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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

23
Jan23

Da lava jato à Presunção de Inocência: a minha procuração invisível!

Talis Andrade
 
 
O Livro das Suspeições: o que Fazer Quando Sabemos que Moro era Parcial e  Suspeito? | Amazon.com.br
 
 

 

Por Lenio Luiz Streck

 

1. Acepipes epistêmicos sobre os anos ius plúmbeos recentes

Evandro Lins e Silva falava de um "mandato popular invisível" — como uma "procuração invisível" para defender ideias. Fernando Fernandes me lembrou disso há alguns dias.

Aqui me permito fazer o mesmo — em 2.589 palavras. Reserve 12 minutos para a leitura. Passados os anos ius plúmbeos do império da lava jato e dos anos de suspensão da presunção de inocência, penso que devemos fazer um rescaldo, uma espécie de memória do que ocorreu. E verificar se fazemos (ou fizemos), com H.G. Gadamer, uma boa wirkungsgechichtliches Bewußtsein — isto é, uma análise acerca da força dos efeitos que a história tem sobre nós.

A história ensina. Ou não. Ensina mostrando, mais do que dizendo, wittgensteinianamente. O dia 8 de janeiro é um cutuco da história.

 

2. O ovo da serpente e o feitiço do autoritarismo: ele sempre está à socapa

Será que aprendemos com a história? Sentimos a força dos seus efeitos? Talvez. O ovo da serpente nunca é percebido suficientemente.

Contar a história faz parte da própria historicidade, corretamente compreendida. Conto, logo existo. É o que estou fazendo aqui. Com a "procuração" (invisível) a la Evandro Lins e Silva. E com a responsabilidade epistêmica de um jurista comprometido com o debate público, com a democracia, e com respostas corretas (que podem ser demonstradas).

Antes da lava jato houve o mensalão. Foi quando escrevi que "o direito, a partir de então, seria AM-DM (Antes e Depois do Mensalão). O texto é de 2012 (ver aqui). Uma pena que não errei. Avisei de há muito.

O fato é que o projeto de poder da lava jato encantou (até no sentido de "enfeitiçou") a comunidade jurídica, midiática e política. O ovo da serpente foi também um encantador de serpentes. Como na Itália com a Mãos Limpas. O velho e atávico udenismo (às vezes veste toga) sempre está no cio. Fórmula agora aperfeiçoada: amaldiçoar os políticos e no seu lugar colocar outsiders. Bem se viu (e se vê) o que fazem outsiders. Basta olhar pela janela. Eis aí o 8J.

O pesquisador Fábio de Sá e Silva sublinha, em bela entrevista à Folha: "Existe uma linha de continuidade entre Lava Jato e ataques golpistas". E eu digo: bingo, Fábio.

 

3. Destruíram a política. Com isso, de baciada, quase destruíram o país (eis o 8 J como prova).

Explico e demonstro. Com a criminalização da política, a fragilização das instituições é (i)mediata. A sede insana de autocratismo. Não é por nada que, dia sim e outro também, o artigo 142 era invocado para justificar intervenção militar e quejandices mil. O direito contra o direito. Uma hermenêutica às raias da delinquência de Hermes. O então presidente da República, militares, gentes do direito, ex-frequentadores de bingos, radialistas, pastores (tem um monte deles presos) — todos transformados em vivandeiras. Gozavam, ao bulir com os granadeiros...!

Poucos se deram conta do(s) ovo(s) da(s) serpente(s). De 2014 em diante (tudo já estava se desenhando em 2013).

Pergunto: quantos integrantes da comunidade jurídica perceberam que o lavajatismo incubava o autoritarismo e o próprio bolsonarismo que, paradoxalmente, já existia (dormitava) mesmo sem Bolsonaro? Muito poucos. Um pouco de poucos.

Muita gente progressista achou que a lava jato era a redenção... Mal sabiam que ali estava o ovo da crotalus terificus (cascavel). Por falar em nomes científicos, parabéns à OAB da Bahia. Lá propõem — e isso vai para ser apreciado na OAB nacional — que advogado que apoia golpe e golpismo "ganha" o certificado de inidôneo. Muito bom. Advogado que quer extinguir a democracia é um caracidio da espécie hoplas malabaricus (mais conhecido como traíra).

 

4. Do Fusca à Kombi, da Kombi ao ônibus e do ônibus à frota

No princípio eram os resistentes. Que só possuíam o verbo. No princípio mal enchiam uma Kombi (há poucos dias ainda conversava sobre isso com o nosso capitão do time do Prerrô, o querido Marcelo Nobre; ele tem isso muito claro!). E sofremos muito. Lembro de meu debate com Moro em 2015. Tempos difíceis. Recordo de um texto que escrevi, em 2015, mostrando o panorama: diagnosticava então, que o direito seria, inexoravelmente, ALV-DLV (Antes da Lava Jato e Depois da Lava Jato). Avisei de novo.

Em linguagem bélica, digamos que o lavajatismo foi uma blitzkrieg ou a guerra dos seis dias. À sorrelfa. Demorou para que os resistentes nos reorganizássemos. Juntar os cacos. Os tiros vinham de todos os lados.

Mas não bastava combater os desmandos (hoje plenamente demonstrados) da lava jato, a ponto de até o juiz Bretas, hoje, se autodeclarar incompetente.

A luta era desigual. Tudo era possível — e com o auxílio da grande mídia. Mas a lava jato tinha seu super trunfo. E qual era?

Respondo: algo que o próprio governo petista ajudou a construir: a delação premiada, premiadíssima. Uma autêntica pedra filosofal para obter condenações, pela qual os próprios acusadores escolhiam os advogados dos delatores (isso ainda está pendente de um encontro com a história; a ave de Minerva ainda há de levantar voo).

 

5. O fim da presunção da inocência como vitamina para a lava jato

Em 2016 a tempestade ficou mais que perfeita. Falo do turning point do STF na presunção da inocência (HC 126.292). Naquela tarde, sem aviso, o ministro Teori tirou da manga esse HC. E o STF, por maioria, disse ser inconstitucional aquilo que ele mesmo havia decidido (2009) e que, por isso mesmo, havia sido transformado em lei em 2011.

O canto das sereias da "voz das ruas" fez com que se dissesse que a CF diz o que ela nunca disse. Fez com que se contrariasse dispositivo legal que repete exatamente o que diz a CF. Contrariando todo o espírito, toda a lógica estruturante da Carta, em sua densidade principiológica. Como o mundo é esférico e não quadrado, ele dá voltas, muita gente — agora enrolada — que antes esbravejava contra, ainda agradecerá a todos os que lutaram pela presunção da inocência.

Sigo. Hoje é possível afirmar que o giro jurisprudencial do STF em 2016 foi o combustível que faltava à lava jato. Além de ser o triunfo do que pregavam Moro e o MPF, facilitava prisões. A imprensa vibrava. O gozo indizível de ver o moralismo triunfar.

Repórteres, jornalistas e jornaleiros sabiam antes que os acusados das operações madrugadoras. Era a nova era da comunicação direta juiz-procuradores-imprensa. Rejeitaram a mediação até nisso.

E o interessante é que quase 70% da comunidade jurídica (os números são sujeitos a uma auditoria, mas que não seja a das Lojas Americanas — mas é por esse entorno) era contra a presunção da inocência... e coincidentemente a favor da lava jato. Um espelhava o outro.

 

6. Para além da lava jato, surge uma nova frente de batalha: as ADCs 43, 44 e 54

Então, ao lado do enfrentamento do lavajatismo alimentado por um lawfare sem precedentes, tínhamos que enfrentar o novo posicionamento do STF que, naquele momento, parecia render-se aos encantos da lava jato.

E entramos também de cabeça nessa nova frente. Fui um dos subscritores da ADC 44 (Kakay fizera minutos antes o protocolo da ADC 43 — os argumentos não eram exatamente iguais, frise-se, embora buscássemos a mesma coisa; a diferença era que a ADC 44, da OAB, não aceitava a "hipótese STJ", espécie de "terceira via").

Perdemos a liminar e aí começou a luta. Três longos anos. Longos, mesmo. De um lado, a poderosa lava jato e a mídia; de outro, a busca por pautar as ADCs. Até pautar era difícil. Pouca gente sabe, mas chegamos a ingressar com uma ADPF para demonstrar que a falta de pautamento das ADCs já era, em si, uma violação de preceito fundamental. O STF, porém, a fulminou. Para ver como foi difícil esse conjunto de batalhas.

 

7. A condução coercitiva, os processos e a condenação: o fator Lula

A luta foi crescendo. Com o passar do tempo já enchíamos um ônibus, por assim dizer. Aí entra o "fator Lula". Explico: quando ingressamos com as ADCs, Lula não era nem indiciado. E, no meio do caminho, Lula foi indiciado, conduzido à força ilegalmente [1], denunciado e julgado. E preso. Por quase dois anos.

Foram muitas frentes de lutas. Ainda por cima surgiu a guerra contra as Dez Medidas propostas por Moro e o MPF, que queriam introduzir — pasmem e se apavorem — prova ilícita de "boa-fé" e quase-acabar com o HC, entre outras barbaridades. Isso não é ficção. Existiu. Para verem que tempos vivenciamos.

Sim, veja-se a ousadia do lavajatismo. A sorte nossa é que o projeto das Dez Medidas funcionou como o dilema do trapezista morto: ao se achar tão bom e tão magnifico, pensou que poderia voar.

Sigo. Se de um lado fazíamos a peregrinação cotidiana pela presunção da inocência, de outro, sem procuração de Lula (porque ele tinha seus competentes advogados), lutávamos republicanamente por apontar aquilo que representava o começo do fim do devido processo legal em um Estado Democrático de Direito: um ministério público não-isento em conjuminação com o juiz pan(in)competente. Para piorar, no meio disso, até mesmo uma juíza tentou retirar as prerrogativas de ex-presidente de Lula, para cujos advogados fiz parecer pro bono mostrando os equívocos da decisão.

Decisões injustas. Porque na democracia o critério público, publicamente verificável, de "justiça" é o direito. Não a opinião pessoal do juiz, da juíza, sua ou minha. Juiz decidindo por convicção, mesmo sem provas. Inventaram novos métodos. Faltou só usar o pintinho envenenado da Tribo dos Azende.

O corolário de tudo foi a decisão do TRF-4, que explicitou a parcialidade e falta de isenção do MP. Disse a decisão (aqui): "Não é razoável exigir-se isenção dos procuradores da República, que promovem a ação penal".

O que mais precisa(va) ser dito?

 

8. O Grupo Prerrogativas e a busca dos fundamentos dos fundamentos: o dever de fazer constrangimentos epistêmicos

E aqui tenho de falar do Grupo Prerrogativas que se jogou de cabeça nessa "Operação Devido Processo Legal" (chamemo-la assim). Capitaneados por Marco Aurelio de Carvalho, não imaginávamos o nosso papel. Nem seu alcance, tamanho e dimensão política.

Tentando explicar a complexidade desse nosso modus operandi: fizemos aquilo que venho chamando de há muito de "constrangimento epistemológico", uma derivação daquilo que o grande Bernd Rüthers denunciou da doutrina alemã quando da ascensão do nazismo. Por isso ele escreveu o premiadíssimo livro Die unbegrenzte Auslegung (Uma Interpretação Ilimitada ou, assim prefiro, uma Interpretação Não Constrangida).

Sendo mais claro, fizemos por aqui, em terrae brasilis, o que a doutrina e a comunidade jurídica alemã não haviam feito naqueles anos plúmbeos da ascensão nazista. Denunciamos, nos processos da lava jato, o que Meier-Hayoz, endossado por Rüthers, chamou de — tenho adoração por esse conceito — "carência fundamental de fundamentos" (grundsätzliche Grundsatzlosigkeit). Isto é: o fundamento era o não fundamento — a simples vontade de poder.

No caso das ADCs, fomos vencedores por atuação direta, três anos depois de perdermos a liminar. A luta terminou no segundo semestre de 2019, culminando com a libertação de Lula. Isso gerou o livro O Dia em que a Constituição foi Julgada, coordenado por mim e Juliano Breda em edição da RT. Nesse livro aparecem todos os protagonistas, como Defensoria e tantas entidades valorosas. Está tudo ali, tim tim por tim tim.

Quanto à lava jato, tudo acabou com apertada maioria do STF julgando Moro incompetente e parcial. Nesse trabalho de convencimento, já aos poucos foi crescendo o número de juristas que se deram conta daquilo que o ovo da crotalus terrificus havia gestado, auxiliado que fomos nessa tarefa com o surgimento da Vaza Jato – cujos dados escabrosos nem foram necessários para a declaração da parcialidade de Moro, embora em termos de opinião pública tais revelações tenham sido de extrema importância. Inegável esse fato.

Escrevemos, o Grupo Prerrô — dois livros sobre a parcialidade de Moro: O Livro das Suspeições abriu a trilogia, com o subtítulo O que fazer quando sabemos que sabemos que Moro era parcial e suspeito?, organizado por Carol Proner, Lenio Streck, Marco Aurelio de Carvalho e Fabiano da Silva Santos. O segundo foi O Livro das Parcialidades. Completando a trilogia, em breve lançaremos O Livro dos Julgamentos. E falta talvez um quarto livro: que deveria ser escrito por Rochinha e Manoel Caetano. Seria ótimo!

Em termos de artigos, contabilizei incontáveis textos solo (são incontáveis mesmo) e mais outros tantos em coautoria com Marco Aurelio e Fabiano. Incluo aqui artigos publicados nesta ConJur, nos grandes jornais do país, mais periódicos e capítulos de livro. Foram mais de 200 escritos.

E também centenas de entrevistas em rádio, TV e sites como DCM, 247, TVT, Fórum, My News, Pannunzio (TV Democracia) e ICL que fizeram uma muralha de resistência contra as investidas neo-udeno-lavajatistas como a de um famoso jornalista que, dia sim e outro também, tocava terror na população, dizendo que, vencêssemos a batalha da presunção da inocência, 170 mil corruptos, estupradores, proxenetas e quejandos seriam imediatamente liberados (e isso me deu muito trabalho respondendo a esse jornalista). Tudo sempre devidamente respondido nos grandes veículos (Folha, O Globo e Estadão). Era bateu, levou. Cumprindo assim um dever republicano de participação no debate público, na esfera pública, desmistificando lendas urbanas e mentiras — informações falsas.

 
O Livro das Parcialidades - Editora Telha
 

9. De como nós, advogados, fôssemos médicos... haveria passeatas contra antibióticos ou "como garantias passaram a ser 'filigranas'"

E as garantias processuais-constitucionais passaram a ser chamadas de "filigranas". Assim começa essa nova fase (filigrana foi a palavra usada por Dallagnol quando um colega seu perguntou sobre se o que estavam fazendo não feria a CF; ao que respondeu: isso é filigrana). Agora o termo "filigrana" passou a ser usado contra a anulação dos processos de Lula.

Isto é, para quem pensou que a nossa "Operação Devido Processo Legal" havia terminado e os guerreiros pudessem descansar, iniciou a campanha política pela qual se desqualificava, cotidianamente, a decisão do STF que anulara as sentenças de Lula e considerara Moro suspeito-parcial.

Muita gente da mídia (coincidentemente os mesmos que amaldiçoaram a presunção da inocência) chamou as decisões do STF de "filigraneiras". Isto é: anularam por anular. STF "usou de formulismo", diziam.

E lá fomos nós novamente. Só nessa nova fase foram mais 60 artigos e mais de uma centena de lives e entrevistas em grandes e pequenos veículos. Somados com os 200 dos quais falei acima, calculemos tudo o que foi feito (falei disso também no Programa WW, CNN, dia 5/1/2023acesse aqui a entrevista).

Somando tudo — rádio, TV, mídia alternativa, textos escritos — foram mais de 700 inserções. Isso de minha parte, na modalidade solo e em coautoria (Marco e Fabiano). Agora imaginem se adicionarmos o que fizeram os demais membros do Prerrô (Pedro Serrano, Carol Proner, Kakay, Mauro Menezes, Fernando Fernandes, Cattoni e tantos outros — impossível citar a todos; a listagem aqui é exemplificativa).

Numa palavra final: como Evandro Lins e Silva, de posse de "procuração invisível", achei que "meus constituintes" mereciam uma accountabillity, a devida prestação de contas deste incomensurável "mandato sem papel e sem assinatura" que nos foi conferido — a mim e aos meus parceiros que primeiro enchiam uma kombi e que, ao final, enchemos muitos e muitos ônibus.

E, é claro, sempre haverá quem queira, mesmo chegando atrasado, sentar-se à janela e pegar ar fresco. Mas isso faz parte da própria democracia. É do jogo. Até porque não se deve ter compromisso com os erros do passado — por omissão ou comissão.

Pensamos que terminara? Chegou o dia 8 de janeiro.

E lá vamos nós de novo! Cá estamos!

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[1] Sugiro a leitura de dois textos: Lenio critica condução coercitiva e Crítica aos HC 126.292, de Marcelo Cattoni, Diogo Bacha, Alexandre Bahia e Flávio Pedro

01
Fev20

Mimado por uma república doente, Moro quer o STF, a presidência, o Ministério...

Talis Andrade

aroeira moro bolsomaro humilhar mando.jpg

 

Por Paulo Moreira Leite

Jornalistas pela Democracia

 

Apenas a gratidão eterna da elite brasileira pela perseguição contra Lula pode explicar o tratamento generoso dispensado até hoje a Sérgio Moro.

Como se fosse um desses meninos de temperamento difícil,  que ninguém ousa contrariar pois não se pode prever como poderá reagir, no final de 2018 Sérgio Moro renunciou a magistratura para se tornar ministro da Justiça no governo Bolsonaro.

Na época ninguém ousou levantar a suspeita de conflito interesses,  ainda que fosse um caso óbvio. Não só por seu papel na eliminação da Lula campanha presidencial. Também  pela sabotagem que levou ao golpe de 2016, quando divulgou um diálogo, gravado ilegalmente, entre Dilma e seu ex-futuro chefe da Casa Civil.

Agora, uma reportagem da revista Epoca revela que, na metade de 2019, depois de passar apenas seis meses no novo cargo, Moro já começou cuidar de seu futuro e não estava pensando numa cadeira do Supremo, como tem admitido desde o primeiro dia no Planalto. Passou a receber "pesquisas não divulgadas publicamente, em que seu nome é colocado como opção para a presidência", escreve a revista. Não se tratam de levantamentos espontâneos, nos quais o entrevistado diz o nome que lhe vem à cabeça. Mas uma pesquisa preparada, com sugestões de nomes, as chamadas "perguntas estimuladas", em que os entrevistadores já apresentam possíveis candidatos para testar a reação dos eleitores. Um serviço sob medida para interessados em levantar candidaturas embrionárias.

Para a revista, "este passo, ainda que sutil, é o mais recente de uma série de episódios que revelam o desgaste entre o Palácio do Planalto e o Ministério da Justiça".

A realidade é que todo movimento de Moro em direção a uma candidatura própria desfalca Bolsonaro de uma das pernas necessária para seus planos de 2022  -- o apoio da Lava Jato, combustível sempre essencial para mobilizar a direita do eleitorado.  

Pelo discurso e pelos compromissos, ambos são particularmente semelhantes e animam plateias idênticas, ameaçando criar uma situação clássica de canibalismo político, na qual o crescimento de um ameaça o do outro. 

Em seus treze meses de ministério, Moro não levantou um dedo para moderar os apetites anti-democráticos do presidente, o mais temerário chefe de Estado que o país conheceu desde a democratização. 

Logo nos primeiros dias, foi  impedido de nomear uma estudiosa de casos de violência policial, de pendores liberais, para integrar, como suplente, um órgão consultivo do Ministério. Seguiu em frente.

Sempre que pode, Moro tem feito o possível para construir uma agenda paralela, evitando ser confundido naquele pelotão de ministros que ninguém lembra o nome -- ou apenas a penúltima situação folclórica.

Obra sempre apresentada como sua, jamais do governo Bolsonaro, Moro preparou uma campanha de R$ 10 milhões para convencer o Congresso a aprovar  um pacote anticrime com várias aberrações contrarias aos direitos individuais.

Embora o pacote tenha sido aprovado em linhas gerais, Moro sofreu derrotas importantes, tanto no resultado final como nas disputas no meio do caminho.

Denunciada no TCU, a publicidade milionária acabou suspensa por  6 votos a 2. No julgamento, o ministro Bruno Dantas  deixou registrada uma denúncia de seu espírito autoritário: "Nenhum parlamentar tem condição de iniciar uma argumentação racional contra o pacote anticrime porque o governo embutiu nesse pacote a sua visão de mundo e qualquer um que ouse divergir daquela visão encrustada no pacote anticrime será defensor do crime".

Ponto principal da discussão, incluído no conjunto da obra pelo Congresso, o juiz de garantias também passou pelo Planalto de Bolsonaro. Ainda foi aprovado pelo presidente do STF, Dias Toffoli. Só foi colocado em suspenso por um voto de última hora de Luiz Fux, numa decisão monocrática, em plantão de recesso. Mesmo assim, apoiado pela maioria dos ministros e por um setor considerável do judiciário e dos jornais liberais, o projeto do juiz de garantias tem boas chances de ressuscitar a partir da semana que vem,  quando termina o recesso do judiciário.

Num país onde se mostrou o grande inspirador da judicialização do sistema político, em particular do Partido dos Trabalhadores e siglas próximas, o próprio Moro pode ser considerado um  caso curioso de impunidade.

Conseguiu passar incólume pela Vaza Jato, cujos diálogos oferecem um dos mais graves e contundentes indícios criminais já apresentados contra o sistema judicial de qualquer país, em qualquer época.

Enquanto os mais conhecidos acusados pela captura dos diálogos  já completaram seis meses na cadeia, o Ministério Público Federal abriu uma investigação contra  Glenn Greenwald por "organização criminosa", "interceptação telefônica" e "invasão de dispositivo informático", crimes que, em caso de condenação, podem somar 13 anos de prisão. 

Há um ponto muito grave, aqui. Vivemos num país onde o sigilo da fonte é  um direito assegurado de modo explícito pela propria Constituição, o que dá legitimidade integral às denúncias de Glenn.

No país de Moro e Bolsonaro, talvez isso não tenha muita importância. 

Optando por atacar o mensageiro, em vez de apurar o que revela a mensagem,  o Ministério Público sinaliza que ninguém pode incomodar Sérgio Moro. 

E assim ele segue o destino de cidadão que não precisa prestar contas a nada nem a ninguém. Nem mesmo a Bolsonaro, talvez.  

Alguma dúvida? 

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11
Jan20

Legítima defesa imaginária, modo de usar… ou não!

Talis Andrade

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por Fábio de Oliveira Ribeiro

Uma vez mais sou obrigado a refletir sobre o “novo” Direito Penal. Digo “novo” Direito Penal, porque eu realmente não o conheço muito bem. Na verdade eu não quero conhecê-lo. Portanto, minhas observações serão feitas com base no Direito Penal “antigo”, aquele que eu aprendi na Faculdade. Meu professor foi um Promotor de Justiça do Estado de São Paulo rigoroso e didático que procurava nunca se desviar dos conceitos jurídicos fixados pela legislação penal. Tentarei seguir os passos dele.

O conceito de legítima defesa é enunciado da seguinte maneira no Código Penal Brasileiro:

“art. 25 – Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele uma injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.”

Os elementos contidos nesse enunciado são quatro:

 

Moderação

A autotutela só é moderada quando a violência empregada pelo agredido é equivalente ou menor do que aquela que foi empregada pelo agressor. Quem é agredido com uma faca não pode descarregar sua arma de fogo no autor da agressão. Quando evidenciado pelas circunstâncias do caso e pelas provas existentes no processo, o excesso pode e deve ser punido. Não é legítima a violência imoderada empregada por aquele que, a pretexto de se defender, resolve causar uma lesão ainda maior no seu agressor.

 

Injustiça

O agredido não pode ter provocado a agressão. Nesse caso, a reação da outra pessoa é que seria legítima. O uso da força pelo policial, desde que moderada e justificada pela situação, não pode ser considerada injusta. Nesse caso, se reagir a pessoa não poderá alegar legítima defesa. Mas se a agressão policial foi desnecessária ou exagerada a questão da legítima defesa poderá ser debatida no processo.

 

Agressão

O Código Penal não se interessa pela subjetividade do agredido. Ele legitima a ação da vítima em face de uma violência atual ou iminente.

Atual é a agressão que está ocorrendo no momento em que a pessoa se defende. Iminente é aquela agressão que, em razão das circunstâncias do caso, estava para ocorrer ou que certamente ocorreria.

Quando o inimigo de alguém saca sua arma e a aponta para a vítima todos podem presumir qual será o resultado desta ação. Mas se um estranho estiver andando na rua com a arma na cintura é injusta a presunção de que ele pretende ferir ou matar outra pessoa. Os transeuntes podem até imaginar o pior. Todavia, nesse caso a imaginação é sempre uma péssima conselheira. E se aquela pessoa armada for um policial em serviço ou de folga? E se, em razão dos riscos associados à sua profissão, ela requereu e obteve o direito de andar armada?

 

Imediatidade

A reação da vítima deve ser imediata. No momento em que for agredida ou pouco antes da agressão ela pode reagir e deverá fazer isso com a devida moderação. A pessoa que foi agredida não pode ir ao Hospital cuidar das lesões, à Delegacia registrar a ocorrência, voltar para casa para pegar sua arma e depois ir se vingar do agressor. O crime cometido pelo agressor pela manhã não justificará o crime cometido pela vítima a tarde. Nesse caso os dois crimes terão que ser julgados pelo Sistema de Justiça.

Legítima defesa imaginária… Essa figura não existe no Direito Penal que me foi ensinado. A conduta das pessoas deve ser sempre avaliada e julgada de acordo com as circunstâncias do que ocorreu e do que foi provado no processo. A interpretação subjetiva que o réu fez da sua ação no momento do fato (ou a posteriori em razão de uma estratégia da defesa) é irrelevante para o julgamento da conduta dele.

Levando em conta tudo que foi dito aqui sou obrigado a concluir que é perigosa e inadequada a interpretação que o Promotor fez da Lei. O órgão da acusação tem o dever de interpretar corretamente a Lei e de pedir a condenação do réu quando existe prova da autoria e da materialidade do delito. Ao que parece o Promotor preferiu perdoar o suspeito levando em conta a interpretação subjetiva que ele fez de sua conduta antes ou depois do fato. Indevido processo ilegal, sem dúvida.

Não só isso. Por força dessa “nova” interpretação livre do venerável e consagrado instituto da legítima defesa prescrito no art. 25, do Código Penal, o Ministério Público vai introduzir no cotidiano do Sistema de Justiça aquela inovação pérfida inventada por Sérgio Moro que foi rejeitada pelo Congresso Nacional.

Lenta e progressivamente nosso mundo está sendo colocado de cabeça para baixo. E gora, até um Promotor pode perdoar (há bem pouco tempo somente o herói lavajateiro podia fazer isso) e/ou legislar no caso concreto para modificar um dispositivo legal que não o agradou.

“Matei porque quis matar. Mas direi no processo que fiz isso porque imaginei que estava sendo agredido. Minha absolvição será garantida pelo instituto da legítima defesa imaginária.” Em pouco tempo e por força da comunicação entre os policiais, algo capaz de transformar qualquer exceção em regra habitual, ninguém mais conseguirá fazer uma distinção clara entre as polícias e as organizações criminosas.
 

Desde quando os policiais devem ter imunidade total para matar e mutilar cidadãos? Os atos que eles praticam nas ruas não podem mais ser avaliados e julgados de maneira objetiva na forma da legislação? O horror, o horror, o horror…

Se um policial resolver meter três balas no peito desse Promotor ele ficará satisfeito com a solução do processo com base na tese jurídica esdruxula que ele mesmo inventou?

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07
Jan20

O que faz o juiz de garantias incluído no pacote anticrime

Talis Andrade

Câmara aprovou projeto após excluir as principais bandeiras de Sergio Moro e adicionar proposta que ganhou força com revelações sobre a conduta do ex-juiz federal na Lava Jato

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por Isabela Cruz

Nexo

Depois de passar pelo Congresso, o pacote anticrime foi sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro. Bolsonaro vetou 25 pontos do texto aprovado pelos parlamentares, mas não aquele que mais incomodou o ministro da Justiça Sergio Moro, autor da proposta: a instituição da figura do juiz de garantias.

Moro apresentou o projeto original ao Congresso em fevereiro de 2019, sua prioridade à frente do Ministério da Justiça. A proposta pretendia alterar diversos pontos da legislação penal brasileira — nos Códigos Penal e Processual Penal — para dar mais poderes a forças policiais e endurecer punições para crimes. Ao pacote do ex-juiz federal foi anexado um projeto de mesmo escopo, apresentado por uma comissão de juristas e coordenado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes.

Já nas primeiras etapas de tramitação, o grupo de trabalho da Câmara retirou da proposta alguns dos principais pontos defendidos por Moro, como o excludente de ilicitude e o plea bargain.

Ao fim da tramitação, a maioria da Câmara dos Deputados se valeu da oportunidade de mexer na legislação penal para emendar o projeto do governo e dar mais garantias individuais a investigados e réus. Foram mantidos alguns pontos defendidos por Moro, como o aumento do tempo máximo de cumprimento de pena de 30 para 40 anos, o aumento da pena para homicídio com arma de fogo em algumas situações e a criação do Banco Nacional de Perfis Balísticos, para cadastrar armas de fogo e dados relacionados a projéteis.

 

O QUE FAZ UM JUIZ DE GARANTIAS

Um juiz de garantias delibera sobre medidas tomadas durante a investigação, anterior à instauração do processo criminal. Ele busca garantir que o inquérito seja eficiente e atenta para que os direitos individuais dos investigados não sejam violados. O juiz de garantias decide, por exemplo, sobre a legalidade de medidas tomadas pelos investigadores, como prisão provisória, interceptação telefônica, quebra de sigilo fiscal, bancário ou telefônico e busca e apreensão.

Atualmente, o juiz que toma decisões na fase investigatória também profere a decisão final a respeito da condenação. Com a criação da figura do juiz de garantias, outro juiz será responsável por decidir o mérito do caso — se o réu deve ser condenado ou absolvido e qual deve ser a pena imposta.

O objetivo dessa separação é garantir a imparcialidade. Dessa forma, o juiz que vai decidir o caso não analisa os argumentos dos promotores (que fazem a acusação) a partir de avaliações preconcebidas na fase investigatória, quando o investigado se manifesta pouco. Figuras semelhantes à do juiz de garantias já existem em diversos países, como Itália e Chile.

 

O PROCESSO PENAL

INQUÉRITO

Fase em que se investiga uma suspeita. Ao fim do inquérito, a polícia pede o indiciamento do alvo se achar que há provas. É nesta etapa que um juiz de garantias atua.

DENÚNCIA

Com base na investigação, o Ministério Público decide se apresenta ou não uma denúncia formal à Justiça.

PROCESSO

O passo seguinte é a aceitação ou não da denúncia pela Justiça, para que um processo criminal seja instaurado. Em um sistema em que há juiz de garantias, é a partir daqui que outro juiz assume o caso. Ao fim do processo, ele decide pela culpa ou inocência do réu e, se for o caso, define a pena a ser aplicada.

A ideia de incluir a figura do juiz de garantias no Código de Processo Penal é antiga, mas ganhou força quando as conversas atribuídas ao então juiz Sergio Moro e ao procurador Deltan Dallagnol, chefe da força-tarefa da Operação Lava Jato em Curitiba, foram divulgadas pelo site The Intercept Brasil e outros veículos parceiros, a partir de junho de 2019.

As conversas mostram articulações entre juiz e Ministério Público para processar ou condenar determinados réus e colocaram em xeque os métodos de Moro como juiz federal. Articulações desse tipo são vedadas pelo sistema penal brasileiro, no qual a separação entre o juiz e a parte de acusação é tida como fundamental para se garantir a imparcialidade do julgador. (Transcrevi trechos)

lula moro.jpg

 

 

 

 

03
Dez19

A tragédia de jovens empurrados pela PM até matarem-se uns aos outros

Talis Andrade

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por Paulo Moreira Leite 

Os vídeos sobre o massacre de jovens em Paraisópolis devem ser vistos como aqueles  imponentes murais que costumam ser exibidos  nos melhores museus do planeta.

Empurrados para a morte por pisoteamento a golpes de cassete, bombas e gás, os gritos e movimentos de sofrimneto sem fim daquela massa humana dizem tudo o que é preciso saber sobre as tragédias do Brasil de nosso tempo.

Forçados a matar-se uns aos outros por esmagamento, única forma de tentar escapar da própria morte, jovens pobres do país são conduzidos a um salve-se quem puder aonde nem todos perecem -- mas a rigor ninguém se salva. Nem os que tiveram a sorte de permanecer vivos.

Agora que ficou demonstrado que a principal herança do espetáculo da Lava Jato foi um país sem empregos, a economia destruída e  um Judiciário partidarizado, cabe reconhecer que neste fim de semana a periferia da maior cidade brasileira caminhou numa treva sem registro nos livros de história.

Atravessamos a fronteira na qual a morte violenta de inocentes torna-se a grande moeda de troca da luta política. Pois era isso -- cadáveres -- que a PM sabia que iria encontrar quando foi para cima da juventude em Paraisópolis, encurralando centenas, quem sabe milhares, contra o muro e o asfalto de becos sem saída.

Em nova erosão do  Estado Democrático de Direito, os cadáveres empilhados de nove garotos -- 14 a 23 anos -- valem como troféus num morticínio em praça pública, sem julgamento e sem piedade, a certeza de impunidade absoluta.

Houve uma época em que o Estado brasileiro  retirava garotos que residiam em abrigos de menores para executá-los na madrugada.

Agora, mata-se jovens que tentam ser jovens -- o que inclui se divertir, namorar, embrigar-se e cometer transgressões.

Num torneio de morticínios, João Doria e Wilson Witzel, governadores dos mais influentes estados brasileiros, procuram abrir seu caminho no país de Jair Bolsonaro, de quem disputam a herança.

Não há a menor preocupação com a necessidade de cultura dos jovens pobres e pretos.

Nem uma promessa -- fugidia que fosse -- de esperança de um destino melhor. Vivem largados, entre a pressão do tráfico e a falta de oportunidades reais na vida. Fora isso, nada. Apenas a morte.

Alguma dúvida?

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03
Dez19

Democracia é empecilho à agenda de Guedes

Talis Andrade
 

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Por João Filho
 
Paulo Guedes foi um professor não muito chegado ao batente. Faltava com frequência às aulas, não corrigia os exercícios e depois cobrava nas provas os exercícios que não havia corrigido. Era um professor tão medíocre que os alunos se mobilizaram para tirá-lo da PUC. E conseguiram.

Esse preguiça em lecionar contrasta com a dedicação do Chicago Boy em implementar uma política econômica ultraliberal para a ditadura sanguinária de Pinochet. Contrasta também com o empenho em multiplicar sua fortuna no day-trade, o cassino do mercado financeiro em que a sorte é decisiva para o investidor. Guedes tinha obsessão por esse jogo e passava muitas horas comprando e vendendo ações. Segundo seus ex-sócios, chegou a perder R$20 milhões nessa cracolândia dos investidores.

Esse é Paulo Guedes, um homem que trata o compartilhamento de conhecimento com desprezo, mas é pau pra toda obra na hora de acumular fortuna e contribuir para a agenda econômica de governos de extrema-direita.

Logo após a eleição de Bolsonaro, o economista respondeu com agressividade a uma pergunta simples e educada de uma jornalista argentina sobre o Mercosul. Nos 11 meses à frente do ministério da economia bolsonarista, Guedes confirmou que não é mesmo alguém simpático aos valores democráticos. Em audiência na Câmara em abril, protagonizou um bate-boca rasteiro com deputados, chegando a xingar um deles aos berros. Em setembro, debochou da aparência física da mulher do presidente da França.

A declaração desta semana sobre AI-5, portanto, está dentro do que se espera de um homem afeito ao autoritarismo. “Não se assustem, então, se alguém pedir o AI-5. Já não aconteceu uma vez?”, disse em referência aos discursos de Lula convocando a população para se manifestar contra o governo Bolsonaro. Guedes trata o fechamento do Congresso e a suspensão dos direitos políticos de todos os cidadão como uma possibilidade natural para um país democrático. Tão natural que, inclusive, “já aconteceu uma vez”, “não se assustem”.

Não é possível relativizar essa fala como tanta gente tentou fazer dizendo que ele não pediu o AI-5. Ele não pediu, mas o apresentou como uma carta possível do jogo democrático. É um aviso aos democratas mais assanhados de que um golpe está sempre à espreita. O nome que se dá a isso, meus amigos, é golpismo. Ainda mais quando parte do ministro mais importante de um governo que flerta permanentemente com o autoritarismo. Registre-se também que Guedes é o fiador do bolsonarismo junto às elites, as mesmas que apoiaram decisivamente o golpe de 64.

O golpismo é um estado de espírito do governo Bolsonaro.

A declaração de Guedes naturalizando o AI-5 vem na esteira de uma escalada dos discursos autoritários do bolsonarismo em relação às possíveis manifestações de rua contra o governo. Em menos de uma semana, o filho do presidente colocou a carta do AI-5 sobre a mesa, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional disse que “tem que estudar como fazer (o AI-5)”, e agora Paulo Guedes sacramenta a possibilidade. O golpismo é um estado de espírito do governo Bolsonaro.

Antes do golpe de 1964, foi construída uma narrativa mentirosa para justificá-lo. O Brasil estaria sob ameaça de uma revolução comunista, uma possibilidade que jamais existiu no país. Agora, o mesmo fantasma mas com nova roupagem está sendo apresentado para justificar a sanha autoritária do governo. Lula não convocou o povo para a “quebradeira” como disse Guedes. O discurso do petista esteve longe de pregar violência, como fez Bolsonaro ao dizer em campanha “vamos fuzilar a petralhada” — o que não incomodou Guedes.

Lula usou da prerrogativa de qualquer cidadão brasileiro de convocar manifestações de rua contra o governo. É um direito elementar numa democracia. Tratar isso como radicalização e baderna é só uma maneira de criar um espantalho para justificar o golpismo. E, mesmo que haja violência nas ruas, a resposta do governo deve sempre obedecer à Constituição. Essa seria uma obviedade para qualquer democrata.

Quando perguntado sobre a diminuição no ritmo das reformas impopulares por Bolsonaro temer a volta de Lula ao debate político, Guedes colocou novamente a faca no pescoço da democracia: “Aparentemente digo que não. Ele (Bolsonaro) só pediu o excludente de ilicitude. Não está com medo nenhum, coloca um excludente de ilicitude. Vamos embora”. Guedes considera legítimo o dispositivo que o Planalto quer que o Congresso introduza na GLO (Garantia de Lei e da Ordem). Na prática, o excludente de ilicitude dará carta branca para os policiais atirarem contra manifestantes. Bastará ao policial alegar que estava “sob escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. O recado para a população é claro: manifestações contra o governo podem acabar em derramamento de sangue.

O flerte de Eduardo Bolsonaro com o AI-5 teve repercussão internacional, reforçando a imagem de república das bananas que o bolsonarismo trouxe de volta para o país. Guedes não pensou duas vezes ao reforçar o golpismo do filho do presidente e dar declaração semelhante nos EUA. As consequências foram imediatas: gerou instabilidade para investidores de curto prazo e um clima de instabilidade institucional para os de longo prazo. Além disso, fez o dólar disparar e bater o recorde histórico por três dias seguidos.

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Nos dias seguintes à declaração, Guedes tentou dizer o oposto do que disse antes. Rejeitou o AI-5 e disse que manifestações de rua são legítimas. Não se ameaça a democracia hoje e amanhã se aperta ctrl + z. Um ministro não pode brincar de metamorfose ambulante. As consequências para a economia são irreparáveis.

Os presidentes da Câmara e do STF repreenderam Guedes. Deram declarações importantes, mas ainda é uma reação aquém da que se espera quando a democracia está ameaçada. Não é a primeira vez que o ministro tenta colocar as garras sobre a democracia.

No começo deste mês, Guedes apresentou projetos econômicos do governo e afirmou que servidor público filiado a partido político não terá direito a estabilidade no emprego. “Tem filiação partidária? Não é servidor público. Não vou dar estabilidade para militante. É como nas Forças Armadas: é servidor do Estado”, afirmou Guedes, ignorando a Constituição que garante a liberdade de participação política a todos os cidadãos. A única resposta dos democratas para essa insistência do ministro em atacar preceitos constitucionais básicos, chegando até a cogitar um golpe, deveria ser o processo de impeachment. Crimes de responsabilidade não faltam.

Guedes era considerado a jóia rara do bolsonarismo. Um economista de sucesso que seria um freio à xucrice da extrema-direita brasileira. O fato é que o ministro acumulou prestígio apenas no mercado financeiro. Fora dele nunca atingiu grande notoriedade ou desfrutou de respeito entre seus pares na academia. No governo, Guedes se revelou um xucro antidemocrático como qualquer representante do baixo clero neofascista brasileiro. A única coisa que lhe importa é seguir a cartilha ultraliberal do mercado financeiro. Se a democracia se tornar um empecilho para essa missão, ela pode muito bem ser colocada de lado. Até porque “já aconteceu uma vez”, né?
 

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