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O CORRESPONDENTE

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28
Jan23

Justiça condena três delegados a pagarem R$ 1 milhão por torturas e mortes na ditadura

TRF-3 apontou que Aparecido Calandra, David Araújo e Dirceu Gravina causaram danos à sociedade ao pa

Talis Andrade

 

Delegado Aparecido Laertes Calandra em audiência da Comissão Nacional da Verdade, em 2014, sobre imagens de Vladimir Herzog, torturado e morto em 1975 | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

 

por Jeniffer Mendonça /Ponte Jornalismo

O Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) condenou, na quarta-feira (18/1), os delegados aposentados Aparecido Laertes Calandra, David dos Santos Araújo e Dirceu Gravina a pagarem, cada um, R$ 1 milhão em indenização por danos morais coletivos sofridos pela sociedade brasileira em razão das torturas e mortes cometidas por eles durante a ditadura civil-militar. O dinheiro deve ser destinado ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, ligado ao Ministério da Justiça e da Segurança Pública.

 
Subordinado ao Exército, o DOI-Codi se dividia em unidades regionais e era responsável por sequestros e violências contra as pessoas detidas pelo regime militar, atuando fora das leis da própria ditadura. Na época, era comandado pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que foi condenado por tortura, mas morreu em 2015 sem pagar pelos crimes.
 
Para a coordenadora da área de Memória, Verdade e Justiça do Instituto Vladimir Herzog, Gabrielle Abreu, a decisão mostra um “avanço tímido” da justiça. “Todas as condenações como essa, de pagamento de indenização, a gente tende a celebrar porque a gente tem um histórico de impunidade em relação aos crimes perpetrados pelo Estado durante a ditadura. Pode não ser a decisão ideal, mas a gente celebra porque sempre é um avanço, ainda que tímido, e é uma oportunidade de colocar esse tema de volta ao debate público, sobretudo agora que a gente tem discutido a questão da anistia para os eventuais crimes do Bolsonaro e sua horda”, afirma.
 

13 anos de idas e vindas

 

A decisão acontece após um imbróglio de quase 13 anos. O MPF entrou com a ação civil pública em 2010, mas o tribunal não aceitou os pedidos, alegando que alguns já teriam prescritos e que valia a aplicação da Lei de Anistia, de 1979, para afastar a responsabilidade civil e administrativa dos torturadores. Em 2020, porém, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou que o TRF-3 processasse os delegados devido ao entendimento de que a Lei de Anistia não incide sobre causas de caráter civil e que “a reparação civil de atos de violação de direitos fundamentais cometidos no período militar não se sujeita à prescrição”.

Dirceu Gravina durante depoimento à Comissão Nacional da Verdade, em 7/4/2014 | Foto: Thiago Vilela/Ascom-CNV

A Procuradoria havia feito seis solicitações: que os delegados indenizassem o estado de São Paulo e a União pelos valores pagos com indenização às vítimas e familiares de vítimas; o cancelamento das aposentadorias; a perda da função pública e de qualquer cargo público que tivessem no estado de São Paulo; que o governo paulista disponibilizasse a relação de todos os servidores, com nomes e cargos, que atuaram no DOI-Codi; que a União e o governo paulista fizessem “pedido de desculpas formal a toda a população brasileira”, com a citação dos casos específicos da ação civil pública e divulgação em canais oficiais e em pelo menos dois jornais de grande circulação em São Paulo; que os delegados pagassem indenização de danos morais coletivos.

 

 

A juíza federal Diana Brunstein acatou apenas o pedido sobre os danos morais coletivos, afirmando que os três delegados, “investidos de poder estatal” e pela prática de tortura e assassinatos, “causaram indiscutíveis danos psíquicos/morais à sociedade brasileira como um todo”. Ela argumenta que a prática de tortura era “institucionalizada”, mesmo com a proibição da antiga Constituição de 1969, e que não só as vítimas, mas a população como um todo “até hoje se ressente das arbitrariedades praticadas por agentes de estado no período ditatorial e, de maneira geral, teme o retorno das violações perpetradas no período”.

A juíza federal Diana Brunstein acatou apenas o pedido sobre os danos morais coletivos, afirmando que os três delegados, “investidos de poder estatal” e pela prática de tortura e assassinatos, “causaram indiscutíveis danos psíquicos/morais à sociedade brasileira como um todo”. Ela argumenta que a prática de tortura era “institucionalizada”, mesmo com a proibição da antiga Constituição de 1969, e que não só as vítimas, mas a população como um todo “até hoje se ressente das arbitrariedades praticadas por agentes de estado no período ditatorial e, de maneira geral, teme o retorno das violações perpetradas no período”.

A magistrada estipulou o valor de R$ 1 milhão para cada acusado pelo “relevante interesse social lesado” e pelas condições financeiras deles. De acordo com o Portal da Transparência do estado de São Paulo, Aparecido Calandra e David Araújo receberam, respectivamente, R$ 19.753,68 e 19.787,61 em valores líquidos em dezembro de 2022. Já Dirceu Gravina, R$ 27.846,80.

Sobre os demais pedidos do MPF, Brunstein argumentou que as indenizações pagas pelo governo de São Paulo e pela União prescreveram e que os delegados não poderiam ter as aposentadorias canceladas nem perderem as funções públicas porque caberia a abertura de um procedimento administrativo, o que não estaria na alçada do Judiciário. A juíza também escreveu que, “mesmo que a instância administrativa pudesse ser suprimida em tais casos, as leis estatutárias preveem prazos prescricionais para a instauração de ações disciplinares, os quais, considerando a data dos ilícitos cometidos, já teriam se esgotado”.

Sobre o pedido público de desculpas, a juiza afirmou que não seria necessário porque, na sua visão, “o Estado brasileiro, há tempos, reconheceu oficialmente sua responsabilidade pelas mortes e desaparecimentos ocorridos no período da ditadura e vem, ao longo dos anos, promovendo diversos atos que visam o resgate e memória da verdade dos fatos ocorridos em tal momento histórico”. E sobre a divulgação de servidores que atuaram no DOI-Codi, argumentou que a Lei de Acesso à Informação garante esses dados e que “não houve pretensão resistida na via administrativa” para isso.

À Ponte, a assessoria disse que o MPF vai recorrer da decisão em vista dos outros pedidos negados.

David dos Santos Araújo, agora reconhecido pela Justiça como torturador e assassino 

 

Nesta semana, o ministro de Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida, publicou portaria que reformula a composição da Comissão de Anistia, criada em 2002 para avaliar pedidos de reparação de vítimas da ditadura, mas que havia sido descaracterizada, durante o governo Bolsonaro, com a inclusão de militares entre seus membros. Com a nova reformulação, os militares ficam de fora e no seu lugar entram perseguidos políticos. “A exclusão de militares da comissão foi fundamental. Não pode haver em um instrumento como esse representantes das Forças Armadas que foram perpetradoras de crimes de Estado durante a ditadura. Precisam ser civis sensibilizados com a causa e com prioridade, inclusive, em figuras que foram atravessadas de alguma maneira pelas violências da ditadura”, aponta Gabrielle Abreu, do Instituto Vladimir Herzog.

No ano passado, o Instituto Vladimir Herzog levantou que, dos 50 acusados em mais de 70 ações judiciais propostas pelo MPF,  31 ainda estão vivos. Entre os algozes com maiores números de ações estão Dirceu Gravina, que aparece em quinto lugar, com seis ações, e Aparecido Calandra em sétimo lugar, com quatro denúncias.

Gabrielle sinaliza que esse histórico de impunidade se dá pela morosidade de responsabilização dos envolvidos. “Isso revela a demora do Brasil em encaminhar uma justiça de transição. A gente só foi ter um fórum de discussão dos crimes da ditadura décadas após o fim do regime, com a Comissão Nacional da Verdade em 2012, que fez um trabalho extremamente relevante e fundamental, mas tardio, porque os crimes identificados pela comissão. Muitos deles jamais serão apurados e investigados para além do âmbito das comissões [nacional e regionais], que não têm esse caráter punitivo, mas de fazer recomendações para aperfeiçoamento do Estado Democrático de Direito”, critica.

“A impunidade é uma constante na história do país, se dá pela período da escravidão, passa pela ditadura e acomete também os crimes do Estado no presente”, completa.

 

Veja as vítimas de tortura e morte pelos delegados, reconhecidas pela Justiça

 

Delegado Aparecido Laertes Calandra:

  • Hiroaki Torigoe (tortura e desaparecimento)
  • Carlos Nicolau Danielli (tortura e homicídio)
  • Maria Amélia de Almeida Teles (tortura)
  • César Augusto Teles (tortura)
  • Janaína Teles (tortura)
  • Edson Luís Teles (tortura)
  • Manoel Henrique Ferreira (tortura)
  • Artur Machado Scavone (tortura)
  • Paulo Vannuchi (tortura)
  • Nádia Lúcia Nascimento (tortura)
  • Nilmário Miranda (tortura)
  • Vladimir Herzog (tortura e homicídio)
  • Manoel Fiel Filho (tortura e homicído)
  • Pierino Gargano (tortura)
  • Companheira de Pierino Gargano (tortura)

 

Delegado David dos Santos Araújo:

  • Joaquim Alencar de Seixas (tortura e homicídio)
  • Ivan Akselrud Seixas (tortura)
  • Fanny Seixas (tortura)
  • Ieda Seixas (tortura)
  • Iara Seixas (tortura)
  • Milton Tavares Campos (tortura)

 

Delegado Dirceu Gravina:

  • Lenira Machado (tortura)
  • Aluizio Palhano Pedreira Ferreira (tortura e desaparecimento)
  • Altino Rodrigues Dantas Junior (tortura)
  • Manoel Henrique Ferreira (tortura)
  • Artur Machado Scavone (tortura)
  • Yoshitane Fujimore (tortura e desaparecimento)

 

20
Jul22

Como a ditadura elogiada por Bolsonaro torturou crianças e jovens

Talis Andrade
 
 
 
 
 
Relatos de vítimas de tortura praticada pelo ídolo de Bolsonaro, Brilhante Ustra e seus comparsas, mostram a face mais cruel da Ditadura Militar brasileira

 

Em diversas oportunidades, o candidato do PSL, Jair Bolsonaro, já falou com todas as letras que admira o período de ditadura militar no Brasil, que de 1964 até 1985 impediu a livre manifestação política, caçou, torturou e assassinou seus opositores. Além disso, ele diz que seu ídolo é o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, morto em 2015, enquanto ainda respondia diversas acusações de tortura, que incluíam mulheres grávidas e crianças.

Bolsonaro ainda afirma que a autobiografia de Ustra, “A Verdade Sufocada” é seu livro de cabaceira. No texto, Ustra tenta justificar as atrocidades que cometeu.

Janaína de Almeida Teles, Edson Luis de Almeida Teles, César Augusto Teles, Maria Amélia de Almeida Teles e Criméia Alice Schmidt de Almeida acusaram Ustra de sequestro e tortura em 1972 e 1973. Ustra chefiou o DOI-CODI de 1970 a 1974. Nesses período, outros tantos foram torturados e assassinados no local.

Apesar das centenas de casos, muitas dessas histórias só vieram a tona de maneira explícita com a Comissão Nacional da Verdade, instalada em 2011 e encerrada em 2014. No ano de 2013, Ustra chegou a ser intimado e prestou depoimento.

A partir dos relatos na Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, foi produzido o livro “Infância Roubada – Crianças atingidas pela Ditadura Militar no Brasil“, da onde foram extraídas as histórias abaixo. A Comissão da Verdade foi presidida pelo então deputado estadual Adriano Diogo e o livro teve coordenação e produção editorial de Tatiana Merlino.

Torturado com espancamento, choques e pau-de-arara aos 16 anos

Ivan e seu cachorro, alguns anos antes da tortura

 

Ivan Akselrud de Seixas, foi militante do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT) e tinha 16 anos em 1971, quando foi preso com seu pai. Além de ser brutalmente espancado, foi obrigado a ver o pai sofrer violência similar, além de ser induzido a pensar que ele havia sido assassinado.

“Rasgaram minha roupa toda, me dominaram, amarraram as mãos e me puseram no pau de arara. Eu sempre fui gordo e o cano foi cortando atrás do meu joelho. Tudo é de uma extrema violência. A primeira vez que você é pendurado tem uma sensação horrorosa. Fica de ponta cabeça, não sabe o que vai acontecer. Aí puseram os fios da máquina de choque no polegar e o outro dentro da orelha. Na sala, tinha uns cinco torturadores. E aí começou a gritaria. “Vai falar ou vamos te matar?” A única coisa que me veio à cabeça eu falei: “Não vou falar. Vão para a puta que os pariu”. Eles queriam ponto, eles tinham uma necessidade urgente de pegar pessoas com quem eu tinha contato.”

Em outro trecho, ele cita a presença de Ustra. “Na hora que eu estava algemado, pronto para ir, entra o [à época major, Carlos Alberto Brilhante Ustra] e fala: ‘Não, ele não vai, ele pode estar fingindo, vai correr e vamos ter que matar, não é para matar agora. E ele está mancando, vai denunciar e o Clemente vai fugir. Leva o Juracy que está colaborando’. Aí eu pensei ‘Pelo menos vou ficar sem apanhar’.”

“Levaram o Juracy e eu fiquei levando umas porradas, choques, mas não pendurado. Acho que depois de uma hora volta o Otavinho [vulgo do delegado Otávio Moreira Júnior] furioso, gritando, com aquela voz fininha: “Era ponto frio! Ele nos enganou”. Ele pegou um pedaço de pau no chão e acertou no meu braço tão forte que na hora levantou uma bolha de sangue pisado.”

“Ele disse: ‘Agora eu quero aparelho’. E eu disse: ‘Eu entro de olho fechado na casa do Rei’. Aí teve mais paulada, ele acelerou, batendo mais rápido, repetidamente. Rasgaram minha roupa toda, me puseram no pau de arara de novo e foi barra pesada, pancadaria pesadíssima. Foi quando quebraram a minha vértebra. De tão furioso da porrada que levou, o Davi ficou em pé em cima do meu peito.”

Em outro trecho de seu relato, Ivan fala de como a mãe foi tratada por Ustra. “No tempo que esteve presa, minha mãe dizia para eles: “Vocês são uns monstros. Torturar meu filho e matar meu marido do jeito que vocês mataram”. Lá, todos chamavam minha mãe de Dona Fanny, menos o Ustra. Um dia, ela estava numa cela com outras mulheres, ele chegou e disse: “Olha aqui, velha filha da puta. Olha o que o assassino do seu marido fez com o industrial [referindo-se à Henning Albert Boilensen]”. E ela respondeu: “Muito me admira um oficial das Forças Armadas tratar uma senhora desse jeito. Você deveria ter vergonha”. Ele, totalmente perturbado, foi embora. O comandante do II Exército chamou a atenção dele diante da oficialidade por causa disso”.

 

“Quem é essa pessoa que tem a voz da minha mãe?”

 

Edson Luís de Almeida Teles, filho de Maria Amélia de Almeida Teles e César Augusto Teles, foi preso com apenas 4 anos e obrigado a ver sua mãe espancado e nua após sessões de tortura.

“Eu tinha 4 anos de idade e a Jana 5. Nessa manhã, eu estava fazendo o que sempre fazia, que era assistir [ao programa de televisão] Vila Sésamo na sala. Eu gostava de ficar de ponta cabeça, tentando fazer o cérebro mudar a imagem que eu estava vendo na televisão. E foi nesse momento que chegaram os policiais”.

Sobre o DOI-CODI, ele relembra “a cena que mais me ficou presente foi o meu primeiro contato com a minha mãe. Parece que eu estava de costas para a janelinha de uma cela ou de um portão que tinha uma janelinha. Ela me chamou e eu, feliz da vida, reconheci a voz e me virei. Quando eu vi o rosto, eu não o reconheci. Ele já estava roxeado, desfigurado. E me causou um forte estranhamento porque eu pensei: “Quem é esta pessoa que tem a voz da minha mãe? Mais do que a voz, tem o jeito de se comunicar comigo que eu reconheço claramente, mas não é a minha mãe”

“Eu não sei quantas vezes nós fomos levados ao DOI-CODI, mas éramos acompanhados por uma policial, que nos levava a uma casa onde dormíamos na cozinha, num colchão no chão. E no dia seguinte éramos levados de volta ao DOI-CODI. O próprio Coronel [Carlos Alberto Brilhante] Ustra, que comandava a instituição, o DOI-CODI, assumiu no seu livro [A Verdade Sufocada – A história que a esquerda não quer que o Brasil conheça] dizendo que estava fazendo um ato de benevolência com esses presos, levando seus filhos para visitar os pais.”

“Eu não sei quantos dias esse processo durou. Acredito que pela minha idade e talvez por mecanismos saudáveis daquilo que a gente lembra e esquece, eu não lembro de muitas cenas desse momento. Mas claro, a gente era criança, então mescla esses momentos de terror, espanto, com outros que você começa a brincar ali no pátio do DOI-CODI, correr para lá e para cá. Por quê? Porque nada daquilo fazia sentido.”

 

Com 5 anos, Janaína foi levada para ver mãe na “cadeira do dragão”

Janaína e Edson Teles, então com 11 e 10 anos

 

Janaína de Almeida Teles, é a irmã mais velho de Edson Luís, filha Maria Amélia de Almeida Teles e César Augusto Teles. Foi presa junto com o irmão quando tinha 6 anos. Hoje é historiadora e pesquisadora do programa de pós-doutorado do Departamento de História da USP

“Fomos levados para o DOI-CODI (localizado na 36ª. delegacia de polícia). Eu tinha 5 para 6 anos, então, imagino que por isso eu tenha mais lembranças do que o Edson. Fui levada para uma cela onde meus pais estavam sentados numa mesa, onde parecia haver dois pratos de sopa ou de outra comida. Eles não conseguiam se mexer e nem falar direito porque estavam muito machucados.

Antes, eu fora levada para a cela onde minha mãe estava sendo torturada, eu a vi na cadeira do dragão. Mas não me lembro disso. Só me recordo de ter ficado muito chocada e de abraçá-los, beijá-los e, mesmo assim, eles não conseguiam se mexer. Depois de muitos anos, senti-me culpada por não conseguir lembrar-me dessas coisas direito. Isso me atormentava um pouco. Depois, fui entendendo que isso era uma autoproteção e que não havia como lembrar de fatos tão dolorosos.”

 

Eles não conseguiam se mexer e nem falar direito porque estavam muito machucados.

 

“O comandante do DOI-CODI/SP entre 1970 e 1974, Carlos Alberto Brilhante Ustra, deu uma versão cínica para o nosso sequestro em seu primeiro livro. Segundo ele: “[…] Para não mandar as crianças para o Juizado de Menores, uma moça, Sargento da Polícia Feminina do Estado de São Paulo, ofereceu-se para tomar contar dos menores em sua casa, enquanto aguardávamos a chegada dos familiares do casal, que se encarregariam da guarda deles. Diariamente, a meu pedido, as crianças eram levadas ao DOI para visitarem seus pais. […]”. Vale ressaltar que a casa onde me recordo ter pernoitado era bem grande e não poderia ser a moradia de uma sargento da Polícia Feminina.”

“Apesar de ser uma experiência muito dolorosa, minha família se esforçou para denunciar o coronel Ustra como torturador – em 2008 ele foi condenado em uma ação civil movida por nós contra ele –, assim como os demais crimes de que foi testemunha. Fazemos questão de denunciar que Ustra e o comandante do II Exército, Humberto de Souza Mello, torturaram pessoalmente minha tia Crimeia, então grávida de 7 meses.”

 

Torturada aos seis meses de gravidez

 

Crimeia com sei filho Joca

 

Crimeia Alice Schmidt de Almeida era militante estudantil, foi presa no Congresso de Ibiúna e depois entrou para a guerrilha do Araguaia.  Presa em uma das viagens periódicas que fazia à São Paulo, foi torturada até o nascimento de seu filho. Ustra participou pessoalmente.

Em depoimento à Comissão Estadual da Verdade de São Paulo, Criméia contou que um suposto médico acompanhava suas torturas. “[Ele dizia:] ela aguenta a tortura nos pés e nas mãos, só não pode espancar a região da barriga.”

Depois, foi levada a Brasília, onde continuou sendo torturada até dar à luz a seu filho, ainda que sob constantes ameaças dos militares de que ele não sobreviveria. Após o parto, Criméia foi impedida de vê-lo e só pôde recuperá-lo 53 dias depois de seu nascimento, desnutrido e dopado.

“Em 29 de dezembro de 1972, com seis meses e meio de gravidez, fui sequestrada pelo DOI-CODI/SP. O fato de estar em estado já bastante adiantado de gravidez não foi empecilho para as torturas físicas e psicológicas. Levei choques nos pés e mãos, muitos espancamentos, ameaças de fuzilamento e outras violências. E o pior, a ameaça de sequestrarem o bebê, se ele nascesse branco, saudável e do sexo masculino.”

“O primeiro a me torturar foi o major Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do DOI-CODI/SP à época. Mas não foi o único. Até o carcereiro me torturava quando me tirava da cela para levar às salas de interrogatório. Durante essa época, o feto apresentava soluços, os quais eu tentava amainar alisando a barriga e cantando baixinho para ele. Até hoje, em momentos tensos meu filho apresenta soluços.”

“Nos primeiros dias o bebê ficou isolado no berçário e só me era entregue para as mamadas. Com o passar dos dias notei que ele foi ficando muito molinho, sonolento, sem forças para chorar e para mamar. Perguntei ao pediatra o que estava acontecendo, respondeu-me que estava tudo bem. Então, perguntei à auxiliar de enfermagem, que o trazia para as mamadas, e ela me disse que a criança chorava muito e, por isso, o pediatra lhe prescreveu “Luminaleta”, um tranquilizante de uso infantil.”

 

Fichado como terrorista aos 6 anos

Luis Carlos Max do Nascimento, quando foi fichado em 1970

 

Luis Carlos Max do Nascimento, preso com 6 anos em 1970, foi fichado como terrorista e mais tarde banido do país com toda a família.

“Aí fomos para Peruíbe. E foi lá que fomos presos. A tensão maior foi quando de madrugada a polícia chegou em casa, foi em março ou abril de 1970. Estávamos eu, vó, Samuel e Zuleide. O Lavechia já não estava mais lá. Ali sim percebemos que a coisa era pesada mesmo. Vimos a brutalidade daquela invasão.”

“Fomos levados para São Paulo, para o DOPS. Até hoje, quando me lembro, é doloroso. Fomos colocados em uma sala e sabíamos o que estava acontecendo. A situação estava tensa. Hoje eu vejo meus filhos com 6, 7 anos… Eu não vejo neles o preparo psicológico que tínhamos. Aí falamos: “Mas com 6 anos você fazia isso, fazia aquilo, você sabia o que estava acontecendo?” A gente vivia aquilo, tinha que saber. De uma forma ou de outra, os nossos companheiros também não deixavam que as dores maiores chegassem até nós.”

“No DOPS, foi uma crueldade quando nos colocaram em uma sala e nos separaram da vó. Eu, que sempre fui o mais rebelde dos irmãos, me agarrei muito na minha vó e comecei a chorar. Aí dois policiais pegaram a minha avó pelo braço e outro me desgarrou dela. Ela me disse: “Carlinhos, fique tranquilo que não vai acontecer nada, tá? Depois a gente se vê”. Mas eu fiquei muito mal, porque a partir dali eu não a vi mais. Ficamos horas e horas naquela sala. E depois fomos levados para o Juizado de Menores. Eu fiquei muito mal, mas muito mal. Eu não queria me alimentar, não queria brincar com as outras crianças que estavam lá. Nunca tinha me separado dela. Lembro disso até hoje.”

Da redação da Agência PT de notícias, com informações do livro Infância Roubada – Crianças atingidas pela Ditadura Militar no Brasil

Tatiana Merlino é organizadora do livro “Infância Roubada”, que conta a experiência de crianças atingidas pela Ditadura Militar no Brasil. A publicação relata, em textos escritos na primeira pessoa, 24 dramas de crianças filhas de militantes políticos e guerrilheiros que lutaram contra a repressão militar. A obra é resultado do ciclo de audiências “Verdade e Infância Roubada” realizada pela Comissão da Verdade do estado de São Paulo “Rubens Paiva”. Os depoimentos foram marcados por lembranças da prisão, do exílio, do desamparo, de questionamentos em relação às suas identidades, de medo, insegurança, isolamento, solidão e vazio que, em muitos casos, são traumas não superados. É possível acessar a versão digital do livro no site http://verdadeaberta.org

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