquer coisa para chegar a seus fins. Em sua obra O lulismo em crise (Companhia das Letras, 2018), o cientista político brasileiro André Singer rejeita as duas. Segundo ele, os juízes se mostraram perfeitamente republicanos e, ao mesmo tempo, inegavelmente facciosos. Republicanos: como descrever de outra maneira a prisão dos diretores das empresas mais ricas e poderosas do país? Facciosos: que outro sentido dar à perseguição sistemática dos membros do PT enquanto os de outros partidos – exceto Cunha, que se tornou extremamente inconveniente – foram poupados? Sem falar das afinidades políticas dos juízes, dos anátemas que lançaram no Facebook ou das fotografias em que os vemos posar, sorrindo, exibindo os símbolos de partidos conservadores. Uma pergunta subsiste: esses juízes foram republicanos e facciosos em proporções equivalentes?
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Pena reduzida para dono da Odebrecht

No sistema judiciário brasileiro, policiais, procuradores e juízes formam corpos independentes uns dos outros. A polícia reúne as provas, os procuradores proferem as acusações e os juízes arbitram as penas (no Brasil, os júris populares só intervêm em casos de homicídio). Todavia, na prática, as três funções se fundiram na ocasião da Lava Jato, quando a polícia e os procuradores trabalharam sob a supervisão do juiz que controlou as investigações, determinou as penas a serem cumpridas e as pronunciou: uma inegável negação dos mecanismos básicos da justiça, que preveem a separação da acusação e da condenação (sem mencionar o fato de o juiz Moro ter varrido de uma hora para outra o princípio da presunção de inocência).

Outra invenção do sistema judiciário brasileiro: a “delação premiada” permite ameaçar uma pessoa com penas de prisão pesadas, a menos que ela contribua para envolver outra condenável – o equivalente judiciário a uma chantagem. É possível calcular as derivas para as quais contribui um dispositivo como esse no caso de Marcelo Odebrecht, o empresário mais rico interpelado na investigação. Condenado a dezenove anos de prisão por corrupção, ele teve sua pena reduzida para dois anos e meio a partir do momento em que se curvou ao jogo dissimulado da delação. Nesse contexto, teria de se esforçar para superestimar a pressão submetida de modo a fornecer aos magistrados os elementos suscetíveis de contribuir para avançar as investigações que mais os preocupavam.

Mas tudo o que precede pesa finalmente pouco no que diz respeito à introdução do conceito de domínio do fato: a possibilidade de condenar alguém na ausência de prova direta de sua participação em um crime, de acordo com a ideia de que a pessoa pode ser responsável por ele. Esse mecanismo deriva daquele de Tatherrschaft (“controle do ato”), criado pelo jurista alemão Claus Roxin para condenar criminosos de guerra nazistas. Mas Roxin denunciou a utilização brasileira do princípio: figurar em uma posição ou outra num organograma não é suficiente, diz ele, para estabelecer a responsabilidade por um crime. É preciso, além disso, que a justiça possa provar que o dito crime tenha sido comandado pelo acusado. E o juiz Moro não se preocupou com essas sutilezas. Por supostamente ter recebido um apartamento no valor de US$ 600 mil, Lula foi condenado a doze anos de prisão2: dois terços da pena de prisão inicial de Odebrecht por menos de 2% da quantia que este último foi acusado de ter desviado. [Continua]

 

06
Fev20

O medo do juiz diante da garantia

Talis Andrade

roque- garantias.jpg

 

 

Por Marcelo Semer

Não é falta de recursos, problemas de instalação ou mudança de rotina. 

A perturbação que mais causa dificuldade para a aceitação do Juiz de Garantias é conceitual. Que a rejeição se desse entre leigos, na opinião pública pouco ou mal informada pela mídia, seria até justificável. Mas que a concepção do juiz como garantia tenha incomodado parcelas da magistratura é, no mínimo, preocupante. Talvez se ele fosse chamado de Juiz dos Inquéritos Policiais, como se dá no Tribunal de Justiça de São Paulo há algumas décadas, a resistência fosse menor.

Mas o fato é que foi preciso inserir na lei dispositivos expressos de que o juiz é responsável pela “salvaguarda dos direitos individuais”, por “zelar pelos direitos do preso” e “assegurar o direito de acesso [do investigado] a todos os elementos informativos” para que a noção de garantidor se fizesse mais palpável, e assim, inusitadamente assustadora.

Para cumprir o mister de garantia, o juiz não pode ser um substituto do acusador. Não requer muita ciência. Se vai julgar, não pode fazer às vezes de promotor - nem na ausência nem na falha deste. O sistema acusatório, presente em todas as democracias modernas, substituiu o sistema inquisitivo (sim, de Inquisição, onde a mesma autoridade ocupava os lugares de acusador e juiz). Só o nome nos devia causar urticária, mas temos normalizado nossa inquisição cotidiana, caracterizando o ordenamento brasileiro como “misto”. 

O sistema é misto porque ao lado da Constituição do Estado Democrático de Direito, convivemos com um Código de Processo Penal que replica um estatuto fascista (sim, da Itália de Mussolini). Já deveríamos ter substituído o Código  de 1941 há muito tempo. Mas nossa tradição histórica de privilegiar as permanências sobre as rupturas tem levado a remendos periódicos na lei.

Para se ter uma ideia, até a reforma de 2003, o interrogatório era caracterizado como um ato privativo do juiz. Nem promotor nem advogado podiam se manifestar e a presença de advogado para um réu maior de 21 anos não era nem sequer obrigatória. 

Em 1996, a lei já havia mudado para evitar que réus pudessem ser condenados, sem que tivessem sido citados pessoalmente ou constituído advogado, enfim, sem que soubessem sem margem de dúvida, acerca da acusação que estavam sofrendo. 

Mais recentemente, em 2015, consolidou-se a ideia da audiência de custódia, para que o preso fosse trazido, sem demora, à presença do juiz, obrigação que fazia parte de nosso ordenamento, desde que a Convenção Americana foi ratificada pelo Congresso em 1992.

Seria o caso de olhar para trás e se indignar, como fez a atual presidenta da Associação dos Magistrados Brasileiros: “É dizer que erramos todos esses anos”?

Uma nova Constituição produz mudanças que, muitas vezes, não conseguimos compreender instantaneamente. Há todo um amadurecimento que vai permitindo, de forma gradual, que os conceitos sejam absorvidos. Sim, o sistema acusatório está na Constituição desde 1988, mas apesar disso os juízes vinham sendo gestores das provas, inclusive aquelas colhidas em audiência, até que uma mudança indicasse que deviam deixar o “cross examination” para as partes e apenas complementá-lo, se necessário. 

Isto se deu só em 2008 e também ali houve uma enorme resistência - como em várias outras mudanças combatidas, sem as quais, necessário dizer, o processo penal teria permanecido uma réplica do fascismo.

Com o Juiz das Garantias não é diferente. A mudança é necessária e já vem tarde. E diversamente do que se apregoa, o juiz sai valorizado da nova lei. 

Com a distinção das fases, e isto é seguramente o mais importante do sistema, apenas as provas produzidas sob a fiscalização direta do juiz é que servem de elementos para a condenação. Valorizam-se também a participação de promotor e defensor, que têm a incumbência conjunta de construir os elementos para que o juiz decida, sob o crivo do contraditório. 

A ideia de que devemos relegar o processo aos elementos que vieram do inquérito policial, em que indiciados e testemunhas são ouvidas na delegacia, sem nenhum dos três operadores do direito, é totalmente destituída de sentido. 

O processo é judicial - só o inquérito é policial. 

E mesmo assim, se houver a necessidade de medidas constritivas sobre o indiciado, como prisão provisória, quebra de sigilo bancário, sequestro de bens ou interceptação telefônica, todas estas passam pelo crivo judicial. É este, em resumo, o papel do Juiz das Garantias: garantir que o indiciado não seja apenas um objeto da investigação, mas um sujeito de direitos.

Para decidir sobre interceptação telefônica ou quebra de sigilo bancário, por exemplo, o Juiz das Garantias deve ter conhecimento dos elementos da investigação. Vai ser preciso de um lado conferir se os indícios justificam essas medidas; de outro, se e quando devem cessar.

É evidente que o mergulho intenso no conhecimento dos fatos e na formulação das decisões que envolvem os procedimentos investigatórios, obrigam o juiz a formar algumas convicções probatórias, antes mesmo que a defesa tenha condições de rebatê-las. Cabe ao Juiz das Garantias controlar a legalidade das investigações e fazer o juízo de admissibilidade da instauração do processo. É uma tarefa relevante e necessária, que muitas vezes é relegada a despachos de expediente.

Depois que o processo se instaura, não faz sentido que o juiz que já decidiu sobre a validade das medidas, e firmou convicção sobre fatos, antes que pudesse ouvir a defesa, seja quem comande a instrução e, enfim, sentencie o processo. 

Não há aí qualquer depreciação do juiz, mas o reverso. 

O propósito é tirar dos ombros do magistrado uma decisão que ele mesmo pode ter ajudado a formar durante a investigação. Quanto menos condicionantes o juiz tem para tomar sua decisão, melhor para ele, que pode exercitar sua independência sem ter de justificar decisões tomadas anteriormente, na formação da prova.

Essa regra já estava prevista no projeto do novo Código de Processo Penal, como, aliás, vem ocorrendo em várias mudanças recentes na América Latina. O assunto é discutido há pelo menos vinte anos - bem mais tempo, diga-se, que outras tantas regras aprovadas no Pacote Anticrime, e em relação às quais, não tem havido resistência alguma da corporação. 

Em matéria de impacto orçamentário, por exemplo, nada se iguala ao volume de presos que o sistema carcerário vai incorporar com o aumento do limite de penas, de penas de alguns crimes e, sobretudo, dos prazos de progressão criminal, aprovados no Pacote. Um impacto fiscal vigoroso, aliás, que ninguém parece estar se incomodando, nem mesmo os governos estaduais sobre os quais estas despesas cairão como bombas-relógio, quando a população carcerária ultrapassar o milhão.

Quando se deu a aprovação da Lei Antidrogas de 2006, houve também uma combinação entre situações ambíguas, severas e liberais: a pena mínima do crime de tráfico de drogas saltou de 3 anos para 5 anos de reclusão; mas um dispositivo permitia distinguir o microtraficante e apená-lo de forma mais branda. A ideia era, sobretudo, distinguir grandes e pequenos traficantes.

O resultado, no entanto, foi desastroso. 

A polícia não foi equipada para investigar a macrocriminalidade - a maior parte das prisões de drogas no país é feitas nas ruas, pelos policiais militares no patrulhamento de rotina. E os juízes resistiram (como agora, embora menos organizadamente) a aplicar os redutores e permitirem o cumprimento de penas fora do sistema carcerário. 

Na pesquisa que empreendi com sentenças de 2013 a 2015 em oito Estados (Sentenciando Tráfico: o papel do juiz no grande encarceramento. Tirant, 2019), concluí que 89% das prisões haviam sido feitas sem investigação (só 3% delas, por exemplo, foi resultado de interceptação telefônica); e o redutor do tráfico (para os primários, sem vínculos com organizações criminosas) vinha sendo aplicado, na proporção máxima, em pouco mais de 20% dos casos. No Estado de São Paulo, por exemplo, 90% das penas foram fixadas em regime fechado, a despeito serem permitidos os regimes mais brandos. Isso tudo sobre volumes de drogas pouco significativos e réus primários, em sua grande maioria.

O resultado: nenhum crime representa tanto para o encarceramento quanto o tráfico de drogas, que beira 30% dos reclusos. 

Uma resistência à consagração dos direitos, aliada à uma contundência nas punições certamente fará (mais) uma devastação no sistema penitenciário. Lembremos que em 1990, tínhamos 90 mil presos, quando veio a Lei dos Crimes Hediondos, com motivações análogas a esta “Anticrime”. De lá para cá, tivemos uma explosão carcerária (quase decuplicamos a população atrás das grades) e a partir dessa, a criação das facções criminosas que o ministro Moro tanto diz querer combater, mas apenas as alimenta com mais mão de obra.

A ideia de juiz como garantia pode não casar com o perfil combatente do ministro enquanto magistrado, até porque foi tido como exemplo das perversões, reveladas pela Vaza-Jato. Mas estranha tamanho engajamento por parte das cúpulas das associações de magistrados, aparentemente sem consulta às bases. 

Alguma forma de adequação da repartição das competências será, de fato, necessária. Cargos, departamentos, rodízios, etc. Mas esta será feita a partir das próprias experiências e estruturada pelo Conselho Nacional de Justiça, à vista das preocupações dos magistrados. A lei fez bem, aliás, em não tecer minúcias da forma de implantação, embora a vacatio legis tenha sido mesmo irrisória.

Mas o pleito das associações é muito maior do que a simples prorrogação por um semestre do início de sua vigência, e a munição bem mais perigosa do que parece à primeira vista. Se a tese das associações prevalecer, quem sai fortemente esvaziado é o Poder Legislativo. 

Se todas as normas que produzem reflexos, ainda que indiretos, no cotidiano forense, só puderem ser propostas pelos próprios juízes, nem mesmo os códigos escaparão desta reserva de mercado. Sem o aval dos tribunais, os processos de uma maneira geral continuarão arrastados. 

Criar leis que permitam novas formas de solução de conflito, investir em sistema de conciliações, reduzir graus de litigância: só se houver proposta que parta de quem tem o controle de mudança das chamadas “normas de organização judiciária” - porque, de uma maneira ou outra, todas as medidas legais acabam por impactar, a curto ou médio prazo, a estrutura dos tribunais.

Enfim, juízes que resistem a ser garantidores de direito querem evitar que parlamentares possam legislar. 

Alguma coisa está fora da ordem. In revista Cult 

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