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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

16
Jan23

Numa afronta à história das esquerdas, a ultradireita chamou de Selma o encontro terrorista

Talis Andrade

Mamatacard

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Da forma mais afrontosa possível, avançaram sobre a simbologia das marchas ocorridas em Selma para nomear a balbúrdia

 

Por Denise Assis /247

Há uma semana estávamos ainda sob a sensação de alegria e leveza das imagens da histórica posse do presidente Luiz Inácio da Silva que, imagino, mesmo à distância, (acima da linha do Equador), tenham sido insuportáveis para aquele que um dia antes havia subido num avião da Força Aérea Brasileira (FAB) – e, ainda desfrutando até a última gota do nosso rico dinheirinho –, rumou para fora do país. Uma maneira de sufocar os seus uivos de inveja e, ao mesmo tempo, fazer o benfazejo desaforo de não passar para o substituto a faixa presidencial. 

Azar o dele. Sua ausência, bem-vinda e comemorada, propiciou ao país um festival de cores, diversidade e impacto, de ver Lula receber simbolicamente o cargo das mãos de seu povo: uma catadora de materiais recicláveis. Deixa estar que, tal qual nos filmes de ficção, o monstro abanou a cauda, cuspiu fogo pelas ventas e ordenou que os seus adeptos quebrassem Brasília e, por consequência, o êxtase do líder recém-empossado. O “do mal”, convidou os seus súditos para a festa “de Selma”.

Aqui é preciso dar uma chacoalhada nos conceitos e parar para entender: por que a festa era de “Selma”, termo difundido pelas redes sociais entre os bolsonaristas que ensaiavam abertamente o ataque, uma semana antes? Para os que se intrigaram com o nome dado ao encontro de terror e depredação dos palácios dos três poderes: o Congresso, o Supremo Tribunal Federal e o Palácio do Planalto, é preciso lançar um alerta. Ao tomar posse em 2019, Bolsonaro disse em um jantar em Washington que tinha vindo para “destruir”. E assim o fez, até mesmo os princípios políticos históricos que sempre nortearam a esquerda foram desvirtuados pela sua turma.

Como mais um acinte, um verdadeiro desaforo, os filhotes de Olavo de Carvalho foram orientado a ler Antonio Gramsci, “o pai do marxismo cultural”. Para praticar as suas orientações? Não. Para revirar do avesso o que pregou, se utilizando dos seus princípios e arredando-os e adaptando-os para a ultradireita.

Basta lembrar que na visão clássica de Marx, Engels e Lênin, a sociedade civil é o paraíso das relações produtivas, onde se dá o embate das classes antagônicas. Daí surge o Estado para tentar mediar esse conflito irreconciliável, mas que age também para assegurar a dominação dos donos dos meios de produção, a chamada classe dominante. Logo o Estado é subordinado pela própria sociedade civil, dominada no capitalismo pela burguesia. Desta forma, nessa visão clássica, o Estado está no campo da superestrutura e a sociedade civil na base, na infraestrutura.

Gramsci diz que a sociedade civil não está na estrutura, mas na superestrutura e que a Superestrutura é a sociedade civil (organismos privados e suas concepções) mais a sociedade política ou Estado (reino da força), e que a sociedade civil não se reduz às relações de produção, pois deve-se também considerar as relações culturais, o campo das ideias.

Numa notória distorção, feita pelo Guru, Olavo de Carvalho, esses conceitos vão parar nas mãos dos terroristas “teóricos” da barbárie que massacrou o domingo pós posse, que praticam a adulteração do que Gramsci disse: “A Hegemonia é o predomínio ideológico (concepção de mundo) das classes dominantes sobre as classes dominadas/subalternas na sociedade civil. O que sustenta a sociedade burguesa, primariamente, não é a força militar e muito menos o monopólio das forças produtivas; mas o consenso, o construto ideológico (intelectual) da classe dominante”, virado à direita torna-se arma perigosa.

Vejam, por exemplo, o uso inadequado feito quando ele afirma: “A aceitação da dominação, o consentimento por parte da classe subalterna, ocorre, centralmente, no nível da cultura, ideias, valores. Há disputas políticas hegemônicas no seio da classe dirigente e contra as outras classes. A luta pela hegemonia se dá também nos vários aparelhos institucionais, escola, museus, clubes, cinema, jornais, sindicatos, Igreja etc. Manter a hegemonia é lutar, é disputar o controle das consciências para universalizar uma visão de mundo, qualquer que seja.” Faltou aqui Olavo dar uma arrematada na fala de Gramsci: “Inclusive que a terra é plana”.

Difundido assim, de forma truncada, torcida para “o mal”, Gramsci passou a ser objeto da ultradireita e dos que, para disseminar uma casquinha de verniz, o usaram para arrebanhar a turba, jogando Antonio Gramsci onde nunca esteve: à direita.

Outro que foi arrastado para esse gueto de “seguidores” dos conceitos de esquerda, para os manuais sebosos de Olavo, foi Che Guevara – que se vivo fosse certamente teria perdido a ternura. Ele e o seu parceiro de luta e teorias, o sociólogo francês Regis Debray. Ambos cunharam o termo: “Foquismo”, dado à teoria revolucionária desenvolvida por eles, quando se tornaram amigos na segunda metade da década de 1960. O termo “foquismo” deriva da palavra “foco”, já que tal teoria advogava a instalação de vários focos de guerrilha nas zonas rurais dos países latino-americanos.

Em 1960 (um ano após a Revolução Cubana), “Che” Guevara publicou o livreto “Guerra de Guerrilhas”. Nesse escrito, o guerrilheiro argentino pregava a exportação do modelo da guerrilha revolucionária para toda a América Latina, bem como para a África e Ásia. A metáfora que Guevara usava era a da criação de “vários Vietnãs”, em alusão a focos de guerrilhas, bem-sucedido na guerra civil do seu país, contribuiu para consolidar o conceito do “foquismo”. Basta ver as tentativas de espalhar o caos derrubando torres de fornecimento de energia, ou de paralisar as refinarias de combustíveis, para entender o que a direita fez com os ensinamentos de Guevara e Debray. 

E, por fim, a distorção mais sórdida e aviltante. Para estuprar a República e os três poderes da capital, chocando a todos com o golpe de Estado que exibiu cenas que foram desde as escatológicas às de apagamento da memória e da Cultura, a corja pegou de Martin Luther King e o seu combate pela mudança da dura realidade dos negros nos Estados Unidos e a luta pelo fim dos processos eleitorais discriminatórios, o nome do inexpugnável encontro em Brasília, intitulando-o: a festa de Selma. 

Da forma mais afrontosa possível, avançaram sobre a simbologia das marchas ocorridas em Selma, cidade norte americana, localizada no estado americano de Alabama, no Condado de Dallas, às margens do rio que lhe dá nome, e onde ocorreram os mais acirrados confrontos raciais, no ano de 1965, para nomear a balbúrdia, os atos de terror que promoveram em Brasília. 

No discurso proferido por King em 28 de agosto de 1963, em sua inesquecível marcha sobre Washington ele disse: “Eu tenho um sonho de que um dia até mesmo o estado do Mississippi, um estado sufocado pelo calor da injustiça, sufocado pelo calor da opressão, será um oásis de liberdade e justiça”. 

Eu também tenho um sonho, mister Martin Luther King: que isso seja transposto em realidade para o Brasil. Estamos iniciando a nossa marcha. Chegaremos lá.

 

 

Os atos terroristas em Brasília neste domingo (08/01) deixaram perplexo o especialista em Forças Armadas Manuel Domingos Neto, professor da Universidade Federal Fluminense e doutor em história pela Universidade de Paris. “É duro, eu conheço as Forças Armadas há 50 anos, na condição de oficial da reserva, de preso na ditadura quando fui torturado nos quartéis, mas isso eu não esperava, agasalhar vandalismo, isso exorbita qualquer projeção, foi além da conta”, lamentou. Para ele “as Forças Armas estão ensandecidas e Lula deve substituir imediatamente o comandante do Exército”. O especialista garante que as Forças Armadas acompanharam tudo de perto: “Eles sabiam o que aconteceria”. E disse também que a esposa do general Villas Bôas tem contas a prestar à Polícia. Ela foi filmada nos acampamentos, pontos de articulação dos movimentos terroristas e de vandalismo. “Ela deve ser chamada a prestar contas. Ela é simbólica, é tomada como a mãe dessas coisas. Tá na hora de verificar a responsabilidade dela nesses atos criminosos, assim as instituições mostrarão de fato poder”, concluiu. Entrevista à jornalista Marilu Cabañas. Veja o vídeo.

15
Jan23

O “Hino” ao Inominável, feito pra lembrar, pra sempre, o pior dos piores mandatários da nossa história; vídeo

Talis Andrade

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Redação Vio Mundo

- - -

No ar, o ”Hino” ao Inominável. Com letra de Carlos Rennó e música de Chico Brown e Pedro Luís.

Autoironicamente intitulada “hino”, é uma canção-manifesto contra a contra a candidatura de Jair Bolsonaro (PL) à presidência da República.

Num vídeo criado pelo Coletivo Bijari (versão integral, acima, tem 13min40), 30 artistas interpretam-na.

Entre eles, Wagner Moura, Bruno Gagliasso, Lenine, Zélia Duncan, Chico César, Paulinho Moska, Leci Brandão,  Marina Lima, Mônica Salmaso e Zélia Duncan.

Os versos falam de temas recorrentes no discurso do ex-capitão, como a ditadura militar, racismo, machismo,  destruição ambiental.

Citam literalmente ou se baseiam em declarações dadas pelo ‘inominável’ e encontradas na internet e em jornais.

“Feito pra lembrar, pra sempre, esses anos sob a gestão do mais tosco dos toscos, o mais perverso dos perversos, o mais baixo dos baixos, o pior dos piores mandatários da nossa história. E pra contribuir, no presente, pra não reeleição do inominável”, frisa o texto que acompanha o vídeo lançado nesse em 17-09-2022.

“Na íntegra, são 202 versos, mais o refrão, contra o ódio e a ignorância no poder no Brasil”, prossegue o texto.

Que arremata: “Porém, apesar dele – e do que, e de quem e quantos ele representa – a mensagem final é de luz, a luz que resiste, pois, como canta o refrão ‘Mas quem dirá que não é mais imaginável / Erguer de novo das ruínas o país?’”.

Letra completa do “Hino” do Inominável, de  Carlos Rennó

“Sou a favor da ditadura”, disse ele,
“Do pau de arara e da tortura”, concluiu.
“Mas o regime, mais do que ter torturado,
Tinha que ter matado trinta mil”.
E em contradita ao que afirmou, na caradura
Disse: “Não houve ditadura no país”.

E no real o incrível, o inacreditável
Entrou que nem um pesadelo, infeliz,
Ao som raivoso de uma voz inconfiável
Que diz e mente e se desmente e se desdiz.

Disse que num quilombo “os afrodescendentes
Pesavam sete arrobas” – e daí pra mais:
Que “não serviam nem pra procriar”,
Como se fôssemos, nós negros, animais.
E ainda insiste que não é racista
E que racismo não existe no país.

Como é possível, como é aceitável
Que tal se diga e fique impune quem o diz?
Tamanha injúria não inocentável,
Quem a julgou, que júri, que juiz?

Disse que agora “o índio está evoluindo,
Cada vez mais é um ser humano igual a nós.
Mas isolado é como um bicho no zoológico”,
E decretou e declarou de viva voz:
“Nem um centímetro a mais de terra indígena!,
Que nela jaz muita riqueza pro país”.

Se pronuncia assim o impronunciável
Tal qual o nome que tal “hino” nunca diz,
Do inumano ser, o ser inominável,
Do qual emanam mil pronunciamentos vis.

Disse que se tivesse um filho homossexual,
Preferiria que o progênito “morresse”.
Pruma mulher disse que não a estupraria,
Porque “você é feia, não merece”.
E ainda disse que a mulher, “porque engravida”,
“Deve ganhar menos que o homem” no país.

Por tal conduta e atitude deplorável,
Sempre o comparam com alguns quadrúpedes.
Uma maldade, uma injustiça inaceitável!
Tais animais são mais afáveis e gentis.

Mas quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?

Chamou o tema ambiental de “importante
Só pra vegano que só come vegetal”;
Chamou de “mentirosos” dados científicos
Do aumento do desmatamento florestal.
Disse que “a Amazônia segue intocada,
Praticamente preservada no país”.

E assim negou e renegou o inegável,
As evidências que a Ciência vê e diz,
Da derrubada e da queimada comprovável
Pelas imagens de satélites.

E proclamou : “Policial tem que matar,
Tem que matar, senão não é policial.
Matar com dez ou trinta tiros o bandido,
Pois criminoso é um ser humano anormal.
Matar uns quinze ou vinte e ser condecorado,
Não processado” e condenado no país.

Por essa fala inflexível, inflamável,
Que só a morte, a violência e o mal bendiz,
Por tal discurso de ódio, odiável,
O que resolve são canhões, revólveres.

“A minha especialidade é matar,
Sou capitão do exército”, assim grunhiu.
E induziu o brasileiro a se armar,
Que “todo mundo, pô, tem que comprar fuzil”,
Pois “povo armado não será escravizado”,
Numa cruzada pela morte no país

E num desprezo pela vida inolvidável,
Que nem quando lotavam UTIs
E o número de mortos era inumerável,
Disse “E daí? Não sou coveiro”. “E daí?”

“Os livros são hoje ‘um montão de amontoado’
De muita coisa escrita”, veio a declarar.
Tentou dizer “conclamo” e disse “eu canclomo”;
Não sabe conjugar o verbo “concl…amar”.
Clamou que “no Brasil tem professor demais”,
Tal qual um imbecil pra imbecis.

Vigora agora o que não é ignorável:
Os ignorantes ora imperam no país
(O que era antes, ó pensantes, impensável)…
Quem é essa gente que não sabe o que diz?

Mas quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?

Chamou de “herói” um coronel torturador
E um capitão miliciano e assassino.
Chamou de “escória” bolivianos, haitianos…
De “paraíba” e “pau de arara” o nordestino.
E diz que “ser patrão aqui é uma desgraça”,
E diz que “fome ninguém passa no país”.

Tal qual num filme de terror, inenarrável,
Em que a verdade não importa nem se diz,
Desenrolou-se, incontível, incontável,
Um rol idiota de chacotas e pitis.

Disse que mera “fantasia” era o vírus
E “histeria” a reação à pandemia;
Que brasileiro “pula e nada no esgoto,
Não pega nada”, então também não pegaria
O que chamou de “gripezinha” e receitou (sim!),
Sim, cloroquina, e não vacina, pro país.

E assim sem ter que pôr à prova o improvável,
Um ditador tampouco põe pingo nos is,
E nem responde, falador irresponsável,
Por todo ato ou toda fala pros Brasis.

E repetiu o mote “Deus, pátria e família”
Do integralismo e da Itália do fascismo,
Colando ao lema uma suspeita “liberdade”…
Tal qual tinha parodiado do nazismo
O slogan “Alemanha acima de tudo”,
Pondo ao invés “Brasil” no nome do país.

E qual num sonho horroroso, detestável,
A gente viu sem crer o que não quer nem quis:
Comemorarem o que não é memorável,
Como sinistras, tristes efemérides…

Já declarou: “Quem queira vir para o Brasil
Pra fazer sexo com mulher, fique à vontade.
Nós não podemos promover turismo gay,
Temos famílias”, disse com moralidade.
E já gritou um dia: “Toda minoria
Tem de curvar-se à maioria!” no país.

E assim o incrível, o inacreditável,
Se torna natural, quanto mais se rediz,
E a intolerância, essa sim intolerável,
Nessa figura dá chiliques mis.

Mas quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?

Por vezes saem, caem, soam como fezes
Da sua boca cada som, cada sentença…
É um nonsense, é um caô, umas fake-news,
É um libelo leviano ou uma ofensa.
Porque mal pensa no que diz, porque mal pensa,
“Não falo mais com a imprensa”, um dia diz.

Mas de fanáticos a horda lamentável,
Que louva a volta à ditadura no país,
A turba cega-surda surta, insuportável,
E grita “mito!”, “eu autorizo!”, e pede “bis!”

E disse “merda, bosta, porra, putaria,
Filho da puta, puta que pariu, caguei!”
E a cada internação tratando do intestino
E a cada termo grosso e um “Talquei?”,
O cheiro podre da sua retórica
Escatológica se espalha no país.

“Sou imorrível, incomível e imbrochável”,
Já se gabou em sua tão caracterís-
Tica linguagem baixo nível, reprovável,
Esse boçal ignaro, rei de mimimis.

Mas nada disse de Moise Kabagambe,
O jovem congolês que foi aqui linchado.
Do caso Evaldo Rosa, preto, musicista,
Com a família no automóvel baleado,
Disse que a tropa “não matou ninguém”, somente
“Foi um incidente” oitenta tiros de fuzis…

“O exército é do povo e não foi responsável”,
Falou o homem da gravata de fuzis,
Que é bem provável ser-lhe a vida descartável,
Sendo de negro ou de imigrante no país.

Bradou que “o presidente já não cumprirá
Mais decisão” do magistrado do Supremo,
Ao qual se dirigiu xingando: “Seu canalha!”
Mas acuado recuou do tom extremo,
E em nota disse: “Nunca tive intenção
(Não!) De agredir quaisquer Poderes” do país.

Falhou o golpe mas safou-se o impeachável,
Machão cagão de atos pusilânimes,
O que talvez se ache algum herói da Marvel
Mas que tá mais pra algum bandido de gibis.

Mas quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?

E sugeriu pra poluição ambiental:
“É só fazer cocô, dia sim, dia não”.
E pra quem sugeriu feijão e não fuzil:
“Querem comida? Então, dá tiro de feijão”.
É sem preparo, sem noção, sem compostura.
Sua postura com o posto não condiz.

No entanto “chega! […] vai agora [inominável]”,
Cravou o maior poeta vivo, no país,
E ecoou o coro “fora, [inominável]!”
E o panelaço das janelas nas metrópoles!

E numa live de golpista prometeu:
“Sem voto impresso não haverá eleição!”
E praguejou pra jornalistas: “Cala a boca!
Vocês são uma raça em extinção!”
E no seu tosco português ele não pára:
Dispara sempre um disparate o que maldiz.

Hoje um mal-dito dito dele é deletável
Pelo Insta, Face, YouTube e Twitter no país.
Mas para nós, mais do que um post, é enquadrável
O impostor que com o posto não condiz.

Disse que não aceitará o resultado
Se derrotado na eleição da nossa história,
E: “Eu tenho três alternativas pro futuro:
Ou estar preso, ou ser morto ou a vitória”,
Porque “somente Deus me tira da cadeira
De presidente” (Oh Deus proteja esse país!”).

Tivéssemos um parlamento confiável,
Sem x comparsas seus cupinchas, cúmplices,
E seu impeachment seria inescapável,
Com n inquéritos, pedidos, CPIs.

………………………………………………………………

Não há cortina de fumaça indevassÁvel
Que encubra o crime desses tempos inci-vis
E tampe o sol que vem com o dia inadiÁvel
E brilha agora qual farol na noite gris.
É a esperança que renasce onde HÁ véu,
De um horizonte menos cinza e mais feliz.
É a passagem muito além do instagramÁvel
Do pesadelo à utopia por um triz,
No instante crucial de liberdade instÁvel
Pros democráticos de fato, equânimes,
Com a missão difícil mas realizável
De erguer das cinzas como fênix o país.

E quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?

Mas quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?

“Hino” ao Inominável

Produção e direção musical: Xuxa Levy

Produção e direção artística: Carlos Rennó

Colaboração musical e artística: Pedro Luís e Chico Brown

Intérpretes

André Abujamra

Arrigo Barnabé

Bruno Gagliasso

Caio Prado

Cida Moreira

Chico Brown

Chico César

Chico Chico

Dexter

Dora Morelenbaum

Héloa

Hodari

Jorge Du Peixe

José Miguel Wisnik

Leci Brandão

Lenine

Luana Carvalho

Marina Íris

Marina Lima

Monica Salmaso

Paulinho Moska

Pedro Luís

Péricles Cavalcanti

Preta Ferreira

Professor Pasquale

Ricardo Aleixo

Thaline Karajá

Vitor da Trindade

Wagner Moura

Zélia Duncan

Músicos:

Ana Karina Sebastião: baixo
Cauê Silva : percussão
Fábio Pinczowski: teclados
Juba Carvalho: percussão
Léo Mendes: guitarra
Thiago Silva: bateria
Webster Santos: violões
Xuxa Levy: máquina de escrever e programações

Participação especial: violoncelista Jacques Morelenbaum

Vídeo:

Coletivo Bijari
Edição: Guilherme Peres
Direção de fotografia: Toni Nogueira

12
Abr22

A contrarrevolução fascista do bolsonarismo

Talis Andrade

Foto: Alass Derivas, de manifestação antifascista em Porto Alegre, 24/5/2020.

por Jeferson Miola

Medieval, reacionário, genocida, anticivilizacional, fascista, extremista etc – são alguns dos adjetivos comumente empregados para definir o significado do governo Bolsonaro e do “movimento bolsonarista”.

Todos esses adjetivos servem sob medida para caracterizar a natureza deste fenômeno radical que está subvertendo completamente a ordem política e social deste ciclo pós-ditadura que durou pouco mais de 30 anos.

Mais além de adjetivar Bolsonaro e o bolsonarismo, no entanto, é preciso identificar o significado substantivo do processo que está em curso, de uma genuína contrarrevolução fascista. Nesta perspectiva, o bolsonarismo tem de ser considerado como um movimento de caráter revolucionário, ainda que de sentido regressivo, do ponto de vista civilizatório.

O professor Francisco Carlos Teixeira/UFRJ [em comunicação pessoal] entende que o processo de mobilização das massas bolsonaristas é fator chave da construção do que ele considera a modernidade reacionária fascista.

Sob este ângulo, portanto, a contrarrevolução fascista do bolsonarismotambém assume um caráter renascentista. Uma espécie, porém, de Renascentismo de seta invertida, com retrocessos medievais e anticivilizacionais e, do ponto de vista democrático, gravemente ameaçador à pluralidade e à diversidade.

Neste renascentismo bolsonarista, do mesmo modo como aconteceu no nazismo, a sociedade tem de ser depurada; é preciso purificá-la, livrar-se dos inimigos internos.

Como anotou o professor Juarez Guimarães/UFMG em resenha a respeito da obra do historiador inglês Roger Griffin sobre o fascismo, “Auschwitz, símbolo maior do extermínio de seis milhões de judeus pelo nazismo, seria o ‘ânus da Europa’, na linguagem hitleriana documentada” [aqui e aqui].

As ideias absurdas e horrorosas, assim como a escatologia político-ideológica do Bolsonaro e da matilha fascista encontram, entretanto, espantosa ressonância em amplos setores da sociedade brasileira. E não somente junto às classes ricas e médias, mas também nas camadas pobres e populares.

Bolsonaro matreiramente se vende como antissistema. Mas, na realidade, ele é a resposta mais funcional do próprio sistema para a atual crise estrutural do capitalismo num país periférico como o Brasil. A funcionalidade dele à reestruturação ultraliberal e reacionária é fartamente evidenciada nas políticas destrutivas desenvolvidas em tão curto período de tempo pelo governo militar que ele preside.

Não é nada trivial que a despeito de toda barbárie, descalabro econômico, corrupção descarada, devastação nacional e desprestígio internacional, Bolsonaro ainda siga sendo a opção mais competitiva das classes dominantes para enfrentar Lula nas urnas.

O motivo para isso é que a contrarrevolução fascista do bolsonarimo conta com enorme adesão social de massas. Na órbita do bolsonarismo gravitam movimentos de massas hiperativos, engajados e, inclusive, armados.

Isso explica a relativa estabilidade do Bolsonaro nas pesquisas, entre 25% e 30% das intenções de votos. Este desempenho também está relacionado, em grande medida, à capacidade que ele tem de encarnar o “espírito dos tempos” e de ser uma solução orgânica do sistema.

Contraditoriamente, Bolsonaro [i] consegue conter e, ao mesmo tempo, canalizar para dentro da própria ordem capitalista e neoliberal a revolta e o mal-estar da população com o fracasso de décadas do neoliberalismo e, ainda assim, [ii] ele ainda consegue se apresentar como antissistema, num processo que bloqueia a viabilização de alternativas antineoliberais e aprofunda a ditadura do capital financeiro.

A receita para isso, segundo o próprio Bolsonaro, é a destruição. “Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa. Para depois nós começarmos a fazer. Que eu sirva para que, pelo menos, eu possa ser um ponto de inflexão”, ele declarou no início do mandato [18/3/2019].

Nesta cruzada ultraliberal de destruição, Bolsonaro explora com sucesso a subjetividade da cidadania abduzida por valores neoliberais, como o anti-Estado, o individualismo empreendedor, a meritocracia, a desregulamentação total e o libertarianismo, por exemplo. Com a “teologia da prosperidade”, o fundamentalismo religioso de extrema-direita irradia, incute e reforça tais valores.

Para que, afinal, estabelecer limite de velocidade nas rodovias, ou a obrigatoriedade de vacinação ou o uso obrigatório de cadeirinhas para crianças nos veículos se, no fim, cada pessoa é responsável pelo risco que decide correr?

De acordo com a versão laissez-faire bolsonarista, as normas ambientais que impediriam saqueadores, garimpeiros, grileiros, produtores rurais e crime organizado de devastarem a Amazônia e as áreas indígenas, servem apenas para abastecer a indústria da multa e da arrecadação.

Qual o problema em permitir que toda “pessoa de bem” tenha direito a possuir armas e munições à vontade para defender a si mesmo, à sua família e à sua propriedade? Por outro lado, quem se opõe a esta “liberdade fundamental” de fazer justiça com as próprias mãos, é defensor de direitos humanos para bandidos.

Reivindicar direitos sociais, trabalhistas e previdenciários é coisa de vagabundo que não quer trabalhar porque não sabe viver sem o Estado, raciocinam até mesmo muitos trabalhadores precarizados e uberizados obrigados a trabalhar entre 12 e 16 horas por dia e que, mesmo assim, mal conseguem sobreviver, mas se consideram empreendedores.

carteiratrabalho reforma trabalhista emprego apose

A propaganda ideológica do Ifood para combater a organização sindical dos entregadores de aplicativos associa o trabalho até a morte como um martírio natural, como uma realidade inerente à existência humana: “Não pare quando estiver cansado. Pare quando estiver tudo feito” – “Breque dos APP é só pra quem já tá com a vida ganha” [imagem].

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A contrarrevolução bolsonarista promove com grande eficácia a associação simbólica do martírio do trabalhador de mentalidade colonizada e sujeitado a formas de trabalho que remontam à escravidão, com o martírio do “Messias”, o “Mito”, que sofreu a suposta facada e se ergueu para continuar a caminhada para livrar o povo brasileiro da ameaça comunista [sic].Na Câmara, Sindicato defende indústria nacional e empregos - Sindicato dos  Metalúrgicos do ABC

Menos de um mês depois da eleição do Bolsonaro, o professor Paulo Arantes/USP fez um prognóstico sombrio, mas que o tempo se encarregou de confirmar o quão certo estava. Em entrevista ao Brasil de Fato [13/11/2018], Arantes disse:

A encrenca brasileira é essa: abriu-se a porteira da absoluta ingovernabilidade no Brasil. O que nós temos agora é um comportamento destrutivo da classe dominante brasileira que está apostando todas as fichas em tirar sua castanha do fogo com o braço da delinquência fascista. Ferre-se o resto. E isso é realmente o inacreditável. Houve várias chances de acordo desde que se instaurou a crise na Era Lulista. Mas eles resolveram puxar o tapete, fazer o impeachment e abrir a porteira do inferno. Um caos político e social”.

A eventual continuidade do governo Bolsonaro, longe de representar a normalidade da rotina democrática e eleitoral, significará o aprofundamento da contrarrevolução fascista e o encaminhamento do país para um precipício ainda mais inimaginável e seguramente mais tenebroso.

Derrotar Bolsonaro para deter o fascismo é, certamente, o maior e mais complexo desafio que a atual geração de brasileiros e brasileiras terá em toda sua existência.Uberização e a precarização das relações de trabalho

 

27
Jan22

A verdadeira cremação de Olavo

Talis Andrade

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por Eric Nepomuceno

Leio o anúncio do sepultamento do jornalista e astrólogo Olavo de Carvalho no cemitério St. Joseph na cidadezinha de Petersburg, estado de Virgínia, onde ele vivia refugiado há uns dezesseis anos. 

Leio e sinto que há no anúncio um grande equívoco.

 Aprendi com meu avô paterno, o velho patriarca José Augusto Nepomuceno, que não se deve celebrar morte de ninguém – exceto as de Adolf Hitler e Benito Mussolini.

Cada vez que, ao longo da minha já um tanto longa vida, senti vontade de festejar alguma das tantas mortes, lembrei do meu avô José Augusto. Assim que não vou festejar, para nada, o sumiço dessa figura dantesca e abominável chamada Olavo de Carvalho, que se autodenominou filósofo.
 

Tropecei com ele lá por 1967 ou 68, quando me juntei à equipe do então revolucionário, no sentido de formato e conteúdo, “Jornal da Tarde”. Foram contatos ocasionais, rapidíssimos, e mal e mal lembro dele. 

Tornei a tropeçar com essa figura quando ele desandou a publicar nos principais jornais e revistas deste pobre país, e foi demitido de um em um não só porque escrevia muito mal, mas porque era de um reacionarismo sem pé nem cabeça. E aí ele virou um fenômeno nas tenebrosas redes sociais.

Virou “o professor”, o “filósofo”, virou qualquer coisa que teve um espaço enorme dentro desta catástrofe que vivermos a cada segundo de cada minuto de cada dia das nossas vidas.

 É bem verdade que essa influência veio perdendo espaço no governo, mas entre os seus seguidores, não. E esses seguidores continuam absolutamente leais a Jair Messias, apesar do distanciamento.

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 O que Olavo de Carvalho fez depois que descobriu e utilizou de maneira intensa as redes sociais foi espalhar mentiras, absurdos, pura escatologia, cinismo soberano. E trouxe para a superfície um poderoso contingente de extremistas não apenas da direita, mas da elevadíssima ignorância que estava abrigada em armários e nos últimos anos saiu não para a luz do dia, mas as trevas do absurdo. 

Não, eu seguirei a lição de meu avô e não celebrarei a morte dessa figura abjeta e perigosa que deixa como herança um imenso bando de seguidores tão fanáticos quanto imbecis. 

Apenas corrijo o anúncio de seu funeral: depois de enterrado, Olavo de Carvalho será de imediato cremado no fogo do inferno. Que o Diabo o tenha para sempre.

 

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10
Ago21

Religião e terror

Talis Andrade

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O poder da religião vem de algo bem mais simples, de suas verdades inabaláveis

 

por Marilia Pacheco Fiorillo

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Se tomarmos o termo “imaginação” em sua acepção primeira – fantasia, originalidade – ele é quase sinônimo de poesia: daquela linguagem, mais que narrativa, na qual dúvidas, hesitações, incongruências e incoerências, oxímoros, enfim, são virtudes, mais que vícios.[i] A imaginação coloca em movimento, inesperado, imprevisível, o sujeito. Ela é inseparável do indivíduo, do singular, da criatura se afirmando, condensando seu potencial, cintilando, única, assertiva e inconfundível. Nesta perspectiva, a imaginação é um insulto às religiões.

Assim vistas, são praticamente antitéticas. Religiões podem ser fortemente emocionais, em seu apelo e ritos, mas a ênfase na emoção (pessoal ou coletiva, catártica ou silenciosamente íntima), para que esta corresponda aos rituais e padrões devocionais, e, sobretudo, aos dogmas e fundamentos, esta especifica emoção catalisada nas religiões não admite a intervenção anárquica da imaginação. Neste ensaio, desenvolveremos reflexões e recorreremos a exemplos históricos que possam ilustrar esta hipótese.

Defenderemos que a imaginação coabita muito mal com as religiões institucionalizadas, pois é outra a natureza da emoção que estas demandam, do sentimento tão frequentemente convocado, tão diligentemente insuflado nos corações e preces: a emoção vertiginosa que as religiões exigem e despertam é o medo. Seja para justificar os males do mundo, acomodando-os a uma qualquer teodiceia,[ii] seja para confortar, é no medo (como prudência, cautela extrema ou terror, puro e simples), que repousa o inabalável poder das religiões.

Nesse sentido, a imaginação é sua antítese, uma real abominação para a forma mentis religiosa; é, na melhor das hipóteses, sinônimo de heresia.[iii]

A fantasia mais comumente evocada nas religiões é a que recorre ao tremendum, resultado do numinoso[iv]: fenômeno que provoca assombro, temor, terror, o ‘sentimento de estado de criatura’ mencionado por Rudolf Otto, em que esta se abisma no próprio nada diante da terrível transcendência, da inacessibilidade absoluta da divindade, e se anula, esmagada, pulverizando-se aterrorizada perante o que está acima (do pó ao pó). Daí a verdadeira vocação da emoção religiosa: a de ser, não a promessa do maravilhamento, (a promessa de felicidade da arte[v]), mas o aviso recriminador, o alerta continuo e contínua vigilância, o trombetear sobre o final dos tempos – a escatologia é a emoção religiosa por excelência, e cumpre à perfeição seu papel, o de suscitar medo e assegurar-se da disciplina dos fiéis.

Inabalável poder

O poder da religião não está nos fundamentalismos (que tanto engajam) nem em seu considerável papel temporal. Não está na pompa e nepotismo dos papas da Renascença, aquele poder de cometer excessos que fez do pontífice Alexandre VI – pai de Cesare e Lucrezia Borgia – o político mais importante, e letal, de seu tempo. Nem nos feitos de Salâh Al Din Yusef ibn Ayyub, ou Saladino o Grande, líder muçulmano curdo (curiosamente, o maior herói do Islã não era árabe) cuja diplomacia, mesclada à arte da guerra, minou a empreitada das Cruzadas (outro típico exemplo da aliança pleonástica poder & religião). O poder da religião não está nas jihads ou guerras santas que ela patrocina, nos monumentos que ergue para se eternizar, pirâmides ou catedrais, nem nas fortunas que as Igrejas amealham ou dissipam, ou na capacidade que elas têm de transtornar o destino de povos inteiros, confortar as pessoas (com dádivas deste mundo e promessas para o outro, eventualmente negociando à vista indulgências) ou arruiná-las feio (hereges ao fogo).

O poder da religião vem de algo bem mais simples, em sua entranha – de suas verdades inabaláveis.

Todo o resto é mera consequência. Ouro, incenso e mirra, glória, magnificência, influencia, longevidade e também a habilidade de converter gente simples em fanáticos (ou, como disse o prêmio Nobel de física Steven Weinberg, de “fazer com que gente boa pratique más ações”) são o resultado desta altiva segurança de si, que não admite réplica e que está no fulcro mesmo das religiões. Em religiões que se prezam não cabem hesitações (divagações, digressões, oximoros), nem em suas doutrinas, nem da parte de seus seguidores.

O resto, isto é, a extraordinária potência política, financeira ou bélica, a autoridade moral, a capacidade de persuasão e, finalmente, a infinita resiliência das religiões – elas sobreviveram intatas ao ataque dos iluministas no século XVIII, à declaração apressada de Nietzsche (“Deus está morto”) na virada para o XX e à concorrência das religiões laicas de esquerda e direita, e seus profetas milenaristas Stalin e Hitler –, enfim, a perenidade e a incolumidade das religiões devem-se ao singelo motivo de que elas nunca precisam prestar contas.

Não está na natureza das religiões ter que se explicar. “Creio porque absurdo”, já dizia no século II um dos primeiros teólogos cristãos, o genial Tertuliano de Cartago.

Ao contrário da ciência, cujo motor é a dúvida – perguntas, discórdia, desconfianças e rompimentos foram o oxigênio de Galileu, Newton e Einstein – a religião nasce, cresce, vive e se reproduz no dogma.[vi] E dogmas são incontestáveis exatamente na medida em que significam, literalmente, mistérios.

Mistérios não estão por aí para ser escarafunchados – como os átomos, o genoma humano, ou a superfície de Marte. Qualquer tentativa de analisá-los ou dar-lhes coerência seria uma ingerência indevida, além de tola e inútil, do ponto de vista religioso.

Pretender destrinchar o sentido de um dogma, ou mistério religioso, é sinal de total despreparo espiritual do intrometido. Um mistério só é mistério porque absolutamente impenetrável, imune a qualquer lógica, e, sobretudo, terreno proibido para questionamentos ou contestações. De que maneira se poderia discordar do inefável? Com qual argumento, se a fé, quando legítima, prescinde de frivolidades como justificativas ou arrazoados? Estamos precisamente na terra do “assim é, porque é assim”, palácio dos truísmos em que os curiosos ou muito inquietos não pisam. Aliás, sabe-se que quanto mais implausível, obscuro ou abstruso for o dogma, melhor.

Mistérios seduzem porque operam como os milagres: tanto mais poderosos quanto mais inacreditáveis e, acima de tudo, insondáveis (fato curioso no capítulo dos milagres é porque, em geral, eles nunca acontecem onde mais se precisa deles, como em Auschwitz ou na África de 2009, mas em Fátima, e seus beneficiados parecerem escolhidos meio randomicamente, além de seus benefícios soarem um tanto avoados; afinal, não haveria nada mais premente que fazer uma estátua chorar sangue?).[vii]

Há quem contradiga isso tudo, e defenda que o supremo poder da religião é o de elevar-nos às alturas, direto aos céus de pura beleza e transcendência: as epifanias emanadas da Paixão segundo São Mateus de Bach, do Réquiem de Mozart, da Pietá de Michelangelo, da Divina Comédia, dos azuis vaporosos e macios de Giotto ou do azul cobalto, desbotado, da capelinha esquecida numa estrada de terra. Mas este é tão somente o poder da arte, que está no mundo há tanto tempo quanto a religião, mas teve desde sempre outro endereço, o da promessa de felicidade aqui e agora. A arte, fruto da graça, nos é dada de graça, também. È celebração desinteressada.

Nada mais distante da imaginação artística, do ímpeto gracioso, que o rígido e calculado sistema de punição e recompensa, pecado e perdão, condenação e salvação, desta contabilidade impiedosa que está na base de todas as religiões.

A verdadeira vocação do poder religioso não é despertar o sublime, mas suscitar o inominável. Esta é a definição do “numinoso”,[viii] conceito-chave nos estudos da religião: mais um “oh!” aterrorizado que um “ah”! deliciado. Prova disso é que as verdades religiosas (cada credo com as respectivas), geralmente sisudas, não admitem ser contrariadas. No território dos mistérios inefáveis, ouve-se pouco a música dos anjos (como em Bach) e muito, muito mais, o clamor dos chamados de ordem e disciplina. Religiões não se deixam abalar por seus descontentes – livram-se deles, e pronto. Hesitações na fé só são admitidas como testes de resistência da fidelidade do fiel, acossado pela tentação da dúvida.

Veleidades de mudança – como a Reforma protestante, o nome já indica –, que seriam o sal da imaginação, na religião viram sedições. Empenhos de modernização, ou adequação aos novos tempos, acabam naquela história de um passo à frente, dois atrás (compare-se o neofundamentalismo de Bento XVI com o ecumenismo de João XXIII, Il Papa buono, O Papa bom, como era chamado[ix]). E diálogos interreligiosos, na prática, são quimeras. O propalado projeto de coexistência pacífica das religiões é, parafraseando Clausewitz, apenas a continuação da guerra entre as crenças, por outros meios.

Por quê? Simples, franciscanamente singelo, de novo: pela óbvia razão de que aderir a uma religião exige, liminarmente, excluir todas as outras. [x] Isso pode acontecer na marra, na violência, ou, se os deuses e seus respectivos representantes estiverem de bom humor, através de certo desprezo mascarado de condescendência. Os graus de intolerância variam, mas o dom da inclusão nunca foi o forte das Igrejas.

O exclusivismo sempre foi a virtude cardeal das religiões, ao menos das monoteístas _ que, paradoxalmente, são primas consanguíneas.

Outro assunto é descobrir qual a motivação (psicológica, ética, cultural ou inercial) que torna as pessoas tão apegadas às suas crenças e tão irritadas quando algum desavisado ousa contrabandear um “mas será mesmo?” no interior exíguo e ordenado de suas certezas. Há quem diga que o pendor humano por religiões, tão antigo, é uma decorrência mais da biologia que do sobrenatural[xi]. A propensão a crer seria um efeito indesejado, quase um dano colateral, de um outro hábito, este sim fruto de uma necessidade vital à sobrevivência da espécie: o hábito de obedecer, inculcado na infância.

Para que a criança saia ilesa da multidão de perigos que a cercam, tem de aprender desde cedo a aceitar sem protestar (ou protestando, mas cedendo) certas verdades elementares que lhe são transmitidas pelos pais. Por exemplo, que ela não pode se dependurar do terraço do 3@ andar senão cai, ou não deve colocar o dedo na tomada, ou precisa acreditar que a Terra é redonda. Não fosse assim, a cada geração reinventaríamos a roda. Imaginem se cada um de nós, aos 3 ou 13 anos, tivesse de testar pessoalmente, em vez de simplesmente acatar, o cabedal mais ou menos consensual do conhecimento disponível. Cada um teria que circunavegar o planeta com seu próprio bote para só então concordar que a Terra não é plana; ou jogar sua própria maçã, matutar um tempão e, eureka, chegar à lei da gravidade. Seria inviável, além de um tremendo desperdício.

É por isso que obedecer cegamente e acreditar piamente, na infância, é no geral vantajoso e sensato. Mas se este hábito se prolonga pela idade adulta, vira vício: o da credulidade sistemática. Assim, o que havia sido proveitoso aos 3 ou 13 anos, depois dos 30 torna-se pernicioso: um resíduo parasitário. Deste ponto de vista, a crença –porta de entrada das religiões – nada mais é senão a preguiçosa e confortável repetição de algo que já perdeu sua razão de ser, um talento (processar precocemente as informações transmitidas) que virou automatismo, uma mania obsessiva, girando no vácuo.[xii]

Ninguém ilustrou com tanto esmero e acuidade esta peculiar natureza do poder religioso – amor à obediência, horror à dúvida; adoração do dogma, desprezo pela imaginação – como Tertuliano de Cartago, o efervescente, feroz, e (malgrado ele mesmo) delirantemente imaginativo teólogo do Norte da África. Vale lembrar que, no século II, Alexandria, Antioquia e Cartago eram tão ou mais importantes que Roma, para o cristianismo nascente.[xiii]

Nascido na Tunísia em 150, numa família de prestígio na sociedade romana, Quintus Septimius Florens Tertullianus converteu-se tarde, por volta dos 40 anos, mas compensou os anos perdidos com sua combatividade. Foi o mais temido crítico dos dissidentes cristãos de então. Seu alvo não eram os pagãos, mas os colegas divergentes. Compôs por volta do ano 200 o mais famoso manual de detecção e combate aos heréticos, o clássico De Praescriptione haereticorum. [Prescrições contra os heréticos] que inaugurou uma nova arte de argumentar, sem rodeios. Sua verve e seu método fizeram escola, atravessando o tempo, as rixas dos inúmeros Concílios, o cisma entre Roma e Bizâncio e resistindo inclusive à sua própria excomunhão, pois Tertuliano foi punido no fim da vida por ser mais realista que o rei. Sua obra tem um aroma inconfundível, mescla de ironias, truísmos, dogmatismos, e veemência invejável. Deixou inúmeros imitadores. Seu estilo pode ser entrevisto no posterior debate entre católicos romanos e bizantinos no século XIII, tentativa imperfeita de copiar o mestre: os cristãos do ocidente tachavam os orientais de “fezes das fezes, indignos da luz do sol”, enquanto os orientais chamavam seus irmãos do ocidente de “filhos das trevas”, alusão ao fato de o sol nunca se por à Oeste.

Campeão das tautologias, uma de suas tiradas mais famosas é a de que tudo aquilo que estiver em conformidade com a Igreja é verdadeiro porque não poderia ser de outro modo; consequentemente, tudo que não vem da Igreja só pode ser falsificação. Tertuliano cimentava seu amor às certezas absolutas através de contrassensos. O melhor deles é sua frase mais famosa, a “Creio, porque absurdo”, argumento tão misteriosamente dogmático que se torna irrespondível. Diante dele, nem dá para começar o debate.

Os filósofos são um dos alvos prediletos da cólera de Tertuliano. Seu anti-intelectualismo é daqueles nascidos de um passado de vida intelectualizada; portanto, como costuma acontecer com acertos de contas auto infligidos, é especialmente virulento. Seu elogio do obscurantismo vem das vísceras: “O que Atenas tem a ver com Jerusalém, a Academia [platônica] com a Igreja, os heréticos com os cristãos? Nosso ensinamento provém do Pórtico de Salomão, que ensinou pessoalmente que os homens devem buscar Deus na simplicidade de seus corações”. Filósofos e cristãos de outros grupos o repugnam porque caem na tentação da curiosidade e imaginação. A presunção de conhecer, para Tertuliano, era mais que leviandade, era um insulto de lesa-majestade à verdadeira fé, que, para ser saudável, deveria se alimentar literalmente da pobreza de espírito.

“Fora com todas as tentativas de se produzir um cristianismo misto de composição estoica, platônica ou dialética. Não queremos nenhuma disputa curiosa depois de possuirmos Jesus Cristo, nenhum tipo de indagação após desfrutarmos do evangelho. Com a nossa fé, não desejamos outra crença”, escreveu. O combate travado por Tertuliano, porém, não é só contra os heréticos; é contra toda e qualquer iniciativa de colocar o cérebro (adversário da alma) para funcionar. Tertuliano queria extrair da mente o que ascetas como Santo Antão extraiam do corpo, isto é, mortificá-la e deixá-la à míngua. Um bom cristão deveria se abster de qualquer de exercício mental. Pensar é poluir a alma.

No afã de afastar o perigo do pensamento, nem os evangelhos são poupados. Até trechos canônicos ficam sob suspeição, pois, se matutados com muita frequência, podem desencaminhar o devoto. Ao tradicional “Busca, e acharás”, ele contrapõe um “Fora com aquele que busca onde jamais encontrará”! A vigilância não deve ceder nem diante de passagens da Bíblia, pois se estas forem passíveis de ambiguidades, isto é, de interpretação, com certeza envenenarão o espírito. Como quase tudo que se lê pode ser interpretado, até mesmo as mais inofensivas passagens são banidas. ‘Bate à porta e encontrarás’? Nada disso, diz Tertuliano: “Fora com aquele que está sempre batendo, pois jamais lhe será aberto, já que ele bate onde não há ninguém para abrir”. ‘Peça, e será atendido’? Nem pensar: “Fora com aquele que está sempre pedindo, pois jamais será ouvido, já que pede a quem não ouve”.

Pedir, perguntar ou esperar são uma quebra de decoro. Perguntar é o mais nefasto, pois sugere que há alguma dúvida no ar, algo a esclarecer, e dúvidas são a rota inequívoca para a perdição. Para que perguntar, se basta aceitar? “Indícios de uma disciplina mais rigorosa entre nós são uma comprovação adicional da verdade”. A dúvida pavimenta o caminho do inferno; a disciplina, a estrada do Paraíso.

Se perguntar é indecoroso, inventar é uma abominação. A grande diversidade interna dos grupos cristãos de sua época é ridicularizada por Tertuliano, que descreve seus opositores como arquitetos de cosmologias malucas (dada a liberdade com que cada grupo interpretava a mensagem cristã), nas quais os céus se sucederiam “como aposento empilhado sobre aposento, cada um designando a um deus por tantas escadarias quantas são as heresias: eis o universo transformado em quartos de aluguel!”. A imagem do universo como uma pilha de quartos de aluguel, além de sensacional (Tertuliano detestava a imaginação de seus adversários, mas não podia evitar a própria), é bastante pertinente. Os aposentos estão empilhados; isto indica que devem ser do mesmo tamanho ou de tamanho aproximado, e que oferecem igual comodidade; não há suíte imperial ou cobertura VIP, nenhum privilégio. Mais: nenhum dos moradores é proprietário, pois os quartos são alugados, e, se o hóspede estiver insatisfeito, basta se mudar. Este é um edifício anárquico, não aquilo que ele, Tertuliano, quer para a Casa do Senhor.

“Cada um deles – diz de seus adversários cristãos – como lhe aprouver o temperamento, muda as tradições que recebeu, assim como aquele que as transmitiu também as mudara ao moldá-las de acordo com o próprio arbítrio”. A mania de polemizar o atordoa. E o assusta esta contínua reinvenção da tradição, que deveria ser intocável. Tertuliano enumera os principais defeitos dos cristãos que não são de seu grupo: a plasticidade de idéias, o desprezo pela hierarquia; a clara preferência por cargos rotativos; a ausência de distinção entre clero e leigo; o tratamento igualitário dispensado a mulheres e homens, ou a veteranos e neófitos.

Estas características, diz, só podem levar à ruína: “Suas ordenações são negligentemente dispensadas, cheias de caprichos e mutáveis; num momento são os noviços que exercem as funções, noutro, são pessoas com empregos seculares… em lugar algum a promoção é mais fácil que entre os rebeldes… de modo que, hoje, um homem é bispo, e amanhã serão outros; aquele que hoje é diácono amanhã lerá as escrituras; quem for padre hoje será leigo amanhã, pois até sobre os leigos eles impõem as funções do sacerdócio”. E continua, em defesa da verdade única: “Não fica claro quem é catecúmeno e quem já se inclui entre os fiéis; todos são igualmente admitidos, todos ouvem igualmente, todos oram igualmente… compartilham o beijo da paz com todos que vierem, pois não se importam como cada um concebe os tópicos da fé, já que estão reunidos para investirem contra a cidadela daquela que é a única verdade”.

Na horda de seus oponentes cristãos, noviços oficiam como padres, padres agem como se fossem noviços; qualquer um pode ser bispo, nem que seja por um dia; todos participam do serviço e podem se encarregar do sermão do dia; padres e leigos se equivalem, e em nenhum lugar é tão fácil ser promovido, isto é, ser aceito em condições de igualdade. Tamanha insubordinação, tamanha ‘humanidade’, parece a Tertuliano uma degeneração no mais alto grau. “Como é frívolo, mundano, como é meramente humano, sem seriedade, sem autoridade, sem disciplina, como bem convém à fé deles!”. De todas as subversões, a que mais o horroriza é a emancipação das mulheres. Misógino até mesmo para os padrões patriarcais da época, Tertuliano chamava o sexo feminino de “portal do diabo”.

Marcion e Marcos, dois de seus concorrentes cristãos, haviam ordenado várias mulheres como padres e bispos, e o representante da seita dos cristãos gnósticos em Roma era uma mulher, Marcelina. Esta permissividade enfureceu Tertuliano. Mulheres, não contentes com a desordem que sua ancestral havia provocado no paraíso, continuavam a tumultuar a ordem terrena: “Essas mulheres hereges, como são atrevidas! Carecem de modéstia e têm a ousadia de ensinar, discutir, exorcizar, curar, e talvez, até, de batizar!” Elas fariam melhor se abandonassem jóias e ornamentos e, “conforme a lei de São Paulo, se cobrissem com véus”. Mas, justiça seja feita,Tertuliano também não foi muito liberal com o sexo forte: o ato de barbear-se, para ele, era ímpio, pois é um desacato ao Criador tentar melhorar o rosto concedido por Sua vontade. O Talibã teve um douto predecessor.

Tertuliano foi um autor prolífico, além de veemente – trinta e uma de suas obras sobreviveram. Escreveu sobre tudo que valia a pena, a monogamia, a virgindade, a pudicícia, a paciência e o paraíso. Sobre a diversão pública, o fervoroso africano avisava: “Tu que gostas de espetáculos, aguarda o maior de todos, o Juízo Final”. Sua missão é desqualificar seus concorrentes, mas isso não lhe tira o senso de humor. Quando os cristãos foram acusados do crime de não cultuar o imperador, ele respondeu que a acusação era esdrúxula: os cristãos não precisavam cultuar o imperador, pois já rezavam por ele.

Após anos de vigorosa militância na frente ortodoxa, por volta de 207 ele rompeu com os católicos e tornou-se um dos líderes do montanismo, um movimento apocalíptico da Ásia Menor. A adesão a uma heresia era o que menos se esperava do incansável caçador de heréticos. Mas a fronteira entre heresia e ortodoxia, como ele infelizmente pôde comprovar, é questão de quem fica para contar a história. No final da vida, o patrono do dogma voltou-se contra seu regimento. Tertuliano morreu combatendo os católicos, que havia defendido com garra a vida toda, acusando-os de ser a “Igreja de alguns poucos bispos”, estreita demais para ‘pessoas espirituais’, aqueles imaginativos como ele sempre o fora.

Simetria torta

Religiões são a melhor prova de que assimetrias estão na base, na vértebra, e inclusive na obrigatória superfície do que se chama civilização. Desde que o mundo é mundo, não houve civilização sem religião – como não existiu sociedade sem poder, ou ao menos um ensaio deste. E se excetuarmos os cultos greco-romanos, aquela luminosa religião de deuses beberrões, farristas, ciumentos, encrenqueiros mas também superlativamente generosos – o Olimpo totalmente simétrico ao nosso andar de baixo, espelhando o melhor de nosso vícios e virtudes –, batizada depois de paganismo, a história das religiões é a da vitória irrefutável, embora nem sempre inefável, das assimetrias. Vitória política, lógica, antropológica.

Antropológica: em qualquer delas, dos cultos de Vanuatu (na Melanésia), aos encorpados monoteísmos ou da dança para chamar chuva aos Diktats do Vaticano, a religião só funciona porque há uma radical assimetria entre aquele que pede e O que concede. Bobagem dizer que umas são superstições primitivas e as outras uma sublime busca de transcendência. São, todas, um convincente sistema de troca entre desiguais. Na batida do tambor ou na prece, no chocalho ou na vela, no talismã ou na elaborada liturgia de uma missa, é o pensamento mágico que está em ação, e para operar um conveniente comércio de dessemelhantes. Entre uma potência suprema e inescrutável, numa ponta, e nós, suplicantes, na outra.

Religião é a reposição contínua e continuada da heteronomia. Por isso que as religiões são o oposto do ideal clássico da filosofia, o da busca de autárkeia,[xiv] a tal autonomia com que nos acenava Sócrates quando sugeria que ouvíssemos o daimon interior, sem dar bola para a divindade da vez. Sócrates foi condenado a beber cicuta pelo crime de impiedade, por exortar a juventude a seguir os conselhos ditados pela voz interior (a virtude), nem sempre condizentes com os ditames dos deuses, e administradores, da pólis.

O toc-toc na madeira para afugentar o azar é um gesto é insofismavelmente religioso, tanto quanto a reza ou o mantra. Já que não batemos na madeira para tomar uma providência prática (do modo como batemos num prego para pregar um quadro), o ato é simbólico, a convocação de alguém, ou algo, para que resolva nossos problemas, fazendo nosso papel. Contrição, adoração ou súplica são ritos contratuais, e um contrato mais hobbesiano que rousseauista (contrato celebrado não entre nós, mas pelo qual cedemos tudo ao Leviatã).

Nesta curiosa operação de troca de agrados, pareceria que levamos vantagem, pois em geral pedimos o impossível, ou no mínimo o improvável, em troca de coisinhas pequenas como uma novena ou uma promessa. A sobrecarga e a labuta ficam a cargo do Onipotente; os dividendos, com o pedinte. Ilusão: nesta troca assimétrica, entre seres abissalmente assimétricos, o resultado final é que nos tornamos reféns crônicos. O descompasso se aprofundou.

Lógica: Não bastasse esta assimetria de princípio entre o Todo Poderoso e o que só pode pedir, a contabilidade espiritual das religiões tem também um venerável fundamento lógico. As mais famosas provas da existência de Deus, a ontológica e a cosmológica, ou do design inteligente, põem por terra qualquer veleidade de reduzirmos esta distância, esta polar assimetria. A prova do design, ou criacionismo, hoje em voga entre os neoconservadores inimigos de Darwin, postula que só mesmo um Ser perfeito para construir um universo tão bem equacionado, milimetricamente funcional, e ainda por cima explodindo de beleza no colorido das penas dos pássaros e na arquitetura das flores.

“Basta olhar pela janela!” diria o criacionista Leibniz. “Desde que o teto não tenha goteiras, e a longa contemplação não resulte num resfriado”, responderia o cético Hume[xv]. Já a tradicional prova ontológica da existência de Deus, inventada por Santo Anselmo, era mais simples e direta. Se Deus é perfeito, onisciente, onipresente e onipotente, se ele condensa tudo que houve, há e está por vir, então, já que possui todos os atributos, é claro que não lhe pode faltar… o elementar atributo da existência. Pascal foi menos rocambolesco e mais pragmático, e sua explicação desvela outra forma de assimetria, entre aquele que não tem nada a perder e nós, que arriscamos tudo se não fizermos a aposta certa.

Chama-se, aliás, a “aposta de Pascal”, e enuncia quatro possibilidades e suas combinatórias. Ou Deus existe ou não; ou cremos nele, ou não. Se ele não existe e não cremos, sem problemas. Se não existe e cremos, perda de tempo, mas sem maiores consequências. Se existe e acreditamos, sorte nossa, mas se existe e não cremos, o fogo do inferno. Na dúvida, pois, melhor acreditar.

Houve quem, como Epicuro, fez a pergunta óbvia: se Ele é bom e potente, de onde vem o mal? Pois o mal – guerra, sofrimento, doenças, injustiça – é inegável. Sua hipótese (e por isso Epicuro é filósofo, não teólogo), é que ou Deus é mesmo bom, mas não pode muito, ou pode tudo, mas não é assim tão bem-intencionado.

Sigmund Freud, o pai da psicanálise que ganhou o prêmio Goethe de Literatura, tratou da assimetria inerente às religiões em ao menos três ensaios: Totem e tabu, em que escrutina o judaísmo (suas raízes), O futuro de uma ilusão, no qual passa em revista o cristianismo (a sociedade de seu tempo e ambiente), e O mal-estar da civilização, texto que poderia ter sido concebido no século XXI, tal sua atualidade.[xvi] A conclusão é a mesma: a religião foi indispensável para a construção do edifício civilizatório, seja com seus ritos (para aplacar nossas angústias) ou proibições (para manter nossas sociedades coesas, para evitar que nos canibalizássemos), mas deve, se o mundo seguir um curso melhor, ser substituída pela educação.

Para ele, a religião nasce de uma assimetria psíquica arcaica, entre pai e filho, entre o detentor da lei e aquele que deve ser domesticado e domado, entre o superego judicioso e um inconsciente caótico e selvagem. Freud não tinha ilusões sobre a maioria dos homens: a comunidade humana é assimétrica, sim, e uma maioria precisou ser refreada por mandamentos altamente coercitivos, (leia-se, religiões) senão a civilização naufragaria num minuto. Mas Freud tinha também suas esperanças, a de que chegasse um tempo em que os homens, todos devidamente educados (isto é, autorreprimidos), pudessem dispensar a superstição (a dependência da tal assimetria externa, que, pelo medo, coíbe a selvageria), e passassem a pautar sua ação pela regra moral, pela simples satisfação em fazer o bem, e não pelo medo da punição.

A psicanálise não incensa Deus, mas aceita que religiões fizeram mais que narcotizar, foram mais que o “ópio do povo”. Os monoteísmos, com sua definitiva polarização entre o Protagonista do cosmos e nós, meros coadjuvantes, teria sido um avanço sobre os mais irrequietos e anárquicos politeísmo e panteísmo, nos quais a assimetria se dilui e praticamente desaparece na identificação entre natureza e Criador, gerando uma perigosa simetria entre pedra e flor, homem e bicho, uma arriscada insinuação de que de tudo emana um mesmo élan divino, uma divindade distribuída com equidade, portanto bastante perdulária.

Esta teria sido a grande aquisição levada a cabo pelos monoteísmos contra as simplórias e mais doces religiões que os precederam: a destruição da religiosidade de cunho individualista, seja a do animista, a do crente livre-atirador ou a do místico ensimesmado.

Mas a assimetria final, a “política”, é a que se consumou com o expurgo dos poetas de Deus pelos burocratas da fé. É a histórica perseguição, em todos os credos, contra os místicos, dissidentes, crentes livre-pensadores. Foi com a vitória política das Igrejas entronizadas que se consolidou a mais mundana das assimetrias religiosas, a dos cargos, das funções, dos papéis, e, sobretudo, das benesses (materiais). Foi só com a consolidação da religião como instituição que se abriu espaço para a Inquisição, o Index Librorum Prohibitorum, a Jihad, o extremismo tele-evangelista, enfim, para que os fundamentalismos de todos os matizes pudessem prosperar. Aqui, a assimetria atingiu sua culminância, tornando-se, paradoxalmente, seu contrário. Virou uma simetria torta: a luta de todos contra todos, a guerra santa em nome do Um que, olhando de perto, é o mesmo.

Notas


[i] Veja-se o cristalino e esclarecedor argumento de Suzanne Langer, discípula de Ernst Cassirer, em Philosophy in a New Key: A Study in the Symbolism of Reason, Rite, and Art, Havard University Press, 1957.

[ii] De Anselmo a Descartes a Leibniz, a Pasca l (prudência) a Kant, neste último a sofisticada solução da Razão Prática exigindo um Ser Supremo como fundamento da moralidade e do élan por virtude, felicidade e justiça.

[iii] Fiorillo, Marilia, O Deus exilado: breve história de uma heresia. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008.

[iv] Otto, Rudolf. O Sagrado. Edições 70, Lisboa, s/d.

[v] A ‘promesse de bonheur’ de que falava Stendhal.

[vi] Boyer, Pascal, Religion Explained, Basic Books, Perseus Books Group, 2001

[vii] Bertrand Russell faz uma reclamação desta natureza na passagem em que pergunta por que nos evangelhos, há tão pouca caridade e amor por bichos e plantas: os pobres porcos, possuídos, não são poupados do abismo, e a arvore é condenada a secar. (“Porque não sou Cristâo”. In: Ensaios, Ed Livraria Exposição do Livro, 1965).

[viii] Otto, Rudolf, idem

[ix] Arendt, Hannah: vale rever seu esplendido ensaio sobre “Il papa buono” em Men in dark times.

[x] Quem com mais concisão chega a esta definição é o dramaturgo norte americano Arthur Miller, autor, entre outras peças, de The Crucible, em que retoma o episódio histórico do julgamento e assassinato das supostas feiticeiras de Salem, magnífico estudo da neurose religiosa e suas nefandas implicações políticas.

[xi] Boyer, idem

[xii] Boyer não é o único a conectar religião e obsessão; a psicanálise, desde o mestre fundador S Freud, tradicionalmente associa a neurose obsessiva ao comportamento ritualístico religioso.

[xiii] Fiorillo, M. O deus exilado: breve história de uma heresia. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. As citações da sequência provêm do livro.

[xiv] Em Aristóteles, o homem feliz é o homem livre que participa da vida da cidade

[xv] Hume, D. Dialogues concerning natural religion. London: Dover Philosophical Classics, 2006.

[xvi] Freud, S. Obras completas, Editorial Biblioteca Nueva, 1981.

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18
Jul21

O palavrão (por Gustavo Krause)

Talis Andrade

Gustavo Krause: estancar o déficit nas contas

por Gustavo Krause

- - -

Não sou filólogo, tampouco linguista. Mas, vivi o suficiente para observar que palavras entram e saem da moda; mudam ou assumem significados diversos de apreço ou desapreço, dependendo do contexto.

Quando fui me tornando gente, meu pai e minha mãe, embora liberais, cuidavam da nossa personalidade em formação com rigidez. Dizia ela: “se não tomar chá em pequeno, não desentorta e será sempre mal-educado”. Ensinavam a respeitar e pedir a bênção aos mais velhos (não precisava ser parente); ceder lugar, inclusive, às mulheres (arriscado, hoje, a levar uma reprimenda); não interromper quem estivesse falando e o irrenunciável mandamento: cultivar fraterna solidariedade com os mais humildes.

Provavelmente, não fui um aluno tão diligente por minha culpa, minha máxima culpa. Porém, a mais séria ameaça surgiu quando usei a palavra sacana. O mundo veio abaixo: “dobra língua e se repetir palavrão boto um ovo quente na sua boca”. Sei que ela jamais cumpriria. Em compensação, pelo menos nos limites da casa, era um menino de boca limpa.

Na rua, as coisas mudavam de figura; no campo de pelada o “palavrão” que não significa apenas palavra grande, mas palavra obscena que corria solta: “filho da puta, porra, puta que pariu, vá tomar no… prefiro não escrever. O leitor compreenderá.

Com o tempo, as coisas foram mudando, os costumes e a linguagem também. Hoje um estádio inteiro saúda a mãe do juiz ou o manda para o mais recôndito órgão do corpo humano. Porra virou vírgula ou exclamação, entre moças rapazes, e “carai” uma espécie de ponto final usado pela geração Z.

Estas breves considerações vêm a propósito do “caguei” do Presidente Bolsonaro, expressão chula e afrontosa que ele usou para responder às perguntas da formuladas pela Comissão Parlamentar de inquérito do Senado sobre questões suscitadas nos interrogatórios.

Não vou citar o variado repertório ferino e golpista que ele tem utilizado largamente. Desta vez, o ato escatológico dirige-se a um dos Poderes Constitucionais do Brasil. Vai além do “palavrão”, é um desrespeito ao decoro republicano ao revelar, como já revelado em outras ocasiões, grave desprezo pelas Instituições Democráticas.

 

23
Mai20

Bolsonaro ganhou de Moro uma peça publicitária

Talis Andrade

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por Jeferson Miola

- - -

A divulgação do vídeo da reunião ministerial de 22 de abril foi pedida pela defesa de Sérgio Moro como prova da interferência do Bolsonaro na Polícia Federal para proteger filhos, amigos & esquemas milicianos do clã.

Catalogar aquele aglomerado de gângsteres de 22 de abril como uma “reunião ministerial” é um eufemismo para aquilo que mais se parece com um “encontro de alinhamento” do “Escritório do Crime”, a organização miliciana que domina o território de Rio das Pedras, no Rio.

Apesar da escatologia revelada, a decepção com o conteúdo do vídeo, pelo menos no que concerne ao escopo do inquérito criminal conduzido pelo STF, é diretamente proporcional à expectativa que se criou em relação à sua divulgação.

É notável o empenho do jornalismo da Globo em construir um relato pró-Moro. O ex-ministro bolsonarista, entretanto, continua devendo provas robustas para conseguir se livrar de eventual condenação por denunciação caluniosa proposta pela PGR.

O vídeo confirma o que é um consenso do mundo jurídico nacional e internacional: o ex-juiz Moro, que com seus comparsas da Lava Jato corrompeu o sistema de justiça do Brasil, continua não entendendo absolutamente nada sobre o que é uma prova em processo criminal.

No encontro indecoroso da horda de Rio das Pedras teve de tudo, mas só faltou a prova cabal da acusação do Moro, ainda que seja amplamente sabido que Bolsonaro interfere diretamente na PF para salvar a si mesmo e aos seus.

Agora sem o poder que tinha como juiz para aparelhar a Lava Jato – e manipular/chefiar procuradores federais, ministros do STJ e do STF, desembargadores e policiais federais – Moro passou a experimentar dificuldades inauditas na sua carreira de corruptor do sistema de justiça do país.

Em que pese a debilidade da prova específica pretendida por Moro, o encontro de 22 de abril evidenciou que vários integrantes do Escritório do Crime são potenciais candidatos ao banco de réus.

É o caso, por exemplo, do próprio Bolsonaro, que ameaçou armar a população, “porque é fácil ter uma ditadura no Brasil”.

É o caso, também, do ministro Abraham Weintraub, que defendeu a ida dos 11 “vagabundos” do STF para a cadeia; assim como é o caso do ministro Ricardo Salles, que propôs aproveitar o momento de “distração” da imprensa com a pandemia “para passar toda a boiada” de crimes contra o ambiente, a agricultura e a cultura; ou do pinochetista Paulo Guedes, que propôs o crime de lesa-pátria de liquidação do Banco do Brasil na bacia das almas.

Além de se colocar em desvantagem no inquérito no STF, Moro produziu uma potente peça publicitária para Bolsonaro no papel de justiceiro do Brasil. Com esta máscara, Bolsonaro rouba o lugar de Moro e posa de “vítima do sistema” [sic].

Por mais repugnante, asqueroso e indecoroso que possa ter sido aquele encontro de gângsteres em 22 de abril, aquilo é um bálsamo para os bolsonaristas fanatizados.

Aquela linguagem tosca, o dantesco, a perspectiva tacanha da vida e a visão racista de mundo têm enorme ressonância na subjetividade de cerca de 25% a 30% da população brasileira. O que é, enfim, revelador da tragédia em que estamos enfiados.

Por enquanto, Moro ficou na chuva, e produziu uma peça publicitária de alto valor para Bolsonaro. A única coisa que ficou provada neste processo é que o sigilo do vídeo teria sido mais prejudicial a Bolsonaro do que sua publicidade.

19
Out19

Os blefes golpistas de Olavo de Carvalho devem ser levados a sério. Por quê?

Talis Andrade

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por Valerio Arcary

Versão em espanhol

 

 

Na hora mais escura da noite, mais intenso será o brilho das estrelas no céu.
Sabedoria popular persa

A hora mais escura do dia é a que vem antes do sol nascer.
Sabedoria popular árabe

 

A convocação de Olavo de Carvalho a Bolsonaro para assumir plenos poderes, se apoiando nas Forças Armadas e na mobilização de sua base social, depois ecoada nas redes bolsonaristas como um chamado a um novo AI-5, não deve ser subestimada. Trata-se de um escândalo.

Revela que o bolsonarismo tem como estratégia a subversão do regime político. Um governo de extrema-direita com projeto bonapartista é contraditório com um regime político eleitoral. Não é, necessariamente, incompatível, mas é antagônico.

Há sempre uma dimensão de blefe, ou seja, de ameaça retórica, neste tipo de agitação provocativa, mas é também uma sinalização de que não têm limites, não têm pudores, não têm escrúpulos.

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O AI-5 em dezembro de 1968 foi avaliado, corretamente, como um golpe dentro do golpe. Assim como o golpe de Estado de 1964, o golpe do AI-5 respondia, outra vez, à percepção da cúpula das Forças Armadas de que existiria o perigo de abertura de uma situação pré-revolucionária a partir da onda de ascenso do movimento estudantil, na sequência da passeata dos cem mil no Rio de Janeiro, e de uma onda de levantes operários, depois das greves de Osasco e Contagem. A ditadura militar tinha fobia de estudantes e de operários, e se assustava com a fermentação cultural que não parava de crescer.

Uma combinação de pelo menos três fatores pode explicar estas declarações absurdas. A primeira é a crise da fração bolsonarista com o PSL. As investigações sobre as movimentações financeiras do PSL e a divisão do controle da legenda de aluguel com Luciano Bivar deixam o bolsonarismo inseguro sobre seu futuro. A entrada no PSL foi uma improvisação eleitoral, e agora o bolsonarismo se sente desconfortável. O PSL se tornou um problema. Uma corrente neofascista precisa de um partido para 2020 em que tenha controle absoluto, e terão que encontrá-lo trocando a roda com o carro em movimento. A substituição do líder do PSL Delegado Waldir por Eduardo Bolsonaro é uma iniciativa nessa direção.

Em segundo lugar, o bolsonarismo quer responder às iniciativas que virão do STF (Supremo Tribunal Federal). Não somente quanto ao destino da votação sobre a prisão em segunda e terceira instâncias, ou somente após o trânsito final pelo STF, mas também quanto à votação do pedido de Habeas Corpus apresentado pela defesa de Lula, sustentado na suspeição de Moro. A sinalização é de que o bolsonarismo está disposto a ir às ruas, e se dirige abertamente aos generais, se a liberdade de Lula for conquistada.

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A sinalização é de que o bolsonarismo está disposto a ir às ruas, e se dirige abertamente aos generais, se a liberdade de Lula for conquistada

 

Um terceiro fator a ser considerado é o desgaste lento, porém, crescente, do governo diante da burguesia e da classe média, mesmo estando muito seguros da aprovação da reforma da Previdência no Senado semana que vem. A economia brasileira anda de lado há três anos, depois do mergulho de 2015/16 que sacrificou mais de 7% da capacidade produtiva instalada. Os mais otimistas adiam para 2024 a retomada do patamar de 2014. Uma década perdida.

A rigor, não parece haver perigo real e imediato de uma tentativa de autogolpe ou insurreição militar no Brasil. Nenhuma fração importante da burguesia está hoje considerando um projeto de quartelada para impor um regime bonapartista para garantir os ajustes econômico-sociais necessários ao reposicionamento do Brasil no mercado mundial.

Tentar prever o que poderá acontecer é impossível, porque o volume de variáveis a serem consideradas é inalcançável. Não podemos lutar contra perigos imaginários. Devemos nos concentrar na luta contra os perigos imediatos. Agitar, portanto, a iminência do perigo de um autogolpe seria alarmismo. Alarmismo só serve para disseminar medo, insegurança, pânico e, finalmente, desmoralização. Não há perigo iminente de golpe. Isso se explica, essencialmente, porque não há perigo de revolução. Um golpe, por enquanto, não é necessário.

A ausência de um amplo e radicalizado movimento de resistência da classe trabalhadora e de seus aliados que ameace a dominação da burguesia faz com que as grandes empresas e bancos não apoiem uma intervenção militar.

Entretanto, diminuir o perigo que o governo Bolsonaro representa para as liberdades democráticas seria miopia política grave. A radicalização neofascista da retórica do bolsonarismo não deve ser ignorada. Só a mobilização de massas da classe trabalhadora e da juventude tem a força social capaz de derrotá-lo.

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30
Ago19

Brasil vive um clima de pré-nazismo enquanto a oposição emudece

Talis Andrade

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O silêncio dos que deveriam defender a democracia pode acabar deixando o caminho aberto aos autoritários Moro, Witzel, Doria, que se sentem ainda mais fortes diante de tais silêncios

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---

O Brasil está vivendo, segundo analistas nacionais e internacionais, um clima político de pré-nazismo, enquanto a oposição progressista e democrática brasileira parece muda. Somente nos últimos 30 dias, de acordo com reportagem do jornal O Globo, o presidente Jair Bolsonaro proferiu 58 insultos dirigidos a 55 alvos diferentes da sociedade, dos políticos e partidos, das instituições, da imprensa e da cultura.

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E à oposição ensimesmada, que pensa que o melhor é deixar que o presidente extremista se desgaste por si mesmo, ele acaba de lhes responder que “quem manda no Brasil” é ele e, mais do que se desfazer, cresce cada dia mais e nem os militares parecem capazes de parar seus desacatos às instituições.

Há quem acredite que o Brasil vive um clima de pré-fascismo, mas os historiadores dos movimentos autoritários preferem analisá-lo à luz do nazismo de Hitler. Lembram que o fascismo se apresentou no começo como um movimento para modernizar uma Itália empobrecida e fechada ao mundo. De modo que uma figura como Marinetti, autor do movimento futurista, acabou se transformando em um fervoroso seguidor de Mussolini que terminou por arrastar seu país à guerra.

nazismo foi outra coisa. Foi um movimento de purga para tornar a Alemanha uma raça pura. Assim sobraram todos os diferentes, estrangeiros e indesejados, começando pelos judeus e os portadores de defeitos físicos que prejudicavam a raça. De modo que o nazismo se associa ao lúgubre vocábulo “deportação”, que evoca os trens do horror de homens, mulheres e crianças amontoados como animais a caminho dos campos de extermínio.

Talvez a lúgubre recordação de minha visita em junho de 1979 ao campo de concentração de Auschwitz com o papa João Paulo II tenha me feito ler com terror a palavra “deportação” usada em um decreto do ministro da Justiça de Bolsonaro, o ex-juiz Sérgio Moro, em que ele defenda que sejam “deportados” do Brasil os estrangeiros considerados perigosos.

 

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Bolsonaro, em seus poucos meses de Governo, já deixou claro que em sua política de extrema direita, autoritária e com contornos nazistas, cabem somente os que se submetem às suas ordens. Todos os outros atrapalham. Para ele, por exemplo, todos os tachados de esquerda seriam os novos judeus que deveriam ser exterminados, começando por retirá-los dos postos que ocupam na administração pública. Seu guru intelectual, Olavo de Carvalho, chegou a dizer que durante a ditadura 30.000 comunistas deveriam ter sido mortos e o presidente não teve uma palavra de repulsa. Ele mesmo já disse durante a campanha eleitoral que com ele as pessoas de esquerda deveriam se exilar ou acabariam na cadeia.

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Inimigo dos defensores dos direitos humanos, dos quais o governador do Rio, Witzel, no mais puro espírito bolsonarista, chegou a afirmar que são os culpados pelas mortes violentas nas favelas, Bolsonaro mal suporta os diferentes como os indígenas, os homossexuais, os pacíficos que ousam lhe criticar. Odeia todos aqueles que não pensam como ele e, ao estilo dos melhores ditadores, é inimigo declarado da imprensa e da informação livre.

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Sem dúvida, o Presidente tem o direito de dizer que foi escolhido nas urnas com 53% dos votos, que significaram 57 milhões de eleitores. Nesse sentido o problema não é seu. Os que votaram nele sabiam o que pensava, ainda que talvez considerassem seus desatinos de campanha como inócuos e puramente eleitoreiros. O problema, agora que se sabe a que ele veio, e que se permite insultar impunemente gregos e troianos começando pelas instituições bases da democracia, mais do que seu, é da oposição.

Essa oposição, que está muda e parece impotente e distraída, demonstra esquecer a lição da história. Em todos os movimentos autoritários do passado moderno, os grandes sacerdotes da violência começaram sendo vistos como algo inócuo. Como simples fanfarrões que ficariam somente nas palavras. Não foi assim e diante da indiferença, quando não da cumplicidade da oposição, acabaram criando holocaustos e milhões de mortos, de uma e outra vertente ideológica.

Somente os valores democráticos, a liberdade de expressão, o respeito às minorias e aos diferentes, principalmente dos mais frágeis, sempre salvaram o mundo das novas barbáries. De modo que o silêncio dos que deveriam defender a democracia pode acabar deixando o caminho aberto aos autoritários, que se sentem ainda mais fortes diante de tais silêncios.

Nunca existiram democracias sólidas, capazes de fazer frente aos arroubos autoritários, sem uma oposição igualmente séria e forte, que detenha na raiz as tentações autoritárias. Há países nos quais assim que se cria um governo oficial, imediatamente a oposição cria um governo fictício paralelo, com os mesmos ministros, encarregados de vigiar e controlar que os novos governantes sejam fieis ao que prometeram em suas campanhas e, principalmente, que não se desviem dos valores democráticos. Sem oposição, até os melhores governos acabarão prevaricando. E o grande erro das oposições, como vimos outras vezes também no Brasil, foi esperar que um presidente que começa a prevaricar e se corromper se enfraqueça sozinho. Ocorrerá o contrário. Crescerá em seu autoritarismo e quando a oposição adormecida perceber, estará derrotada e encurralada.

Nunca em muitos anos a imagem do Brasil no mundo esteve tão deteriorada e causando tantas preocupações como com essa presidência de extrema direita que parece um vendaval que está levando pelos ares as melhores essências de um povo que sempre foi amado e respeitado fora de suas fronteiras. Hoje no exterior não existe somente apreensão sobre o destino desse continente brasileiro, há também um medo real de que possa entrar em um túnel antidemocrático e de caça às bruxas que pode condicionar gravemente seu futuro. E já se fala de possíveis sanções ao Brasil por parte da Europa, em relação ao anunciado ataque ao santuário da Amazônia.

O Brasil foi forjado e misturado com o sangue de meio mundo que o fizeram mais rico e livre. Querer ressuscitar das tumbas as essências de morte do nazismo e fascismo, com a vã tentativa da busca da essência e pureza da brasilidade é uma tarefa inútil. Seria a busca de uma pureza que jamais poderá existir em um país tão rico em sua multiplicidade étnica, cultural e religiosa. Seria, além de uma quimera, um crime.

Urge que a oposição democrática e progressista brasileira desperte para colocar um freio nessa loucura que estamos vivendo e que os psicanalistas confirmam que está criando tantas vítimas de depressão ao sentirem-se esmagadas por um clima de medo e de quebra de valores que a nova força política realiza impunemente. Que a oposição se enrole em suas pequenezas partidárias e lute para ver quem vai liderar a oposição em um momento tão grave, além de mesquinho e perigoso é pueril e provinciano.

Há momentos na história de um país em que se os que deveriam defender os princípios da liberdade e da igualdade cruzam os braços diante da chegada da tirania, incapazes até de denunciá-la, amanhã pode ser tarde demais. E então de nada servirá chorar diante dos túmulos dos inocentes.

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21
Ago19

De oris et anus

Talis Andrade

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por Adilson Roberto Gonçalves

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A mídia insiste ainda em se esquecer que houve um governo Temer antes do de Bolsonaro, e não do PT. E também apagou de sua memória os fortes indícios de fraude eleitoral em 2018, à luz do que Moro e Dallagnol articularam para forçar a prisão de Lula, impedir sua candidatura e fazer vazamentos ilegais para minar a chapa Haddad-Manuela.

‘Fazer um presidente’ ou ‘formação do bolo presidencial’ são as novas e necessárias conotações escatológicas do final da atividade digestiva, face à incontrolável e inexpressiva verborragia do ocupante do correspondente cargo em Brasília. Essa combinação escatológica e violenta do mandatário da nação produz diálogos como este: Presidente, o que fezes? Presídio um país, responde. Para um povo alvo? Não, tiro o alvo, conclui.

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A leitura da mídia impressa deste mês dá a dimensão do quanto de pornografia oficial se transformou em política de governo.

Alguns colunistas clamam para que Bolsonaro fale mais, refletindo a descrição do insano instalado na presidência do País. Nesse aspecto, foi emblemático que o editorial do Estadão de 4/8 (“Falta de civilidade”) e o artigo de Fernando Henrique Cardoso (“Falta fazer”), na mesma edição, tenham títulos iniciados pela mesma palavra. Ao governo de Jair Bolsonaro falta o principal: governar. Em sete meses no poder, não lançou um projeto ou realizou um feito próprio, pois até a reforma da Previdência virou protagonismo da Câmara dos Deputados e não do Executivo. Tudo o que foi feito até aqui teve como princípio a desconstrução do que havia sido feito antes: educação, meio ambiente, ciência e tecnologia, políticas sociais e saúde. Nada foi criado ou desenvolvido. Sem qualquer aptidão para a função, é hora de liberar a moita, abusando da escatologia oficial. O pior é que ainda há um terço da população que apoia essa verborragia tresloucada.

Outros colunistas, como Hélio Schwartsman da Folha de S. Paulo, defendem que haja um “cardápio filosófico” com escolhas para a conduta das relações sociais. Porém, tais supostas opções contrastam com a aprovação desse sistema redistributivo às avessas, que tira a aposentadoria do pobre para sustentar sonegadores da previdência, banqueiros e herdeiros de grandes fortunas.

A mídia insiste ainda em se esquecer que houve um governo Temer antes do de Bolsonaro, e não do PT. E também apagou de sua memória os fortes indícios de fraude eleitoral em 2018, à luz do que Moro e Dallagnol articularam para forçar a prisão de Lula, impedir sua candidatura e fazer vazamentos ilegais para minar a chapa Haddad-Manuela. Mas o importante é o falso verniz de que a imprensa “tem na crítica a governantes sua razão de existir”.

Em contraponto, serenidade é o mote do texto que Guilherme Boulos publicou na Folha de S. Paulo, ainda que avoque a necessidade de uma esquerda protagonista e ativista ("A renovação da esquerda", 8/8). Uma nova dimensão do que são as pautas e ações progressistas precisa ser estabelecida, num mundo em que a má prática está superando a boa teoria. Fomos intolerantes por muito tempo com a ignorância e colhemos agora seus nefastos frutos.

 

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