O Ministério Público do Paraná (MPPR) emitiu parecer favorável à ação que pede para tornar inconstitucional a lei de implantação dos colégios cívico-militares no estado. Ao se manifestar pela procedência dos pedidos, a Promotoria de Justiça e Procuradoria-Geral de Justiça reiteram as teses de que o Paraná teria atropelado competência da União ao criar um novo modelo de ensino e usado a modalidade para viabilizar a intromissão militar na administração da escola pública, em um sistema marcado pelo “patrulhamento ideológico” e de “aniquilamento da liberdade de cátedra”.
O órgão dá um passo a mais do que a petição e reclama ainda o reconhecimento incidental de inconstitucionalidade do decreto federal de 2019 que implementou o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim) pelo Ministério da Educação (MEC) e alicerçou a regionalização do modelo. Além do Paraná, governos de pelo menos outros cinco estados criaram um sistema próprio de educação assistida por militares. A sustentação do subprocurador-geral de Justiça, Mauro Sergio Rocha, e do promotor de Justiça Gustavo Henrique de Macedo, é de que a ilegalidade do decreto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro por si só prejudicaria os programas locais – por sua vez amparados no modelo estabelecido pelo decreto da União.
O parecer é do dia 10 de novembro e faz parte do trâmite da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) ajuizada no Supremo Tribunal Federal (STF) pelo PT, Psol e PCdoB em abril deste ano. A petição requereu deferimento de medida cautelar, mas o relator do processo, ministro Dias Toffoli, optou por decisão em caráter definitivo devido à relevância da questão.
À Corte caberá decidir se é ou não inconstitucional a lei estadual 20.338/2020 tanto no aspecto formal, ou seja, quanto à legislação em si, como material, relacionado ao seu conteúdo.
Por um lado, o MPPR sustenta que a elaboração da norma desrespeita parâmetros legais, pois o estado não teria competência para criar o regime de escolas cívico-militares. Na interpretação do órgão, o modelo concebe um novo sistema de ensino, distinto dos previstos pela União e que, portanto, só poderia ser implementado com aval do Congresso Nacional.
Assim, o mesmo desvio prejudicaria o decreto do governo federal, pois a modelagem de ensino proposta no Pecim – de escolas que não são nem regulares nem militares, mas híbridas – desrespeitaria de igual maneira a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que determinar as diretrizes e bases gerais da educação nacional.
“O legislador estadual usurpou competência da União e transgrediu as normas gerais criadas pelo ente central, porque fundiu elementos do ensino regular com caracteres próprios do ensino militar, concebendo os colégios cívico-militares como instituições híbridas. Se o decreto federal é inconstitucional porque supera as fronteiras do poder regulamentar, a Lei Estadual (inspirada e integrada pelo decreto federal) não encontra fundamento na ordem constitucional por implantar sistema de ensino que não é previsto pelas leis em sentido estrito, editadas pela União, que normatizam os sistemas de ensino”, diz trecho do parecer.
Também em manifestações distintas encaminhadas ao STF, a Assembleia Legislativa (Alep) – onde a lei tramitou em regime de urgência – e o governo de Ratinho Jr. defenderam não haver irregularidades, uma vez que a lei de base das escolas cívico-militares do Paraná é um complemento às normas nacionais e não trata, portanto, de novas diretrizes e bases.
Homeschooling
O imbróglio jurídico é o mesmo que coloca em xeque a prática do homeschooling no Paraná.
Em setembro deste ano, o estado foi o primeiro do país a aprovar o ensino domiciliar como modalidade oficial de educação, criando uma espécie de terceira via entre as escolas regulares e as cívico-militares. Mas mesmo sancionada, a prática não está ainda consolidada, pois o debate esbarra em aspectos jurídicos substanciais que hoje não contemplam o exercício do ensino de crianças em casa e, ao mesmo tempo, não permitem que mudanças estruturais no sistema sejam feitas sem estarem em acordo com a legislação federal. Nesse caso, a LDB também não sustenta o homeschooling, e o próprio STF já reconheceu a necessidade uma mudança nas diretrizes da União para que governadores possam, então, se adaptar a ela.
Interferência da Secretaria de Segurança na Educação
De acordo com o Ministério Público, jurisprudência do STF consolidada no sentido de que só o legislativo federal pode tratar de novos currículos e maneiras de exercício da docência, por exemplo, é um indicativo da inconstitucionalidade da lei paranaense das escolas cívico-militares. O programa instituído pela gestão de Ratinho Jr. romperia, assim, as barreiras constitucionais, pois também cria fendas que permitem a interferência da Secretaria de Estado da Segurança Pública (Sesp) em práticas pedagógicas de domínio exclusivo da educação.
De fato, o sistema criado por Ratinho Jr. é uma cooperação entre as pastas de Educação e Segurança Pública e, portanto, as atividades extracurriculares cívico-militares praticadas nas instituições adeptas ao modelo são de responsabilidade compartilhada. A gestão conjunta, questionam os promotores, acaba criando uma falsa impressão de equilíbrio porque “as atividades “cívico-militares” têm a tarja de “extracurriculares”, mas a substância de disciplinas essenciais, a revelar seu caráter estruturante no programa concebido”, uma hierarquização que “aniquila a liberdade de cátedra e a apresentação de divergentes métodos pedagógicos”.
Mudanças no programa
Uma mudança nas regras do modelo paranaense, no entanto, tirou mais poder, ao menos em tese, das mãos dos policiais militares da reserva que hoje integram o corpo militar do programa.
O cargo de diretor militar, destinado a PMs de mais altas patentes para exercer atividades compartilhadas com o diretor civil foi extinto após o sistema completar seu primeiro ano sem ter conseguido ativar com militares nem dois terços das 197 escolas migradas para o sistema. Na prática, o fim da função horizontalizou o acesso, e todos os policiais aprovados para integrar o programa, muitos em lista de espera, passaram a cumprir expediente no cargo de monitor. A manobra do governo mais que dobrou colégios com PMs da reserva em sala de aula ao mesmo tempo em que manteve os gestores civis no topo da hierarquia das escolas.
De toda a forma, a inclusão de PMs no quadro funcional das escolas sem concurso público é outro impasse destacado pelos autores. A manifestação ainda conduz a transformação de policiais militares em profissionais de educação como fomento a um ambiente propício à “militarização generalizada e supressão das liberdades de manifestação do pensamento e de expressão”.
“Sabe-se que o militarismo é regido pelos princípios de hierarquia e disciplina que, se são adequados para a preservação da ordem em contingentes de corporações castrenses, não o são para o ambiente escolar, onde há alunos, e não soldados”, diz o texto encaminhado ao STF. “A introdução de disciplina militar, em escolas públicas, traz ínsita a ameaça de se as transformarem em câmaras de eco, ou seja, de patrulhamento ideológico de professores e de alunos, e que noções próprias do militarismo (e adequadas – somente – ao ambiente castrense) sejam difundidas como se fossem as únicas corretas”, complementam em paralelo à exposição de ocorrências polêmicas já registradas dentro das escolas do modelo.
Uma delas, noticiada pelo Plural, aponta a suspeita de abuso de alunas por uma policial em um colégio de Francisco Beltrão, no Sudoeste do Paraná. Outro caso citado foi registro feito pela RPC de alunos de 14 e 15 anos de um colégio de Curitiba usando simulacros de arma durante uma atividade cívica. A situação repudiada pela própria Secretaria de Educação.
Muito embora a decisão final seja dos ministros do STF, o parecer do Ministério Público alerta que, além de transgredir a Constituição, a lei das escolas cívico-militares podem ter consequências negativas para o sistema de ensino público do estado.
“Não é difícil perceber que se almeja transplantar para algumas escolas públicas, cujo corpo discente é marcado pela vulnerabilidade social, práticas arraigadas em Colégios Militares, que têm outra finalidade institucional. E justamente essa distinção entre as finalidades que torna o programa nacional e sua derivação estadual absolutamente desconformes com o perfil democrático da Constituição da República de 1988, que refundou o Estado brasileiro com inspiração marcadamente liberal, repulsiva a iniciativas que possam comprometer o pluralismo e a tolerância. Ademais, a ideia se pauta num sofisma, qual seja, a presunção de que os profissionais de educação falharam e que os militares vão eliminar a indisciplina e a evasão escolar”
Até está quinta-feira (16), ainda não havia previsão de quando a ação será apreciada no STF, apesar de que a maior parte dos requisitos do processo já tenha sido cumprida.
![Charge 22/01/2018 | Um Brasil]()