Foto do Arquivo Público de São Paulo de protestos pelos desaparecidos durante a ditadura militar brasileira.Na charge de Beto, a dolorosa lembrança de que Bolsonaro, em 1999, defendeu a tortura e a guerra civil "matando uns 30 mil". "Se morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre"... Bolsonaro que já confessou ter sido "treinado para matar", e sabe que não de dá golpe sem assassinatos de líderes sindicais, ambientalistas, lideranças comunitárias, defensores de direitos humanos, tortura de presos, exílio e cemitérios clandestinos.
É forte a polêmica no Brasil com a divulgação de áudios de sessões do Superior Tribunal Militar (STM), em que fica claro que os ministros da corte sabiam da tortura contra presos políticos durante a ditadura. Para historiador da UFRJ, a falta de punição tornou a tortura algo crônico no país
por Raquel Miura /RFI
Dechoques elétricos em grávidas, inclusive resultando em aborto, ao uso de martelopara obter confissões. São relatos e denúncias que na época da ditadura militar chegaram ao Superior Tribunal Militar e foram discutidos por seus integrantes. As gravações que vieram à tona recentemente mostram o conhecimento da corte militar de que as polícias que operavam em defesa do regime agiam de forma muito violenta.
Para o historiador Francisco Carlos Teixeira da Silva, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a tortura durante a ditadura foi o viés político de uma prática recorrente em todo o processo de formação do país, inclusive nos dias de hoje. Ele destaca que em nenhum momento da história brasileira houve punição aos autores.
“Este país foi construído sobre a escravidão. A escravidão é um ato de violência baseado na tortura. A elite brasileira construiu o Brasil através da tortura. Nada mais cotidiano, nada mais costumeiro no Brasil do que a tortura”, afirmou àRFI.
“O fato novo na história do Brasil foi quando a tortura atingiu os filhos da classe média. Isso se deu fundamentalmente na primeira grande ditadura do século XX: o Estado Novo de Getúlio Vargas. A polícia especial durante o Estado Novo torturou de forma brutal. Quando o Estado Novo foi derrubado em 1945, não aconteceu nada com os torturadores. Ao contrário, esses homens foram transferidos para polícia civil e continuaram com a prática de tortura, criando esquadrões da morte que continuaram atuando, matando, torturando na polícia comum.”
O STM passou a gravar as sessões em 1975, inclusive as secretas, prática que se estendeu até 1985. “Em 1964, com o golpe militar, voltou-se a torturar não mais os 'malandros comuns', mas os oponentes políticos. Se retornou à prática do Estado Novo de Vargas. A tortura brutal praticada durante a ditadura militar não pode ser de maneira alguma banalizada. Nós temos que denunciar essa tortura e, mais do que isso, começar a punir”, defende Teixeira da Silva.
10 mil horas de sessões
Em 2006 o advogado e pesquisador Fernando Augusto Fernandes pediu acesso ao material, mas a corte militar negou. Ele recorreu então ao Supremo Tribunal Federal (STF) e, em 2011, conseguiu uma decisão favorável. As fitas foram digitalizadas quatro anos depois e só em 2017 ele teve acesso a todo o material. Em nota, Fernandes disse que “as instituições amadurecem quando reconhecem a história e caminham em passos seguros para a democracia. Além de simplesmente se desculpar pelos erros cometidos”.
O historiador Carlos Fico, da UFRJ, passou a ouvir o conteúdo, divulgado pelo jornalO Globo, e até aqui analisou metade das 10 mil horas de sessões. Na terça-feira (19), o presidente do STM, o general Luis Carlos Gomes Mattos, comentou o caso na abertura da sessão da corte militar, dizendo que se trata de uma tentativa de revirar o passado só contando uma parte da história.
"Querendo atingir as Forças Armadas, o Exército, a Marinha, a Aeronáutica, nós que cuidamos da disciplina, da hierarquia, que são nossos pilares. Mas essa divulgação não estragou a Páscoa de nenhum de nós. Apenas a gente fica incomodado que vira e mexe vem, sem algo para buscar hoje, vão rebuscar o passado. Só varrem um lado. Não varrem o outro”, afirmou.
Os pesquisadores que estão com os áudios das sessões do STM pretendem lançar um programa para disponibilizar o conteúdo das sessões do STM durante a ditadura militar para a população.
“O que dá em vocês todos? Nós estudamos o problema e já estamos estudando há quase um século, sim, mas os estudos não estão nos levando muito longe. Vocês tem uma bela de uma casa aqui, bons pais que te amam, você não é um cérebro lá tão ruim. É algum diabo que entra dentro de você?”
Anthony Burgess
Osserial killersnão são um fenômeno recente na história da humanidade, porém, passaram a ganhar destaque a partir do século passado, seja pela exposição midiática, seja, como muitos afirmam, pelo aumento da sua ocorrência.
Lares problemáticos, pais negligentes, abusos físicos, psicológicos e sexuais, genes malignos, cérebros disfuncionais, sociedades com inversão de valores, esse é a mistura da receita para se criar um potencial assassino em série.
Todo esse caldo maligno praticamente mata o ser humano que deveria existir naquele corpo e o substitui por um monstro incapaz de cultivar empatia e respeito ao próximo. Toda essa maldade enclausurada nos recônditos da mente do homicida vira uma bomba relógio, prestes a explodir a qualquer momento e haja piedade da infeliz criatura que cruzar o caminho da cruel besta.
O modo como oserial killerdá vazão ao seu desejo assassino é um ritual, uma representação de tudo aquilo que o fez tornar ser o que é. É uma repetição dos traumas, porém, com inversão de papéis de vítima para algoz, como se fosse a encenação de uma vingança com o passado.
Denota-se então que, aparentemente, seja tudo uma relação de causa e efeito. Um mal cometido no passado será repetido no futuro, algo como o conceito do eterno retorno formulado por Nietzsche, de que a vida, no futuro, sempre repetirá o passado. Mas não é tão simples assim. Não existe uma certeza matemática de que uma pessoa que passe por um evento traumático ou que tenha certas anomalias cerebrais irá se converter em um homicida. E é essa incerteza que complica há séculos uma conclusão sobre o porquê de algumas pessoas virarem criminosas, vivendo em condições semelhantes, e outras não.
Toda essa incerteza reflete na resposta da sociedade para a questão, especialmente para o Estado e suas instituições responsáveis.
Não obstante, há que se considerar que nas últimas décadas houve um desenvolvimento em várias abordagens em relação ao serial killer, como no desenvolvimento de técnicas de investigação e também estudos comportamentais.
No entanto, isso ainda não é o suficiente e a despeito desses avanços nas áreas forenses, permanece uma dúvida ainda maior no tocante a qual a postura da sociedade para reagir ao problema.
Ao preso comum, há esperança de reabilitação concomitante ao cumprimento de pena de prisão. Mas para o psicopata, estudos indicam que não há a eficácia esperada justamente pelas idiossincrasias desses indivíduos.
Não se olvide também, que com a noção da possível origem das causas de surgimento dos assassinos em série, o Estado e a sociedade podem implantar políticas de controle e redução dos episódios traumáticos que sempre circundam o passado destes, como campanhas para prevenir e punir o abuso infantil e do adolescente, debates e questionamentos sobre os atuais valores primordialmente materiais estabelecidos como objetivos pela sociedade e estimulação da educação e humanização das relações entre as pessoas.
No Brasil, além dessas medidas gerais, que são aplicáveis em qualquer lugar do mundo, há necessidade também de capacitação dos profissionais, investimento em equipamentos, principalmente os de coleta de dados e análises forenses. Há que se acabar com o mito de que no Brasil não existe serial killer. O atual cenário do nosso país é o que traz todos ingredientes para a proliferação dessa espécie de assassinos, pois há disparidade de classes, cultura de violência, corrupção, impunidade e valorização exacerbada dos bens materiais e estéticos.
Por todo exposto, pode-se concluir que oserial killernada mais é do que a encarnação de tudo o que é podre na sociedade, é o reflexo de todo mal que existe por aí e muitas vezes fazemos questão de ignorar. A consciência disto é o primeiro passo para mudar esse panorama e encontrar uma saída.
Referências:
BRASIL. Presidência da República. Código de Processo Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm>. Acesso em: 16 jun. 2018.
CASOY, Ilana. Serial killers: louco ou cruel?. Rio de Janeiro: Darkside Books, 2014.
______. Serial killers: made in Brazil. Rio de Janeiro: Darkside Books, 2014.
MILLER, T. Christian. Why can't the FBI identify serial rapists?. 2015. Disponível em: <http://www.theatlantic.com/politics/archive/2015/07/vicap-fbi-database/399986/.> Acesso em: 13 fev. 2016.
PARKER, R.J.; SLATE, J.J. Social Killers: amigos virtuais, assassinos reais. Rio de Janeiro: Darkside Books, 2015.
RÁMILA, Janire. Predadores humanos: o obscuro universo dos assassinos em série. São Paulo: Madras, 2012.
ROLAND, Paul. Por dentro das mentes assassinas: a história dos perfis criminosos. São Paulo: Madras, 2014.
SCHECHTER, Harold. Serial killers, anatomia do mal. Rio de Janeiro: Darkside Books, 2013.
TENDLARZ, Silvia Elena; GARCIA, Carlos Dantes. A quem o assassino mata? O serial killer à luz da criminologia e da psicanálise. São Paulo: Atheneu, 2013.
O deputado Coronel Lee (DC) fez nesta quarta-feira (6) aquele que talvez seja o discurso mais chocante da história recente da Assembleia Legislativa do Paraná. Em pouco mais de um minuto, o deputado estadual fez uma ameaça de morte contra o ex-presidente Lula (PT) e falou sobre um “modus operandi” que teria levado militantes do MST “para o inferno”.
O motivo do discurso foi uma fala de Lula que, em evento com integrantes da CUT, disse que era preciso fazer manifestações diante da casa de congressistas. Segundo ele, fazer manifestações em frente à Câmara e ao Senado não adianta nada, porque dentro do plenário os políticos mal sabem o que acontece do lado de fora.
Ex-comandante do Bope paranaense, Lee falou no seu discurso como se estivesse passando um recado para o Coronel Telhada, deputado por São Paulo com perfil semelhante ao seu. “Nossomodus operandié o mesmo”, disse ele. “A última vez que esse bando do MST e da esquerda vieram nos visitar e querer conversar com a gente no meio do mato foram parar no inferno”, disse o deputado.
Em seguida, continuou: “Então, Lula, mande a sua turma toda falar com a gente de novo. Aí vocês vão visitar seus amigos que estão lá”. Eleito para o primeiro mandato em 2018 na onda bolsonarista, Lee foi comandante da PM em Cascavel, além do Bope.
O discurso obviamente causou reações do PT e de deputados indignados com a ameaça, que disseram que vão levar o coronel ao Conselho de Ética da Assembleia.
[Tão violento quanto os coronéis , assassinos confessos, foi o general Girão de Tal, que deseja a volta da ditadura militar, dos tempos de chumbo, das prisões políticas, dos assassinatos nos porões dos quartéis, da tortura insana, sádica, dos cemitérios clandestinos.
Disse o gal:
General Girão Monteiro
@GeneralGirao
Marque aqui o seu deputado para que assine tbm Não seremos intimidados e nem coagidos por quaisquer ameaça física ou psicológica. Muito menos de um bandido, cachaceiro e ex-presidiário. Faremos o que for necessário para defender nossa bandeira, nossa pátria e nossa família
Os coronéis Telhada e Lee confessaram dezenas de assassinatos. São serial killers?
Um serial killer, general, é bandido? É cachaceiro?.
Com certeza, general, Lula nunca matou nem mandou matar ninguém.
Pergunte para o general Braga, quando era interventor de Temer no Rio de Janeiro, quem metralhou Marielle Franco.
Pergunte no Planalto por que mandaram matar Adriano da Nóbrega.
O Brasil precisa não eleger as bancadas da bala, dos coronéis Ustra, Paulo Manhães, do major Curió, dos delegados Fleury, Pedro Seelig ]
Quem são os serial killers?
Por Bianca da Silva Fernandes
Embora os índices de violência estejam crescendo a cada dia, de modo que notícias que tratam de assassinatos, por exemplo, não sejam recebidas com surpresa pelo telespectador, determinados crimes da mesma espécie, com algumas particularidades, causam grande desconforto.
Diversas vezes nos deparamos com notícias a respeito de crimes brutais, envolvendo homicídios, que fogem completamente à razão e à compreensão. Nesses casos, o que impressiona, impacta e chama a atenção não é apenas o ato de matar, mas, sim, a sua motivação, o modo de execução utilizado para a prática, bem como a frieza e o comportamento apresentados pelo executor.
Essas e outras características são o que diferencia os serial killers de outros homicidas. Serial Killers são considerados indivíduos que praticam uma serie de homicídios durante um determinado período de tempo, com um intervalo de tempo durante esses homicídios. Esse intervalo de tempo é o que diferencia os serial killers dos assassinos em massa.
SERIAL KILLERS X ASSASSINOS EM MASSA
Embora ambos os termos nos remetam a uma mesma finalidade, diferem muito um do outro, principalmente no que se refere à motivação para o crime e a finalidade a ser alcançada. Enquanto o serial killer comete vários assassinatos com um determinado intervalo de tempo durante esses homicídios, às vezes dias, anos, o assassino em massa comete vários assassinatos em questão de horas, sem que seja necessário o transcurso desse lapso de tempo.
No caso dos assassinos em massa, o ato é cometido para que haja a descarga de tensão e agressividade e raiva, de uma só vez, normalmente. Isso pode ser percebido e atrelado ao caso de franco-atiradores, que se introduzem em locais com grande circulação de pessoas e desferem o máximo de tiros para atingir o máximo número de pessoas possível. Nesse sentido, não há uma premeditação quanto às vítimas atingidas, pois o objetivo é provocar o maior número de mortes.
Já nos casos de serial killers, não existe apenas a descarga de tensão e agressividade, embora estejam presentes. O que os difere, além do lapso de tempo entre os homicídios, é a forma adotada para a realização do ato, a escolha da vítima, a sensação obtida na realização e cada ato, que mais se assemelha, na maioria das vezes a um ritual.
No que se refere à quantidade de vítimas para se classificar o indivíduo como serial killer ou não, existe divergência. Para alguns estudiosos, duas mortes já são suficientes para caracterizar um serial killer. Para outros, fazem-se necessárias pelo menos quatro mortes para se classificar um assassino como serial killer.
CARACTERÍSTICAS DOS ASSASSINOS E DO ASSASSINATO EM SÉRIE
Assassinos seriais apresentam, por muitas vezes, um comportamento plenamente satisfatório em sociedade. Grande parte possui família, um emprego estável e são admirados pelo público externo, graças ao seu comportamento exemplar em sociedade. Contudo, são extremamente perturbados no seu universo íntimo.
A sua maior deformidade se encontra no senso moral e ético. A sua frieza faz com que as suas ações sejam sempre direcionadas à crueldade, perversidade e insensibilidade. Serial Killers sentem prazer em cada ato, com a maldade e a crueldade que praticam contra as suas vítimas, assemelhando-se ao prazer sexual.
Assassinos em série, em regra, tem a necessidade de possuir o controle sobre a sua vítima. Para tanto, utiliza-se da tortura, sexo doloroso e as mantêm em constante situação de humilhação. A submissão da sua vítima diante dessa situação faz com que o agressor se sinta plenamente no controle da situação.
Alguns assassinos experimentam essa sensação de controle apenas com óbito, em razão disso, matam rapidamente (CASOY, 2014, p. 26). Outros, necessitam desse processo doloroso para sentir a excitação, de modo que realizam a prática de tortura por horas, as vezes dias, retardando ao máximo o óbito da vítima.
Em decorrência da antissocialidade apresentada por esses indivíduos, o assassino em série enfrenta grande dificuldade para estabelecer uma relação íntima verdadeira com as pessoas a sua volta. Em razão disso, o ritual macabro que pratica com a sua vítima acaba sendo para ele a maior forma de intimidade estabelecida com alguém (CASOY, 2014, p. 30), pois é através dele que consegue dividir com a vítima os seus mais secretos desejos, mostrando a sua real face.
Serial killers experimentam uma série de sentimentos durante o período depreendido para a consumação do assassinato. Dessa maneira, o assassinato é cometido dentro de uma espécie de ritual, de forma que esses sentimentos sejam estimulados e durem o máximo de tempo possível.
A necessidade de sair em busca da vítima, a excitação sentida durante o sequestro, no momento da tortura, do estupro, propiciam prazer ao assassino, de forma que o consequente óbito da vítima é o auge, momento este que experimenta a sensação de alivio e liberação da tensão (RAINE, 2015, p. 108).
CLASSIFICAÇÃO E FASES DO CICLO DE UM SERIAL KILLERS
Na maioria das vezes o assassino em série não conhece a sua vítima, por muitas vezes são escolhidas ao acaso, mas estas sempre representam algo para ele, ainda que inconscientemente. Nesse sentido, os assassinos em série são classificados em 4 tipos (CASOY, 2014, p. 21):
Visionário: completamente insano. Sofre de alucinações escuta vozes e comandos e, por consequência, obedece-os;
Missionário: acredita que possui uma missão a ser cumprida, sendo o responsável por livrar o mundo de algo imoral. Escolhe determinado grupo de pessoas para matar, como mulheres, prostitutas, homossexuais ou crianças;
Emotivo: mata por puro prazer e diversão, sem qualquer motivação aparente. Obtém prazer até mesmo no planejamento do crime;
Sádico: é o assassino sexual. O prazer sexual será obtido através do sofrimento da vítima, durante a tortura, do sexo forçado e da mutilação.
Segundo Ilana Casoy, o serial killer passa por 6 fases, a escolha da vítima até o seu óbito, são elas:
Fase áurea: nessa fase o assassino perde o contato com a realidade;
Fase da pesca: procura pela vítima ideal;
Fase galanteadora: seduz ou engana a vítima;
Fase da captura: a vítima cai na armadilha;
Fase do assassinato ou totem: auge da emoção para o serial killer;
Fase da depressão: ocorre após o assassinato.
Nesse sentido, quando o indivíduo passa pela fase da depressão, inicia novamente o ciclo pela fase áurea. Com base nisso, é possível afirmar que todos os serial killers são sádicos, haja vista que todos experimentam a excitação sexual quando estão participando desse ciclo.
Inúmeras são as teorias que buscam explicar a perversidade apresentada por esses indivíduos, de concepçõesLombrosinasàFreudianas. Fato é que, conforme pesquisas realizadas, a grande maioria desses criminosos já passaram por abuso sexual durante a infância ou foram constantes alvos de humilhações pelo pai ou pela mãe, o que poderia corroborar para o seu comportamento vingativo e vitimizados na vida adulta.
Contudo, embora existam inúmeras pesquisas sobre esses indivíduos, o caminho dos serial killer para o sadismo não é claro. Torna-se cada vez mais tortuoso, a medida que crimes brutais estampam as manchetes dos noticiários, nos deixando a pensar: de onde vem tudo isso?
REFERÊNCIAS
CASOY, Ilana.Serial Killers: Louco ou cruel? Dark Side: Rio de Janeiro, 2014.
RAINE, Adrian.A anatomia da violência: as raízes biológicas da criminalidade. Artmed: Porto Alegre, 2015.
Ex-comandante do Bope paranaense, coronel deputado Lee falou no seu discurso como se estivesse passando um recado para o coronel Telhada, deputado por São Paulo com perfil semelhante ao seu. “Nossomodus operandié o mesmo”, disse ele. “A última vez que esse bando do MST e da esquerda vieram nos visitar e querer conversar com a gente no meio do mato foram parar no inferno”, disse o deputado.
Quando Lee fala do inferno da morte, os camponeses cantavam na Paraíba de 1970, para o general Geisel ouvir:
"Primeiro é nunca matar Segundo, jamais ferir Terceiro, estar sempre atento Quarto, sempre se unir Quinto, desobediência Das ordens de sua excelência Que podem nos destruir"
Era o mesmo Geisel secretário da Segurança na Paraíba da Revolução de Trinta, que assumiu a presidência pela força de um golpe em 1964, marcado por chacinas de camponeses.
No áudio, Daniela Magalhães da Nóbrega chora ao dizer para uma tia que o irmão, que chegou a ser homenageado pelo clã Bolsonaro e teve a esposa empregada no esquema de rachadinha comandado por Fabrício Queiroz no gabinete de Flávio Bolsonaro (PL-RJ),"já era um arquivo morto".
"Ele já sabia da ordem que saiu para que ele fosse um arquivo morto. Ele já era um arquivo morto. Já tinham dado cargos comissionados no Planalto pela vida dele, já. Fizeram uma reunião com o nome do Adriano no Planalto. Entendeu, tia? Ele já sabia disso, já. Foi um complô mesmo", afirmou Daniela, revelando um possível conluio acertado por Bolsonaro para assassinar o ex-capitão do Bope.
A gravação foi captada em uma escuta telefônica pela Polícia Civil do Rio de Janeiro há cerca de dois anos. A ligação aconteceu dois dias após a morte de Adriano em uma operação policial na Bahia, onde ele estava foragido.
Diante do áudio revelado, oPSOLmontou uma cronologia da vida de Adriano da Nóbrega e sua relação com a família Bolsonaro: desde o momento em que ele entra para a Polícia Militar, a homenagem que recebe do então deputado Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e até o dia em que foi morto em uma emboscada no estado do Bahia.
A bancada da bala, eleita na onda bolsonarista, no golpe eleitoral que prendeu e impediu que Lula fosse candidato em 2018, tem sede de sangue. Na campanha eleitoral que elegeu o sucessor do golpista Michel Temer, Bolsonaro anunciou - com o apoio de Sergio Moro e procuradores e delegados da polícia política, a famigerada autodenominada Liga da Justiça - que Lula iria apodrecer na cadeia.
Foi publicar um texto sobre a sanha assassina de militares, que aparece o deputado estadual pelo Paraná Coronel Lee(DC) a ameaçar de morte o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
O discurso de ódio, a apologia da violência, a apologia do assassinato, as declarações do deputado covarde, do deputado violento, do deputado raivoso, foram publicadas pelo jornalista Eduardo Matysiak.
"O que nos traz hoje aqui é um desaforo, uma ameaça de um indivíduo, um elemento que é chamado de Lula", disse o parlamentar ao plenário da Assembleia Legislativa (Alep).
"Esse camarada quer visitar nossas residências, nossas casas, quer juntar um grupo de desocupados, vagabundos, para conversar com nossa família, para conversa com a gente. Coronel Telhada, ex-comandante da Rota, hoje deputado em São Paulo, aqui é o Coronel Lee, ex-comandante do Bope do Paraná", complementou.
O deputado também disse que mandou integrantes do MST "para o inferno".
"O nosso modus operandi, Coronel Telhada, é o mesmo. A última vez que esse bando do MST e da esquerda veio nos visitar, queriam conversar com a gente no meio do mato, foram parar no inferno. Então, Lula. Mande a sua turma toda falar com a gente de novo. Vocês vão visitar seus amigos que estão lá. É esse nosso recado", ameaçou.
Trata-se da confissão de uma chacina. Da matança de pequenos agricultores, de camponeses, dos sem terra tão perseguidos pelos governadores golpistas do Paraná, e por Sergio Moro.
Pela confissão, trata-se de um assassino vil, que só mata pobres, pés no chão, o coronel de "morte e vida severina".
Esses deputados comandaram o pior das polícias militares: as polícias das chacinas, dos massacres, do genocídio de jovens negros e mulatos.
Escrevi um alerta sobre o crime de lesa-majestade, dos covardes a bravata, dos assassinos confessos a advertência, a audácia, a cominação, a morte anunciada de Lula da Silva.
O sujeito macabro, desvairado, enlouquecido, que faz terrorismo político, intimidação, assédio policial, coação assassina, não merece ser candidato a cargo nenhum.
Se existe Lei no Brasil, se existe Justiça no Brasil, lugar de pistoleiro, de serial killer é na cadeia. O psicopata não pode ser eleito para nenhum cargo, não pode praticar o crime de manchar de sangue o legislativo.
Até quando os brasileiros vão ouvir, impassíveis e coniventes e cúmplices, das tribunas das Câmaras de Vereadores, das Assembléias Legislativas, do Congresso Nacional: - Eu matei um, eu matei dois, eu matei três, eu matei um bando, eu matei uma legião, e vou matar Lula da Silva! Até quando será repetida esta insanidade? Esta insânia? Esta piloura? Este tresvario? Esta psicopatia?
Coronel Lee é simplesmente mais um demente a jurar Lula de morte. Isso deu votos em 2018, mas os loucos de farda, ou pijama melado de sangue, vão perder a mamata nas eleições deste ano.
Os eleitores não vão votar em matadores, homicidas sanguinários, sicários malvados. Veja aqui uma lista de pistoleiros que prometem matar Lula.
Lee matador não pode ser deputado. Publica Tribuna: Lula e petistas devem levar a ameaça de morte a sério. Veja o histórico do assassino:
VAGA NA ASSEMBLEIA
Coronel da PM ‘mais letal do mundo’ deputado no Paraná
O coronel Washington Lee Abe (PSL), conhecido como o comandante da polícia “mais letal do mundo”, de acordo com informações do Blog Caixa Zero, do jornalista Rogério Galindo. A afirmação foi feita com base em dados apresentados pelo próprio coronel, no ano passado, na Câmara Municipal de Cascavel. Informações, segundo ele, baseadas em um estudo da ONU.
“Este estudo, feito por um suposto especialista, diz que a polícia mais letal do mundo é a Polícia Militar do Brasil. No Brasil, a mais letal é a do Paraná e, no Estado, o Comando Regional que está na primeira colocação é o 5º”, disse o coronel que comandou o 5.º Comando da PM paranaense, na região de Cascavel . No ano de 2017, segundo os números do coronel, até agosto a PM já tinha registrado 78 confrontos armados com criminosos – quase dez por mês.
BESTAS=FERAS. A santíssima trindade da tortura na ditadura de 1964 – Morreu Pedro Seelig: como o coronel Brilhante Ustra e o delegado Fleury, todos impunes
Durante os anos mais turbulentos da ditadura militar de 1964, Seelig resumia na sua figura de delegado mais temido do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) o estágio supremo de violência e bestialidade
por Luiz Cláudio Cunha - Jornal GGN
O delegado de polícia Pedro Carlos Seelig morreu em Porto Alegre na terça-feira, 8 de março, fulminado por um infarto aos 88 anos, com sequelas da covid. Ficou dois meses internado, até sair para morrer em sua casa de vidros coloridos e revestimento de azulejo no bairro da Tristeza, zona sul da capital. Algum leitor desatento dos burocráticos, ineptos registros dos principais jornais e portais da internet poderia imaginar que era apenas a morte encoberta de um policial irrelevante, que não merecia mesmo a atenção da imprensa. Grave erro.
Durante os anos mais turbulentos da ditadura militar de 1964, Seelig resumia na sua figura de delegado mais temido do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) o estágio supremo de violência e bestialidade que a repressão política disseminou pelo Rio Grande do Sul e pelo Brasil. Foi o mais notório e intimidante torturador gaúcho, símbolo maior do terror de Estado que lhe garantiu lugar eterno no panteão dos grandes patifes da repressão brasileira. Seelig formou, ao lado do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, chefe do Departamento de Operações de Informações-Centro de Operações e Defesa Interna (DOI-CODI) do II Exército, e do delegado Sérgio Fleury, do DOPS de São Paulo, a santíssima trindade da tortura brasileira.
Ganhou espaço merecido na lista definitiva dos 377 brasileiros acusados de graves violações dos direitos humanos cometidas durante os 21 anos do regime militar de 1964-85, segundo o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Ali se misturam generais-presidente e sargentos, coronéis e inspetores, diplomatas e médicos legistas, policiais militares e civis e até um ex-piloto de companhia aérea. No topo da cadeia de comando da repressão, foram denunciados os 53 militares que comandaram o aparato repressivo brasileiro nas duas décadas de violência como política de Estado: os cinco generais-presidentes (Castello Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo) e os três ministros-militares da Junta Militar que governou o país por dois meses em 1969. Além deles, como cúmplices, são citados seis ministros do Exército, sete da Marinha, cinco da Aeronáutica, três chefes do Serviço Nacional de Informações (SNI), oito do Centro de Informações do Exército (CIE), onze do Centro de Informações da Marinha (CENIMAR) e cinco do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (CISA).
Logo abaixo, na pirâmide da repressão, são apontados pela CNV outros 84 militares, policiais e um diplomata, responsáveis em diferentes níveis pela gestão do aparato repressivo. O número 71 da lista é o coronel Brilhante Ustra, que organizou e comandou entre 1970 e 1974 o DOI-CODI paulistano da rua Tutoia, o mais letal do país, onde morreram 51 pessoas sob tortura. Finalmente, completando a relação dos torturadores, estão os 240 militares e policiais com responsabilidade direta naviolência física, os torturadores que fizeram o serviço sujo dos porões. Fleury é o número 367 da lista e Seelig, o 333.
O fã de Fleury
Quando estourou o golpe de 1964, Seelig estava há três meses no lugar certo: o DOPS de Porto Alegre. Aos 23 anos, tinha trocado o quepe de motorista de ônibus pela boina vermelha, a jaqueta, a calça cáqui com listra vermelho e o negro cassetete de borracha da tropa de choque da antiga Guarda Civil da capital gaúcha, formada por lutadores profissionais para dispersar tumultos. Aos 29, entrou na Polícia Civil como escrivão de 3ª classe. No primeiro semestre de 1964, teve uma rápida passagem pelo DOPS, antes de passar cinco anos na ronda de delegacias do interior. Com o curso de delegado, voltou para a capital e para o DOPS em junho de 1969, quando o país já amargava seis meses de AI-5.
Foi destacado para o Serviço de Investigações da sensível Divisão de Segurança Social do DOPS, cada vez mais atarefada pelo aquecido clima político nas ruas e universidades. No mês seguinte, julho, nascia em São Paulo a Operação Bandeirantes (OBAN), a mãe dos DOI-CODI, que integraria militares e policiais no estágio mais sofisticado e virulento da repressão política, excitada pelo combate mais intenso à luta armada nos centros urbanos.
Seelig era discípulo do colega mais famoso de São Paulo, o delegado do DOPS Sérgio Fleury, que ganhou fama internacional por sua ligação visceral com os meliantes do Esquadrão da Morte, de onde tirou o know-how para eliminar os militantes mais radicais da esquerda. Ficou amigo de um astro em ascensão na comunidade de informação, o major Carlos Alberto Brilhantes Ustra, antes ainda de sua notoriedade como comandante do sangrento DOI-CODI em São Paulo. Inspirado nesses notáveis exemplos, Seelig foi promovido em 1970, aos 36 anos, para a direção da Divisão de Segurança Social do DOPS, tornando-se o homem mais importante da repressão gaúcha no momento buliçoso em que o Estado convivia com sete organizações da luta armada: VPR, ALN, VAR-Palmares, M3G, POC, M-26 e FLN.
Nas duas maiores capitais brasileiras, Rio de Janeiro e São Paulo, o combate à guerrilha urbana era tarefa do Exército e seus DOI-CODI, onde morreram pelo menos 81 das 339 pessoas assassinadas sob tortura na ditadura – 51 no DOI paulistano da rua Tutoia, 30 no DOI carioca da rua Barão de Mesquita. Segundo documentos recolhidos pela Comissão Nacional da Verdade, os dois locais concentravam quase um quarto (23,8%) das vítimas oficiais do regime militar. No Rio Grande do Sul, essa tarefa literalmente bruta não sujou as mãos do DOI-CODI local. A missão foi delegada a Pedro Seelig e sua comprovada eficiência repressiva. Em janeiro de 1971, na fervura da política local, o DOPS de Seelig contabilizava a prisão de 256 esquerdistas e a apreensão de 15 metralhadores, 49 pistolas, nove automóveis, 27 mil dólares e milhares de cruzeiros (a moeda da época). Investigou 13 assaltos a banco praticados pela esquerda. Esquadrinhou a frustrada tentativa de sequestro do cônsul estadunidense Curtis Cutter por um comando desarrumado da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).
Na passarela do DOPS
O policial mais famoso do Rio Grande do Sul não tinha o figurino desgrenhado de um meganha rastaquera de filme noir : um ‘tira’ balofo de uma delegacia qualquer da periferia, com a barriga saltando dos botões torturados pela obesidade, a gravata cafona desarrumada e frouxa no pescoço gordo, o suor escorrendo pelo rosto. Nada disso. Seelig contrariava o padrão folclórico.
Em uma rua elegante, o vaidoso Seelig poderia ser confundido com um executivo arrogante e descolado da avenida Paulista ou do centro financeiro de Wall Street. Porte atlético, pose de galã, exibia músculos em vez de gordura espalhados pelo corpo esguio de mais de um metro e oitenta. Tinha alfaiate próprio e preferênciapor ternos de corte justo e conjuntos esportivos, tipo safári, nada comuns em delegacias. Pelo talhe elegante, Seelig parecia predestinado à passarela iluminada de modelo de loja de grife, não aos corredores sombrios das celas da repressão.
Sua alinhada cabeleira precocemente grisalha, repartida ao meio, caía em ondas disciplinadas sobre o pescoço, escoltando duas abundantes costeletas que quase escondiam as orelhas. O rosto anguloso, mais retangular, exibia traços duros, esculpidos por cinzel prussiano. Grossas sobrancelhas, mais escuras que os cabelos, acentuavam a frieza dos olhos, separados por um nariz maciço que ressaltava o tom marcial do rosto. O perfil nasal se impunha sobre os lábios finos e o queixo quadrado. A pele mais escura da face mostrava que os pelos rígidos da barba resistiam à lâmina matinal com rebeldia crônica, quase subversiva.
Aos sábados, passava rapidamente pelo DOPS, no segundo andar do Palácio da Polícia, sede da Secretaria de Segurança, na avenida Ipiranga, vestido imaculadamente de branco. Ninguém estranhava. Era o dia em que Seelig, sem demanda extra na delegacia, saía dali para jogar tênis no clube.
Olívio Lamas Baru Derkin/Coojornal Ricardo Chaves
Delegado Pedro Seelig era outro fora do ambiente funesto do DOPS: vaidoso, elegante, garboso, aprumado
No trabalho, conforme testemunho de sobreviventes, Seelig sabia alternar a fala mansa com o rigor e a rudeza necessários para extrair o máximo possível de informações dos presos políticos no tempo mínimo indispensável. Na sala de tortura do DOPS, apesar do capuz de praxe que os presos usavam para não identificar os torturadores, a presença de Seelig era antecipada pelo odor torturante do perfume dedo-duro que usava e pelo codinome ‘Major’ com que era tratado pelos subordinados. Com um sotaque levemente carioca, que ele achava ser moderno e charmoso, tentava ser claro e direto pelo uso de gíria e de palavrões dos mais jovens.
Em novembro de 1977, o repórter Rafael Guimarães, empossado dias antes no comando do centro acadêmico da faculdade de Jornalismo da PUC gaúcha, caiu numa blitz da Brigada Militar na avenida Independência, perto de casa. Com o uniforme da época – calça Lee, tênis, camiseta e bolsa a tiracolo –, Rafael parecia o suspeito de sempre. O caldo entornou quando acharam na bolsa um exemplar do jornal de esquerda Movimento, um livro de teoria política, um caderno de anotações e uma papelada em xerox com um título eloquente: “A redemocratização do país pelo desmantelamento do aparelho repressivo”. Foi levado direto para o DOPS de Seelig. Depois das perguntas de praxe do escrivão de plantão, apareceu o delegado. Rafael, hoje escritor e dono de uma bem-sucedida editora de livros, conta em depoimento publicado em 2021 no jornal eletrônico não.til:
Até que ele entrou na sala. Quer dizer, primeiro, entrou o perfume, depois o homem magro, mais baixo que eu pensava, cabelo grisalho repartido no meio, moderno na época, mas hoje absolutamente ridículo. Pedro Carlos Seelig, o símbolo da repressão no Rio Grande do Sul, o mais frio, eficiente e covarde torturador de que se tem notícia nestes pagos.
Na época, ainda era um mito. Só aparecia em fotos distantes e desfocadas e nos relatos dolorosos de dezenas de homens e mulheres por ele torturadas. Quando entrou, eu soube imediatamente de quem se tratava. Literalmente, tremi nas bases. Olhou para mim com desprezo e mostrou um desenho numa das páginas do meu caderno de anotações:
– Que mapa é esse? –. Era um mapa que tinha desenhado semanas antes, com base nas informações de um caminhoneiro, para chegar a uma cidadezinha na fronteira norte do estado onde eu tinha feito uma matéria sobre o cultivo da citronela, uma planta que serve de matéria prima para a produção de perfumes. Certamente, a mente paranoica da repressão via naquele mapa mal feito um plano subversivo ou um futuro foco de guerrilha. Não contive um esboço de sorriso com tal absurdo, que ele naturalmente percebeu:
– Tá rindo de quê? –. Comecei a contar a história da citronela, mas ele interrompeu:
– Olha pra mim quando fala. Que idade tu tem, seu merda? Teu pai sabe que tu anda metido nessas coisas? –. “Metido em quê”, eu ia dizer, mas calei. Seelig me olhava fixo, esfregava um lábio no outro e flexionava os dedos das mãos. Baixei os olhos e me senti o maior covarde da face da terra.
Ele saiu e não mais entrou. O escrivão faz mais umas perguntas que eu respondi de forma triste e desanimada. Sobrevivi sem sequelas físicas ao encontro com o temível Pedro Seelig, o ‘Pedrão’, ao contrário de tantos que apanharam, sofreram castigos hediondos e desapareceram em suas mãos.
O susto mortal no filho
A partir do segundo semestre de 1970, fase mais aguda da repressão política do recém-empossado governo do general Médici, os presos do DOPS de Seelig foram obrigados a usar capuz nos interrogatórios. O Instituto Médico Legal recebeu ordens superiores para não mais exigir de presos oriundos do DOPS de Seelig a anamnese, o histórico clínico do paciente anterior ao exame de corpo de delito. O objetivo era claro: convencer os médicos legistas a esquecer a fase de duro interrogatório aplicado pelo time do ‘Pedrão’.
Apesar do recato forçado, Seelig ganhou da imprensa o título de ‘Fleury dos Pampas’, seu sanguinário modelo do DOPS paulistano. A face violenta do delegado gaúcho está marcada pelas cicatrizes da Justiça na sua machucada folha funcional: em 1957, Seelig foi processado por crime de lesões corporais e, em 1958, por agressão. O momento mais difícil de sua carreira ocorrera em 1973, quando enfrentou uma CPI na Assembleia Legislativa e a ameaça de julgamento pelo Tribunal de Júri de Porto Alegre em processo de homicídio qualificado, acusado da morte por afogamento de seu filho adotivo, Luís Alberto Pinto Arébalo, de 17 anos.
Na manhã do dia 6 de fevereiro de 1973, suspeito de ter roubado uma pequena quantia em dinheiro de uma associação comunitária presidida por Seelig, o menor foi levado para uma das celas do DOPS para ganhar “um susto” – por ordem do pai adotivo. Passou por duas sessões de pancada na “fossa”, a principal sala de torturas no fundo do corredor do DOPS. Arébalo apanhou por meia hora. À tarde, ao ouvir a voz do delegado, chamou por ele. Seelig abriu a porta e se espantou com o que viu.
– O que fizeram contigo, cara? Não era pra fazer isso com o guri… – disse, olhando contrariado para três caras feias de sua equipe. Quando Seelig saiu, eles devolveram Arébalo à “fossa”. Mais vinte minutos de pau, desta vez enfiando uma mangueira de água na boca. O garoto se afogou, passou a noite agonizando, tremendo de frio, respirando mal, com dores no peito. Enrolado em um cobertor, suava diante de um grande ventilador ligado o tempo todo. Horas depois, mais machucado do que assustado, Arébalo foi transferido às pressas para o Hospital Sanatório Partenon. Sussurrou para a irmã Celsa, chefe do serviço de triagem do hospital:
– Aqueles caras me bateram…. Aqueles caras lá, né! – Morreu quatro horas depois, no dia 8 de fevereiro, e não foi de susto. O laudo de necropsia disse que Arébalo sucumbiu por “insuficiência respiratória aguda, consecutiva a afogamento parcial”, antecedida por traumas que debilitaram o jovem. O afogamento, escreveram osegistas, foi comprovado pela presença de plâncton mineral nos assustados pulmões do rapaz.
Arquivo Coojornal Ilustração Edgar Vasques Carlos Rodrigues
Arébalo, o filho de 17 anos, morreu afogado na tortura do DOPS: devia ser só um ‘susto’, rezava Seelig.
Indiferente a essas líquidas evidências, a maioria governista na CPI desensopou a denúncia e concluiu secamente – por quatro votos da ARENA governista contra três do MDB oposicionista – que Seelig poderia no máximo ser acusado de ‘abuso de autoridade’. Na Justiça, o juiz Luiz Carlos Castello Branco, alegando ‘falta de provas’, impronunciou o delegado. A defesa alegou que o ventilador assassino é que causou a pneumonia fatal no garoto. Emotivo, Seelig chorou perante a família e os amigos policiais. Humilde, dobrou-se diante dos fotógrafos dos jornais, persignado em um banco de igreja, e orou contrito na missa pela alma do finado filho adotivo. Parecia um pai devastado, não um delegado incriminado.
A mão amiga e verde-oliva
Seelig, no entanto, tinha mais fé na força terrena do que no conforto divino. Especialmente na força verde-oliva. Rosto compungido ainda de dor, pouco antes da sentença complacente do caso Arébalo, o delegado submeteu-se a uma reconfortante cerimônia castrense: a entrega solene pelo Exército da “Medalha do Pacificador”, honraria militar concedida sempre por indicação de um general e entregue apenas àqueles que se destacaram na luta contra a subversão. Ele tinha o amparo da força terrestre da ditadura, fiel ao seu lema: “Braço forte, mão amiga”.
Ricardo Chaves
Seelig e seu braço forte: o Exército vê o pacificador, não o torturador
O delegado, ao contrário do filho, era imune a sustos. Pedro Seelig era um dos intocáveis do regime. Depois do caso Arébalo, o delegado teve por duas vezes a refrescante sensação da boa imagem junto à opinião pública. Em 1974, quando ainda respondia ao processo por homicídio, Seelig comandou uma espetaculosa operação policial para libertar o estudante Alexandre Möeller das mãos de seus sequestradores. Depois que a família pagou o resgate, o garoto, de 13 anos, acabou sendo resgatado por agentes da Polícia Rodoviária Federal. Em 1977, em nova ação sensacional, Seelig coordenou as investigações sobre seis crianças de um bairro da capital, o Cristo Redentor, sequestradas pelo comerciário Santino Ferreira – mas o sequestrador, em outro desfecho frustrante para o delegado, acabou sendo preso por uma anônima patrulha da Brigada Militar.
Nessa época, o Internacional era o grande time do país, com Paulo Roberto Falcão, Paulo César Carpegiani, Batista, Manga e don Elias Figueroa. Para desespero dos gremistas, já acumulava o segundo título de campeão brasileiro de futebol. Era comum então encontrar Seelig, fanático torcedor colorado, nos vestiários do estádio Beira-Rio confraternizando com jogadores e dirigentes após as grandes vitórias, que ele assistia confortavelmente instalado em uma das cabines reservadas à imprensa
Durante o campeonato gaúcho de 1978, ele mesmo organizou o esquema de segurança do time colorado em alguns jogos mais arriscados do interior. O delegado circulava pelos corredores do DOPS e pelo gramado do Beira-Rio com muita familiaridade. Seu grande amigo e estrela principal do Inter, o meio-campo Falcão, era o terceiro melhor jogador do mundo em 1982 e 1983, segundo a revista inglesa World Soccer. O volante foi escalado em 2021 na melhor seleção brasileira de todos os tempos, ganhando a camisa 5 de um meio de campo de luxo que divide com Didi e Pelé, segundo a eleição de 170 jornalistas e narradores profissionais de esporte selecionados pela revista Placar.
Falcão tinha como procurador o então preparador físico do time, Reinaldo Jorge Salomão – filho de um cunhado de Seelig e também delegado do DOPS. O craque colorado retribuía sua presença no estádio visitando-o no DOPS.
– Olha, eu sou suspeito pra falar do Pedro, porque sou muito amigo dele. Conheci ele em 1972, no tempo em que o Salomão estava nos juvenis. Sou amigo dele desde 1974, quando às vezes eu ia lá na polícia. Até hoje a gente sai, vamos a festas juntos. Ele é bem relacionado – dizia Falcão, driblando com a elegância habitual as perguntas incômodas da imprensa.
O time do carcará
JB Scalco Olívio Lamas
Falcão e Seelig, dois amigos elegantes: só o craque não batia no seu local de trabalho
No futebol, ao contrário da leveza e classe de craque de Falcão, Seelig era um zagueiro de estilo duro e botocudo, que maltratava mais os adversários do que a bola. Como provaria depois no DOPS, gostava de bater. Por isso, alto e vigoroso, era o temido capitão do time de futebol da Secretaria de Segurança, nos idos de 1967. A família trazia a polícia no sangue: tinha uns dez ou doze parentes com o sobrenome Seelig servindo na corporação. Dava para formar um time – e formava.
A parentada integrava uma unida e exclusiva equipe doméstica chamada Carcará. Além do sobrenome, o que dava harmonia ao time era o lema – inspirado na música de 1965 de João do Valle – que atemorizava os adversários: “pega, mata e come”. O comissário de polícia Omar Seelig, primo-irmão de Pedro, definiu assim o time familiar para os repórteres Najar Tubino e Caco Schmidt, do semanário Coojornal, em 1979:
– No Carcará, do umbigo pra baixo é canela! Quando o cara não dá pau, a gente chama e diz: “Meu filho, qual é o teu negócio? Vai pra casa e bota uma sainha, vai…”
Passados 43 anos, essa corajosa reportagem de primeira página do bravíssimo semanário da Cooperativa dos Jornalista de Porto Alegre ainda é a única, solitária investigação sobre Seelig. O resto da imprensa calou-se, por quatro décadas, intimidada pela fama do personagem maior da tortura.
Arquivo CooJornal
A reportagem corajosa: um feito ainda inédito, passados 43 anos
No jogo bruto do DOPS, o estilo de atuação de Seelig ficou mais doloroso do que o do Carcará. Dos cabelos para baixo, tudo era canela, ninguém usava sainha, era puro pau. Em 1969, ao mesmo tempo em que nascia em São Paulo a Operação Bandeirantes, era criada em Porto Alegre a Divisão Central de Investigações (DCI). Quando a OBAN virou DOI-CODI, no ano seguinte, a DCI continuou ocupando o espaço central da repressão no sul. Na verdade, havia algumas diferenças.
Em São Paulo, o DOI-CODI, com a parceria do DOPS, fazia tudo – da análise das informações aos pedidos de busca e combate nas ruas, passando pela sangrenta fase de interrogatórios e torturas. Em Porto Alegre a DCI do coronel Attila Rohrsetzer processava as informações e coordenava o combate à subversão, mas delegava ao DOPS de Pedro Seelig o serviço sujo e perigoso – o suplício dos interrogatórios e as operações externas de combate. Embora formalmente ligada ao secretário de Segurança, a DCI se reportava diretamente ao comandante do III Exército e à 2ª Seção do Estado-Maior, ligados ao CIE em Brasília. O que o DOPS e o DOI-CODI somavam em São Paulo se concentrava em Porto Alegre, com vigor redobrado, na DCI e seu braço executor, o DOPS. Ou seja, o delegado Pedro Seelig era sozinho, em Porto Alegre, o que o delegado Sérgio Fleury e o coronel Brilhante Ustra representavam juntos em São Paulo em termos de truculência.
Os estádios dos torturados
Quase metade dos casos de tortura no Rio Grande do Sul que chegaram ao Superior Tribunal Militar (STM), instância máxima dos inquéritos contra presos políticos,aconteceu no quintal de trabalho de Seelig. Nunca se saberá o número exato de vítimas, porque nem todas as denúncias chegaram a Brasília. Segundo levantamento feito pelo projeto Brasil Nunca Mais, da Arquidiocese de São Paulo do cardeal Paulo Evaristo Arns, nos primeiros treze anos da ditadura – de 1964 a 1977 – houve 6.016 denúncias de torturas em todo o país, espalhadas ao longo de 707 processos julgados pelo STM.
Em uma simples conta aritmética, isso representa cerca de 8,5 denúncias de maus-tratos em cada causa levada ao tribunal. Quando o cardeal Arns acusou a ocorrência de 502 casos de tortura no DOI-CODI de São Paulo, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que comandou aquele inferno na fase mais dura, entre 1970 e 1974, ironizou:
– Não foram 502, foram mais de três mil pessoas que passaram lá. E ficam sempre inventando denúncias de torturas não comprovadas…
Nos 21 anos do regime militar brasileiro passaram 25 mil presos pelos cárceres da ditadura, que exilou outros dez mil. O Brasil Nunca Mais afirma que “dificilmente houve pessoas que passaram pelos processos de elaboração dos inquéritos policial-militares sem terem sido torturadas”. Se cada um desses presos representasse um processo, seria possível fazer uma estimativa assustadora sobre as fronteiras sempre imprecisas, ocultas, inóspitas da tortura. Nessa conta, segundo as projeções feitas sobre os números do STM, o Brasil contabilizaria 212 mil casos de tortura – o que lotaria quatro vezes a Arena ou o Beira-Rio, os estádios de Grêmio e Internacional, cada um com capacidade para 55 mil espectadores.
O quadro de denúncias formalizadas na Justiça Militar no período de 1964 a 1977 – mais da metade das duas décadas de ditadura – fotografa o endurecimento do regime ao longo do tempo. Em 1964, ano do golpe, houve 203 acusações de maus-tratos, número que se reduziu em 1965 (84 casos) e em 1966 (66 casos). Chegou ao seu ponto mais baixo em 1967 (50 casos) quando Costa e Silva sucedeu a Castello Branco. Voltou a subir em 1968 (85 casos) e em 1969 foi vinte vezes maior do que a marca de dois anos antes: 1.027 denúncias de tortura – segundo a meticulosa tese de mestrado de 2006 da historiadora da UFRGS Caroline Silveira Bauer – Avenida João Pessoa, 2050 – 3º andar: terrorismo de Estado e ação política do DOPS-RS (1964-1982).
O país tinha irrompido o ano já sob o império do AI-5, e 1969 acabou com o Brasil governado por uma patética junta militar, que ocupou por dois meses o vazio de poder provocado pelo derrame que matou Costa e Silva. O ano seguinte, 1970, que marca a promoção de Seelig como diretor da Divisão de Segurança Social do DOPS, registra também a estreia retumbante do general Médici e o ápice dos porões da repressão: foram 1.206 denúncias de tortura.
A taxa se manteve em nível elevado no período restante dos Anos de Chumbo: 788 denúncias de tortura em 1971, 749 em 1972 e 736 em 1973. Caiu dramaticamente no último ano de Médici, 1974, quando se registraram apenas 67 casos. A violência voltou a explodir em 1975, no primeiro ano do general Geisel no Planalto, com 585 casos de tortura – quase dez vezes mais do que o saldo do derradeiro ano de Médici no Planalto.
RS, maior concentração da tortura
Os parcos registros do STM assinalam apenas 122 denúncias de tortura no Rio Grande Sul nesses treze anos iniciais de ditadura. Embora distantes da realidade, os números mostram percentualmente o peso do DOPS de Seelig no terrorismo de Estado. Um total de 48 casos, 43% do total, se localizam nas dependências do segundo andar do Palácio da Polícia, quintal onde reinava Seelig e seus asseclas.
A pancadaria no DOPS de Seelig não era um exagero individual da repartição. Era uma prática institucional do regime, que acabava chancelando por cima o que se cometia por baixo. No mesmo período, o balanço do STM mostra outros 17 casos de torturas espalhados por sete quartéis diferentes de guarnições do Exército em quatro cidades distintas do Rio Grande do Sul – Livramento, Santo Ângelo, Cruz Alta e Porto Alegre. Trinta denúncias de tortura atingiram quartéis da Brigada Militar em Passo Fundo, Três Passos e na capital gaúcha.
A extensa fronteira seca do Rio Grande do Sul com o Uruguai e Argentina e o fato dos principais líderes depostos em 1964 terem se asilado em solo uruguaio explicam, historicamente, a alta concentração militar que fez do III Exército (hoje Comando do Sul) a guarnição mais poderosa do país, com as unidades reforçadas –especialmente Santa Maria, no centro do Estado, sede do maior destacamento blindado e de uma importante base aérea, com dois esquadrões aéreos de caça AMX, outro de helicópteros Black Hawk e um de aeronaves não tripuladas.
Ainda assim, é surpreendente que esteja no Rio Grande do Sul a maior concentração de instalações identificadas pela Comissão Nacional da Verdade como centros de tortura ou, na elegante terminologia da CNV, “locais de graves violações de direitos humanos (1964-1985)”. Os 230 centros revelados no país se espalham por 23 Estados (as exceções são Mato Grosso, Acre, Rondônia e Roraima) e o RGS é o primeiro da lista, com 39 locais de tortura, superando até mesmo o Rio de Janeiro (38) e São Paulo (26).
Veja o mapa da CNV:
Relatório CNV, Volume I, Cap. 15, pg 830
RS, campeão nacional de centros de tortura: o DOPS de Seelig é o maior e mais sangrento dos 39 no Estado
O trio parada dura de Seelig
É impossível dimensionar, com precisão, o tamanho do circo de horrores que Seelig imprimiu, com sangue, suor e lágrimas, na carne e na alma de tanta gente que passou por suas mãos. Nessa tarefa desalmada, teve ao seu lado um trio diabólico de policiais truculentos que obedeciam cegamente suas ordens e o poupavam de maiores esforços físicos. Os outros batiam por ele, mas seu perfume angustiante estava sempre ali, na sala de torturas, pairando acima dos corpos, excitando os comparsas, envenenando o ambiente de miséria e terror.
O trio era formado por três inspetores: Nilo Hervelha, Nelson Pires e Itacy Vicente, que atendia pelo sugestivo apelido de ‘Mão-de-Ferro’. Todos os três foram parceiros na sessão de tortura no DOPS com mangueira e ventilador que levou o jovem Arébalo à morte, após o ‘susto’ ordenado por Seelig, seu devotado pai adotivo.
O pior deles era Hervelha, codinome ‘Silvestre’, considerado o mais sádico e violento de um trio temido pelos sobressaltados frequentadores, nada voluntários, daquele martírio em terra gaúcha. Hervelha tanto fez e aconteceu, sob as ordens de Seelig, que acabou arranjando um lugar na lista de 377 torturadores do relatório final da CNV: é o número 318.
Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21 Correio do Povo
João Carlos Bona Garcia e seu torturador
João Carlos Bona Garcia era um jovem de 24 anos, militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), quando foi preso em abril de 1970 na feroz blitz da repressão desencadeada duas semanas após o frustrado sequestro do cônsul dos Estados Unidos. Foi levado diretamente para o DOPS de Seelig. Ele lembrou sua agonia no livro de memórias, Verás que um filho teu não foge à luta, lançado em 1989:
Entrei encapuzado e quando me tiraram o capuz vi sangue nas paredes, sangue no piso, pessoas ensanguentadas jogadas no chão e se arrastando, rostos inchados, corpos cheios de marcas e feridas, olhos em fogo, bocas contraídas mostrando coágulos no lugar dos dentes, gemidos e soluços, uivos de dor. Lembrei imediatamente do matadouro. Tive a sensação de estar num matadouro de gente.
No dia seguinte, marcado pelas queimaduras de ponta de cigarro, Bona Garcia foi levado para a “fossa”, a mesma sala do DOPS onde Arébalo começou a morrer. Bona Garcia conta:
Havia um gerador elétrico manual, a ‘maricota’, para dar choques elétricos. Conforme a velocidade na manivela, a voltagem ia subindo, até mais de trezentos volts (…) Foram me amarrando fios nas orelhas e dando choques na cabeça. A primeira vez dá uma sensação terrível. Com o choque nas orelhas se perde a visão, na hora fica tudo escuro (…) O pessoal da polícia ficava à volta, enlouquecido, gritando de prazer. Especialmente o Nilo Hervelha. Era o mais sádico, um dos piores torturadores, o mais cruel. Era também ligado ao tráfico de drogas. Durante as torturas chegava ao orgasmo. (…) Já o major Attila Rohrsetzer mostrava uma volúpia especial torturando mulheres. Especialmente nos seios e órgãos genitais.
Seelig e Hervelha devem ter ficado perplexos com os caprichos da História que, em apenas duas décadas, viraram o mundo de Bona Garcia de cabeça para baixo.
Na ditadura, Bona Garcia era assaltante de banco, terrorista e inimigo dos militares. Participou de duas ações da VPR atacando os carros pagadores do Banco do Brasil e do Bradesco. Foi banido do país, em janeiro de 1971, no grupo de setenta esquerdistas enviados para o Chile de Salvador Allende em troca do embaixador da Suíça, Giovanni Bücher, sequestrado no Rio de Janeiro por um comando da VPR liderado por Carlos Lamarca.
Na democracia, o ex-assaltante de banco virou executivo de banco. Em 1998, foi diretor do Banrisul, o banco estatal gaúcho, e presidente do Sindicato dos Bancos do Rio Grande do Sul. No regime civil, o subversivo caçado pela repressão, odiado pelos quartéis e banido pela ditadura virou subchefe da Casa Civil em 1986 do governador Pedro Simon e chefe da Casa Civil em 1998 do governador Antônio Britto. Acabou juiz da corte militar gaúcha no mesmo ano: o inacreditável ex-preso político e ex-torturado Bona Garcia sobreviveu a Seelig e a Hervelha e chegou em 2002 à presidência do Tribunal de Justiça Militar do Rio Grande do Sul. Morreu em 2021, aos 74 anos, vítima da covid-19.
Igor Sperotto/ExtraClasse Correio do Povo
Nilce Azevedo Cardoso e seu torturador
– Tira a roupa! – foi a primeira frase que a moça de 27 anos ouviu, no DOPS, logo após ser sequestrada em uma parada de ônibus no centro de Porto Alegre, na manhã de 11 de abril de 1972. Nilce Azevedo Cardoso, uma paulista que sonhava ser bailarina, ingressou na faculdade de Física quando a violência atravessou sua vida: “Entrei na USP em 1964 e, junto comigo, entraram os tanques do Exército”, dizia. No fim da década de 60 mudou-se para a capital gaúcha, já como militante da Ação Popular (AP), ligada à Igreja Católica. Em depoimento à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa gaúcha, em 1997, ela contou:
O delegado Pedro Seelig, junto com Nilo Hervelha e outros, arrancou minhas roupas. Perguntaram meu nome e eu disse: Nilce Azevedo Cardoso. Vieram então socos de todos os lados. Insistiram na pergunta, com socos na boca do estômago e do tórax. Mal podendo falar, eu disse que meu nome estava na carteira de identidade. Aumentou a violência. Ligaram fios e vieram os choques. Fiquei muda daí para a frente
Seelig mandou levar Nilce Cardoso para o pau-de-arara
Eram pontapés na cabeça e choques por todo o corpo. Minha indignação cresceu violentamente quando resolveram queimar minha vagina e meu útero. Enfiaram os fios e deram muitos choques. A dor, raiva, ódio, misturados com um sentimento de impotência, criaram-me um quadro assustador. E eu seguia muda. A raiva era tanta que eu não conseguia gritar (…). Quando eu pensava que estava morrendo, eles me tiraram dali (…).
Quando acharam que já estava melhor, eles me penduraram novamente. O meu sangue jorrava e eles enfiaram a mão pela minha vagina com jornais. Colocaram uma bacia no chão e o sangue continuava a cair. Molharam meu corpo e me arrebentaram com socos e choques. Não sei quanto tempo isso durou nem quantas vezes aconteceu esse ritual macabro. Assombrava-me ao perceber que, nos intervalos, eles comiam, conversavam, como se há instantes não estivessem cometendo aquelas atrocidades.
Nilce sofreu uma parada cardíaca. Ao tentar reanimá-la os policiais do DOPS acabaram provocando um esmagamento do seio e uma fratura no tórax. Foi levada para o Hospital Militar, ficou lá oito dias em coma. Depois voltou para o DOPS. Foi transferida para o DOI-CODI de Brilhante Ustra, em São Paulo, para novas sessões de pancada.
Voltou ao Sul e só escapou daquela tormenta de seis meses de suplício com o alvará de soltura, em julho de 1972. Tornou-se psicopedagoga e militante dos direitos humanos, trabalhando na Clínica do Testemunho, projeto que acolhe sobreviventes da ditadura, como ela. Morreu no dia 21 de fevereiro passado, aos 77 anos, 15 dias antes de Pedro Seelig.
O pintor pré-morto
Paulo Mello era um pacato pintor na praia de Xangri-lá, no litoral gaúcho, até ser preso em outubro de 1973. O DOPS não esquecera que meses antes ele integrava o MR-26, o movimento clandestino que o ex-sargento Manoel Raimundo Soares tentou infiltrar nos quartéis antes de aparecer boiando e com as mãos amarradas às costas nas águas do rio Jacuí. Foi recebido efusivamente no DOPS de Porto Alegre por Nilo Hervelha, que berrava enquanto o espancava:
– Brizolista! Comunista! Vais morrer nas minhas mãos, me fizeste de bobo muitas vezes!
O ex-tenente do Exército José Wilson da Silva, assessor de Leonel Brizola antes do golpe, relata no livro O tenente vermelho, de 1987, o que aconteceu com Paulo Mello:
Na primeira noite Pedro Seelig voltou para ver como andava o “serviço”. A sessão era debaixo da maior pancadaria. No segundo dia foi para a ‘fossa’, um cubículo sujo, escuro, com muitas marcas de sangue que Hervelha fazia questão de mostrar que tinha sido de outra pessoa que “quis bancar a durona”. (…) No “tratamento” junto com choques elétricos eram-lhe aplicados murros na cara e pauladas nas costas. Quebraram-lhe a boca várias vezes, passou pelo “telefone”, sangrava muito pelo nariz e ouvidos, o corpo todo inchado. Mesmo assim, não cedendo ao desejo das bestas, colocaram-no no pau-de-arara(…).
Num dia em que as forças estavam lhe faltando, chamaram o médico (…). [O médico] examinou-o, deu-lhe um remédio e disse a Seelig que não o espancasse mais, que o estado [de Mello] era de pré-morte.
Os boatos de que havia morrido debaixo de pau obrigaram o DOPS de Seelig a provar que Paulo Mello estava, ao menos, semivivo. Decidiram quebrar sua incomunicabilidade e permitir uma única visita – da mulher e do filho. Antes tiveram o cuidado de lavar e limpar o preso para lhe dar um aspecto mais apresentável. Não adiantou.
Ele surgiu diante da família com sangue purgando pelos ouvidos, olhos e nariz, além de hematomas no corpo. Ao ver o pai naquele estado, mais pré-morto do que semivivo, o filho sentiu-se mal. Teve que ser atendido por um médico. O pintor e ex-guerrilheiro foi libertado condicionalmente em 1975. Estava com os rins destroçados, os ouvidos rompidos, os nervos em frangalhos. Sofreu um derrame cerebral, ficou com o lado esquerdo do corpo paralisado. Paulo Mello nunca mais pintou.
DOI-CODI rejeita torturado do DOPS
Hilário Gonçalves Pinha, dirigente do PCB no Sul, foi preso em março de 1975 pelo Exército. Passou um mês incomunicável, mas ileso, na Polícia Federal e daí foi entregue ao DOPS de Seelig. Seu calvário começou ali, numa equipe de torturadores que incluía o irremediável Nilo Hervelha, o bate-estaca de Seelig. Pinha passou por sessões de afogamento, choque elétrico e pancada. Teve a barriga pisoteada, quatro costelas quebradas e os intestinos e o fígado rompidos em várias partes. Na madrugada de 24 de abril, desmaiado, com o abdômen inchado pela mistura de seis quilos de sangue e fezes, Pinha foi transportado pelo DOPS de Seelig até a base aérea de Canoas, requisitado pela Justiça Militar de São Paulo.
O estado dele era tão deplorável que o piloto da FAB, um oficial da Aeronáutica, exigiu uma prévia inspeção médica do paciente e o acompanhamento de um enfermeiro militar no voo. O preso estava tão machucado que nem o DOI-CODI de São Paulo quis receber aquela mercadoria tão estragada, ainda sem assistência médica. Ao ser transferido para o DOI-CODI de Ustra, o chefe do Estado-Maior do II Exército, general Antônio Ferreira Marques, exigiu um ofício atestando as condições deploráveis do preso remetido pelo DOPS de Seelig. O médico do DOI-CODI o mandou para o pronto-socorro e lá perceberam que ele precisava de uma cirurgia de emergência. Acabou sofrendo cinco intervenções cirúrgicas no abdômen no prazo de um mês no Hospital das Clínicas. Perdeu 80% dos intestinos e a capacidade de trabalhar. Devolvido a Porto Alegre em julho de 1975, Pinha foi submetido a mais quatro cirurgias no abdômen no Hospital Militar.
Em 1979, entrou com uma inédita ação pelas torturas sofridas. Em dezembro de 1981, o juiz Moacir Álvares, da 2ª Vara Federal de Porto Alegre, condenou a União como responsável pelos danos físicos produzidos pela tortura em Hilário Pinha. Foi o primeiro preso político do país a ter reconhecido o direito à indenização pelos maus-tratos da ditadura. Hilário Pinha morreu de câncer em Porto Alegre em 2006. Tinha 79 anos.
Naquela manhã de agosto de 1971, a estudante de Economia da UFRGS Marinês Grando, às vésperas de completar 24 anos, só conhecia a fama de truculência do inspetor Nilo Hervelha. Seria apresentada minutos depois ao seu estilo de trabalho, ao ser arrastada para um Fusca estacionado na avenida Salgado Filho, no centro de Porto Alegre, onde encontrou o companheiro preso cinco dias antes. Começou a apanhar já no banco de trás do carro, no curto trajeto de dez minutos até o DOPS de Seelig.
Hervelha lhe dava tapas no rosto e socos nos seios. Ao descer do carro foi levada ao segundo andar, passou por uma espécie de guichê e ingressou em uma sala grande, sem móveis, sem janela. Ali tudo escureceu. Sua cabeça foi coberta com um capuz, que dificultava a respiração com o forte fedor do vômito de presos anteriores. Ela foi despida e ficou por algumas horas em pé, rodando como pião sob gritos, ameaças, piadas obscenas e pontapés no traseiro. De repente, mudou o cenário.
Marinês, sempre encapuzada, foi levada através de um corredor com salas menores de um lado e outro e, no final, um banheiro. A superpopulação de presos obrigara o DOPS a transformar algumas salas em celas, onde jogaram colchões no chão para os presos dormirem, sempre com a luz acesa. Chegou enfim à sala de interrogatório – e a escuridão do capuz foi subitamente trocada pelo clarão ofuscante do holofote jogado sobre seu corpo nu, que tremia de frio, vergonha e medo.
Arquivo pessoal Correio do Povo
Marinês Grando e seu torturador
O holofote libidinoso na ruiva nua
Com cabelos ruivos e lisos, Marinês tinha pele clara, um rosto fino e uma fisionomia triste. Sob o brilho do holofote, ela percebia o intenso vai-e-vem na sala, como contou ao autor deste texto, em depoimento em 2008 para o livro Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios:
O interrogatório se prolongou pela noite adentro com muitas presenças, todas masculinas, todos agitados, entrando e saindo pela única porta daquela sala claustrofóbica, sem janelas. Eles todos no escuro e eu, nua, sob os holofotes. Diziam que queriam ver como era uma mulher ruiva, riam e batiam palmas. Na escuridão do lado de lá dava para eu distinguir a figura bem trajada do delegado Pedro Seelig, posicionado diante do bando de machos excitados e à frente do interrogatório.
Agitados pela rara visão daquela bela mulher de curvas bem delineadas no esplendor de seus 24 anos, toda nua e toda ruiva, eles se divertiam. Marinês chegoua pensar que seria estuprada, pelo grau de excitação no ar, mas ninguém a tocou. No limite entre a luz e a treva, o delegado Seelig, de terno e gravata, parecia controlar o foco de luz do holofote que lambia, libidinoso, o seu corpo indefeso.
Naquele teatro que misturava violência e degradação, Seelig fazia o papel do brincalhão, tentando se mostrar gentil e afável em meio a tanta sordidez. Durante todo o tempo, entre risos e piadinhas, Marinês ouvia perguntas sobre o POC (Partido Operário Comunista), suas ligações políticas e a atuação do grupo junto ao movimento estudantil.
Quando o show terminou, o holofote foi desligado e ela colocada em uma cela com outra mulher, uma paulista da luta armada que havia sido violentada nos cárceres do DOI-CODI de Ustra. Estava toda arrebentada pela tortura e, ainda assim, era ‘tratada’ por um médico do DOPS para aguentar a sessão seguinte de suplício. Desestruturada pela violência, ela imediatamente procurou o colo de Marinês. Embora adulta, a jovem encolhida em posição fetal comportava-se como um bebê desamparado, em busca do conforto materno.
A expressão melancólica de Marinês ficou ainda mais triste.
Na quinta-feira, 12, dois policiais levaram Marinês de volta ao seu apartamento. Entraram com a chave da presa e reviraram tudo, recolhendo alguns livros e deixando para trás tudo bagunçado. No dia seguinte Marinês completou 24 anos. A notícia se espalhou pelos corredores e celas do departamento. Todo mundo queria ver, de perto, aquela moça azarada que fazia aniversário em uma sexta-feira, 13 de agosto – e ainda presa no DOPS.
Marinês foi liberada quarenta dias após sua prisão. Ela saiu da cadeia enquadrada na Lei de Segurança Nacional, com hematomas na alma mais fundos que as dores no corpo. Ela perdeu o emprego na clínica médica onde trabalhava. Não houve explicação. Nem precisava.
Em liberdade, continuava vigiada e seguida a todo momento. Certo dia, em uma rua meio deserta do bairro Floresta, um sujeito de uns 25 anos se aproximou e lhe falou ao pé do ouvido:
– Eu te vi nua, eu te vi nua, eu te vi nua!…
Era um dos “machos do DOPS de Seelig”, que ela não reconhecia. Marinês saiu dali correndo, apavorada. Perdeu todas as cadeiras do semestre no curso da faculdade. Amigos esfumaram-se, parentes afastaram-se. Conseguiu um emprego provisório em um órgão de pesquisa estadual. Meses depois ele tornou-se a Fundação de Economia e Estatística (FEE), vinculada à Secretaria de Planejamento estadual, que a contratou como economista em 1974. Três anos mais tarde, ela fazia um doutorado na Universidade de Paris I quando se viu, inesperadamente, no centro da guerra de estrelas em Brasília entre Geisel e Frota.
Marinês era um dos 97 “comunistas” infiltrados na administração pública, segundo a lista dedo-duro que o general Sylvio Frota, ministro do Exército, divulgou na tarde de 12 de outubro de 1977, horas depois de ser demitido pelo presidente Ernesto Geisel. Nove nomes da lista atuavam no Rio Grande do Sul, quatro deles eram economistas na FEE – entre os quais Marinês Grando e uma colega chamada Dilma Rousseff. Marinês só não foi demitida, como os outros três, porque estudava na França, protegida por um acordo internacional que lhe garantia ficar por lá até a poeira baixar. Ela só voltou da França em outubro de 1978 – sete anos após sua prisão, às vésperas da anistia.
O tour de terror de Seelig
O DOPS de Seelig estava em temporada de caça ao POC, integrado por Marinês. O DOPS localizou três ‘aparelhos’ da organização em Porto Alegre e prendeu 30 militantes, entre eles sete universitários das federais de Porto Alegre e Santa Maria. Um dos comandantes do POC era casado com a secretária de um dos jornalistas mais famosos do Rio Grande e do Brasil: Paulo Totti, 33 anos, o respeitado chefe da sucursal da revista Veja em Porto Alegre, que depois teria fulgurante carreira em São Paulo e Rio, nas redações de Veja, Gazeta Mercantil, Jornal do Brasil, O Globo e Valor Econômico. Seelig avisou a sucursal que queria ouvir Totti, naquele momento fazendo uma cobertura jornalística na Argentina. “É um simples esclarecimento de rotina, coisa rápida”, tranquilizou Seelig.
Quando Totti voltou a Porto Alegre, na manhã de terça-feira, 10 de agosto de 1971, lá estavam no aeroporto a mulher e os dois filhos, de sete e quatro anos – e um cidadão elegante de terno, gravata e cabelos grisalhos, que ele não conhecia, mas se apresentou:
– Sou o delegado Pedro Seelig, do DOPS. Tu estás convidado a ir até lá hoje à tarde – falou, com a fidalguia de um recepcionista que dá as boas-vindas ao turista recém-chegado. Simpático, passou a mão na cabeça dos dois filhos de Totti, de sete e quatro anos, voltou a encará-lo e elogiou:. – Teus filhos são muito bonitos. E não falte, hein?
Ricardo Chaves Correio do Povo
Paulo Totti e seu torturador
À tarde, atendendo ao cordial convite de Seelig, Totti se apresentou no DOPS acompanhado pelo gerente da Editora Abril, Michel Barzilai. A dupla foi recebida cortesmente por Seelig, que os levou até sua sala, no segundo andar do DOPS. O delegado voltou a dizer que precisava de Totti para responder apenas algumas perguntas, que exigiriam só algumas horas de permanência ali.
– Ele será bem tratado – tranquilizou.
No embalo, escancarando um sorriso, Barzilai tentou ajudar:
– O Totti só pensa em trabalhar, delegado. Ele é um cara pacífico…
Seelig emendou, retribuindo o sorriso:
– Todos dizem isso, mas tu precisas ver os trabucões que eles usam – replicou, sem esclarecer quem eram “eles”. Barzilai ainda sorria quando o delegado o levou até a porta e o despediu com um abraço e um rijo aperto de mão. Mal fechou a porta, ao se virar Seelig já se transformara. Totti se levantava da cadeira quando o sorriso do delegado simpático à porta se desfez de repente. Seelig, de rosto crispado, aproximou-se e lhe desferiu uma violenta cutilada no ombro esquerdo. O golpe inesperado com a parte externa da mão direita do policial atirou Totti de volta à cadeira. A pancada doeu. Totti ficou surpreso com a violência repentina. Seelig sorriu:
– O que é isso, Totti? Não me leve a mal. É só pra mostrar que aqui a coisa é mais dura do que parece…
– Vou te mostrar nossas instalações – emendou o delegado, percorrendo os corredores do DOPS com o orgulho de quem mostra o conforto de um estabelecimento cinco estrelas. Apresentou as celas e uma delas, no final de uma sala grande, escancarou o inferno daquela hospedaria fora de catálogo: havia dois presos ali, pendurados no pau-de-arara como dois frangos expostos na vitrine.
Um deles era uma mulher pequena, encolhida, totalmente nua, que soluçava em um ritmo cansado. Ignês Maria Serpa de Oliveira, 21 anos, a Martinha da VAR-Palmares, estava naquele antro há quatro meses. Parecia ter chorado muito, durante muito tempo, e o soluço agora era sua última demonstração de alento. Seelig nem olhou para ela. Perguntou ao sujeito que estava ao lado, comandando o interrogatório:
– Tudo bem aí? Alguma novidade? – falou, como quem confere mecanicamente a mercadoria na prateleira. O homem respondeu com um grunhido, que soou como um “até agora, nada”, e Seelig entendeu. Fechou a porta e conduziu Totti para uma nova atração da casa: abriu a porta de outra sala e, com um gesto de mão, mostrou a cena à sua frente. Um homem no pau-de-arara, com a cueca vermelha de sangue. Na cadeira ao lado, outro preso, sentado, com os pés amarrados e fios enrolados em torno dos dedos. Tinha o rosto todo machucado, um dos olhos parecia saltar da órbita ensanguentada.
A visitação parecia ter chegado ao fim. Seelig levou Totti a uma cela onde havia mais duas pessoas e um beliche. Apontou para a parte superior da cama: – Tu vais ficar aqui, por enquanto. Amanhã vamos conversar. Acho que não vou precisar te levar para aquelas celas que visitamos há pouco, né? – disse, em tom que fundia ironia e ameaça.
Totti na “cadeira do dragão”
Nada aconteceu no resto do dia. Na manhã seguinte, quarta-feira, 11, Seelig voltou. Pediu que Totti descrevesse toda a sua vida, contasse o que pensava da política, do governo, do regime.
A “cadeira do dragão” é uma cadeira pesada, com assento, apoio dos braços e espaldar revestidos de zinco. Os pés e os pulsos de quem ali senta são amarrados e as pernas empurradas para trás por uma travessa de madeira. Na parte traseira existe um terminal onde se acopla o magneto que transmite a corrente elétrica, gerada manualmente pela manivela conectada a um dínamo. A “pimentinha” dos torturadores ardia no corpo dos torturados, graças aos cem volts que produziam uma corrente de dez amperes. Uma voltagem duas vezes menor já produz fibrilação ventricular. Com a pele molhada ou a voltagem aplicada diretamente na pele por eletrodos, uma carga de apenas quarenta volts pode ser letal. Um choque de meros dezesseis volts, aplicados diretamente no coração, leva à morte. A ponta dos fios conectados ao dínamo era fixada em pontos sensíveis do corpo – como o mamilo, situado exatamente sobre o músculo cardíaco. (Continua)
Pergunto: qualquer país que se pretenda civilizado pode conviver com esse nível de desinformação?
por Luis Nassif
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Fato: a não descoberta do mandante do assassinato de Marielle só tem uma explicação: sua enorme influência política.
A partir daí, duas hipóteses: ou alguém ligado aos Bolsonaro ou às forças de intervenção, chefiadas por Braga Neto. Não há outra hipótese de poder político
O próprio Ministro da Justiça da época, Raul Jungmann, falou em personagens influentes. Não estava se referindo obviamente a nenhum chefe de milícia.
Pergunto: qualquer país que se pretenda civilizado pode conviver com esse nível de desinformação?
O assassino era contrabandista de armas e vizinho do presidente da República. E os filhos do presidente eram ligados ao chefe do escritório do crime. Como pode a ex-7a potência do mundo normalizar esse nível de suspeição em relação ao seu presidente? Bater no Monark é fácil.
Braga netto disse que poderia apontar culpados, mas não queria “protagonismo”. Como assim? Ele era o interventor do Rio.
Em 2018, ainda no governo Temer, Braga Netto diz que a solução está próxima. Depois se cala e se torna o superpoderoso Ministro de Bolsonaro. Não há nada de estranho nisso?
Há duas hipóteses terríveis. Espero que nenhuma se confirme. A 1a, de envolvimento da intervenção com a morte de Marielle (menos provável). A segunda, a de um general que, dispondo de informações, chantageou o presidente da República, livrando-o da suspeita de um crime abjeto
República dos assassinos. O esquadrão da morte no poder. Às favas com os escrúpulos, juiz ladrão, com o supremo, com tudo. Nunca vi tanta desgraça junta.
Darcy Ribeiro, junto ao túmulo de Glauber Rocha: "O Glauber morreu de Brasil!" O Brasil é a doença que está nos matando, a todos. Os que não estão morrendo, figurativa ou literalmente, ou não se dão conta dessa doença, não são brasileiros.
São os assassinos, são as autoridades que cometem genocídio por omissão, ou homicídio através de sicários.
Gente para quem a morte dos outros é fonte de prosperidade.
Matar indiscriminadamente, ou matar alvos certos, para essa gente dá no mesmo.
Bandido bom é bandido morto. Batalhadores (cf. Jessé Souza) bons são batalhadores mortos. Matar, matar, matar. Como eu não morri, tanto se me dá.
Perceber ódio, visceral ou não, nos olhos de vizinhos - gente que mora a poucos metros de nós - diante de certas notícias, é estarrecedor e deprimente.
E é essa gente, que nos cerca, que são os verdadeiros fâmulos da morte, ainda que os escandalize apontar-lhes essa pecha.
Meu cunhado relativizou a morte de Marielle Franco, ocorrida no dia do meu aniversário, fazendo eco a algumas fake news divulgadas logo depois - fotos, inclusive - que mostrariam a vereadora convivendo com traficantes. E era um homem bom, divertido, bom pai e bom marido, adorava cachorros. A cara dele, com o desmascaramento dessas mentiras, e o surgimento da verdade sobre os Bolsonaro, depois? Dir-se ia, 'não tem preço'. Mas tem, na verdade. Perder um pouco de fé, na humanidade.
Essa gente que comemora mortes, de quem quer que seja, deixa pelo caminho um pouco de sua humanidade; depois retornam desse pesadelo, mas retornam diferentes. Sempre com uma ponta de desconfiança do nosso renovado acolhimento. Creio que acalentam uma última esperança de poder dizer: 'tá vendo, eu tava certo!'
Ficam à espera de uma prova contra o Lula. De uma prova de que a esquerda matou Marielle. De uma prova que Adélio era um agente do PSOL. De uma prova de que Sérgio Moro não foi parcial. De uma prova que o Brasil está sob iminente ameaça dos comunistas.
Não sei. De uma prova de que o mundo é, de fato, como eles acham que é.
Em resumo: uma república dos assassinos, de esquadrões da morte, escrúpulos mandados às favas, de juízes ladrões, com o supremo, com tudo.
Contanto que fiquem sob a guarda de um ser benevolente, déspota ou não, tudo estará bem.
Não querem ser livres, nem autônomos, querem estar sob a proteção de algo, querem estar a salvo de pobres, pedintes, desvalidos, favelados, todos esses seres repugnantes que nos incomodam à mesa, nas ruas, no trabalho, nos aeroportos e nas universidade.
World Brands tem sede em Itajaí (SC), município onde fica localizado um dos principais portos de saída de madeira no Brasil, inclusive de origem amazônica; sócio administrador já foi condenado por falsificação de documentos de importação
Quando era ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello teria negociado 30 milhões de doses da vacina chinesa Coronavac pelo triplo do preço que o produto é vendido pelo Instituto Butantã, parceiro oficial responsável pela fabricação do medicamento no País. O vídeo em que o militar aparece com quatro supostos representantes da empresa foi publicado pela Folha. A reunião foi no dia 11 de março e não constava na agenda oficial divulgada pelo ministério.
Fundada em 2004, a World Brands tem capital social de R$ 5 milhões e faturamento anual presumido entre R$ 360 mil e R$ 4,8 milhões. O contrato total era de R$ 4,65 bilhões, pela cotação da época. Cada vacina sairia por US$ 28. O empresário que aparece na reunião identificado como John se apresentou como “parceiro” da World Brands. A empresa se limitou a afirmar que a negociação não foi concluída.
Com sede em Itajaí (SC), a World Brands iniciou suas atividades, segundo seu próprio site, como exportadora de madeira. O porto localizado no município é um dos mais usados para a exportação do produto, inclusive de origem amazônica. A World Brands tem escritórios em Maceió e Paranaguá (PR), cujo porto é bastante utilizado para a exportação de madeira da floresta.
Ainda segundo o site, a World Brands passou a trabalhar com importações dois anos depois. Entre as atividades da World Brands — que tem também o nome fantasia Marfim Comércio, Importação e Exportação, nome da empresa antecessora — está a distribuição de produtos importados em território nacional. A Mormaii e a Duracell são as marcas mais conhecidas que eles apontam como antigos parceiros.
EMPRESÁRIO FOI CONDENADO POR FRAUDE EM IMPORTAÇÕES
DA CHINA
Sede da World Brands, em Santa Catarina
Sócio-administrador da empresa, Jaime José Tomaselli foi condenado pela Justiça Federal em Itajaí pelo crime de falsidade ideológica. Segundo o processo, ele é acusado de ter cometido a irregularidade em declarações de importação de março de 2007. Ele teve um habeas corpus relacionado ao caso rejeitado pelo Superior Tribunal de Justiça (TJ) em julho de 2018.
Tomaselli também teve um agravo de recurso especial negado pelo tribunal no ano anterior para a redução da pena, de cerca de dois anos de reclusão. Coincidentemente, as irregularidades teriam sido cometidas na importação de produtos vindos da China.
A negociação com intermediários se soma a diversas denúncias de irregularidades na gestão do Ministério da Saúde pelas quais o general já é investigado. A distribuição de medicamentos ineficazes para o combate à Covid-19 e a omissão diante da falta de oxigênio para os pacientes de Manaus no início deste ano já são alvos da Polícia Federal.
As relações empresariais de Pazuello e sua família já foram assunto de reportagens do De Olho nos Ruralistas em março. Quando era criança, Eduardo Pazuello era sócio de uma financeira, a S.B. Sabbá, um dos embriões do banco Garantia, fundado por Jorge Paulo Lemann, hoje sócio da AB Inbev. Aos 8 anos, Eduardo era representado na empresa, assim como os irmãos, por Artur Soares Amorim, antigo chefe de gabinete de Roberto Campos no Ministério do Planejamento, no início do governo Castelo Branco, em 1964.
IRMÃO DE GENERAL CHEGOU A SER PRESO POR ESTUPRO E CÁRCERE PRIVADO
A família Pazuello esteve ligada por casamentos e sociedades empresariais com o clã dos Sabbá, um dos mais poderosos na história da Amazônia. Ambas de origem judia sefaradita — migrantes que deixaram Marrocos no início do século 20 — participaram ativamente dos ciclos de exploração dos recursos naturais da região ao longo do período, do ciclo da borracha à ocupação promovida pela ditadura de 1964.
Antes da passagem do general pelo Ministério da Saúde, o familiar mais enrolado com a Justiça era o irmão Alberto, acusado de participar nos anos 90 de “A Firma”, um grupo de extermínio que atuava em Manaus. Com a participação de policiais civis e militares e o apoio ou conivência de autoridades da segurança pública estadual, os primeiros esquadrões da morte surgiram durante a ditadura e foram precursores do que hoje muita gente chama de milícias.
Alberto foi preso duas vezes na época, sob a acusação de porte de drogas e de armas, estupro, atentado violento ao pudor e cárcere privado. Do período, resta um processo em que responde no 2º Tribunal do Júri de Manaus por homicídio, sem qualquer decisão nesses 25 anos. Segundo a assessoria de imprensa do Ministério Público estadual do Amazonas, um dos motivos para a demora foi que alguns documentos do processo foram perdidos e estão tendo de ser restaurados nos autos.
Em 6 de maio, ao ver as cenas da chacina de 28 jovens da comunidade de Jacarezinho pela Polícia Civil do Rio de Janeiro às ordens do governador Cláudio Castro (PSC), me veio à memória nossa longa e tenebrosa história de chacinas e suas origens num Brasil remoto e bem próximo a nós. No passado tínhamos os jagunços e os pistoleiros de aluguel, que sobrevivem até hoje alugando suas mãos e armas para assassinar líderes rurais e ambientalistas, sindicalistas e políticos.
Lembro aqui 3 líderes, vítimas de pistoleiros de aluguel em pleno vigor da vida e da militância: Margarida Alves, líder dos camponeses e trabalhadores rurais da Paraíba; Chico Mendes, destacado ambientalista e defensor da Amazônia; e Marielle Franco, vereadora do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), assassinada pelas milícias.
Nosso Brasil escravocrata, quando ainda colônia, conviveu com as bandeiras e com os capitães do mato. Na República Velha e mesmo durante os anos da Constituição de 1946, o latifúndio impunha no campo sua lei e vontade pelas mãos de jagunços e pistoleiros de aluguel sob as vistas de uma Justiça cúmplice. Nada muito diferente dos dias de hoje, em que assassinatos de representantes dos trabalhadores rurais continuam impunes.
ESQUADRÕES DA MORTE
Também é preciso lembrar da prática da tortura como política de Estado e do assassinato de opositores no Estado Novo (1937-1945) e durante a longa Ditadura Militar (1964-1985). Nos porões da Operação Bandeirantes —financiada por empresários e organizada por policiais civis e militares das Forças Armadas, com pleno conhecimento de seus estados-maiores e dos presidentes militares de plantão—, surgiram facções criminosas que passaram a controlar o jogo do bicho e o tráfico de drogas. Essas facções muitas vezes usavam dinheiro e propriedade dos presos torturados ou assassinados para financiar suas atividades. Um exemplo dos expoentes dessa prática odiosa foi o capitão Guimarães, famoso no Rio de Janeiro e nos carnavais da Unidos de Viradouro.
Quando cheguei em São Paulo, em 1961, ainda bem jovem, era comum se ouvir sobre as práticas violentas e criminosas da polícia mineira e também sobre esquadrões da morte, grupos de extermínio que atuavam à sombra dos governos e da Justiça. O mais famoso era o comandado pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, de São Paulo.
Esses esquadrões, além de assassinar “suspeitos” e desovar “presuntos”, vendiam proteção para comerciantes e ficavam com os despojos e bens dos assassinados ou extorquidos. Como é sabido, esses mesmos policiais civis e militares serviram depois à ditadura e se associaram aos Doi- Codi na repressão criminosa às oposições em geral, e não só aos guerrilheiros, como provam os covardes assassinatos do deputado Rubens Paiva e do jornalista Vladimir Herzog, entre tantos outros.
HERANÇA DOS PORÕES
As práticas criminosas que pareciam ter sido enterradas no processo de redemocratização do país começaram a ressurgir pela conivência de governantes com o crime organizado e a violência policial e pela falência das políticas públicas —não só a de segurança— nas grandes cidades brasileiras. O nome no século 21 dos que foram os esquadrões da morte que extorquiam e matavam é milícia. As milícias, que se espalham pelo país, de Belém a Porto Alegre, já controlam 27,7% dos bairros do Rio de Janeiro, onde vivem 2,178 milhões de pessoas, ou seja, 33,8% da população da cidade, segundo o relatório “Expansão das Milícias no Rio de Janeiro” (íntegra – 1 MB), de janeiro deste ano, produzido pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni/UFF) e Observatório das Metrópoles (Ippur/UFRJ).
Apresentadas por alguns governantes e muito especialmente pela família Bolsonaro como solução para combater o controle de territórios pelo tráfico organizado e trazer segurança à população, as milícias não passam de bandos de criminosos. A pretexto de vender proteção às famílias e empresas, essas organizações, compostas geralmente por ex-policiais militares, controlam a economia das comunidades onde atuam e a vida de seus moradores. Vendem, ilegalmente, serviços como os de energia, gás, TV.
Também atuam no mercado imobiliário, no de transporte, vendem produtos roubados e até controlam alguns órgãos públicos. E se impõem pelo terror, por ameaças e pela chantagem, quando não pelo assassinato de “inimigos” na disputa de territórios com o tráfico de drogas.
O avanço das milícias é proporcional à ausência do Estado nesses territórios, onde fracassou mais do que a política de segurança. Nesses locais também faltam educação, saúde, atividades culturais, saneamento, transporte público e emprego para os jovens. Carências crônicas, fruto da desigualdade social e da concentração de renda, o problema mais agudo do país que emerge em toda sua dimensão nas periferias das grandes cidades brasileiras e nas comunidades.
A pretexto de combater o tráfico, as milícias vão expulsando, no caso do Rio de Janeiro, os grupos de traficantes do Comando Vermelho, Amigos dos Amigos, Terceiro Comando Puro para assumir seu lugar. Hoje, já respondem por 58,6% dos territórios sob controle do crime organizado, de acordo com o relatório já citado. Da Barra da Tijuca a Jacarepaguá temos um arco dominado pelas milícias, inclusive em bairro de classe média, revelando uma coincidência entre a votação de Bolsonaro e seus candidatos e esse território. Essa falência do Estado foi, em parte, camuflada pela atuação das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), que fracassaram, em grande medida, pela corrupção, cooptação e colaboração de amplos setores da Polícia Militar com o crime organizado.
Do controle de territórios as milícias passaram ao controle político de eleitorados, com a eleição de vereadores e deputados ligados a elas, o que também se verifica em menor grau com o tráfico. Foi um salto rápido. Hoje temos representantes das milícias não só nos legislativos, mas em governos e nas máquinas públicas, como decorrência da corrupção e da cooptação de funcionários públicos. Políticas de segurança, nomeações e promoções, legislação urbana, de transporte, são hoje, em muitas câmaras municipais e assembleias legislativas, determinadas pelas milícias.
A bárbara e covarde chacina de Jacarezinho é mais um capítulo da falência da segurança pública, que infelizmente não conseguiu ser detida nem pelas UPPs, nem pelas operações de GLO (Garantia da Lei e da Ordem). A pura e simples eliminação, assassinato, execução, como nos tempos dos esquadrões da morte de triste histórico no Rio de Janeiro —as tragédias de Vigário Geral, Alemão e Calendária não nos deixam esquecer— é a opção pela guerra como solução.
Como revelam fotos e vídeos da chacina e depoimentos de moradores, 28 jovens, 13 dos quais sequer eram investigados, foram assassinados a sangue frio, executados, quando se entregavam ou quando encontrados em casas onde se esconderam. Tudo isso na frente de famílias e crianças. E levanta-se suspeita sobre a morte do policial civil André Frias, pois foi baleado quando descia de um veículo policial e não em confronto.
Estamos falando de um ato de barbárie pela mão do Estado por meio de sua Polícia Civil. E não se trata de um caso isolado. Infelizmente, trata-se de um padrão, de uma política planejada que substitui a prevenção, a inteligência, a presença do Estado com políticas públicas para as favelas e bairros, e para os jovens pela guerra e extermínio de grupos e organizações criminosas. Uma guerra sem nenhum efeito prático na diminuição do tráfico ou do aliciamento de menores, razão apresentada para a operação.
DEBATE NACIONAL
A opção do povo não pode ser escolher entre o tráfico e as milícias. E o país não pode aceitar a pena de morte para suspeitos. Suspeitos que o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, chamou de “bandidos” e o delegado Felipe Curi, do Departamento Geral de Polícia Especializada do Rio de Janeiro, considera criminosos como se condenados fossem, sem o devido processo legal, substituindo a Justiça e instituindo, na prática, a pena de morte, proibida pela Constituição Federal.
Gravíssimo é o fato de a operação da Polícia Civil em Jacarezinho ter sido feita à revelia da decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), de junho de 2020, que proibiu operações em favelas do Rio durante a pandemia. E mais grave ainda o que disse o presidente Jair Bolsonaro ao dar parabéns, no Twitter, à Polícia do Rio de Janeiro pela operação: “Ao tratar como vítimas traficantes que roubam, matam e destroem famílias, a mídia e a esquerda os igualam ao cidadão comum, honesto, que respeita a lei e o próximo. É uma grave ofensa ao povo que há muito é refém da criminalidade”.
A letalidade trágica da política de segurança no Rio de Janeiro e em todo país, expressa no altíssimo número de mortos (944, incluindo policiais, desde a decisão do STF) exige uma imediata e radical mudança em toda a estrutura policial e na política de segurança pública. As medidas precisam passar, também, pela reforma do sistema penitenciário, pela mudança na legislação sobre drogas que trata o usuário como traficante e pela revogação de toda legislação, via decretos de Bolsonaro, de liberalização de armas promovida à revelia do Estatuto do Desarmamento e das decisões judiciais.
A repercussão da chacina de Jacarezinho, em nível nacional e internacional, e o repúdio a ela exigem uma resposta do Congresso Nacional: propor e debater uma nova política de segurança pública sob pena de regredirmos à época dos esquadrões da morte e grupos de extermínio agora diretamente pelas mãos do Estado e de suas polícias. Exigem também uma resposta do STF, que teve sua decisão desrespeitada. Não se pode permitir a impunidade dos policiais e superiores responsáveis pela criminosa operação.
É uma urgência nacional que a questão das milícias, do crime organizado, do tráfico e das drogas seja prioridade nos debates da próxima campanha presidencial.
Vamos falar, como propôs o presidente Jair Bolsonaro, sobre o "povo que é refém da criminalidade?"
Não é, obviamente, surpreendente que o truculento da motocicleta tenha aplaudido o massacre no Jacarezinho, no Rio, perpetrado por um grupamento da Polícia Civil. Foram assassinadas 27 pessoas. E morreu um policial. Levantamento publicado pelo Estadão mostra que nove delas não tinham a tal "passagem pela polícia". Se eram ou não investigadas, não se sabe até agora. O que se tem? Dos 21 mandados de prisão expedidos pela Polícia, três foram cumpridos; três outras pessoas da lista foram mortas. E 15 não se encontram entre as vítimas. Isso diz bastante sobre o rigor técnico alegado.
Já abordei aqui todos os evidentes despropósitos. Quero me fixar na mensagem que Bolsonaro publicou no Twitter. Escreveu:
"Ao tratar como vítimas traficantes que roubam, matam e destroem familías, a mídia e a esquerda os iguala ao cidadão comum, honesto, que respeita as leis e o próximo. É uma grave ofensa ao povo que há muito é refém da criminalidade. Parabéns à Polícia Civil do Rio de Janeiro! Nossas homenagens ao Policial Civil André Leonardo, que perdeu sua vida em combate contra os criminosos. Será lembrando pela sua coragem, assim como todos os guerreiros que arriscam a própria vida na missão diária de proteger a população de bem. Que Deus conforte os familiares!"
Eis aí um texto que expressa com clareza a opção pela necropolítica, que consiste em usar a morte como um instrumento da luta política, pouco importando se o tema é saúde ou segurança pública. Sim, havia peixinhos do narcotráfico entre os mortos — nenhum chefão. Mas também há pessoas que não tinham vinculação nenhuma com o tráfico.
E isso não diz tudo. Ainda que todos os mortos fossem criminosos, abundam os sinais de execução sumária, e esse não é o trabalho da polícia. Não há pena de morte no Brasil. Se houvesse, teria de ser precedida de um julgamento, com direito de defesa assegurado, e condenação. Então ficamos assim: ou se está diante de um massacre indiscriminado — e aí é preciso ver a serviço de quem foi executado (não foi em benefício da segurança pública) — ou se está diante de um esquadrão da morte aboletado no Estado.
Em qualquer caso, trata-se de uma abominação. Tanto pior quando há sinais de que há uma determinação em setores da segurança pública do Rio de desafiar uma decisão do Supremo. O delegado Rodrigo Oliveira, da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), discursou abertamente contra o tribunal, como se essa fosse uma atribuição sua. A Core já foi protagonista dos massacres da Maré — realizado com auxílio de helicópteros, deixando oito mortos, em maio do ano passado — e do Salgueiro, em novembro de 2017, com outros oito. Em três operações, 43 vítimas. Virou uma máquina de matar.
Em operações assim, sempre se exibem armas apreendidas para justificar a truculência. As investigações acabam dando em nada. E é o que vai acontecer de novo se ficarem entregues à própria Polícia Civil do Rio. O Ministério Público do Estado tampouco se mostra eficaz. Um quarto massacre, o do Morro do Fallet, com 15 mortos — este perpetrado pela Polícia Militar em fevereiro de 2019 — foi para o arquivo. Mas quero voltar ao presidente.
ENTÃO FALEMOS DE REFÉNS
Bolsonaro, este gigante moral em defesa dos bons costumes, da lei e da ordem diz que a criminalidade torna refém a população que está sob o seu jugo. Sim, isso costuma acontecer. E é claro que o Estado tem de enfrentar a bandidagem.
Ocorre que o narcotráfico dá as cartas em pouco mais de 15,4% do território na cidade do Rio, onde vivem pouco mais de 1,5 milhão de indivíduos. É um despropósito? É, sim. Mas as milícias dominam uma área correspondente a 57,5%, e estão sujeitas às suas decisões quase 2,2 milhões de pessoas.
Por que não se veem helicópteros da Core atirando contra milicianos nem incursões nas suas fortalezas? E não! Não estou defendendo que se repita o padrão "Salgueiro-Maré-Jacarezinho". Sei, claro!, que não aconteceria. Com raras exceções, milicianos são ex-policiais ou policiais ainda na ativa.
Um dos mais famosos era Adriano da Nóbrega, ex-membro do Bope, que chefiava o "Escritório do Crime". Foi condecorado pelo então deputado estadual Flávio Bolsonaro, que, adicionalmente, contratou em seu gabinete a mãe e a mulher do criminoso.
Flávio já teceu elogios rasgados às milícias, que não se limitam a comandar o tráfico nas áreas sob o seu domínio: também administram o transportepúblico, cuidam do "gatonet", encarregam-se do fornecimento de gás, cobram taxa dos comerciantes, criam suas próprias regras de segurança pública, atuam como imobiliárias e se dedicam à construção civil.
Nada presta: nem milícia nem facções, é evidente. Mas só um deles está infiltrado no Estado brasileiro, particularmente nas polícias. Todos os decretos de armas baixados por Bolsonaro, note-se, facilitam a compra de armamentos pesados por civis, retirando do Estado os mecanismos de controle. Adivinhem quem sai ganhando com isso. O tráfico pode até se beneficiar também, mas é sócio menor da esbórnia.
As facções têm, sim, de ser combatidas. Mas foram as milícias a criar um Estado paralelo e criminoso nas áreas sob seu controle. Se Supremo e Procuradoria Geral da República concorrerem para a impunidade dos que perpetraram o massacre de quinta-feira, outros ocorrerão. A milícia sempre quis tomar do Comando Vermelho o Jacarezinho. Para impor a ordem? Não! Para generalizar o terror. Até agora, não conseguiu.
O TRUCULENTO DA MOTOCICLETA
No dia em que fez essas declarações asquerosas, Bolsonaro reuniu um grupo de motoqueiros e fez um desfile por Brasília. Forças de segurança garantiram a livre circulação da turma, deixando o trânsito bloqueado. Depois provocou aglomeração com seus "parças". Sem máscara, claro.
O presidente prometeu fazer o mesmo no Rio, em São Paulo e em Belo Horizonte. Disse ser uma homenagem ao Dia das Mães — quando mães, viúvas e órfãos choraram os seus mortos. A plástica e a mímica da patuscada lembravam, claro!, uma espécie de milícia motorizada.
Não deixa de ser curioso: na Venezuela, milícias governistas costumam desfilar em motocicletas, usadas por lá também para intimidar manifestações de protesto, com brutamontes armados. Por aqui, Bolsonaro quer garantir o porte de até seis armas por indivíduo. Diz que assim se faz um povo livre.
Tão livre como as pessoas que hoje estão submetidas à ditadura dos milicianos no Rio.
Comenta Antonio Uchoa Neto:
República dos assassinos. O esquadrão da morte no poder. Às favas com os escrúpulos, juiz ladrão, com o supremo, com tudo. Nunca vi tanta desgraça junta.
Darcy Ribeiro, junto ao túmulo de Glauber Rocha: "O Glauber morreu de Brasil!" O Brasil é a doença que está nos matando, a todos. Os que não estão morrendo, figurativa ou literalmente, ou não se dão conta dessa doença, não são brasileiros.
São os assassinos, são as autoridades que cometem genocídio por omissão, ou homicídio através de sicários.
Gente para quem a morte dos outros é fonte de prosperidade.
Matar indiscriminadamente, ou matar alvos certos, para essa gente dá no mesmo.
Bandido bom é bandido morto. Batalhadores (cf. Jessé Souza) bons são batalhadores mortos. Matar, matar, matar. Como eu não morri, tanto se me dá.
Perceber ódio, visceral ou não, nos olhos de vizinhos - gente que mora a poucos metros de nós - diante de certas notícias, é estarrecedor e deprimente.
E é essa gente, que nos cerca, que são os verdadeiros fâmulos da morte, ainda que os escandalize apontar-lhes essa pecha.
Meu cunhado relativizou a morte de Marielle Franco, ocorrida no dia do meu aniversário, fazendo eco a algumas fake news divulgadas logo depois - fotos, inclusive - que mostrariam a vereadora convivendo com traficantes. E era um homem bom, divertido, bom pai e bom marido, adorava cachorros. A cara dele, com o desmascaramento dessas mentiras, e o surgimento da verdade sobre os Bolsonaro, depois? Dir-se ia, 'não tem preço'. Mas tem, na verdade. Perder um pouco de fé, na humanidade.
Essa gente que comemora mortes, de quem quer que seja, deixa pelo caminho um pouco de sua humanidade; depois retornam desse pesadelo, mas retornam diferentes. Sempre com uma ponta de desconfiança do nosso renovado acolhimento. Creio que acalentam uma última esperança de poder dizer: 'tá vendo, eu tava certo!'
Ficam à espera de uma prova contra o Lula. De uma prova de que a esquerda matou Marielle. De uma prova que Adélio era um agente do PSOL. De uma prova de que Sérgio Moro não foi parcial. De uma prova que o Brasil está sob iminente ameaça dos comunistas.
Não sei. De uma prova de que o mundo é, de fato, como eles acham que é.
Em resumo: uma república dos assassinos, de esquadrões da morte, escrúpulos mandados às favas, de juízes ladrões, com o supremo, com tudo.
Contanto que fiquem sob a guarda de um ser benevolente, déspota ou não, tudo estará bem.
Não querem ser livres, nem autônomos, querem estar sob a proteção de algo, querem estar a salvo de pobres, pedintes, desvalidos, favelados, todos esses seres repugnantes que nos incomodam à mesa, nas ruas, no trabalho, nos aeroportos e nas universidade.
Na vida.