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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

20
Nov23

Ex-noiva acusa Zé Trovão de agressão; deputado é enquadrado na Lei Maria da Penha

Talis Andrade
 
 
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O deputado federal Zé Trovão (PL-SC) foi denunciado pela ex-noiva, Ana Rosa Schuster, no último domingo, 19, pelo crime de agressão doméstica dentro do apartamento funcional ocupado pelo político, em Brasília. De acordo com a mulher, "o relacionamento sempre foi abusivo, permeado por violência psicológica e ofensas constantes". Ela afirmou à polícia que foi empurrada e teve o pescoço apertado após uma discussão.

Ao Estadão, o deputado negou ter agredido Ana Schuster e afirmou que ele é a vítima do ocorrido pois teria sido atacado pela ex-noiva. Segundo o parlamentar, "ela não aceitava o fim da relação". Ainda de acordo com ele, o relacionamento, iniciado em meados de março, havia acabado há cerca de um mês, mas ele permitiu que a mulher permanecesse no mesmo apartamento enquanto providenciava a mudança. "É falsa (a acusação de agressão). Eu fui agredido. Eu só segurei a pessoa" disse.

A denúncia foi registrada na Delegacia Especial de Atendimento à Mulher de Brasília, que encaminhou o caso ao 3º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. O juiz Carlos Fernando Fecchio dos Santos enquadrou Zé Trovão na Lei Maria da Penha e determinou, ainda no domingo, 19, uma série de medidas protetivas a favor da vítima, como a proibição aproximação e de contato por qualquer meio de comunicação.

De acordo com o depoimento de Ana Schuster, acessado pelo Estadão, a agressão ocorreu após ela entrar no quarto de Zé Trovão para pegar roupas. Os dois haviam rompido a relação e dormiam em quartos separados enquanto Ana procurava um imóvel para alugar.

O deputado teria empurrado e enforcado a mulher depois de dar início a uma discussão. "Vou acabar com você", teria dito Zé Trovão, de acordo com a denunciante.

A violência só cessou, segundo ela, quando o deputado ligou para a portaria do edifício funcional e solicitou que o Departamento de Polícia Legislativa expulsasse Ana do apartamento.

Ana Schuster afirmou em depoimento que essa não foi a primeira vez que Zé Trovão a agrediu. A vítima contou à Justiça que o parlamentar é "muito agressivo e costuma falar com tom de voz elevado com todas as pessoas com quem convive". Além disso, o deputado já a teria ameaçado de morte ao menos duas vezes com o uso de uma faca.

ZÉ TROVÃO ESPANCA A NOIVA E VIRA CASO DE POLÍClA. PGR PEDE PRlSÃO DE GAYER. VÃO PRA JAULA

30
Set23

As contribuições de portais de notícias na cobertura da descriminalização do aborto

Talis Andrade

Portais feministas e voltados a saúde têm sido exemplo de jornalismo que educa e ampara, fomentando debate sobre direitos reprodutivos e dignidade para mulheres, meninas e pessoas que gestam. Imagem: Fernando Frazão/Agência Brasil

por Tânia Giusti
objETHOS

Foi em 2013, na faculdade de jornalismo, a primeira vez que tive contato com os alarmantes números de mortes de mulheres, em decorrência de abortos realizados no país. Os dados divulgados, na época, pela Agência Pública davam conta que a cada dois dias uma brasileira pobre morria por aborto inseguro no Brasil.

Mais de dez anos depois, os números, infelizmente, continuam crescendo, sobretudo para mulheres negras e pobres. Não havíamos tido nenhum avanço no que se refere à legislação e à formulação de políticas públicas no assunto, até a última semana, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou a votação da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 que discute a descriminalização do aborto até a 12ª semana.

A presidente e ministra Rosa Weber, relatora do caso, foi quem iniciou a votação no plenário virtual.  A ação, apresentada pelo PSOL e pelo Instituto de Bioética (Anis), questiona trechos do Código Penal, de 1940, ou seja, quase após 80 anos. Com um discurso amparado nas recomendações internacionais da Organização Mundial da Saúde (OMS) e na Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), de 2021, realizada pelo Instituto Anis e diversos outros estudos científicos, a magistrada foi enfática: “a maternidade não há de derivar da coerção social fruto de falsa preferência da mulher, mas sim do exercício livre da sua autodeterminação na elaboração do projeto de vida”.

Esse é o primeiro movimento dos órgãos de justiça no Brasil, depois de quatro anos de obscurantismo do governo da morte de Jair Bolsonaro que tentou dificultar o acesso ao aborto, mesmo nos casos já garantidos por lei. Nos últimos anos, o Estado violentou meninas, crianças e mulheres dificultando o acesso ao procedimento em casos de estupro. 

A criminalização ao qual as mulheres são submetidas não impede que o procedimento ocorra, mas as leva a buscar a clandestinidade. De acordo com os dados da Gênero e Número, entre 2012 e 2022, 483 mulheres morreram por aborto em hospitais da rede pública de saúde do Brasil. Além disso, segundo dados da PNA, pelo menos uma em cada sete mulheres já interrompeu uma gestação no Brasil.

Débora Diniz, antropóloga, professora da Universidade de Brasília e uma das coordenadoras da PNA, comentou em live em seu perfil do Instagram o voto da ministra. “É um voto de uma mulher. É um voto que inaugura formas de falar sobre a interrupção voluntaria da gravidez. O voto cumpre com tudo que tem uma prescrição do que é um julgamento constitucional, mas ele também foi escrito para nós pessoas comuns, mulheres comuns, que precisamos ler e dizer: estamos falando de nós, depois de um hiato de silêncio. É um voto acessível”, avaliou.

Um jornalismo que acolhe, mas que também é perseguido

 

Imagem: Portal Catarinas

 

A decisão da ministra é histórica por uma série de fatores, e um deles se dá pelo dia 28 de setembro, quinta-feira, Dia de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto na América Latina e Caribe. Em alusão a data, o Portal feminista Catarinas, em parceria com a Revista AzMina e Gênero e Número, lançou uma série de reportagens chamada “Aborto é cuidado”, que aborda as consequências da descriminalização do aborto: como questões socioeconômicas, pesquisas, indicações de filmes e documentários sobre o assunto. Segundo os portais, o objetivo é “apontar para a necessidade do acolhimento a quem decide abortar, traçando uma linha entre cuidado e aborto”.

“Todo mundo ama alguém que já fez um aborto”, foi o tema do editorial lançado na última semana nos três veículos. São textos que educam, acolhem, esclarecem e que contribuem para fomentar o debate sobre direitos reprodutivos e dignidade para mulheres, meninas e pessoas que gestam.

Foi também o Portal Catarinas, junto do The Intercept Brasil, que deu visibilidade a uma menina de 11 anos que, vítima de estupro, teve seu direito violado ao acessar o abortamento. Tanto as jornalistas responsáveis pela cobertura, quanto médicos e advogadas foram alvos de perseguição e de uma CPI na Assembleia Legislativa de Santa Catarina. 

O Portal Dráuzio Varella, formado pela equipe do médico amplamente conhecido em todo o país, também trouxe alguns materiais didáticos, em forma de vídeo, esclarecendo os motivos de tratarmos o aborto como uma questão de saúde pública no país. Amparado em pesquisas, infográficos e numa linguagem acessível, o médico e sua equipe explicam o impacto em gastos na saúde pública, as causas de mortalidade, entre outros fatores relacionados ao aborto. 

Mariana Varella @marivarella

A editora-chefe do Portal Drauzio Varella, Mariana Varella, ao divulgar o material, cita a palavra coragem ao abordar a temática. Diferente do que vem fazendo a mídia tradicional, falar sobre o assunto como saúde pública desagrada e enfurece grupos que estão sempre a postos para levar o debate para fora da laicidade a qual está inserido.

A exemplo dos veículos citados acima, muitos outros coletivos também vêm noticiando o tema com ampla cobertura e muita responsabilidade. 

 

Coberturas focadas em saúde e direitos fundamentais

É de autoria do Portal Catarinas, em parceria com a Plataforma “Nem Presa Nem Morta”, o guia “Boas práticas de cobertura feminista sobre aborto no Brasil”. A publicação gratuita está disponível no site do Catarinas. O Guia é apoiado pelo Anis, Cladem, Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde e Coletivo Margarida Alves.

A diretora executiva do Portal Catarinas, Paula Guimarães, ressaltou no dia do lançamento do guia, ocorrido no dia na Liberdade de Imprensa que “nada mais oportuno do que tratar da cobertura do aborto no dia que evidencia a liberdade de imprensa. Por ser capturado pelo estigma, o assunto é constantemente interditado e alvo de desinformação”, falou.

O jornalismo que atua como vanguarda dos direitos das mulheres, é também uma ponte para estabelecer diálogos saudáveis com a opinião pública. Como também aprendido nos bancos escolares da universidade, o jornalismo deve ficar ao lado dos que não tem voz, e essa missão só é cumprida com maestria quando nos posicionamos diante de injustiças e em defesa das minorias. 

 
 
16
Jul23

MPF ajuíza ação contra “padrão estético” em escolas públicas militares

Talis Andrade
 
Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil
Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

 

06
Mai23

Volta pra África?

Talis Andrade

 

 (crédito: Caio Gomez)
(crédito: Caio Gomez)

 

por Gilmo França /Correio Braziliense

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Uma tática de guerra muito eficiente usada no passado consistia em mandar os soldados para o front e, em seguida, destruir os meios que poderiam ser usados numa possível retirada, sem um plano B. Ou seja, ou os soldados ganhavam a guerra, ou morriam por lá tentando. E o que isso tem a ver com a sociedade brasileira?

O país encontra-se em meio às desavenças ideológicas e, como consequência disso, intensificam-se cada vez mais as supostas separações com classificação obrigatória entre raças superior e inferior, num completo desconhecimento da realidade. Observa-se que um dos elementos usados nesse contexto de injustiças sociais é o destaque pejorativo dado aos diferentes tons de pele que compõem o nosso povo.

Com o implemento dessa guerra, o Brasil perde e sangra enquanto nação, pois seus filhos, hoje divididos e ofuscados pela discórdia usada como cortina de fumaça, assistem paralisados aos seus bens escoarem continente afora. Então, como parte da enganação, fomenta-se uma constante tensão e divisão social que extrapolam os limites do pensamento e se traduzem em perseguições culturais.

Com base nessa argumentação forçada, alguns maus brasileiros exibem com soberba a sua descendência de origem europeia e assemelhados. Em ato contínuo, eles menosprezam a origem econômica frágil da outra parte da população, chegando ao ápice dos insultos racistas, com um convite cínico para que ela retorne para a África. Esquecem, contudo, que este mesmo grupo foi desprovido de acesso direto à sua história, cultura e aos seus bens desde a retirada violenta e forçada da terra natal.

Salientando que o rapto coletivo desse povo teve o vil propósito de atender às demandas econômicas da época e, no caso em tela, com o fim de construir um país do nada — na visão colonial. E foi esse mesmo país que lhes negou até o direito de recuperarem a própria dignidade. Como se não bastassem os insultos ao longo dessa jornada, ainda atribuem às chamadas minorias, de forma cruel, o peso do subdesenvolvimento nacional. Ignoram, no entanto, e de forma deliberada, as inúmeras contribuições entregues pelas populações subalternizadas de forma voluntária e involuntária para o engrandecimento da nossa nação.

Direto ao ponto, então. Alguns líderes não pensam no Brasil como nação, mas como um buraco a ser explorado, usando o povo como instrumento manipulável. O que se vê em comum entre esses governantes é que agem como se estivessem aqui de passagem, sempre com segundos interesses, notadamente fora das nossas fronteiras.

Acontece que as retiradas de forma clandestina das nossas riquezas, com a transferência sorrateira e covarde para paraísos fiscais, é um dos verdadeiros motivos do nosso atraso econômico e cultural. Certamente, o grupo de maioria minorizada, a população negra e outras minorias são inocentes nesse quesito.

O fato é que por aqui temos um grupo de privilegiados pela herança recebida ao longo de séculos de desequilíbrio social. E, infelizmente, uma parcela considerável dessa mesma casta abusa do poder de simplesmente desaparecer para outro país. Alguns fazem isso usando a prerrogativa da dupla cidadania, que nada mais é que uma eficiente ferramenta para continuarem coletando riquezas aqui e levando para fora.

São invisíveis e intocáveis aos olhos de seus iguais. E, com a impunidade reiterada, deixam para trás irmãos de pátria minguando de fome e desespero. No retorno seguro para o seio dos seus distantes ancestrais no exterior, são recebidos por estranhos ávidos por desfrutarem de suas bagagens milionárias.

Então, se algum radical se sentir incomodado com a abertura social reclamada pelos grupos minorizados, ou por minorias em espaços de poder, é urgente que se respeite as manifestações culturais demonstradas por elas. Entendam seu passado e a sua luta de resistência a toda dominação e alienação imposta ao longo desses anos. O mínimo que se pede é tolerância e igualdade. Sobretudo, que não os mandem voltar para a África.

A maioria dos imigrantes contratados e pagos vieram para o Brasil e mantiveram suas expressões culturais, patrimônios e descendências preservadas. Isso é louvável e o correto de acontecer. Os escravizados, por sua vez, foram arrastados e mantiveram apenas parte de suas almas intactas. Para eles, não existiam nem existem meios para o retorno, uma vez que muito foi destruído há séculos na origem, ao menos como as conheceram seus ancestrais. A vontade de vencer é muito grande. E, especialmente para os afrodescendentes brasileiros, não existe plano B salvador. Ou aqui eles ganham a guerra contra a injustiça, ou morrerão tentando.

 

 
10
Jul22

‘PRECISAMOS DAR RESPOSTA POLÍTICA A GRUPOS QUE PREGAM EXTERMÍNIO’, DIZ PRESIDENTE DA PRIMEIRA CPI ANTIFASCISTA DO BRASIL

Talis Andrade
 
 

Câmara de Campinas abriu investigação após cidade registrar dois ataques nazifascistas em 15 dias, reflexo do crescimento da extrema direita no país

 

 

EM APENAS 15 DIAS, a maior cidade do interior brasileiro, Campinas, foi alvo de dois ataques nazifascistas, um tipo de violência que cresce no país encorajado pelo discurso de ódio da extrema direita e de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro.

Entre o final de abril e o começo de maio, o Instituto de Filosofia e Ciência Humanas da Unicamp foi pichado com símbolos nazistas e os trabalhadores e clientes de um bar próximo à universidade sofreram agressões físicas e insultos racistas. Um dos agressores chegou a atirar com arma de fogo, segundo testemunhas, e ostentava uma suástica.

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A repercussão dos ataques estimulou 22 dos 33 vereadores campineiros a criarem uma Comissão Parlamentar de Inquérito, batizada de CPI Antifascista. Ela foi instalada em 6 de junho.

“A gente está falando de grupos que pregam o extermínio, fazem ações violentas e têm crescido no Brasil. A gente precisa dar uma resposta política, achar o nexo entre as coisas”, me disse a vereadora Mariana Conti, do Psol, eleita presidente da CPI.

A comissão investiga as estruturas, membros, atuação dos grupos extremistas e, principalmente, se eles mantêm vínculos com partidos políticos e movimentos de extrema direita.

Em entrevista ao Intercept, a parlamentar avaliou que esses grupos saíram das sombras e se organizam em um movimento reacionário contra o avanço da representatividade de lideranças LGBTQIA+, feministas e negras.

“O bolsonarismo fez isso. Bolsonaro organizou isso, porque ele canaliza e organiza politicamente esse conjunto de grupos que têm diferentes formas de manifestação na extrema direita”, afirmou Conti.

A CPI deve se apoiar nos estudos da pesquisadora Adriana Dias, uma das principais especialistas no tema. Foi ela quem encontrou uma carta do então deputado Jair Bolsonaro replicada em um site nazista, como o Intercept revelou no ano passado.

Pelas regras da Câmara de Campinas, a CPI não tem poder de realizar quebras de sigilo ou determinar busca e apreensão. Por isso, irá buscar o apoio das polícias e do Ministério Público.

 

A gente sabe que existe essa tendência no Brasil [da violência], mas com o governo Bolsonaro isso tem respaldo institucional
 

Apesar de reconhecer que terá dificuldades devido à contaminação desses órgãos pelo bolsonarismo, Conti falou que mantém contato com policiais dispostos a apoiar a investigação e que estabelecerá uma relação institucional com as forças de segurança. A CPI é composta por sete vereadores e tem duração de 90 dias, que podem ser prorrogados por igual período.

No último dia 22 de junho, após a entrevista e na véspera da primeira audiência da CPI, um homem ligou para o gabinete da vereadora para ameaçar a parlamentar e suas auxiliares. Segundo ela, o agressor costuma frequentar a Câmara. Ela suspeita que ele tenha transtornos mentais e faça ameaças orientado por vereadores da extrema direita. Conti me disse que, por orientação de sua advogada, não revelaria o nome do agressor e dos parlamentares com que ele tem relação.

“Ele ligou no gabinete e fez as ameaças, falando que se não parasse de falar mal do Bolsonaro o bicho ia pegar para o meu lado”, disse a vereadora. Como esta mesma pessoa já ameaçou o gabinete de Conti, ela estuda quais medidas legais tomará.

 

Guilherme Mazieiro entrevista Mariana Conti

 

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“O movimento antivacina, organizado e orquestrado pelo governo Bolsonaro, serviu como elemento de organização da extrema direita”, afirmou Mariana Conti.

 

 

Intercept – A CPI foi criada para investigar grupos neonazistas e fascistas em Campinas, autores de ataques na Unicamp. O que significam esses atos?

Mariana Conti – Essas ações não são isoladas. Campinas tem um histórico de outras ações, de pichação no Taquaral [principal parque da cidade] de símbolos que remetem ao nazismo e fascismo, muitas vezes menos conhecidos. Essa é uma estratégia que os grupos têm adotado, ao invés da suástica, que é o símbolo mais conhecido. A gente já teve pichações na própria Unicamp, em 2018, na biblioteca do IEL [Instituto de Estudos de Linguagem].

As pesquisas da professora Adriana Dias têm mostrado e mapeado o aumento desses grupos. Para além disso, houve situações na Câmara. Durante uma manifestação antivacina [no ano passado], a gente viu cartazes com símbolos do QAnon, um grupo supremacista branco [dos Estados Unidos], racista. A gente sabe que o fascismo e nazismo tem esse conteúdo. É uma miríade de elementos que se organizam nesses grupos de extrema direita. Não são movimentos desorganizados. Eles têm ideologia, sentido, pauta. Isso é o que queremos averiguar, achar o nexo entre essas ações e as possíveis relações políticas que existem entre esses grupos e partidos e figuras da política campineira.

 

Por que os alvos são a Unicamp e locais próximos de uma das principais universidades do país?

O conteúdo desses grupos têm vários elementos, mas existem pontos em comum: o ataque à esquerda, o anticomunismo, o ataque a grupos sociais como os da negritude, os LGBTQIA+, as mulheres. Na universidade, onde houve um grande movimento para adotar cotas raciais, há um processo de popularização e diversificação da comunidade. Isso faz dela um alvo na medida em que se torna mais plural. O fato de a universidade ter movimento por cotas [para pessoas] trans diversifica o ambiente da universidade e traz grupos sociais que são marginalizados para o protagonismo. Isso incomoda grupos que, na verdade, pregam o extermínio de quem veem como inimigos: mulheres, pessoas LGBTQIA+, migrantes, imigrantes, negros, indígenas. Não é à toa que o ataque [a tiros] no Bar do Ademir, em frente à moradia estudantil, foi dirigido contra trabalhadores que atuam no bar e são imigrantes haitianos. Os relatos que temos é de que as pessoas [autoras dos ataques] imitaram macacos. São ataques racistas. É um movimento reacionário ao fato de que, graças ao processo de luta, de organização, a universidade está passando por um processo de diversificação e dando protagonismo a esses grupos sociais.

 

A Unicamp mostrou disposição em colaborar com a CPI? Os casos que aconteceram ali podem ser de autoria de alunos da própria universidade?

Uma das deliberações da CPI foi fazer uma conversa institucional com a reitoria e com a Comissão de Direitos Humanos da Unicamp. Pessoalmente, penso que a Unicamp precisa ser mais incisiva na posição que ela assume com relação a esses ataques. É bem possível que sejam de membros da comunidade universitária. Porque a gente sabe que ela é plural, tem uma série de posições políticas.

 

Vocês partem de uma lista de nomes de organizações suspeitas para começar este trabalho? 

A gente parte das pesquisas que já existem. Queremos chamar uma série de grupos para estarem com a gente, o movimento negro, dos terreiros, dos LGBTQIA+, grupos feministas, comunidades haitianas, nordestinas, ciganas. Queremos convidar, inclusive, a comunidade judaica.

 

A CPI vai se debruçar sobre o financiamento desses grupos de ódio?

Sim, e também como eles conseguem estar nas redes sociais, como acontece o recrutamento, quem são as pessoas recrutadas. E colaborar com as investigações que já existem no Ministério Público e na Polícia Civil.

 

Há limitações jurídicas e legais para a atuação da CPI. Por isso é importante o apoio das polícias e do Ministério Público, dois órgãos muito contaminados pelo bolsonarismo. Vocês já tiveram contato com essas autoridades? Há dificuldades ou ajuda?

Uma CPI municipal não tem o poder de fazer quebra de sigilo telefônico e de sigilo bancário. Isso dificulta o trabalho, porque vai exigir que pensemos estratégias de atuação. Ao mesmo tempo, se tivéssemos esse poder, penso que seria muito difícil aprovar uma CPI com esse caráter. Tanto que é inédito, não vi outro lugar em que tenha sido instalada uma CPI para investigar grupos fascistas, embora a gente saiba que [casos] acontecem no Brasil inteiro.

 

Mas que tipo de apoio vocês esperam das polícias e do Ministério Público?

A gente sabe que houve uma grande contaminação das forças de segurança em geral pela ideologia da extrema direita. O bolsonarismo fez isso. Bolsonaro canaliza e organiza politicamente esse conjunto de grupos que têm diferentes formas de manifestação na extrema direita. A gente sabe que existe essa tendência no Brasil [da violência], mas com o governo Bolsonaro isso tem respaldo institucional.

 

Isso pode ser uma dificuldade para CPI?

Pode, com certeza. Mas conhecemos e temos relações com grupos de policiais antifascistas. E é claro que policiais que discordam dessa abordagem, que questionam, se incomodam com essa ação de violência, estão em uma posição defensiva internamente na corporação. Existem perseguições e uma série de coisas que acontecem dentro das corporações. Vamos ter que elaborar uma estratégia de fazer uma relação institucional com a Polícia Civil, vamos procurar o delegado responsável pelos casos, fazer uma visita institucional. A extrema direita não é uma unanimidade. A polícia que mais mata é também a que mais morre no mundo.

 

Para fazer a CPI, vocês conseguiram a assinatura de 22 dos 33 vereadores campineiros. Por que um terço deles não assinou o requerimento?

Muitas vezes não tem justificativa, né? Teve um argumento de que vereador não é investigador de polícia. A manifestação pública que aconteceu contra a CPI foi de um vereador, o Marcelo Silva, que é declaradamente bolsonarista. Ele falou que era uma propaganda da esquerda.

É curioso que ele [o vereador Marcelo] é de origem judaica. Usou isso como argumento, como se só ele tivesse legitimidade para fazer algo. A professora Adriana Dias, que também é de descendência judaica, já explicou que esse argumento é usado como forma de se legitimar.

 

A extrema direita é o ponto do espectro político em que fascistas e neonazistas se encaixam. Em Campinas, há uma representação muito forte da extrema direita, principalmente com a família Santini, que tem um secretário [do Ministério da Justiça] em Brasília e tinha um vereador na cidade. Esses grupos de extrema direita ligados ao bolsonarismo trabalharam contra a criação da CPI?

Os vereadores declaradamente bolsonaristas não assinaram a CPI. São três: Major Jaime [do Progressistas], Marcelo Silva e Nelson Hossri [ambos do PSD]. E o Marcelo falou contra a CPI na tribuna. Mas foi curioso, um acaso, que no dia em que o requerimento da CPI foi lido, havia um ato organizado pelos bolsonaristas contra o passaporte sanitário. A esquerda foi xingada. Eles estavam raivosos, protestaram, xingaram, mas a CPI foi instalada.

A gente vê que o movimento antivacina, organizado e orquestrado pelo governo Bolsonaro, serviu como elemento de organização da extrema direita. E isso que precisamos identificar: existe vínculo entre grupos que estão cometendo violência fascistas, usando símbolos nazistas, com esses grupos? Estão se organizando politicamente para disputar pautas na cidade? Existe vínculo? Qual é?

 

Com a extrema direita é dado que esses grupos são identificados, mas com grupos políticos mais tradicionais, conservadores, já é possível identificar ligações? 

São hipóteses, isso que a gente quer verificar.

 

As hipóteses levam a esses grupos conservadores, bolsonaristas? 

A gente parte do mapeamento que a professora Adriana Dias colocou. E ela mesma disse, em uma entrevista ao Intercept, que encontrou um site de cunho neofascista que tinha um banner para o site do Bolsonaro. O que acho surpreendente é como essas questões são tratadas como menores, não é dada a devida importância para esses fatos da política, das instituições. Um dos motivos pelo qual pedi a abertura dessa CPI é porque incomoda muito que você não tenha respostas políticas. A gente está falando de grupos que pregam extermínio, fazem ações violentas e têm crescido no Brasil. As aproximações deles com grupos políticos organizados, com canais legais, está aí. A gente precisa dar uma resposta política, achar o nexo entre as coisas. As instituições não respondem, esse silêncio é muito grave.

Vai ser um desafio a gente caminhar nesse sentido. Com as limitações legais que tem uma CPI municipal, com as resistências que existem, ameaças e intimidações.

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Em Campinas, está a Escola de Cadetes do Exército, onde Bolsonaro estudou por algum tempo e boa parte dos militares estudam antes de ir à Academia das Agulhas Negras. De alguma maneira a CPI tem interesse em olhar para o Exército? Vai procurar ouvir a Escola de Cadetes?

É uma hipótese, não havíamos pensado nisso ainda. Mas é uma possibilidade. A gente sabe que no Exército há núcleos de extrema direita. O próprio Bolsonaro é de um grupo que não queria o fim da ditadura, que atuou contra a transição, a anistia, faz saudações à tortura, a torturadores. A gente sabe que ali é vespeiro. Vamos ver o que a gente consegue.

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27
Mai22

Policiais rodoviários repetiram método nazista para matar Genivaldo

Talis Andrade

www.brasil247.com -

 

A mesma prática - a de matar pessoas por asfixia com gases venenosos no interior de veículos -, foi usada pelos nazistas desde 1939

 

por Denise Assis

As cenas que chocaram o país, exibindo ao vivo a morte de Genivaldo de Jesus Santos, de 38 anos, após abordagem de policiais rodoviários federais, no município de Umbaúba, no sul de Sergipe, são o máximo da brutalidade, mas não são novidade. A mesma prática - a de matar pessoas por asfixia com gases venenosos no interior de veículos -, foi usada pelos nazistas desde 1939, para eliminar judeus nas cidades pequenas do interior da Alemanha, de acordo com o portal Enciclopédia do Holocausto.

 São cenas que não se descolam da retina. São cenas de mais um homem negro morrendo ao vivo. De barriga para cima, batendo os pés, enquanto um spray é acionado em sua direção, pelos dois policiais - sem desrespeito a ele ou à família, foi apenas uma imagem que me veio à mente -, o transformaram em uma espécie de “inseto”. Os policiais o trancaram em seguida na caçapa do camburão, inalando a nuvem tóxica, exatamente como fazemos ao dispensarmos uma barata, trancada na lata do lixo, ainda nos estertores da morte.  

A dupla “da lei” não se intimidou com a presença do sobrinho - mesmo alertada de que ele era portador de transtornos mentais - ou de dezenas de testemunhas e de celulares vigilantes. Continuaram a execução, compenetrados na “função” de matar. Vida negra, ordinária, improdutiva.

“Eu estava próximo e vi tudo. Informei aos agentes que o meu tio tinha transtorno mental. Eles pediram para que ele levantasse as mãos e encontraram no bolso dele cartelas de medicamentos. Meu tio ficou nervoso e perguntou o que tinha feito. Eu pedi que ele se acalmasse e que me ouvisse”, contou.

Como em todas as vezes, em todos os casos, os superiores dos dois policiais - ou podemos já chamá-los de assassinos? – vêm a público anunciar ao “distinto público” que ambos estão afastados das ruas. Genivaldo está afastado para sempre do convívio da família. E, sabemos todos, a “ação” criminosa não vai dar em nada. Em tempos de “revival” do nazismo, agentes policiais estão à serviço do poder central, no trabalho de eliminação dos que incomodam, dos que “sobram”, dos que estão nas bordas do Estado.

O sobrinho de Genivaldo, Wallyson de Jesus, contou que o tio foi abordado por agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF), enquanto pilotava uma motocicleta, e reagiu. Chegou a ser levado a um hospital, mas já chegou sem vida. Morreu na “câmara de gás” improvisada no interior do camburão, exatamente como faziam as diligências nazistas.

Quantas vezes vocês já leram e vão ler o desfecho da notícia dessas mortes, com os seguintes termos: “a Polícia Federal investiga o caso”? Mais protocolar impossível. Porém, uma perda de um familiar não cabe em protocolos. Ainda mais num contexto de tamanha violência. Seus crimes: “desobediência e resistência à prisão”. Para quem cometeu durante anos o crime de “rachadinha”, tudo! Para Genivaldo uma nuvem de spray tóxico. A pena de morte imediata.

Foi no ano de 1939, quando já se preparavam para as operações de assassinato em massa, que os nazistas iniciaram experimentos com gases venenosos em doentes mentais (“euthanasia”). Tratava-se de um eufemismo usado por eles, os nazistas, para o morticínio. A eliminação sistemática daqueles alemães que os nazistas consideravam "indignos de viver", por portarem alguma deficiência física ou mental.  

A “limpeza étnica” começou com seis instalações, início do projeto de mortandade por gás, criadas como parte do Programa de Eutanásia: Bernburg, Brandenburg, Grafeneck, Hadamar, Hartheim e Sonnenstein. Estes campos de extermínio utilizavam o monóxido de carbono em sua forma pura, produzido quimicamente.

Com a invasão da Alemanha à União Soviética, em junho de 1941, e das atividades de fuzilamento em massa de civis, levadas a cabo pelas unidades móveis de extermínio (Einsatzgruppe), os nazistas começaram os experimentos com asfixia por gás nas chamadas “vans de gás”. Estes veículos eram caminhões hermeticamente fechados com o cano de escapamento voltado para o compartimento interior. Um método econômico.

O uso do gás foi iniciado após os membros dos Einsatzgruppen reclamarem da fadiga que sentiam ao atirar em enormes grupos de mulheres e crianças. Some-se a isto o fato de que o gás era um método mais econômico. Naquele mesmo ano, os nazistas criaram o campo de Chelmno, na Polônia, e lá judeus e ciganos da sub-etnia Roma, que viviam na área de Lodz, naquele país, foram mortos em “vans de gás”.

Os Einsatzgruppen (unidades móveis de extermínio) assassinaram centenas de milhares de pessoas nas operações de asfixia por gás, a maioria deles judeus, ciganos Roma, e deficientes mentais. Em 1941, a liderança das SS chegou à conclusão de que deportar os judeus para os campos de extermínio (para serem envenenados por gás) era o método mais eficaz para alcançar rapidamente a "Solução Final".

Auschwitz: libertação do campo de concentração nazista completa 77 anos

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25
Mai22

Sobe para 25 o número de mortos chacina do Complexo da Penha; há 7 pessoas feridas

Talis Andrade

 

 

 

 

 

 

Foto: ReproduçãoTiroteio na Vila CruzeiroFoto: Reprodução

 
Desde às 5h da manhã de hoje (24), BOPE e PRF realizam incursão repleta de relatos de abuso de poder e letalidade. Os agentes  policiais invadiram a Vila do Cruzeiro gritando “todo mundo vai morrer”
 
 
05
Abr22

O chicote do racismo

Talis Andrade

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Por Jean Paul d’Antony /A Terra É Redonda

Um novo tipo de chicote resvala, dia após dia, no pós colonialismo, nos corpos dos novos sujeitos pós coloniais

Todos os dias negros ou pretos. Esperem, por favor, um segundo.  É complicado escolher a expressão linguística adequada porque todas parecem nos empurrar para a armadilha do racismo estrutural, para uma representação desse preconceito que pode ser socio-culturalmente mais ou menos aceitável. Talvez a ressignificação simbólica desses léxicos, em suas constituições identitárias, seja bem mais importante do que a sua escolha.  Comecemos assim, todos os dias pessoas negras, nessa chamada civilização pós-moderna, são perseguidas e violentadas em seus direitos, em sua moral, em sua dignidade, em seu direito de ser, e o dito estado democrático de direito usurpa suas existências com o argumento de ataque a uma criminalidade que, na maioria esmagadora das vezes, é instrumento de um projeto maior de eugenia herdado do estado escravocrata. O que aconteceu com o George Floyd é o reflexo, o exemplo de milhares no mundo, como aqui no Brasil todos os dias.

Do 18 de dezembro de 1865, quando os Estados Unidos abolem a escravidão através da 13ª Emenda da Constituição, ao 13 de Maio de 1888 aqui no Brasil,  onde a Lei Áurea não passou de um dispositivo legal para injetar mão de obra no Mercado, deixando sérias questões sobre a suposta ação humanista e suas consequências, o racismo estrutural vem sendo incorporado e instrumentalizado através de diversas teias modernizadas de práticas e representações coloniais que invadem a noção de corpo e poder identitário de cada uma dessas nações e suas singularidades. Toda apresentação de violência, de subjugação do outro, de desumanização, é diferente e reinventada a partir das necessidades de cada espaço de poder. É assim nos EUA bem como no Brasil.

E assim, um novo tipo de chicote resvala, dia após dia, no pós colonialismo, nos corpos dos novos sujeitos pós coloniais.

As colônias estão presentes, o estigma da colonização se apresenta estampada em todas as calçadas, no reflexo das vitrines, nas câmeras dos shoppings, em cada corpo negro estendido pela impunidade das histórias apagadas dos que foram violentados e vencidos, e tiveram que se adaptar à fantasia de um mundo novo cuja narrativa era de liberdade e igualdade. Os senhores das terras hoje são chamados de empresários e muitos estão inseridos na política, agindo com mãos, que não são invisíveis, têm nomes e digitais, em prol da manutenção de um racismo estrutural que não recua, só avança visivelmente e incorporado, continuamente, no ethos de diversos slogans.

Ora, ocorre que, na maioria das vezes, a manutenção da violência racista é instrumentalizada a partir da indústria de consumo a fim de anestesiar o esclarecimento, os sentidos, a razão crítica e o sentimento de escravidão pulsante em muitas esquinas, em muitos pescoços, em muitos cassetetes,  dentro de muitas casas invadidas, em muitas balas que se dizem perdidas e em muitos espaços de fala, criando uma estufa que abafa os gritos, alimenta o esquecimento, as mutilações na alma e as mortes. O isolamento de classes, de gênero e de raça sempre esteve presente, com o cenário da Covid-19 este isolamento se desvelou mais violento. Até quando a manutenção dessa distopia será avaliada apenas de janelas, lentes, músicas e somente por palavras de “desculpa” (quando essas ainda se apresentam)? A distopia do racismo é um câncer que atravessa a ancestralidade, deve ser isolada, extinta, a fim de promover uma sociedade onde os espaços das diferenças sejam compartilhados, não divididos, não mais categorizados. Os espaços das diferenças devem ser vividos a fim de se compartilharem experiências/existências, não como demarcação de histórias e memórias que subjugam outras, sem demarcações. Não falo aqui de homogeneização, falo de respeito, viver-com, existir-com.

A história dos vencedores continua a operacionalizando o discurso onde políticas de inclusão são oferecidas à população como políticas do pão e do circo, como um simples e difícil favor, apagando o direito da resistência e o direito histórico-político-existencial da inclusão. George Floyd e o João Pedro, e muitos Georges e muitos Joãos, como o menino Miguel Otávio, não são números de uma tanatos-política, da necro-política de muitas nações, são resultados de genocídios dilatados como gotas de ácido e sangue nos olhos e na pele dos negros e de todos os grupos isolados de direitos e de voz que são alvos dessas ações todos os dias. Séculos de Asfixia.

O pulso ainda pulsa, o pulso ainda pulsa, o pulso ainda pulsa, e em cada gota de ácido, e em cada gota de sangue, uma avalanche pulsante de pessoas tomará as ruas gritando e buscando espaço de paz na história corrente. Avalanche versus Paz, contraditório? Não! A poética do desespero, a poética de vozes emudecidas que já transbordou. O que escorre é dor, e que esta dor se torne a flecha que rasgará (de uma vez por todas, constantemente no ar, sem cair, como um Arauto) o movimento daqueles que teimam em fragmentar e subjugar a humanidade a partir de seus preconceitos. Não deveria ser assim, mas infelizmente a morte (não! os assassinatos!) também desperta a fúria da resistência. A resistência deve pulsar sempre, vigilante, e não gritar apenas a cada direito e cada vida sufocada. Talvez assim, muito talvez, resta acreditar que a dor que toma hoje as ruas dos EUA e do mundo seja a janela de uma nova humanidade. Em verdade, a memória mostra que muitas dessas ações ficaram na história, mas não ficaram esquecidas, se tornaram a pólvora que navega pelo ar explodindo, alimentando a caminhada. Que seja! Então, não basta apenas acreditar. Contrariando o isolamento e a distância, como diz a canção de Geraldo Vandré, “Pra Não Dizer Que Não Falei De Flores”, “Caminhando e cantando / E seguindo a canção / Somos todos iguais / Braços dados ou não / Nas escolas, nas ruas / Campos, construções / Caminhando e cantando (…), a referência aqui é um clamor da voz de resistência e união, pois as máscaras nas ruas sufocam menos que um joelho no pescoço ou uma bala no peito. Contra a morte causada pela asfixia do covid-19. Contra a morte causada pela asfixia do racismo. Que doença mata mais?

O racismo sempre intenta desfigurar a identidade de sua vítima a fim de subjugá-la e tornar sua existência uma ninharia diante da agressão, bem como tornar a agressão uma ninharia com o propósito de não justificar a aplicação da justiça. O que a agressão não leva em conta é que todo ser humano é uma casa que abriga diversas identidades. Essa casa é seu corpo onde habitam a biblioteca de suas histórias, memórias, lembranças e, como tal, deve ser respeitada. Não se invade a casa do outro, sua privacidade, porque todo tipo de invasão é uma violência, portanto, um crime.

É imperativo que não deixemos a cargo do tempo a transparência da negação ao racismo em todos os espaços. O tempo mostrou-se anódino, alimentando a conivência daqueles que deixam a seu encargo o apagamento da violência racista. Equivoca-se quem usa essa premissa. O racismo é a estética da crueldade, cujas narrativas não são ficções sobre as quais podemos nos debruçar com a pulsão de prazer da leitura. O racismo é uma herança doentia, um cancro que vem se alastrando dos porões dos navios negreiros até os espaços luminosos dos grandes boulevards desse novo século e exposto em cada reflexo de vitrine, bem como em cada promessa da indústria de consumo e seu bio-poder para regulação de uma falsa ascensão social, de um reflexo tosco e fosco de liberdade e de reconhecimento identitário, vestindo os corpos e as consciências, muitas vezes esvaziados de esclarecimento, a fim de servir a uma estética esbranquiçada para a da aceitação de si e do outro opressor. Todo o opressor é, ciente ou não do seu espaço e do seu papel perante o oprimido, educado ou domesticado também por uma cultura pós-colonial, herdeiro de novos nichos e métodos do racismo e sua história de galhos espaçados, que devem ser contemplados e problematizados para que nunca a vigilância baixe a guarda ou sente-se de boca escancarada aguardando o efêmero anestesiar do amplo direito existencial. Que a avance a avalanche, que o chicote não mais estale, ou a orquestra estridente e irônica continuará apenas se alimentando de uma multidão, cujo som do açoite perdura dia a dia, noite adentro, e muitas vozes que foram silenciadas continuarão gritando sem serem ouvidas: “Senhor Deus dos desgraçados! / Dizei-me vós, Senhor Deus! / Se é loucura… se é verdade / Tanto horror perante os céus?!.Image

Esse nó no peito que precisa ser partilhado… – A Tal Mineira

21
Fev22

Paris: Memorial do Holocausto expõe o inferno dos homossexuais na Europa nazista

Talis Andrade

triangulo rosa.png



O triângulo rosa era um dos símbolos usados pelos nazistas para identificar homossexuais e lésbicas nos campos de concentração.
 © don de Wilhelm A_ Kroepfl_

 

A diretora de atividades culturais do Memorial do Holocausto de Paris, Sophie Nagiscarde, lembra que os homossexuais e lésbicas faziam parte do grupo dos chamados "degenerados", perseguidos intensamente pela ideologia nazista. "Já havia alguns anos que queríamos abordar essa temática, sobretudo porque trabalhamos com o Holocausto, que é a nosso principal foco de estudo. Mas entender como e por que chegamos ao Holocausto é também compreender a ideologia nazista", resume Nagiscarde.

"No centro da ideologia nazista, os judeus são evidentemente a primeira obsessão racial, em particular de Adolf Hitler, mas existem outras vítimas de primeira hora como os portadores de deficiência e os homossexuais", lembra a diretora. 

No entanto, Sophie Nagiscarde sublinha que homossexuais e lésbicas já eram perseguidos muito antes do advento do Nazismo. "Os homossexuais já eram visados pela lei antes da chegada do regime nazista ao poder na Alemanha porque desde 1871 o Código Penal alemão reprimia a homossexualidade através do famoso parágrafo 175", considera. 

"Mais foi verdadeiramente durante o período nazista que vimos uma aceleração das perseguições extremamente significativa, perseguições que continuaram depois da guerra, uma vez que esse parágrafo 175 só foi abolido na República Democrática Alemã depois de Maio de 68, e em 1969 no leste da Alemanha", diz.

Para a diretora do Memorial do Holocausto, é interessante notar também as reações poderosas ao nazismo demonstradas pelas personalidades da época. "O que achei particularmente interessante foi o surgimento, a partir do fim do século 19, início do século 20, das primeiras associações em defesa dos direitos dos homossexuais que irão, naturalmente, tentar acabar com o parágrafo 175, com a participação de uma personalidade famosa como Magnus Hirschfeld, diretor do Instituto de Sexologia que existia na época em Berlim, mas também através da arte, do espetáculo, conhecemos, por exemplo, toda a militância dos artistas do Cabaré berlinense; havia um aumento da visibilidade homossexual, mas que continuava, é claro, marginal, porque a sociedade continuava hostil em sua maioria", detalha.

Do triângulo rosa invertido dos campos de concentração nazistas ao triângulo rosa do Orgulho Gay, presente em grupos históricos de resistência e luta homossexual, como o Act Up [da luta contra a AIDS nos anos 1980 e pela visibilidade LGBTIQ+], a exposição mostra também a transformação do símbolo nazista em imagem de resistência.

"Vimos na Alemanha do pós-guerra que a homossexualidade continuou a ser perseguida, o que significa que se poderia ir para a prisão, mesmo que não se tratasse mais de um campo de concentração. Demoramos enquanto sociedade quase 100 anos para mudar isso", diz Nagiscarde.

"Somente nos anos 1960 e 70 conseguimos mudar a lei, sendo que, na França, mesmo se a homossexualidade era descriminalizada desde 1791, mas havia um parágrafo incluído durante o período da Ocupação nazista que aumentava para 21 anos a idade da maioridade sexual entre pessoas do mesmo sexo. As associações francesas lutaram para retirar esse parágrafo da lei, o que finalmente aconteceu em 1982", lembra a diretora.

"Me marcou também essa ambiguidade sexual das imagens homoeróticas produzidas por gente como Leni Riefenstahl, e esses grupos masculinos como os da Juventude Hitlerista, e também a presença de homossexuais notórios dentro das tropas nazistas", destaca a programadora. "Acho muito interessante também o fato de que, na ideologia racial ariana, de um povo eleito, ser homossexual ou lésbica não entrava nos planos do regime nazista. O homossexual era considerado degenerado de um ponto de vista médico da raça ariana", aponta.

15
Fev22

Com ministro Schietti e promotor Zílio, digo: Precisamos falar sobre o MP

Talis Andrade

augusto aras.jpg

 

Por Lenio Luiz Streck

 

1. Min. Schietti pede que MP pare de ser "despachante" e promotor Zílio denuncia punitivismo medieval que matou seu irmão

Falarei, hoje, de questões institucionais. Do MP. De Castor a Dallagnoll (e a famosa fundação abortada pelo STF), passando pela investigação do TCU sobre as diárias, até a procuradora-que-virou-comentarista política em rede de TV negacionista.

O que está acontecendo com o Ministério Público? Em São Paulo, o MP é condenado por ação temerária em improbidade (pior: parece que perdeu o prazo do recurso). Bom, cada advogado por certo tem história(s) para contar — por exemplo, sobre denúncias criminais irresponsáveis (lembremos do caso Michel Temer). E o caso Beto Richa e Ricardo Coutinho.

Mas alguém poderia objetar, dizendo: são casos isolados. OK, deixemos de lado, então, esses casos. Fiquemos no plano do simbólico.

Para tal, peguemos o recente julgamento relatado pelo Ministro Rogério Schietti, ex-integrante do MP. Em um Habeas Corpus, na corte, Schietti fez um apelo ao Ministério Público de São Paulo para que seus membros deixem de atuar como meros "despachantes criminais", ocupados em simplesmente pleitear o emprego do rigor penal. Grave, pois não?

E, em contundente e emocionante artigo, o promotor do Paraná, Jacson Zílio, denuncia a morte de seu irmão, em episódio parecido com o do reitor Cancellier. Zílio diz que "o poder punitivo medieval parece sobreviver na atitude de promotores vingativos e de juízes açodados ou dóceis". O texto do promotor Zílio é autoexplicativo. Só isso já demandaria uma reunião nacional do MP.

Volto ao caso denunciado por Schietti, em que o órgão ministerial apelou de uma sentença que havia desclassificado a conduta de um homem flagrado com 1,54 grama de cocaína e R$ 64 no bolso. Nem ele e nem eu digo que não se deve punir. O furo é bem mais embaixo.

Há milhares desse tipo de caso. Em um deles, vindo de MG, houve recurso por causa de um projetil usado como pingente, questão que chegou ao STF. Na ocasião, escrevi "Na ânsia de condenar, MPF usa inversão do ônus da prova" (ver aqui). Veja-se também o HC 197.164 —STF. Sem esquecer do caso de Janaina, mulher pobre, em situação de rua, com filhos. Por isso um membro do Ministério Público entendeu que ela deveria ser esterilizada, em uma espécie de eugenia tupiniquim.

E o que dizer do assustador manifesto contra a bandidolatria (sic), não contestado pelas cúpulas da Instituição? E como esquecer que o MP embarcou — e protagonizou, escandalosamente — (n)o famoso pacote das dez medidas que propunha — pasmem — prova ilícita de boa fé e fragilizava o habeas corpus? E o que dizer de Janot-enquanto-houver-bambu-vai flecha?

Além disso, a PGR Raquel Dodge não defendeu o STF quando este sofreu ataques, fazendo com que a Corte lançasse mão do Regimento Interno. E, agora, o PGR Augusto Aras perde a oportunidade de defender a Instituição STF dos ataques do presidente da República. Atenção: além de tudo, o MP, pela Constituição, é o guardião do Estado Democrático de Direito.

Pequenas coisas...grandes consequências. Por exemplo, houve alguma reação institucional do MP nacional quando um procurador da república sustentou prisão preventiva com a pérola passarinho na gaiola canta melhor? Na verdade, o agente recebeu aplausos... Qual é o limite da independência funcional?

Como podem ver, sou testemunha da história. Escrevi sobre tudo isso ao longo dos últimos trinta anos.

 

2. E o ministro tocou na ferida...

Qual é, efetivamente, o papel do Ministério Público na nossa democracia? Essa é a ferida narcísica da Instituição. Mas parece que ninguém — ou muito poucos — querem falar disso.

Fui membro por quase três décadas. Tentei várias vezes discutir algumas questões: uma, o próprio papel da instituição, que, para mim, deveria agir como uma magistratura, de forma isenta, sem ser perseguidor implacável, ignorando nulidades e outras garantias a favor da defesa (fui candidato a PGJ — minha tese principal era essa!). Mais contemporaneamente, isso fez com que eu capitaneasse o projeto Anastasia-Streck, que pretende introduzir no CPP, mutatis mutandis, o artigo 54 do Estatuto de Roma (ou o artigo 160 do CPP alemão — ou a doutrina Brady, se quiserem). Gestão da prova — eis o ponto.

A segunda questão diz respeito ao MP de segundo grau. Nisso reside o apelo e a crítica do ministro Schietti, que bem conhece o assunto, bastando ler livros e artigos do ministro sobre isso (ler aqui). Para registro, já em 2003 Schietti, no seu livro Garantias processuais nos recursos criminais, abordava essa relevante questão, chamando-a de "objetividade da atuação do MP". Para tanto, cita o art. 358 do Código de Processo da Itália (1988), que impõe ao Ministério Público, na fase das investigações preliminares ao juízo, o dever de desenvolver também o esclarecimento de fatos e circunstâncias "a favore della persona sottoposta alle indagine". Vale dizer, atua, desde aquela fase, com o propósito de obter justiça e não apenas de recolher dados instrutórios contrários aos interesses do imputado. Isso se repete no art. 53º do Código de Processo Penal de Portugal (alterado pela lei 59/98).

E Schietti é definitivo ao lembrar o art. 7º do Estatuto Orgánico del Ministero Fiscal de Espanha, que reza que "por el principio de imparcialidad el Ministerio Fiscal actuará con plena objectividad e independencia en defesa de los intereses que le estén encomendados".

Poderia parar por aqui. O "precisamos falar sobre o MP" já teria material suficiente. Mas seguirei, por zelo republicano.

Uma rápida busca nos acórdãos dos tribunais da República mostra que o parecer do MP de segundo grau é referido, via de regra, brevemente como "o MP opinou pelo provimento do apelo do MP" ou "Opinou desfavoravelmente ao apelo da defesa". Sequer, na grande maioria, fica-se sabendo o nome do procurador. Mais: o que disse, afinal, o membro do MP de segundo grau no seu parecer? O acórdão — documento oficial que retrata a história do julgamento — não menciona. Rarissimamente menciona (há uma pesquisa em andamento; os dados estão sendo compilados — meu registro, aqui, é decorrente de amostragem; interessante é que, em dois estados, na amostragem, viu-se 100% de pareceres contra o apelo do réu; evidentemente que os dados devem ser checados e analisados).

Ora, um agente do MP tem as mesmas garantias da magistratura. É uma espécie de magistrado. Mas indago: Seu papel é — e aí entra a crítica de Schietti — o de ser despachante (sic) do que disse o MP de primeiro grau? Ou de fazer recursos para o STJ e STF como se fosse um "promotor público"?

Meu levantamento mostra que urge que o MP converse, institucionalmente, com o PJ para que as manifestações de segundo grau sejam melhor explicitados nos acórdãos — até para que se tenha uma accountabillity.

Abrindo acórdãos do TJ-MG, por exemplo, o que mais se vê é "Instada a se manifestar, a douta Procuradoria de Justiça opinou pela denegação da ordem". Na Justiça Militar de MG: "O e. Procurador de Justiça ofertou o seu parecer às fls. 64/64v, pugnando pelo não provimento do presente recurso". Quem ler o acordão, perguntará: "E...?"

Veja-se que até nos concursos públicos para o MP se constata aquilo que Schietti critica, valendo lembrar o caso de Minas Gerais em que o concurso claramente incentivava a desobediência à jurisprudência garantista do STF e STJ (ver aqui).1

Vejam: estou falando do Ministério Púbico, instituição que detém parcela da soberania do Estado; seus membros possuem as mesmíssimas garantias da magistratura. Isso consta na CF por alguma razão, pois não?

Observe-se: os PGJs e o PGR têm a palavra final sobre ações penais. Parcela de soberania estatal! Por isso, o MP deveria agir como uma magistratura, sem fazer agir estratégico e agindo com imparcialidade. O ministro Schietti, que já esteve lá, sabe que o MP não vem agindo como uma magistratura. Já mostrei isso acima. O promotor Zílio Jacson vai na mesma linha.

Portanto, imitando aqui Lionel Schriver em seu best seller (Precisamos Falar sobre Kevin), precisamos falar sobre o Ministério Público. Como Procurador de Justiça que fui por décadas, os processos recebiam, de mim, um minucioso exame — chamava a isso de "espiolhamento processual" — buscando fazer com que a verdade processual viesse à tona, seja de que lado fosse. Esse é o ponto: seja de que lado fosse.

O que desejo registrar é que dificilmente um parecer de minha lavra não trazia questões preliminares — grande parte deles, por necessidade do due process of law, favoráveis à defesa, composta de réus pobres e muitas vezes defendidos precariamente nos confins do Direito. Vejam que, no primeiro grau, nem havia defensor público quando fui promotor. Eram professores estaduais, com formação jurídica, que faziam esse papel dativo. E, como procurador, a Defensoria, nos primeiros anos, ainda engatinhava. Imaginem como chegavam os processos no segundo grau...

Sem querer fazer autobiografia, lembro que, agindo como um magistrado, dificilmente algum processo escapava ileso do meu espiolhamento processual. Estatísticas internas de meu gabinete davam conta de que entre 70 e 80% dos processos sofriam alteração no órgão fracionário do Tribunal, exatamente na linha sustentada por mim. Das mínimas questões como ilicitude da prova até o esgrimir de novas teses constitucionais, fazendo o que denominei, desde os primórdios da Constituição, de "superação da baixa constitucionalidade imperante na dogmática penal e processual penal".

Para além disso, em termos de inovações, fui o primeiro a aplicar isonomicamente a lei da sonegação de tributos para casos de furto sem prejuízo (já tratei disso em coluna). Fui também o primeiro a aplicar o favor legis da lei da sonegação para o estelionato (íntegra aqui). Também fui o primeiro a defender a tese da aplicação da reincidência em sua relação com o princípio da secularização, a partir de Ferrajoli.

Nulidades arguidas a favor da defesa podem ser vistas, entre centenas de processos, como o de n. apelacao-crime-acr-70045600350 (ver aqui). Ou aqui. Ou a tese sobre o concurso do roubo aplicado ao furto (ler aqui). Fomos derrotados, depois, no STJ, face a recursos manejados pelo Ministério Público.

Aliás, essa é outra questão sobre a qual deveríamos falar: se um Procurador sustenta a absolvição de um réu no segundo grau e obtém êxito, pode o MP recorrer dele mesmo?

Há casos emblemáticos em que antecipei uma discussão que somente foi enfrentada pelo legislador anos depois. Explico. Antes mesmo de ser aprovada a Lei 10.792!03, que tornou obrigatória a presença de advogado no interrogatório, levantei, com o apoio da 5ª. Câmara Criminal do TJ-RS, a tese da aplicação constitucional do princípio acusatório pela qual eram nulos os interrogatórios sem a presença de advogado. Fiz, no mínimo, mais de 150 pareceres (ver nesse sentido, meu Verdade e Consenso, 6ª ed).

De novo, não se trata de autobiografia, mas, sim, de trazer elementos objetivos para demonstrar qual, na minha concepção — e com certeza, de muitos membros do MP e, como se sabe, do ministro Schietti — deve(ria) ser o papel do Ministério Público. Isso sem contar as teses hermenêuticas stricto sensu, registradas em dezenas de livros e textos que escrevi nestas décadas.

A questão do reconhecimento de pessoas e as exigências formais para a elaboração de laudos era outro ponto da filtragem processual que eu fazia. De mais a mais, quantos processos "salvei" mostrando que o in dubio pro societate é(ra) uma falácia? E quantas vítimas consegui resgatar face ao uso de um adágio igualmente falacioso, o famoso pas de nullité sans grief (não há nulidade sem prejuízo)?

 

3. As seis hipóteses e o cumprimento da Constituição

Não fazia atuação ignorando o papel da lei. Habeas corpus concedidos de forma inadequada ou irresponsável recebiam a agudeza de minha pena. Saídas temporárias automatizadas, contra legem, entravam no meu radar de espiolhamento. Para qualquer lado, portanto. Porque a lei não tem lado! Fazia uma cruzada contra o solipsismo judicial. Sou insuspeito nisso, bastando ver os critérios que defendo para não se deixe de cumprir a lei, havendo apenas seis hipóteses excludentes (ver Dicionário de Hermenêutica, Verdade e Consenso, entre outros).

É claro que cometi equívocos, mormente nas vezes em que fiz uma espécie de ultra constitucionalismo, com o uso da proibição de proteção deficiente. Mas, no fundo, era uma reação a algumas posturas ultraliberais. Mas o equilíbrio foi se forjando nesses anos todos. A dor ensina a gemer.

Eram as demandas de um sistema jurídico por vezes perverso que me obrigavam a criar e a pleitear teses garantidoras como a nulidade pela não aplicação do artigo 212 do CPP. Teses como essas partiram da procuradoria de justiça de segundo grau de minha titularidade (como foi o caso, também, do então procurador Juarez Tavares, por exemplo) — hoje, depois de mais de uma década, parece que finalmente a dicção do artigo vai vingar, segundo se vê no STF.

 

4. Numa palavra e como retranca: "não se quer, assim, que não se puna"

Invocando outra vez o Ministro Schietti: não se quer, assim, que não se puna. Porém, deve haver provas concretas e lesividade em uma conduta. E deve ser seguido o devido processo legal. A presunção é de inocência e não de culpa. Lembremos a denúncia de Zílio Jacson. E o caso Cancellier.

Assim, apenas mostrei pequenos detalhes de minha atuação como procurador de justiça tendo como norte aquilo que recitei na minha prova de tribuna, em 1985, no concurso para ingresso no MP, usando as palavras do príncipe do MP, Alfredo Valadão: "O MP é fiscal da lei, vindas as ilegalidades de onde vierem, inclusive de si próprio".

É isso: vindas as ilegalidades de onde vierem. Este texto vai em homenagem ao ministro Schietti e aos membros do Ministério Público que escapam desse modelo punitivista do velho promotor público denunciado pelo ministro do STJ. O MPD — Ministério Público Democrático tem feito manifestações de resistência — o que é louvável. Vai em homenagem ao Jacson Zílio e o Coletivo Transforma MP. Também aos componentes da 5ª. Câmara Criminal do TJ-RS (por todos, Amilton Bueno de Carvalho, Aramis Nassif e Luis Gonzaga).

 

5. O que é independência funcional?

Despiciendo dizer que a presente abordagem não generaliza a atuação de membros — stricto sensu — do MP. Falo, sim, da questão maior: institucional.

Explico: há que se saber o que significa "independência funcional". Não de um membro e, sim, da Instituição. Querem ver? Qual foi (ou é) o papel INSTITUCIONAL do MP na pandemia? No início tínhamos agentes propondo ações para que municípios adotassem — pasmem — o tratamento precoce e fazendo TAC’s sobre isso. E outros agentes propondo ações de improbidade porque os prefeitos adotaram tratamento precoce. Agora vemos "recomendação" do MP-DF (18/1/2022) chamando a vacina para crianças de "vacina experimental" (sic). Afinal, o que é isto a independência funcional? Qual é o MP? O que recomenda vacinar? O que recomenda fazer tratamento experimental? Cada membro pode escolher?Humor Político on Twitter: "Governo genocida https://t.co/5eqvP80ZVd  https://t.co/WnUkRmCOG5" / Twitter

 

E o CNMP? Bom, o caso Dallagnol é simbólico. Precisamos falar também sobre o CNMP.

Numa palavra final, nada fiz de extraordinário nesses anos de membro do Ministério Público. Porém, lutei o bom combate para que os ditames constitucionais que regem a Instituição fossem cumpridos. Como continuo fazendo. Não é aceitável que o TRF4 diga, em um julgamento recente, que "não se deve exigir isenção do MP". Inaceitável! Quem quer ser processado por um órgão parcial? Não isento?

Esse pequeno testemunho não tem maiores pretensões. Pretende apenas provocar algumas reflexões. Não quis tratar de outros ramos (meio ambiente, MP do Trabalho, por exemplo, em que tais questões não se apresentam). Há avanços institucionais evidentes.

Mas na área criminal ainda precisamos falar sobre o Ministério Público. Muito.

 

1 E o que dizer do recurso do MPF de um caso de absolvição de réus que pescaram um dourado de 7 quilos? E o que dizer de um recurso em um caso em que o sujeito tentou suicídio e foi denunciado por porte ilegal de arma? Alguém dirá: e da defesa, não vai falar? Ora, a defesa privada é autoexplicativa e se for defeituosa, ou se anula o processo (e o MP tem o dever de pleitear isso) ou o próprio MP, como fiscal da lei, levanta as questões processuais favoráveis ao réu. E se for defesa feita pela Defensoria, existem as corregedorias. (Continua)

 

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