Ana Penido
Pedro Marin entrevista Ana Penido que fala de Defesa, a educação dos militares, a relação de Lula com os militares e a tutela militar sobre o Congresso e o Brasil
Pedro Marin: Quando você vai fazer mestrado, estuda a educação dos militares na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN). Por muito tempo – eu diria que hoje menos, mas ainda um pouco – houve a ideia de que a pedra de toque fundamental para mudar as Forças Armadas, para retirar delas suas inclinações golpistas e ideias como a Doutrina de Segurança Nacional, seria reformular o processo de educação, reformar os currículos. Você acha que isso é o fundamental? Até que ponto isso pesa?
Ana Penido: Qualquer general brasileiro tem que passar pela AMAN, então todos [os que ocuparam a política nos últimos anos] passaram por lá. Você perguntou usando a expressão “pedra de toque”. Eu entendo, uso uma expressão, que são áreas de reserva de domínio. Há quatro áreas de reserva de domínio que permitem aos militares permanecerem como sempre foram, em alguma medida. São aquelas reformas que são estruturais, que não são laterais; realmente mudam muita coisa.
A primeira: a área da Justiça. O fato de eles terem um sistema de Justiça próprio, em que eles julgam os próprios crimes, e o que eles entendem como crime. Porque os principais crimes que eles de fato entendem assim são crimes contra a instituição militar. O fato de eles terem essa possibilidade – serem julgados pelos seus pares – gera todo um processo, seja de corporativismo, seja de impunidade, seja de abuso de poder daqueles que estão nas altas patentes sobre os que estão nas patentes mais baixas. Então há um conjunto de questões que surgem dessa primeira área de reserva de domínio, que é o Judiciário.
A segunda área de reserva de domínio: a inteligência. Eles têm todo um sistema de inteligência, e cada força tem o seu, autonomamente. É um sistema enorme, que produz inteligência sem nenhum tipo de fiscalização externa sobre isso. Diferente do restante da inteligência – a ABIN, por exemplo, ainda que seja mal fiscalizada. Em alguma medida a ABIN é subordinada a uma comissão de fiscalização externa que funciona no Congresso – cujo antigo presidente, a propósito, era o Eduardo Bolsonaro. Mas essas inteligências militares não são fiscalizadas. Eles têm sistemas [autônomos]: a inteligência do Exército, da Aeronáutica, da Marinha. E o que deve ser objeto dessa inteligência é algo que teríamos, sim, que discutir. A inteligência militar é um dado, todos os países têm inteligência militar, mas o que deve ser objeto dessa inteligência tem a ver com a discussão sobre o que nos ameaça, quem nos ameaça, etc., algo que no Brasil é completamente solto e avulso.
A terceira área de reserva de domínio: orçamento. Acho que é a mais fácil de mexer, embora nós não mexamos nisso. No último dossiê da Tricontinental falamos um pouco dela. Praticamente ninguém toca no orçamento da Defesa; como ele é organizado, como ele funciona, ninguém mexe. Todo mundo sabe que ele serve fundamentalmente para pagamento de recursos humanos, há muitas pesquisas indicando isso – de progressistas, conservadores, tanto faz; há muitas pesquisas sérias, com diferentes variáveis, que indicam que o orçamento é um poço sem fundo: todo dinheiro que entra vai para pagar os próprios militares. Mas ninguém mexe nisso; e as Forças Armadas executam uma série de orçamentos que não são da área de Defesa. Por exemplo, a parte de esportes de alto rendimento: por que é o Ministério da Defesa que tem que executar um negócio desse? Distribuição de cestas básicas, por aí vai: tudo vira uma forma de propaganda da própria instituição. Então por isso coloco a discussão sobre orçamento de uma forma geral como uma das reformas estruturais fundamentais. Em teoria deveria ser mais fácil mudar isso, porque dinheiro todo mundo quer: fico pensando como é que o Centrão não dá uma mordida na beirada desse orçamento [risos]. Aí eu lembro que existe a inteligência… “ah, entendi porque o Centrão não entra nessa negociação.” O fato de terem a segunda área de reserva.
E a última e quarta área de reserva de domínio: a educação. O Brasil tem quatro sistemas de ensino. Não são só dois, o sistema civil e o militar, não; há o civil, o do Exército, o da Marinha e o da Aeronáutica. Cada um com sua lei. Toda essa atuação é legal: é importante que as pessoas saibam que não são coisas ilegais; é tudo garantido pela Constituição, depois isso foi referendado na Lei de Diretrizes e Bases. A educação é o coração da auto-reprodução simbólica da corporação. Não só os militares, mas muitos setores da sociedade brasileira têm perpetuado essa ideia de “nós somos da tradição”. Mas as Forças Armadas são, por excelência, o lugar da tradição. As escolas são feitas para manter; são conservadores. Conservadores no sentido de que acham que o passado sempre será melhor do que o futuro; querem conservar isso, não querem que as coisas mudem porque as coisas como eram antes são entendidas como melhores. Isso se expressa na relação entre homens e mulheres, na relação entre países, na relações políticas e econômicas.
Muita gente fala em “instituição total” ou “instituição totalizante” por causa disso: você entra lá [nas Forças Armadas] e perde a sua personalidade. Então recebe uma nova personalidade – um novo nome, inclusive, que vai para o seu brevê. É um processo que eles próprios descrevem: a farda não é entendida como uma roupa que vestimos para trabalhar e tiramos quando chegamos em casa. Ela é entendida como uma segunda pele, porque eles ganham uma outra identidade que molda o seu corpo, sua postura, sua forma de ver o mundo. Eles falam em “família militar”, por exemplo: de fato eles formam uma família militar, porque essa separação que existe no mundo civil, em que se tem amigos da igreja, amigos do futebol, amigos da política, amigos do trabalho, etc., – essa separação não existe no mundo militar da mesma forma. De fato vai se conformando ali um microcosmo. E a escola é o ambiente onde isso acontece no grau máximo: onde se formam as novas gerações à imagem e semelhança das gerações passadas.
As escolas militares são fundamentais; precisamos delas para formar um bom militar. Não se improvisa um bom comandante; se forma um comandante, se testa aquele comandante por anos e anos. É fundamental que isso aconteça. Mas também há muita idealização sobre o que essas escolas são, inclusive entre a esquerda: a ideia de incluir uma disciplina de Direitos Humanos no currículo militar, por exemplo. Veja: eles já têm uma disciplina de Direito Humanitário Internacional, mas essas disciplinas… Eu estudei sempre em escola católica, como boa moça do interior mineiro [risos] e sempre tive aula de religião; eu imagino que eles vejam essas aulas com a mesma boa vontade com que eu assistia minhas aulas de religião no Ensino Médio [risos]. E a grande questão também não é que tenham um livro didático chamando o golpe de 1964 de revolução – obviamente que isso não pode existir, eles não podem usar um livro didático diferente –, mas, para mim, o coração da questão está nessa identidade que é formada lá dentro: o que é de fato o civil, o que é de fato o militar, e como esses imaginários são construídos dentro dessas escolas. Essa negação: “sou isso porque eles são aquilo”. E, neste aspecto, Celso Castro narra essa questão brilhantemente; nós vivemos isso, quando vamos nessas escolas vemos esse distanciamento muito nitidamente. E os próprios cadetes relatam isso, os próprios militares.
Tem coisas que, para nós, parecem piada, mas que para eles trazem um significado simbólico e efetivo. Não só na AMAN, até de recrutas, em tiros de guerra, é muito comum ouvirmos: “lá eu virei homem, lá eu comecei a arrumar a cama” – eu, que sou mãe de menino, penso “Jesus, esses homens tão aprendendo a arrumar a cama com dezoito anos. Por isso estamos com baixa demográfica” [risos]. Mas isso, simbolicamente, é forte para eles. E passam por perrengues, são expostos a situações extremamente desafiadoras do ponto de vista psicológico, físico; estão longe da família. E isso forma uma identidade; para mim isso está no coração da questão, a identidade militar que é formada ali dentro, em contraposição à ideia de civil.
Então reformar isso é muito mais do que reformar a educação: não é mudar um currículo, incluir uma matéria, ou coisa do tipo. Há muitas tentativas ao redor do mundo de mudar isso, e a maior parte, em alguma medida, tem resultado em fracassos. O Evo Morales, por exemplo, na Bolívia: pensou que, a partir do momento que entrassem cadetes das diversas etnias indígenas, eles começariam a melhorar as Forças Armadas – porque as Forças Armadas da Bolívia, obviamente, como quase todas, são majoritariamente brancas, com somente praças das etnias indígenas. Então Evo criou cotas de entrada nas Forças Armadas: os militares que já estavam nas escolas fizeram de tudo para que essa turma que entrou saísse ou se enquadrasse. E essas pessoas se enquadraram num tal nível que, depois, estavam lá, junto com esses outros militares, durante o golpe que deram no Evo. Foi uma tentativa; na época do Conselho de Defesa Sul-Americano houve outra tentativa, de criar a Escola Sul-Americana de Defesa (ESUD), que também não vingou. Então a educação militar é um angu de caroço, mesmo, algo bem difícil de mexer: porque não é uma perfumaria, é mexer na identidade deles.
Em um artigo para a revista Piauí de 2021 você tratou do alinhamento dos militares com os EUA durante o governo Bolsonaro, e há um outro artigo seu em que você argumenta que pode haver uma contradição no futuro, com os militares buscando um alinhamento estratégico com os EUA, mas, com uma mudança no cenário internacional, com a China se colocando como um ator internacional e como um parceiro comercial mais relevante inclusive da burguesia local. Na sua perspectiva, à medida que a China aumenta suas relações com o Brasil, os militares aceitariam fazer uma mudança no seu alinhamento estratégico? Quer dizer, será que se o eixo da matriz da dependência se alterar, eles acompanharão essa mudança?
Igual o agronegócio… Esse é meu atual tema de pesquisa, meu Pós-Doutorado é exatamente sobre o alinhamento estratégico Brasil-Estados Unidos, em comparação com a relação Venezuela-Estados Unidos. Tento entender o que aconteceu em um país e no outro para levar a leituras estratégicas tão distintas e díspares, em várias dimensões. Tenho mais perguntas do que respostas [risos], mas posso dar alguns palpites.
O alinhamento estratégico com os Estados Unidos vem da Segunda Guerra Mundial – não só do Brasil, como da América Latina de forma geral. Nós lutamos ombro a ombro; isso é algo significativo, fomos subordinados a eles. E ali, na guerra, os militares tiveram a oportunidade de ver um exército de verdade, cheio de equipamento, etc. Mas a influência dos Estados Unidos não entra em contradição com outras influências que o Brasil já havia sofrido: não é como se a influência norte-americana tivesse feito desaparecer a influência da França; não, elas vão se plasmando. Não entram em contradição do ponto de vista estratégico porque ambas trabalhavam com uma ideia de que o exército deveria estar voltado para dentro; que a responsabilidade das Forças Armadas de países de periferia era sempre o controle da ordem interna. É uma ideia que chega a beirar o ridículo, porque essa doutrina começa na França e se desenvolve em uma lógica de combate às insurgências que pipocaram na África, que eram levantes anticoloniais. E nós, ao invés de nos identificarmos com essas colônias, que é nosso caso – fomos uma colônia –, não; nós nos identificamos, doutrinária e estrategicamente, com aqueles que estavam combatendo os levantes coloniais. Um absurdo.
Mas os processos de profissionalização e educação não significam só aprender um conteúdo; não é algo que, quando se está no banco da escola, se está apenas aprendendo a juntar o ‘b’ com o ‘a’ – não, nesse processo você está significando as coisas, entendendo como elas funcionam. Então nesse processo se compram ideias, se compram armamentos, se compra a ideia de como usar esses armamentos – é um processo extremamente profundo de construção doutrinária. Então quando a doutrina norte-americana chega, num contexto de Guerra Fria, se plasma com a francesa, naquela ideia de “nós” contra “eles”. Não há grandes contradições doutrinárias – naturalmente tem ajustes, por exemplo: quando a Escola Superior de Guerra (ESG) é criada, [em 1949], ela é criada com diferenças em relação ao que foram seus pares nos Estados Unidos – a principal diferença é que aqui sempre se pensou que os militares escolheriam civis de sua confiança, o que eles entendem enquanto elites, para formar esses civis para que eles construíssem o Brasil.
A Doutrina de Segurança Nacional talvez seja a síntese principal dessa plasmação, algo que se torna ainda mais profundo quando acaba a Guerra Fria. Porque é um momento em que só existem os Estados Unidos. Há um autor dos Estados Unidos que diz: “convenceremos os latino-americanos pelo porrete ou pela cenoura”. Se não for pela cenoura – ou seja, entregam um espelhinho, ou quem sabe uma arma –, vai pelo porrete mesmo – dão um golpe, como fizeram mesmo em um conjunto de países da América Latina. Mas eu acho que eles conseguiram chegar em um processo tal de construção de hegemonia em que não precisam mais nem do porrete nem da cenoura; é um processo de convencimento tão profundo de que este é o caminho, de que o que é melhor para eles é melhor para nós, que de fato isso foi se consolidando. E é algo difícil de identificar, porque é uma hegemonia que é cultural – sobre como ser no mundo, como existir na face da Terra –; é uma hegemonia política – como é que alguém pode achar que aquela maluquice do sistema político norte-americano é a melhor democracia do mundo? Ninguém participa de nada! –; uma hegemonia que é econômica – o neoliberalismo foi implantado em quase todos os países da América Latina –; e uma hegemonia que também é industrial, técnica e produtiva. Então é um processo de hegemonia, num sentido gramsciano, muito profundo.
No caso dos militares, isso se expressa em coisas pequenas e coisas grandes. Desde coisas muito simples, como quais são as identificações dos cursos que eles fazem – são as mesmas da OTAN; um emblema de paraquedas significa tal coisa, fica posicionado mais ou menos em tal lugar do ombro, de tal forma, etc. Tudo isso é regulamentado num sentido do Exército Brasileiro ser pensado enquanto uma força auxiliar da OTAN. Nesse sentido, nós diversificamos nossas parcerias industriais? Sim. Mas com países alinhados à lógica da OTAN. Mesmo que não tenhamos comprado só equipamentos militares dos Estados Unidos, seguimos numa mesma esfera de influência. E isso se espalha em questões como quais cursos os militares brasileiros vão fazer nos EUA; quais exercícios conjuntos eles vão fazer lá; o escritório de Washington, que está lá com gente mamando dinheiro há muito tempo, fazendo esse tipo de comércio. Essa dependência é muito profunda, muito difícil de romper, porque não é algo de curto prazo, e é algo que desce até os melindres, até nas coisas mais simples ela está muito estruturada.
Houve resistências? Houve. Essa ideia de que as Forças Armadas têm de atuar somente internamente não foi sempre a leitura de todos os militares. Mas fazem uns bons dez anos desde que essa ideia foi se consolidando mesmo, de que os militares têm de atuar na segurança pública – as Garantias da Lei e da Ordem (GLO) nesse sentido ajudaram, a ida para o Haiti… São tarefas de segurança, não tarefas de Defesa.
Nós falamos muito de divisão internacional do trabalho, e sempre pensamos em economia – mas existe também uma divisão internacional do trabalho na área da Defesa. Cabem às Forças Armadas dos países centrais a disputa geopolítica principal – que hoje é China-EUA, com a Rússia participando. Essa é a disputa; o time “A” está nessa briga. Os times “B” e “C” – ou seja, as Forças Armadas dos países de periferia ou semi-periferia – têm como responsabilidade a atuação no controle da ordem interna. O que ameaça essa ordem interna é que foi mudando. Antigamente eram os comunistas; depois da queda da URSS viraram os terroristas; o globalismo; a depender do país, o narcotráfico… Mas sempre com essa lógica voltada para dentro. E aos países de semi-periferia, como o Brasil, que têm essa pretensão de ser aliado do país hegemônico, mas que é, na melhor das hipóteses, um país alinhado – porque eles nunca vão olhar para nós como aliados; o Bolsonaro podia dar beijo na boca do Trump que isso não ia acontecer [risos] – ainda assim nós eventualmente temos missões que são auxiliares a essas Forças Armadas dos países centrais. O caso do Haiti, da Minustah, é um exemplo disso, da atuação de um país de semi-periferia. Porque os países de periferia nem com isso estão podendo sonhar; é realmente uma atuação voltada só para dentro.
Então realmente entendo que existe essa divisão internacional do trabalho na área da Defesa, e é muito difícil romper com isso, porque depende de uma mudança estratégica. O que é estratégia? É como você luta a guerra. E aí os Estados Unidos foram extremamente bem-sucedidos em vender uma receita de sucesso sobre como ganhar a guerra – que nem é a receita que eles aplicam, e a propósito eles sequer estão ganhando guerras, estão só perdendo. Mas eles vendem essa receita, são muitos bons de propaganda: muitas armas, em grande quantidade, e com tecnologia de ponta, vencem guerras. Eles venderam essa ideia de forma que quase todos os exércitos [do mundo] são iguais. Quase sempre julgamos se um exército é forte ou fraco não pela estratégia que ele adota, mas pela quantidade de armamento que ele consegue concentrar. Quando as pessoas falam da Venezuela, “a Venezuela está construindo um exército forte”, ninguém diz que é por conta das milícias bolivarianas, e sim porque compraram um monte de coisa da Rússia ou um monte de coisa da China e estão cheios de assessores. Mas a receita do sucesso na guerra está na estratégia, não na quantidade de armamento.
Bom, o fato é que os EUA venderam essa ideia, e muita gente comprou – nós brasileiros, inclusive. Mas essa é uma busca impossível de ser alcançada; a espada que tudo corta ou o míssil que nenhum radar encontra – é uma corrida impossível de ser travada. Então acho que para romper com os Estados Unidos, e também para romper de uma forma que não transfiramos nossa dependência para um outro país que eventualmente se torne um hegemon (embora eu ache que o perfil de atuação internacional da China é completamente diferente do dos EUA), para que não fiquemos sempre subordinados a um outro país, a mudança tem de estar na estratégia, ou seja, em encontrar a maneira de travar a guerra que seja adaptada para o que o Brasil pode ser enquanto nação. Muita gente diz que precisamos aprender a travar uma guerra de uma forma que não seja baseada em capital intensivo. O Brasil não tem capital intensivo disponível para investir em armamento. O que o Brasil tem? Tem recursos naturais a rodo, tem gente. Se tivermos uma estratégia que use o que já temos a nosso favor, uma estratégia de povo intensivo – que é o que todas as guerras revolucionárias de sucesso tiveram, foram guerras feitas por pobres, que é o que somos no cenário internacional – isso significaria inverter a forma de pensar a estratégia. Você pode perceber que eu acabei mudando o tema [do meu trabalho de pesquisadora]. Eu fiquei a maior parte do tempo discutindo militares, e faz uns cinco anos… Eu continuo escrevendo sobre militares, mas minha forma de pensar sobre eles mudou completamente. Porque discutir militares é quase como se estivéssemos discutindo o varejo: para que eles servem, para o que não servem, se damos armas para eles, recursos, se deixamos tal militar em tal cargo no GSI ou não. Isso é o varejo. A grande questão é discutirmos estratégia: qual é o cenário global hoje – uma boa análise de conjuntura internacional –; qual é o papel do Brasil nesse mundo, nossa posição real; qual é a posição que desejamos ter; qual deve ser nossa política de Defesa para dar suporte à inserção internacional que eu almejo para meu País – e política de Defesa não é política militar, é política de Defesa, já que um bom hacker pode ser mais útil que um batalhão inteiro –; e, finalmente, quais militares eu preciso ter subordinados a essa política de Defesa. Eu inverti completamente minha lógica de pensar esses temas todos, e isso tem me levado a outros lugares de reflexão que eu tenho gostado: relações civis-militares, por exemplo, que é um conceito muito comum na minha área, eu joguei fora. Porque percebi que militar, na cabeça do civil comum, é todo mundo que usa farda, até o guarda do supermercado que está lá de roupa preta e fez curso de segurança privado, e o civil é uma invenção do militar. Então falei para mim mesma: “o que estudei nos últimos dez anos, que está dentro da área das relações civis-militares, parou de fazer sentido”. Por isso estou indo nesse caminho de discutir Estados Unidos e estratégia.
Aproveitando essa deixa: você tem, junto de um conjunto de outros acadêmicos, como o professor Manoel Domingos Neto, e até ex-parlamentares, como o José Genoíno, defendido a convocação de uma conferência nacional para discutir Defesa e a estratégia que devemos adotar, que inclua acadêmicos, militares, políticos, movimentos sociais, etc. Por que essa proposta é tão importante? E por que os militares resistem à ideia da Defesa não ser um tema estritamente militar?
Sabe, alguns resistem, outros não – estou falando teoricamente, na prática é outra coisa. Mas há muitos militares, do mundo inteiro, que do ponto de vista teórico sustentam aquela frase clássica: “a guerra é uma coisa muito séria para ser deixada só na mão dos militares”. Alguns militares inclusive toparam a construção do Ministério da Defesa na perspectiva de ir forjando um pensamento que fosse mais ampliado, porque em última instância é difícil, inclusive para os militares, se pensarem enquanto militares. De forma geral, militar do Exército se pensa enquanto militar do Exército; o da Marinha enquanto militar da Marinha, o mesmo vale para a Aeronáutica…
Isso quando não se pensam como arma ‘x’… Paraquedistas, infantaria….
Exatamente, são caixinhas dentro de caixinhas. Então a ideia de pensar a Defesa é olhar isso de uma maneira ampliada, e os mais inteligentes sabem que tem de ser dessa maneira. Porque todas as operações militares hoje em dia são conjuntas. Nós tivemos uma lição forte quanto a isso, que foi a Guerra das Malvinas, na qual a operação não foi feita de maneira conjunta… E deu no que deu, perderam feio. Os militares que de fato estudam guerra, que estão de fato pensando a Defesa, sabem da importância de ter um pensamento mais ampliado, que não seja específico só de uma arma. Isso na teoria.
Agora, na prática, ninguém abre mão de poder. Ninguém, em momento nenhum, sob nenhuma circunstância. Isso vale para os militares, vale para a academia… A academia teve muita resistência a escutar os militares, por exemplo. Um ou outro são os que foram furando a bolha ao longo da história, como Nelson Werneck Sodré. E eles também foram criando suas áreas de autonomia, e como eles próprios se avaliam… Vão se criando de fato dois mundos paralelos, o que vários autores chamam de “uma nação dentro da outra”. Dois mundos; se não precisar conversar, não conversa. O que é um dano do ponto de vista da Defesa, porque não existe Defesa feita só por militares, e os civis são fundamentais em todas as guerras, mesmo nas guerras convencionais. Nas guerras contemporâneas os civis são inclusive mais afetados, a mortalidade entre os civis sendo mais alta do que entre os militares em muitos combates. Já faz algum tempo, algumas décadas, que não faz muito sentido pensar Defesa na chave dessa separação, se olharmos para a guerra como ela é travada hoje, e não como foi travada nos séculos 18 e 19. Então há sim uma resistência que é prática, do ponto de vista do apego ao poder – não do ponto de vista teórico, porque todo mundo sabe que é preciso ter política de Defesa.
Com relação à conferência, acho que a grande questão é se seguimos nessas conversas de varejo. Que consistem nisso: trocamos o comandante tal pelo outro? Gente, eles são todos formados igual, muda uma coisa ou outra, muito periférica, mas o grosso é mais ou menos o mesmo. E a ideia é realmente que seja, né? Porque a ideia é realmente que um comando militar pense mais ou menos igual. Então não deve haver essa expectativa: “este vai ser o grande general da esquerda”. Tenho inclusive um grande incômodo com isso, a Revista Opera é uma revista de esquerda e acho importante tratarmos disso: nós ficamos com um desvio, da época pré-64, em que havia muitos militares comunistas, em que os militares foram importantes no Partido Comunista, que é, como esquerda, sempre procurarmos um militar para chamar de nosso. Quem de fato é realista olha e sabe que não há uma força social de esquerda em largas proporções que seja capaz de pautar reformas estruturais. Então, diante da própria fraqueza, todo mundo recorre a um dispositivo militar. E isso não existe; não adianta procurar, não adianta querer formar, porque a organização tem de ter como base a população organizada. Essa população, se for o caso, em algum momento, pode ser armada – é o que Chávez fez quando forma as milícias bolivarianas para defender a Revolução Bolivariana na Venezuela. Mas esse é um passo posterior; o chão, a força, os pés, para que não sejam de barro, têm de ser de força social, de gente organizada. Aparece qualquer militar que dá algum palpite crítico, começa: “É esse! Você conhece esse? Esse é muito bom!”. Não interessa se gosto, se não gosto; é um militar. A partir do momento que entrou na caserna, aquilo ali [a farda] vira uma segunda pele. Os de esquerda inclusive. Se você ler Nelson Werneck Sodré, por exemplo; é [absolutamente] um militar!
E olho com insegurança para essa corporação, independente do militar ser de esquerda ou de direita, por três fatores: a primeira e mais óbvia, porque usam armas – eles têm e eu não tenho. A segunda: porque eles funcionam numa lógica de espírito de corpo, realmente são uma corporação. Sempre vão se proteger; podem até se punir internamente, ter mecanismos de coerção e coesão social muito fortes, mas para fora sempre vão se proteger. É diferente do civil, que briga, diverge, discute, e entrega a “maçã podre”. Eles vão sempre se proteger… É a família – você não entrega seu irmão. E o terceiro motivo é que eles funcionam na lógica de hierarquia e disciplina, o que dá para eles uma vantagem política diante de qualquer agrupamento político, de esquerda ou de direita. A esquerda é uma bagunça! Você precisa de centenas de reuniões em dezenas de instâncias, vai de baixo para cima, de cima para baixo, até se tomar uma definição que seja de fato coletiva. E ainda assim vai ter gente que não vai se subordinar àquela decisão que foi tomada coletivamente [risos]. Imagina, hierarquia e disciplina, que prático é! Essas são vantagens que eles têm. É claro que acho que para os partidos é correto ter democracia interna, mas, em termos de tempo, a capacidade de decisão e de efetivação das decisões dos militares é muito superior. E isso dá para eles uma capacidade de intervenção política muito grande.
Com relação à conferência, levando em consideração que não faz sentido ficar procurando um militar para chamar de seu, é preciso alterar a correlação de forças em nosso favor. Como construímos condições melhores para a luta política nessa área? Nós não travamos a luta política conforme gostamos… Já que não dá pra procurar um militar que se possa chamar de seu, que tal procurarmos os militares que gostam da instituição, e não do Bolsonaro? Isso já é possível, existe gente que está ali porque gosta do Exército, dedicou a vida e acredita no que faz. Podemos discordar, mas é o que tem. Então vamos tentar achar gente que seja séria? Gente que gosta de geopolítica, que está interessada em ver o que a China está fazendo?