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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

25
Jul22

A Terra Prometida e a violência nas eleições

Talis Andrade

Dora Longo Bahia. Senta, 1994 Óleo sobre tela
 200 x 290 cm



No Brasil, o estado de exceção é a norma nos territórios precarizados e contra os corpos descartáveis da democracia
 
 
por Edson Teles /A Terra É Redonda
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Foi estarrecedor assistir e ouvir as narrativas sobre a morte de Marcelo Arruda. A violência da cena, o resultado dos discursos de ódio, a consideração do outro como inimigo. Ainda mais, o fato de que o criminoso era militante do bolsonarismo e replicava em seu ato o discurso de “guerra do bem contra o mal”, conforme seu líder havia anunciado um dia antes do crime.

A proposição do presidente tem razão em um aspecto: vivemos sob uma guerra! Infelizmente, dezenas de milhares de jovens morrem violentamente todos os anos. E a grande maioria é de pessoas negras. Esse dado se repete em outras esferas, com a aniquilação do acesso à saúde, ao emprego, à educação, ao direito sobre o próprio corpo, à liberdade de expressão, religião e organização.

A fome, a ausência de direito à existência e à vida, sobretudo para a população negra e periférica, é o resultado da guerra colonial ainda em prática no país. E essa guerra é política. Contra os corpos expostos ao sistema do capital, injusto, desigual e, no Brasil, operado por meio de uma lógica patriarcal e racista. Os alvos da escalada bélica são grupos específicos da população, demonstrando o caráter político e direcionado da violência.

Na cobertura jornalística do assassinato de Marcelo Arruda, um velho fantasma da política pós-ditadura foi renovado. Trata-se da ficção de que dois lados extremistas estariam em ação, o que gera a violência e demanda uma saída controlada e de “consenso”, sob o discurso da pacificação e da reconciliação. No programa de domingo da rede Globo, “Fantástico”, o crime foi apresentado como resultado de extremos políticos. Diversos políticos e autoridades se apressaram em condenar os conflitos entre posições extremas.

Tenta-se igualar a oposição limitada por meio de partidos políticos com as manipulações e atos milicianos ligados às práticas da extrema direita brasileira.

Na passagem da ditadura para a democracia esse fantasma dos extremos chamava-se “teoria dos dois demônios” e justificava a saída controlada do regime civil-militar sem grandes rupturas. Na democracia, em muitas oportunidades se justificam atos de exceção de agentes públicos nas periferias alegando a violência do outro, sempre marginal, traficante, elemento com passagem na polícia, ligado ao crime organizado, entre outras definições do inimigo extremo que o faz suscetível a ser eliminado.

Há, do ponto de vista da política funcionando por meio da guerra, dois elementos que gostaríamos de comentar: as ações ilícitas e genocidas do Estado brasileiro e a produção do inimigo.

Podemos dizer que o crime político de Foz do Iguaçu está relacionado com a chacina da Vila Cruzeiro. Neste segundo caso, em uma ação policial típica na cidade do Rio de Janeiro, pelo menos 25 pessoas foram assassinadas no final do mês de maio, menos de dois meses atrás. O massacre ocorreu durante a vigência da “ADPF das Favelas” (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635), aceita pelo Supremo Tribunal Federal, e que determina, entre outras coisas, a limitação da atuação das polícias nesses territórios.

Quando as polícias, Civil e Rodoviária Federal, invadem o território e promovem o massacre, apesar de o Poder Judiciário ter imposto limites a esse tipo de ação, o Estado está agindo de maneira ilícita e, decorrente dessa situação, fazendo a escolha política pela guerra a determinados segmentos da população. Ao invés de cumprir a Constituição e garantir a esses territórios o acesso à saúde, à educação e a uma vida digna, os agentes públicos corroboram com a existência permanente de um estado de exceção.

Inicialmente viabilizado por mecanismos jurídicos, o estado de exceção tem sua força de lei, ao utilizar a violência do Estado, garantida por medidas legitimadas nas leis do próprio estado de direito. Matar sob forte emoção, legítima defesa dos agentes de segurança, excludente de ilicitude, autos de resistência, entre outros termos, são os nomes que se tem dado ao esforço de tornar lícito aquilo que já é prática ilícita cotidiana. A estratégia de incluir no ordenamento a licença para matar marca uma das facetas da exceção no país, visando produzir mecanismos que instituem a guerra como prática social.

No Brasil, o estado de exceção é a norma nos territórios precarizados e contra os corpos descartáveis da democracia. Entretanto, não necessariamente a norma inscrita na lei, mas a da atuação cotidiana e contínua. É o que demonstra a ação na Vila Cruzeiro, na qual o principal local da violência foi no alto do morro, conhecido como Terra Prometida.

A exceção permanente e legitimada faz da militarização a autoridade de governo e dos grupos de direita e das milícias os despachantes da violência liberada. É dessa forma que o massacre “prometido” da Vila Cruzeiro se relaciona com o assassinato de Marcelo Arruda. Com a ascensão da extrema direita ao comando do poder Executivo, a prática da exceção e da violência de Estado, historicamente reforçada por seus despachantes, ganhou uma conotação de extrema gravidade.

E esse processo de exceção permanente e de autorização implícita ou explícita da violência só se faz viável por meio da produção do corpo indesejável.

O inimigo, segundo o discurso da violência e do ódio, é polimorfo e se encontra por toda parte, o que permite manter a existência de seu fantasma em qualquer espaço ou relação, pessoal, pública e, como vimos, mesmo entre pessoas que não se conhecem. Não importa quem é o outro, mas o que o outro representa na sociedade cindida pelo racismo, pelo fascismo e pelo patriarcalismo.

A violência de Estado se mostra inseparável de uma violência exercida contra o outro. Nesse sentido, não bastam mecanismos constitucionais de acionamento do estado de exceção, pois se trata da violência bélica anômica e liberada para qualquer esfera. Há que se produzir a sociedade permeada por corpos indesejáveis que supostamente representam um perigo à própria vida dos que se encontram no outro lado.

Se fôssemos fazer um inventário da democracia teríamos que falar sobre uma história de “duas faces”, como nos ensina o filósofo Achille Mbembe: uma “solar” e outra “noturna”. Na vertente “solar” poderíamos falar em uma Constituição cidadã, em consolidação dos valores democráticos, em Estado e políticas sociais, em alternância de poder etc. No vestígio “noturno” da democracia temos de encarar a face do racismo, da violência feminicida, do etnocídio contra os povos originários, da covardia miliciana da direita, do genocídio do povo preto e periférico.

Assim como as favelas do Rio de Janeiro nascem da promessa de uma outra vida que viria após o processo manipulado de abolição, no fim do século XIX, a democracia se viu gestada no país como a elaboração de uma sociedade da “mistura” e da miscigenação, na qual negros e brancos viveriam pacificamente, reconciliando suas feridas do passado. Na terra prometida das últimas décadas de democracia o povo preto e pobre das periferias seguiu experimentando a ditadura da violência e da precarização.

Mais uma chacina para a conta - Renato Aroeira - Brasil 247

17
Jul22

Conheça a história sombria do coronel Ustra, torturador e ídolo de Bolsonaro

Talis Andrade

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Sadismo, crueldade e mentiras formam a triste figura do coronel Ustra, o primeiro torturador condenado no Brasil. Luiz Eduardo Merlino morre mais uma vez

Juca Guimarães
Brasil de Fato

 

 

 

Ao declarar o seu voto no processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, o deputado federal Jair Bolsonaro (PSL) fez uma homenagem à memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra chamando-o de “o pavor de Dilma Rousseff”, por ter comandado as sessões de tortura contra a ex-presidenta, que foi presa durante a ditadura militar.

A fala não foi de improviso, Bolsonaro leu o nome do militar em um pedaço de papel amarrotado. Foi um ato sádico, planejado, covarde e cruel, assim como eram as sessões de torturas em centenas de pessoas que aconteceram em São Paulo, no Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna (Doi-Codi), sob o comando do coronel Ustra na ditadura militar, período em que foram contabilizadas 434 mortes  e desaparecimentos no país, segundo a Comissão Nacional da Verdade.

Em 2013, quando foi depor na Comissão Nacional da Verdade, décadas após o fim da ditadura, Ustra mostrou novamente a faceta dissimulada e mentirosa ao afirmar que não houve mortes dentro das instalações que comandava.

“[O Doi-Codi] foi um organismo de repressão política construído pela ditadura que misturava agentes da polícia civil, da polícia militar e do Exército com uma certa informalidade e agilidade necessária para que eles pudessem agir com a intensidade e brutalidade que agiram. O principal instrumento utilizado foi a tortura das pessoas suspeitas que eram presas,  envolvidas com a luta armada ou que tinham algum contato com elas. E são muitos os relatos que envolvem o nome do comandante Ustra na condução dessas torturas”, explica José Carlos Moreira da Silva, professor de Direito da PUC-RS.

Crueldade

Sob o comando de Ustra, o terror da tortura não poupou nem crianças.

“Neste caso da família Teles, que é um caso terrível porque os pais do Edson Teles e da Janaina Teles, na época o Edson tinha 4 anos de idade e a Janaina 9, eles foram torturados brutalmente e os filhos foram levados até as dependências do Doi-Codi e viram as pessoas torturadas e seus pais machucados. Num primeiro momento não os reconheceram. Eles ficaram ali durante um tempo sem a presença de nenhum parente e nenhuma pessoa conhecida sendo utilizados como moeda de troca para que os pais, a Amelinha Teles e o César Teles, pudessem falar o que eles [torturadores] queriam ouvir”, disse o professor e membro da ABJD (Associação Brasileira de Juristas pela Democracia).

O caso da tortura da família Teles, em 2008, deu origem à primeira condenação que confirmou como torturador o chefe do Doi-Codi e herói do Bolsonaro. O Brasil é signatário de acordos internacionais que condenam a prática da tortura desde o final da Segunda Guerra Mundial, com a assinatura da Convenção de Genebra. Por isso, as atrocidades comandadas por Ustra e exaltadas por Bolsonaro também eram ilegais, independentemente de quem eram ou o do que fizeram os torturados.

Membro da Comissão da Anistia por mais de dez anos, julgando casos de perseguidos políticos e pessoas que foram presas na ditadura militar, o jurista Prudente Mello tomou conhecimento de centenas de processos que apontavam o coronel Ustra como um dos principais agentes da tortura na ditadura militar.

"Era muito comum ouvir das pessoas que passavam por lá [comissão da anistia], que foram torturadas, reportando sobre o coronel Brilhante Ustra e as práticas de tortura que ele foi responsável. Os relatos ao longo dos processos de pessoas torturadas dão conta disso. Realmente não tem como esconder ou tentar invisibilizar este personagem que foi um personagem triste na história do Brasil. Nós temos que aprender com os erros que foram praticados e cometidos até mesmo para que eles não voltem a se repetir”, disse.

Edição: Pedro Ribeiro Nogueira

Processo

Luiz Eduardo Merlino morre mais uma vez

por Jornalistas Livres

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A família de Luiz Eduardo da Rocha Merlino, vive mais um momento de luto produzido pela justiça brasileira. No julgamento realizado nesta quinta-feira (10/10/2019), por 2 votos a 1, a 11ª Turma do TRF-3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região), em São Paulo, não aceitou recurso e não recebeu a denúncia do MPF que pedia que fossem processados pelo homicídio do jornalista Luiz Eduardo Merlino, três agentes da ditadura.
O jornalista foi morto no Hospital do Exército, em julho de 1971, após 24 horas de tortura no DOI-Codi. 

Assistente da acusação Eloísa Machado afirmou durante o julgamento:

“A busca pela verdade faz parte da história dessa família há 48 anos”

Somente Fausto Di Sanctis foi favorável a levar os três servidores à julgamento pela morte do jornalista. O relator, desembargador José Lunardelli, e o presidente da turma, Nino Toldo, votaram contra a tese do MPF. Para eles, não há como contornar a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), de 2010, que julgou constitucional a Lei de Anistia de 1979 e, por isso, não seria possível receber a denúncia. Cabe recurso da decisão.

Os denunciados são o delegado aposentado Aparecido Laertes Calandra e o delegado da Polícia Civil de São Paulo Dirceu Gravina, acusados de homicídio doloso qualificado (com intenção de matar), por motivo torpe e com emprego de tortura que impossibilitou a defesa da vítima. O médico Abeylard de Queiroz Orsini, à época, legista, é acusado pelo crime de falsidade ideológica, decorrente da falsificação do laudo necroscópico do jornalista. 

Apresentada em setembro de 2014, a denúncia do MPF contra os agentes foi rejeitada pelo juiz federal Fábio Rubem David Müzel, sob a alegação de que os acusados estariam cobertos pela Lei de Anistia. Em outubro do mesmo ano, o MPF recorreu da decisão.

A família de Merlino luta por justiça e punição dos torturadores e do mandante Coronel Alberto Brilhante Ustra, que comandava o centro de torturas e que deu ordem para que deixassem Luiz Eduardo Merlino morrer no hospital militar. Com a sua morte, em 2015, a punibilidade criminal contra ele foi extinta. Mas a família de Merlino moveu ação indenizatória.

O último e torturante episódio deste processo contra Ustra, foi em outubro de 2018, quando sob alegação de prescrição, o Tribunal de Justiça de São Paulo reformou a sentença, absolvendo Ustra por três votos a zero. Em 2012, uma decisão de primeira instância havia condenado o coronel reformado ao pagamento de uma indenização às proponentes. 

+ SOBRE O CASO

Familiares de mortos e desaparecidos poderão retificar registro de óbito de seus entes amados

Assassinato de Luiz Eduardo Merlino pela ditadura tem novo julgamento

O caráter deplorável do nada brilhante coronel Ustra fraudou a causa da morte, dando conta que o jornalista tinha cometido suicídio ao se jogar debaixo de um caminhão numa estrada.

Anibal de Castro Lima e Souza, advogado da família do jornalista , falou ao Brasil de Fato sobre a relevância histórica de desvendar os crimes da ditadura e seus autores.

“É um caso importante, não só ao direito da memória da família do Merlino que foi brutalmente  assassinado pela ditadura, mas também para relembrar para a geração atual e a futura o que aconteceu na história do Brasil”, disse.

O advogado também comentou sobre a tentativa de transformar em herói um torturador.

"É triste porque primeiro porque é desumano, segundo porque ignora as leis e os tratados que o Brasil é signatário. O Brasil é fundador da ONU, a nossa Constituição veda a tortura. A tortura é definida no Brasil como crime, inafiançavel e imprescritível. As pessoas que negam isso ou que relativizam a tortura, na minha opinião, não conhecem a lei. Não acredito que uma pessoa ao sentar, raciocinar sobre o que está dizendo ou tomar conhecimento de alguém que foi torturado possa manter essa opinião”, disse.

Quando morreu, em outubro de 2015, o coronel Ustra morava em uma casa de alto padrão em uma área nobre de Brasília.

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Mídia NINJA on Twitter: "Um homem que colocava ratos na vagina de mulheres"

 
Mídia NINJA
@MidiaNINJA
Um homem que colocava ratos na vagina de mulheres não pode ser considerado um homem de honra. É um torturador que precisa ir para a lata do lixo da história
06
Jul22

TESTEMUNHOS DE MULHERES: UMA REFLEXÃO SOBRE OS TRAUMAS, TORTURAS E RESSENTIMENTOS SOFRIDOS DURANTE A DITADURA MILITAR NO BRASIL

Talis Andrade

Elas Resistem, Elas Existem | Roda de Conversa com Criméia Almeida,  Amelinha Teles e Dulce Muniz - YouTube

 

por Ana Cristina Rodrigues Furtado

 

Esse trabalho tem o objetivo de fazer uma reflexão sobre os testemunhos de Maria Amélia Teles e Criméia Almeida, ambas são irmãs. Elas foram integrantes do Partido Comunista do Brasil PCdoB, lutaram na guerrilha do Araguaia, foram presas e torturadas na Operação Bandeirantes Oban no período da ditadura militar no Brasil.

Para esse trabalho nos deteremos nas fontes audiovisuais que possuem o formato de depoimentos, são eles, Ditadura Depoimento Maria Amélia Teles e SBT Amor e Revolução Criméia Almeida Depoimento, ambos produzidos em 2011.

Essas mulheres narram a partir de suas experiências as dores, rancores, ressentimentos, e as consequências que essas prisões e torturas tiveram nas suas vidas e de seus filhos. Nesse sentido propomos pensar as torturas as quais foram submetidas, e os traumas acarretados nessas mulheres.

Na última década da ditadura militar no Brasil, muitas vítimas testemunhas começaram a emergir com o objetivo de narrarem as suas histórias ou a de familiares, companheiros e amigos que haviam sido torturados, presos, mortos, exilados ou desaparecido durante esse período.

Assim, os discursos dessas vítimas-testemunhas eram repletos, de suas duras experiências naqueles dias, as quais ainda estavam guardadas vivamente em suas memórias. Logo, com o fim da ditadura militar, explodiu uma gama enorme de relatos que buscavam (re)

Esses crimes e vários tipos de violências só foram possíveis de serem revelados pelo fato desses eventos traumáticos terem permanecido em suas memórias. E foi através do ato de lembrar e narrar que as experiências dessas pessoas puderam ser contadas, logo, na busca de não esquecer é que muitas experiências traumáticas foram narradas através de vários formatos de filmes.

A exemplo, dos depoimentos Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles e SBT Amor e Revolução Criméia Almeida Depoimento 6, ambos produzidos em 2011. A partir do ato de testemunhar realizado por Amélia Teles e Criméia Almeida, e ao falarem das torturas sofridas, algo que marcou não só as suas vidas, como também, a de seus filhos podemos perceber os mais variados tipos de sentimentos que perpassam os discursos desses sujeitos, como trauma, ressentimentos, silêncios, dor, luto e reparação do passado.

 

Os sujeitos que revelaram esses crimes foram aqueles que participaram ativamente ou passivamente da luta política, como também, por pessoas que pararam para ouvir o testemunho de um familiar, amigo e companheiro. Assim, vários sujeitos começaram a narrar suas histórias a partir das suas experiências. Portanto, o testemunho só é possível de ser construído através da experiência, tendo o sujeito visto, ouvido ou passado por aquele momento. “Os crimes das ditaduras foram exibidos em meio a um florescimento de discursos testemunhais [...]”. (SARLO, 2007: 46).

Os discursos que emergem nas fontes audiovisuais elaboradas desde o final desse período ditatorial, giram em torno de vários elementos, entre eles estão a segundo Jeanne Gagnebin a “memória traumática”, “[...] gênero tristemente recorrente do século XX [...]” (BRESCIANI E NAXARA, (Org.), 2004: 86).

Essas “memórias traumáticas” são compostas dos traumas nunca superados, dos ressentimentos, da incerteza quanto achar algum familiar ou amigo vivo, a luta em mostrar para a sociedade os crimes que haviam ocorrido no Brasil, às lembranças de sofrimentos que podem ou não serem esquecidas, a luta por uma reparação do passado e justiça.

A experiência do choque acarreta o trauma e possibilita que ele seja imposto nas pessoas. Essas experiências foram impostas aos ex-militantes políticos, a exemplo de Amélia

Teles e Criméia Almeida a partir de prisões e muitas sessões de torturas, em que muitos outros companheiros de luta política foram a óbito, ou estão desaparecidos.

Logo é a partir do trauma que a “memória traumática” é construída, a qual pode levar os sujeitos a silenciarem e buscarem o esquecimento, ou pode também servi para lutarem contra o esquecimento, utilizando essa memória em favorecimento das pessoas que sofreram como foi o caso dos presos e desaparecidos políticos.

A experiência do trauma para essas mulheres serviu não para silenciarem, mas para lutarem contra todos os crimes e torturas que sofreram e todas as torturas psicológicas que viram os filhos sofrerem, a exemplo de Amélia Teles e seu esposo César Teles. Foram submetidas a muitas dessas experiências dentro da Operação Bandeirantes – Oban, “Sua missão consistia em “identificar”, localizar e capturar os elementos integrantes dos grupos subversivos..., com a finalidade de destruir ou pelo menos neutralizar as organizações a que pertençam”. (JOFFLY, 2013: 42).

Nesse sentido esse trabalho tem como objetivo fazer uma reflexão sobre os testemunhos de Amélia Teles e Criméia Almeida. A partir de fontes audiovisuais em formato de depoimentos, são eles, Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles, SBT Amor e Revolução Criméia Almeida Depoimento 6, ambos produzidos em 2011 para serem passados após o final dos capítulos da telenovela brasileira Amor e Revolução.

Assim propomos pensar além da estrutura fílmica com seus variados elementos que compõem a narrativa, as experiências traumáticas vivenciadas por essas duas mulheres vítimas-testemunhas da ditadura militar no Brasil, como suas dores, ressentimentos, rancores, os traumas e, buscarmos perceber os tipos de torturas, as quais foram submetidas, e as consequências que as torturas e prisões acarretaram nas suas vidas e na de seus filhos, e como isso afetou as suas vidas.

 

As Vítimas-Testemunhas como narradoras das suas histórias

 

Os depoimentos Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles, SBT Amor e Revolução Criméia Almeida Depoimento 6, foram retirados do Youtube e são apenas dois exemplos dos vários que foram produzidos para serem passados após o final dos capítulos da telenovela brasileira Amor e Revolução. Produzida e transmitida pela rede de televisão SBT, de 05 de abril de 2011 a 13 de janeiro de 2012, na faixa de 22 horas. Foi escrita por Tiago Santiago e teve em sua direção Reynaldo Boury, Luiz Antônio Piá e Marcus Coqueiro.

Essa produção foi muito representativa na teledramaturgia brasileira do País, pois teve como enredo central a ditadura militar abordando o período que começa na década de 1960 e vai até meados de 1980. Ela foi ambientada no Rio de Janeiro e em São Paulo, a trama inicia representando o Golpe Militar de 1964, reconhecido pelos militares como a “revolução” de 31de março de 1964.

Dentro desse recorte temporal eles buscaram retratar a história de pessoas que foram a favor, como também aquelas que foram contra a ditadura. Dentre os temas abordados estão os movimentos sociais e políticos, a luta armada, os ideais de democracia e liberdade tão almejados por muitos militantes políticos na época, as mudanças comportamentais, a música, moda, a chegada da televisão, ou seja, a cultura em seus diversos aspectos nesse período.

No dia 09 de março de 2011 a emissora de televisão SBT, exibiu durante cinco minutos, cenas da trama, fazendo um resumo da história da telenovela. Essas cenas foram vistas na época como uma crítica a Rede Globo de televisão, em que foi acusada em parte de ter sido favorecida pela ditadura militar, e de ter apoiado os militares.

A vinheta de abertura mostrava estudantes, jornalistas, artistas, políticos, dentre outros, desaparecendo em cena, fazendo assim uma alusão ao que ocorreu na ditadura militar, em que muitas pessoas com essas profissões e escolhas políticas foram presas, exiladas, mortas e desaparecidas. Essa abertura foi embalada ao som de Roda Viva, autoria de Chico Buarque, pela banda MPB-4.

O primeiro depoimento gravado foi o de José Dirceu (ex-deputado do PT). Este iniciou sua militância política em movimentos estudantis em1965, foi preso em 1968, Ibiúna SP, durante uma tentativa de realizar o Congresso da União Estadual dos Estudantes UNE.

Em 1969, as organizações guerrilheiras Movimento Revolucionário 8 de Outubro MR-8 e a Ação Libertadora Nacional ALN, sequestraram o embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, e em troca, exigiram que uma lista de prisioneiros políticos fossem libertados, entre eles estava José Dirceu, os presos foram para o México, de lá seguiram caminho para Cuba e Paris, José Dirceu se exilou em Cuba, voltou para o Brasil definitivamente em 1975, vivendo clandestinamente por um bom tempo.

Seu depoimento durou cerca de 70 minutos, mas somente alguns trechos foram transmitidos ao final de alguns capítulos da telenovela. Todos os depoimentos que foram transmitidos não ultrapassaram o tempo de cinco minutos, sendo assim, as falas eram editadas pela produção. Muitos ex-militantes políticos não deram seus depoimentos, por conta das falas serem editadas e pelo fato de terem receio de que suas falas fossem mudadas na edição do vídeo.

Os depoimentos possuem uma construção narrativa, simples e parecidas, no qual os depoentes foram colocados em um estúdio, sentados, para narrarem as suas histórias. A câmera mostra boa parte das vezes, os depoentes de cintura pra cima, ou seja, apenas meio corpo, e foca nos movimentos que esses sujeitos fazem com as mãos, no rosto, principalmente quando eles começam a falar de momentos traumáticos que vivenciaram. O tempo de duração é pequeno, mas é o suficiente para mostrar através desses testemunhos os diversos tipos de sofrimentos e violências vividos por essas vítimas-testemunhas.

No pano de fundo aparece na maioria desses depoimentos uma imagem colorida com o nome tortura, matérias de jornais, dentre outros elementos, que buscam retratar o período da ditadura militar, mas em Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles, tem como imagem de fundo, prédios em preto e branco.

As imagens dos depoimentos são coloridas, e as vítimas-testemunhas logo nos primeiros segundos já começam a narrar as suas histórias. No momento em que elas começam a falar das prisões, das torturas sofridas, dos vários tipos de violências é introduzida como trilha sonora a música Para Não Dizer que Não Falei das Flores de Geraldo Vandré, mas passa apenas a melodia.

É importante ressaltar que o espaço para a gravação dos depoimentos e para a sua transmissão era pra todos aqueles que se sentissem prejudicados pela ditadura militar, como também, para aqueles que eram a favor dela, ou seja, o espaço estava aberto para qualquer segmento da sociedade.

A partir de julho de 2011, os depoimentos deixaram de ser transmitidos, segundo a equipe da telenovela, havia somente depoimentos de pessoas que foram contra a ditadura militar, e que haviam sofrido torturas, prisões e exílios nesse período. Podemos notar que havia sim depoimentos de pessoas que foram a favor da ditadura, só que pouquíssimos.

O depoimento Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles, foi exibido no dia da estréia da telenovela. Ela e Criméia Almeida são irmãs e foram presas no ano de 1972 e torturadas na Operação Bandeirantes Oban. Ambas eram integrantes do Partido Comunista do Brasil PCdoB e lutaram, na Guerrilha do Araguaia. O fim da guerrilha se deu com o resultado que favoreceu os militares “resultando mortos mais de 50 militantes do PC do B, após cruel repressão que se abateu sobre a população de toda a região”. (ARNS, 1985: 99).

Maria Amélia Teles foi presa juntamente com seu marido César Augusto Teles e mais um companheiro de militância Carlos Nicolau Danielli, enquanto eles eram torturados, os policias foram buscar seus dois filhos Edson Teles e Janaina Teles, ambos tinham na época 4 e 5 anos de idade respectivamente, e sua irmã Criméia Almeida que estava grávida de seis meses, e mesmo assim sofreu torturas, principalmente as psicológicas, como também, as crianças. Lembrando que “As capturas eram cercadas de um clima de terror, do qual não se poupavam pessoas isentas de qualquer suspeita...” (ARNS, 1985: 77), muito menos as crianças filhas e filhos de militantes políticos.

No início do seu depoimento Maria Amélia Teles fala de sua prisão e das torturas sofridas, ela diz:

Quando eu fui presa né, ou fomos presos né, porque era eu, meu companheiro e mais um dirigente do partido comunista, nos fomos e logo encaminhados pras salas de tortura, sempre nua eles arrancavam sua roupa o tempo todo né, alias eu tinha sido torturada a noite toda nua, e eu estava urinada, com vômito, eu tinha levado choque no ânus, vagina, nos seios, no umbigo, nos ouvidos, dentro da boca, eu só não levei choque dento do nariz e dentro dos olhos. (Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles, 2011).

Falar sobre as torturas sofridas e sua prisão ainda não é algo fácil para ela, podemos perceber os vários tipos de sentimentos desencadeados ao começar a falar de suas “memórias traumáticas”, como o trauma e o sofrimento que aquela experiência acarretou em sua vida. Através de sua fala, entre pausas e repetições de expressões, vemos que falar sobre esses acontecimentos traumáticos ainda é algo sensível e que meche com muitas emoções, com as dores silenciadas, como também, percebe-se o anseio por uma reparação do passado e restituição de direitos.

Movimento Guerrilheiro que se deu na região Amazônica, ao longo do Rio Araguaia, em finais da década de 1960 e início de 1970. Movimento criado pelo PCdoB Partido Comunista Brasileiro, com o objetivo de fomentar uma luta revolucionária, mas foi combatido pelas forças armadas.

Refletindo um pouco mais sobre esse depoimento, podemos pensar nas inúmeras formas de torturas que foram colocadas em prática pelos órgãos da repressão, a exemplo, do choque elétrico, da cadeira de dragão, dentre os quais Maria Amélia Teles foi submetida, o afogamento, os insetos e animais, o pau-de-arara, dentre outros. Esses vários tipos de torturas são mostrados na obra Brasil: Nunca Mais, a partir de depoimentos retirados de processos políticos, de pessoas que haviam sido presas e torturadas no período da ditadura militar.

A obra Brasil: Nunca Mais, foi produto de uma pesquisa feita por um pequeno grupo de especialistas, que teve como liderança o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns da Diocese de São Paulo. Essa pesquisa foi iniciada em 1979, dentro da descrição e do sigilo necessário, pois, a abertura política ainda estava sendo pensada.

Suas principais fontes para esse estudo foram documentos produzidos pelas próprias autoridades da época, os quais conseguiram as cópias de 707 processos políticos completos e outros incompletos, todos tinham transitado pela Justiça Militar Brasileira, e alguns passaram também pelo Superior Tribunal Militar STM, entre o período de 1964 a 1979.

A pesquisa durou cinco anos, e as pessoas que fizeram parte da equipe não revelaram seus nomes, pois tinham receio de serem presas ou torturadas. Foi a partir dessa pesquisa que houve a produção do livro Brasil: Nunca Mais, o qual foi e ainda é de muita importância para entendermos um pouco das experiências traumáticas vivenciadas por tantas vítimas da ditadura militar no Brasil.

Retomando o elemento da tortura, podemos pensar que a tortura não era legalizada dentro da lei, a Lei de Segurança Nacional colocava a pena de morte para alguns casos específicos, mas não legalizava a tortura, nem o assassinato e nem as invasões a domicílio, por isso que em certa medida tentaram camuflar e esconder várias mortes e desaparecimentos de pessoas. Logo, a ideia era desestruturar a personalidade do preso, a tortura existe para anular o inimigo, e ela se sofisticou com a criação dos Doi-Codi.

Justificada pela urgência de se obter informações, a tortura visava imprimir à vítima a destruição moral pela ruptura dos limites emocionais que se assentam

Cadeira elétrica revestida de zinco ligada a terminais elétricos, na qual os presos eram sentados nus, ao ser ligada na energia o zinco transmitia choques elétricos em todo o corpo, e em alguns casos também colocavam um balde de metal na cabeça do preso, para que também essa parte do corpo sofresse choques.

Barra de ferro que era atravessada entre os punhos amarrados e a dobra do joelho, a barra era colocada entre duas mesas, e o corpo ficava pendurado a 20 ou 30 centímetros do solo.

 Essa lei foi criada em 1967, a qual amparava o Conselho de Segurança Nacional, tornava qualquer cidadão um suspeito ou vigilante, diante de crimes políticos.

 

Sobre relações efetivas de parentesco

 

Assim, crianças foram sacrificadas diante dos pais, mulheres grávidas tiveram seus filhos abortados, esposas sofreram para incriminar seus maridos. (ARNS, 1985: 43).

Os militares que torturam Maria Amélia Teles, a qual sofreu vários tipos de torturas físicas, como também, psicológicas, buscaram ir ao íntimo da suas emoções quando sequestraram seus dois filhos e sua irmã Criméia Almeida que na época estava grávida, e os levaram para a Oban. Os torturadores levaram as crianças para verem seus pais após terem sido torturados, a sua mãe ainda estava na cadeira de dragão quando eles foram levados a sala de tortura para vê-la.

[...] eu estava com na na cadeira de dragão..., e então eu estava bastante machucada e cheia de hematomas, e minha filha quando entraram dentro do operação, bobo botaram dentro da operação, meu filho com cinco anos minha filha com tha, a minha filha com cinco anos e o meu filho com quatro ano, passaram na sala pra ver o pai e depois trouxeram na minha, na sala onde eu tava sendo interrogada e torturada pra que eles me vissem, então ela me perguntou: Por que você ta azul e o pai ta verde?, E de repente eu fui olhar po meu corpo e eu me dei conta que eu tava da cor dessa calça aqui, eu tava roxa toda roxa... (Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles, 2011).

Em sua fala vemos que as torturas psicológicas eram muito fortes, e essas marcaram não só a vida dos adultos, mas também a daquelas crianças, que viram seus pais muitos machucados, e ainda ficaram por algum tempo em uma casa da repressão que até hoje não descobriram qual foi. Segundo Amélia Teles seus filhos tiveram reflexos dessas torturas em suas vidas, ainda crianças os problemas já começaram a aparecer, pois ela diz que seu filho voltou a ser bebê, e a menina amadureceu cedo demais.

Sua irmã Criméia Almeida que foi presa grávida de seis meses, sofreu muitas torturas psicológicas, alguns militares ameaçavam dizendo que se o seu bebê nascesse de cor branca e fosse do sexo masculino eles levariam para criá-lo, e segundo ela, ao nascer seu filho tinha os olhos azuis e a cor branca. Essa foi outra criança que já na barriga sofreu com as torturas realizadas em sua mãe. “Meu filho tinha soluços na barriga, meu filho tem soluços até hoje com 37 anos, qualquer tensão ela se manifesta com soluços”. (SBT Amor e Revolução Criméia Almeida Depoimento 6, 2011).

Ao nascer os militares não deixava que ela o amamentasse, levavam o bebê algumas vezes e depois de algum tempo o traziam para a mãe, e sempre chegava doente. Foi muito complicado pra ela reaver o bebê, até quando os militares entregaram a criança para a mãe de Criméia Almeida. Através de alguns trechos das falas dessas duas mulheres, refletimos sobre como esse período de repressão e autoritarismo militar, desencadeou muita dor, traumas e sofrimentos na vida de tantas famílias, e na vida de tantas crianças, que muitas nem sabiam o que estava se passando naquele momento.

Pensar em todas as arbitrariedades cometidas pelos órgãos da repressão, como os vários tipos de crimes e violências, nos fazem questionar até que ponto os militares desrespeitaram todos os direitos humanos, os quais são assegurados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, a qual assegura que os seres humanos não podem ser torturados. Eles feriram a própria ética militar e implantaram as suas próprias regras, tudo isso para os militares, em nome de uma aniquilação do “terrorismo” que as “esquerdas” estavam realizando.

 

Considerações Finais

 

Não se consolida uma democracia com cadáveres em sepulto e nós temos muitos. (Maria Amélia, Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles, 2011).

Pra minha família e nós que perdemos essa guerra, que perdemos nossos familiares, a gente tá sempre disponível pra contar essa história, porque nós não nos envergonhamos. (Crimeia Almeida, SBT Amor e Revolução Criméia Almeida Depoimento 6, 2011).

A primeira fala coloca em cheque o regime democrático que foi instaurado no Brasil a partir de meados da década de 1980. Para a depoente só é possível consolidar uma democracia, quando as histórias das vítimas que morreram e também das que ficaram vivas forem expostas e forem reparadas e punidas, mas isso é algo problemático, pois as histórias estão sendo narradas, mas as punições e reparações ainda são tímidas.

Esses “cadáveres em sepulto” se referem aos que não sobreviveram, mas são também os ressentimentos e traumas, que ainda estão guardados na memória daqueles que sobreviveram a esses acontecimentos traumáticos, que nem o tempo e os silêncios foram capazes de apagá-los, logo luta-se pela reparação desses “cadáveres”, que não querem ser esquecidos na história.

[...] os grandes crimes do século XX, situados nos limites da representação, erigem- se em nome de todos os acontecimentos que deixaram sua impressão traumática nos corações e nos corpos: protestam que foram e, nessa condição, pedem para ser ditos, narrados, compreendidos. (RICOUER, 2007: 505).

As vítimas precisaram assumir seus papeis, para mostrarem os “cadáveres em sepulto”, e para protestarem pelas marcas que haviam abalado as suas vidas. Mas há também, as marcas do corpo, e essas foram impostas através das torturas, as quais se tornaram uma das maiores impulsionadoras dos traumas e ressentimentos, falar de ambos não foi algo fácil, mas foi essencial para se recuperar os direitos políticos e jurídicos.

A segunda fala aborda justamente as perdas, essas se dão pelas mortes de familiares e companheiros de luta política, como pela perda da luta travada contra a ditadura militar, e segundo o depoimento de Crimeia Almeida essas perdas precisam ser protestadas e punidas, por isso que há todo um trabalho de memória, em volta desses acontecimentos traumáticos.

É interessante notar que elas não se envergonham de serem consideradas vítimas, e nem de exporem as experiências traumáticas que vivenciaram. Logo contar, essas histórias é uma maneira de mostrar esses “cadáveres” para a sociedade. E dizer a quem quiser ouvir, que eles não foram esquecidos, eles estão presentes, e vão continuar por muito tempo.

Os relatos dessas vítimas-testemunhas narram os vários tipos de tortura tanto físicas como psicológicas, as prisões, as solturas, como também, falam do fato de não saberem onde seus filhos estavam, de ouvirem os policiais dizendo que não ia devolvê-los, ou trazendo eles muito doentes. E das sequelas que permaneceram ao longo do tempo, como é o caso de Criméia Almeida, que ainda na barriga seu filho tinha soluços, não superando isso na fase adulta, tendo esse problema quando passa por momentos de tensão.

Essas vítimas narram as suas experiências “[...] chamamos experiência o que pode ser posto em relato, algo vivido que não só se sofre, mas se transmite. Existe experiência quando a vítima se transforma em testemunha”. (SARLO, 2007: 26). Apesar das dores e sofrimentos esses crimes não foram capazes de anular o relato, o qual consolidou-se no testemunho.

Assim, o sujeito e a experiência estão interligados, pois o segundo precisa do primeiro para existir. O testemunho só foi capaz de se consolidar pelo fato da experiência ter existido, e para que ela seja mostrada é preciso haver o trabalho da narração, este se faz através da linguagem, a qual dar voz as experiências que estavam silenciadas.

Vemos assim, através desses depoimentos outro tipo de narrativa, aquela que é construída pela própria vítima, ou seja, ela começa a significar o seu passado, lançando o seu próprio olhar sobre ele. Antes o que era silenciado, pode ser restaurado e “ressuscitado”, que foi a memória como dever, mas também, como campo de conflito, esta última se dá pelo dilema entre os que ainda mantêm em suas lembranças os crimes de Estado, e aqueles que querem esquecer e passarem para uma nova etapa da história.

Segundo Beatriz Sarlo “Mas, antes de celebrar esse sujeito que voltou a vida, convém examinar os argumentos que decretaram sua morte, quando sua experiência e representação foram criticadas e declaradas impossíveis”. (2007: 30). Os silêncios e esquecimentos que foram impostos por muitos anos, reprimiam e recalcavam as experiências desses sujeitos. A Lei da Anistia serviu em parte para instaurar o esquecimento sobre essas memórias e lembranças.

Suas experiências e memórias foram declaradas impossíveis e colocadas a prova, mas isso não impediu que esses sujeitos (re) surgissem, e restaurasse o discurso da “primeira pessoa”, este se tornou “matéria-prima”. Falar em “primeira-pessoa” foi essencial para conhecermos partes da história de nosso País, pois, através dessas narrativas podemos perceber em que tipo de governo a sociedade estava inserida e como tantas pessoas se tornaram vítimas dessa ditadura.

No século XXI, esses narradores já se auto-intitulam como vítimas da ditadura militar, e mostram através de seus depoimentos o porquê de poderem ser chamadas assim. Eles se designam assim, pelo fato de se darem conta que o que passaram feria até mesmos as normas pregadas pelos direitos humanos, que feriam as suas dignidades, e os seus sentimentos políticos e morais. Elas se deram conta que viveram atrocidades difíceis de serem narradas.

Logo o conceito de vítima, não é atribuído apenas aqueles que morreram nos “porões da ditadura”, mas também, aqueles que sobreviveram a tantas torturas, prisões e maus tratos. As próprias famílias buscam atribuir esse conceito aos entes que foram perdidos, mas também, buscam heroicizar esses sujeitos.

Os discursos dessas vítimas vão exalar seus ressentimentos, ódios, dores e traumas, e isso vai contribuir para uma restauração da esfera de direitos, que até então essas pessoas haviam perdido. Logo a memória se consolida no discurso testemunhal desses sujeitos como um dever moral, mas também, político e jurídico.

 Lei de No 6.683, de 28 de agosto de 1979, anistiava pessoas que haviam cometido crimes eleitorais, políticos, com direitos políticos suspensos, servidores e militares do poder judiciário e legislativo, pessoas vinculadas ao poder público, dentre outras, entre o período de 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979.

Referências
ARNS, Dom Paulo Evaristo. Brasil: Nunca Mais. Petropólis: Vozes, 9o Ed., 1985.

BRESCIANI, Stella, NAXARA, Márcia (org.). Memória e (res) sentimento: indagações sobre questão sensível. In: Memória e Esquecimento: Linguagens e Narrativas. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004, pp. 85-94.

JOFFILY, Mariana. Engrenagem. In: No centro da engrenagem os interrogatórios na operação Bandeirante e no DOI de São Paulo (1969-1975). São Paulo: Edusp, 2013, pp. 38/97.

MATTOS, Vanessa. O Estado contra o povo: a atuação dos Esquadrões da morte em São Paulo (1968-1972). In: Esquadrões da morte e “limpeza social”: meios de implantação da violência do Estado. Mestrado em História. São Paulo: PUC, 2011, pp. 25/50.

RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução Alain Françóis Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.

SARLO, Beatriz. Tempo Passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Tradução Rosa Freire d’Aguiar – São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte,: UFMG, 2007.

Filmes

Ditadura Depoimento 1 Maria Amélia Teles. Direção: Reynaldo Boury, Luiz Antônio Piá e Marcus Coqueiro, Brasil, 2011.

SBT Amor e Revolução Criméia Almeida Depoimento 6. Direção: Reynaldo Boury, Luiz Antônio Piá e Marcus Coqueiro, Brasil, 2011.

 

EDSON E JANAÍNA TELES

Edson Teles e Janaína de Almeida Teles são ex-presos políticos e filhos dos antigos militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Maria Amélia de Almeida Teles, a Amelinha, e César Augusto Teles. Ainda crianças, respectivamente com 4 e 5 anos, foram sequestrados pela Operação Bandeirante (Oban) e levados à prisão junto de seus pais, em dezembro de 1972.

Durante o período de detenção assistiram à mãe e ao pai serem vítimas de sistemáticas violações. Também presenciaram os dois sendo torturados pelo major do exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, então comandante do DOI-Codi.

Em 2005, em decorrência das violações de que foi vítima, a família Teles moveu um processo contra Carlos Alberto Brilhante Ustra. Em 2008, ele foi condenado e declarado publicamente “torturador” pela Justiça.

Hoje, Edson Teles é professor universitário. Docente do curso de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), dedica parte de sua vida acadêmica ao estudo das ditaduras, dos direitos humanos, da memória política e de outros temas relacionados. Entre outras obras publicadas, organizou, com o filósofo Vladimir Safatle o livro “O que resta da ditadura: A exceção brasileira”.

O que resta da ditadura: a exceção brasileira eBook : Safatle, Vladimir,  Teles, Edson: Amazon.com.br: Livros

 

Como o irmão, Janaína de Almeida Teles segue carreira acadêmica. É doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Faz pesquisas sobre aparelhos repressivos de Estado, ditaduras na América Latina, mortos e desaparecidos políticos e outros temas correlatos. Também é autora e organizadora de livros sobre a ditadura, citados em diversas obras da literatura especializada nacional e internacional.

Em parceria, os dois irmãos também organizaram, com auxílio da socióloga Cecília MacDowell Santos, o livro “Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil”.

LINKS

FRASES

  • “A cultura da impunidade persiste e há uma prática da violência por parte do sistema de segurança pública que herdamos da ditadura. Até hoje ocorrem torturas nas delegacias, instituições de detenção de adolescentes, no sistema prisional.”, César Teles.

 
 
 
01
Set21

Onde estão os nossos desaparecidos políticos?

Talis Andrade

BOLSONARO-CENTRO-ESPIRITA- desaparecidos ditadura.

 

Se queremos um outro país, sem genocídios e sem racismo, com uma democracia também para o povo periférico, somos obrigados a reconhecer que os desaparecidos são “nossos”.

 

 

por Edson Teles /Blog da Boitempo

- - -

“Onde estão?” Essa é uma pergunta que ganhou certa notoriedade, durante os anos 1980, devido aos movimentos de diretos humanos da América Latina. Foi a década de queda das ditaduras militares no continente e um dos resultados desses regimes foi a produção, em larga escala, de corpos desaparecidos. Normalmente, os “desaparecidos políticos” eram opositores que foram presos em centros clandestinos ou oficiais do Estado, torturados e assassinados sofrendo, por fim, o ocultamento de seus corpos. As mães, companheiras, irmãs e outros familiares mantiveram nas novas democracias a exigência de apuração das circunstâncias dos fatos, localização dos corpos e responsabilização dos agressores.

desaparecidos-e-mortos-políticos.jpg

 

No Brasil, segundo o Relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV – 2012/2014), a Ditadura e sua fábrica da morte produziu 243 desaparecidos políticos. Desses, 35 foram identificados ao longo dos anos. Na imensa maioria, por esforço dos movimentos de familiares e dos parentes mais próximos. O Estado democrático se manteve na condição de agente do desaparecimento forçado, já que é um crime considerado contínuo até que o corpo seja localizado. De modo distinto ao caso argentino, por exemplo, não houve uma política pública de encaminhamento da questão. O Estado brasileiro fabricou os corpos desaparecidos e os mantém nessa condição até os dias atuais.

Contudo, não estamos nos referindo aos desaparecidos da Ditadura quando lançamos a questão: “Onde estão os nossos desaparecidos políticos?”. Mesmo com o fim da Ditadura e depois de mais de 30 anos de democracia o país continua (e sofistica) sua máquina de desaparecer pessoas. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2017 foram registrados 82.684 boletins de ocorrência de desaparecimentos. Infelizmente, não há dados completos sobre esse tipo de violação de direitos. Mas, sabemos por outras pesquisas e pela atuação dos movimentos de mães de vítimas de violência policial que um número importante desse total configura o desaparecimento forçado.

 

78.584 pessoas desaparecidas.

56% são pessoas negras

 

No Sistema Nacional de Localização e Identificação de Pessoas Desaparecidas (Sinalid), ligado ao Conselho Nacional do Ministério Público, no momento em que escrevo este texto temos registradas no país 78.584 pessoas desaparecidas. O sistema não registra os casos de vítimas de desaparecimento forçado, mas é possível verificar que a máquina de desaparecer funciona a pleno vapor. Desses quase dezenas de milhares de desaparecimentos, 56% são pessoas negras. Certamente, quando tivermos formas de separar os desaparecimentos forçados esse percentual terá um salto alarmante, ilustrando o racismo estrutural.

A gestão da segurança pública aposta na militarização da vida e na estratégia da guerra. O resultado tem sido o aumento da violência e a criação de territórios nos quais o Estado aterroriza suas populações. É o caso, por exemplo, das favelas e das periferias. E, como mostram os números, essa guerra tem um alvo: os negros.

As vítimas endêmicas da violência urbana são jovens negros e pobres das periferias. Um jovem negro tem 147% mais chances de sofrer homicídio do que um branco. O país supostamente cordial e democrático tem três mulheres assassinadas por dia. E a maioria é composta de mulheres negras. Segundo pesquisa da Flacso, entre 2003 e 2013 a morte violenta de mulheres negras aumentou 54%, enquanto a de mulheres brancas diminuiu 9,8%. Não vamos nesse texto nos aprofundar nos dados sobre a política de morte contra o povo negro. Há diversos estudos apontando para isso. E, principalmente, o movimento negro denunciando o “genocídio” há décadas.

No caso do desaparecimento forçado ocorre o crime de ocultação de corpos, em geral com as vítimas já mortas, cometido por agentes do Estado ou por organização não estatal, mas atuando de acordo com determinadas práticas da violência de Estado. Em geral, caracteriza-se por esse crime o ataque a opositores políticos ou segmentos populacionais que, por sua própria existência, são contra as normas de ideologias e grupos conservadores com acesso às instâncias de poder. Segundo o Tribunal Penal Internacional (TPI), e o documento “Estatuto de Roma”, o desaparecimento forçado qualifica-se como crime contra a humanidade e assim se caracteriza quando ocorre o ataque sistemático a uma população civil.

O filósofo camaronês Achille Mbembe, no começo do século XXI, lançou o conceito de “necropolítica” para definir uma estrutura fundamental do capitalismo global: a rejeição de vidas classificadas via racismo. A partir dessa experiência fundante o autor discorre sobre o “devir negro”, através do qual os corpos precarizados e descartáveis tendem a sofrer processos de morte. São instituições, conhecimentos, arquiteturas, discursos que conformam regimes de produção de sujeitos – poderíamos mesmo dizer de “corpos” – que devem ser submetidos a controles, incluindo a violência e o desaparecimento.

Se o conceito de “necropolítica” faz sentido e se o movimento negro e das mães de vítimas de violência policial têm razão em denunciar o “extermínio”, então, podemos afirmar que o desaparecimento forçado no Brasil tem conotação de um desaparecimento político. Produz vítimas de uma política racista por parte do Estado.

Quem sintetiza bem essa situação é a lutadora dos direitos humanos Rute Fiuza: “para mim a democracia nunca chegou. Há um complô de genocídio, de extermínio da juventude negra”. Rute é mãe de Davi Fiuza, desaparecido desde que foi levado detido em uma abordagem da Polícia Militar do Estado da Bahia, no ano de 2014. Até hoje não sabemos o paradeiro de Davi. Rute representa e organiza o Movimento Mães de Maio no Nordeste e, assim como ela, muitas mulheres relacionam o desaparecimento forçado de seus filhos com a política de morte da juventude negra e periférica.

Se queremos um outro país, sem genocídios e sem racismo, com uma democracia também para o povo periférico, somos obrigados a reconhecer que os desaparecidos são “nossos”. Uma eficaz estratégia do Estado democrático com relação aos reclames dos familiares de desaparecidos da Ditadura foi manter a dor e a história sem luto entre as famílias. Nunca o país foi encarado de frente e o crime dos desaparecidos enfrentado como um problema nacional. Assim também é com a história de Rute e dos milhares de jovens negros que desaparecem todos os anos.

Ou batemos de frente, por meio de políticas públicas, afetos, lutas sociais, produção de conhecimento, ou seguiremos reféns da militarização e dos golpes. Davi, André, os três meninos de Belford Roxo, Amarildo são todos desaparecidos políticos e a suas histórias são a nossa história.

Onde estão os nossos desaparecidos políticos?

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27
Set19

Violência no Brasil é fruto do aparato repressivo herdado da ditadura, diz filósofo Edson Teles

Talis Andrade
Violência no Brasil é fruto do aparato repressivo herdado da ditadura, diz filósofo Edson Teles
 
O filósofo e professor Edson Teles RFI
 

A biografia do filósofo e professor universitário, Edson Teles, especialista em autoritarismo político, reúne vivência e teoria. Ele foi o preso político mais jovem da história do Brasil e o combate à ditadura militar brasileira norteia sua vida. Nessa entrevista a RFI, ele fala sobre os riscos à democracia brasileira e diz que o aparato repressivo, que na ditadura visava os militantes políticos, permanece e “na democracia passou a agir contra as pessoas negras, pobres e periféricas das grandes cidades”.

O professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) é diretor do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense, que, entre outros projetos, tenta identificar desaparecidos políticos da ditadura de 1964 entre as ossadas encontradas na Vala Clandestina de Perus. Ele também coordena o Núcleo de Filosofia política da Unifesp. Militante da Comissão de Familiares de mortos e desaparecidos políticos, o filósofo tem vários livros publicados, entre eles “O que resta da ditadura, a exceção brasileira” (2010, Boitempo), que co-organizou com Vladimir Safatle.

Edson Teles foi preso aos 4 anos de idade, em 1972, juntamente com a irmã de 5 anos, e os pais, Cesar e Amélia Almeida Teles, ex-militantes do PCdoB. Na cadeia, viu os pais torturados. A família Teles foi até hoje a única que venceu um processo contra o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o militar a quem Jair Bolsonaro dedicou seu voto no impeachment de Dilma Rousseff. Em 2008, Ustra foi condenado e declarado publicamente pelo Justiça como “torturador”.

Este processo e a condenação do Brasil na OEA (Organização dos Estados Americanos) por não apurar os crimes da ditatura, foram os dois eventos que levaram à mobilização em torno da criação da Comissão Nacional da Verdade. Edson Teles faz uma relação entre as conclusões da Comissão e o impeachment de Dilma: “Dentro desse processo da transição e depois na Comissão da Verdade, se produziu um ressentimento na extrema direita. Ali começa a se articular um discurso contra a democracia brasileira. Foi a primeira vez, durante a Comissão da Verdade que as pessoas foram às ruas pedir a intervenção militar. Então há uma produção negativa, uma reação à CNV que vai alimentar o processo do impeachment.”

Transição ambígua

Para Edson Teles, a transição da ditadura para a democracia no Brasil foi ambígua. Em alguns aspectos ela promoveu uma ruptura, mas em outros foi marcada pela continuidade, principalmente na política de segurança pública. “Durante a construção do estado de direito o Brasil, o país não se desfez de seu aparato repressivo. Ele optou por uma saída que foi chamada na época de reforma das instituições e humanização do procedimento. Isto é, pegar a polícia repressiva, modernizá-la, dar curso de direitos humanos, (pensando que) isso diminuiria o lugar repressivo dela.”

O aparato repressivo, que na ditadura visava os militantes políticos, na democracia passou a agir contra “as pessoas negras, pobres e periféricas das grandes cidades”. Resultado, “nós chegamos a um quadro hoje no Brasil em que temos 65 mil homicídios por ano. Desses, mais de 65% são negros”, denuncia Teles. O professor forjou um conceito forte para falar dessas mortes que ele chama de “vidas descartáveis!”

‘São vidas descartáveis porque no processo de construção de democracia houve uma desqualificação deste ser humano em favor da qualificação e da politização de uma outra categoria que tinha acesso à cidadania. E dentro de uma tradição da história brasileira, podemos chamar de uma matriz racista, de um racismo estruturado e de uma sociedade patriarcalista.”

Ainda existe democracia no Brasil?

Na França, onde parte da opinião pública está muito preocupada com os riscos a democracia brasileira, Edson Teles fez várias palestras sobre o tema. Ele diz que no Brasil, dependendo da pessoa, há quem diga que “antes mesmo do Bolsonaro já não existia mais democracia porque já havia um processo de desmonte”.

O professor universitário ressalta, no entanto, que algumas instituições, como o Judiciário e o Legislativo, ainda funcionam com uma certa autonomia. “Mas em termos das relações políticas e sociais eu diria que a democracia já está em uma situação limite para deixar de existir”, alerta.

Perspectivas: Explosão de coletivos

Apesar da situação limite, o filósofo elogia a capacidade de resistência de coletivos negros e feministas que surgiram no Brasil nos últimos anos. “Eu acho que a grande novidade no Brasil não é o governo Bolsonaro. Ele é um pouco do mesmo, do velho patriarcalismo e racismo brasileiro com suas ditaduras históricas. A grande novidade é o surgimento de uma nova forma de ação política, mas autônoma menos dependente dos lugares tradicionais. Eu me refiro, por exemplo, a explosão de coletivos negros, coletivos feministas, LGBT, feministas negros, criação de espaços culturais, cultura de resistência, narrativas sobre formas de resistência da sociedade brasileira. Diria até que a articulação do centro, da direita e da estrema direita em torno da candidatura do Bolsonaro é uma reação a essa grande movimentação que tem acontecido no Brasil”.

Esses coletivos sabem que são alvo do novo governo, segundo Teles. O filósofo ressalta que, ao contrário do que muitos pensam, “Bolsonaro não é estúpido nem burro, e sim muito estratégico”. Por exemplo, em relação ao acesso às universidades que foi uma das grandes conquistas nos governos de esquerda, Teles salienta que o presidente “não está atacando as cotas, ele está destruindo a universidade. (...) e quem vai ser o maior prejudicado? Vão ser as pessoas negras cujas famílias não têm como sustentar. E vai ocorrer um embranquecimento das universidades.”

Para o professor universitário, o atual governo não está numa situação instável, e sim “numa situação fortalecida, muito consolidada enquanto proposta de desmonte do que a gente criou na democracia.”

 
 

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