O tenente-coronel Pelucio e a mulher: ele sócio, ela a administradora do negócio.
Indicado para monitorar contratos e ordenar despesas da intervenção chefiada por Braga Netto é sócio da esposa em empresa que fornece medicamentos ao governo.
Após mais de quatro anosde sua desativação, oGabinete de Intervenção Federalno Rio de Janeirocontinua a drenar os cofres públicos e a acumular indícios decorrupção. Criada durante o governo deMichel Temer,a estrutura foi oficialmente extinta em 31 de dezembro de 2018. Deste então, no entanto, com a justificativa de que ainda existem contratos em andamento, o gabinete segue ativo, atualmente empregando cinco militares. Um deles, o tenente-coronel Juliano Pelucio, é sócio de uma empresa que recebeu mais de R$ 400 mil do governo federal nos últimos nove anos.
Pelucio iniciou sua atividade empresarial em abril de 2011, quando já integrava os quadros das Forças Armadas. Com a esposa Andrea Martineli Pelucio, fundou a Bella Pharma Martinelli & Pelucio, uma revendedora de medicamentos com sede em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, e capital social de R$ 30 mil. No quadro societário, ela aparece como sócia-administradora. Ele, apenas como sócio.
De acordo cominformaçõesconsultadas peloInterceptno Portal da Transparência, a empresa do tenente-coronel e de sua esposa têm negócios com o governo desde 2014. No total, a firma já recebeu R$ 404.892,53 em pagamentos feitos pelo Executivo na compra de medicamentos e participou de seis licitações – duas delas feitas pelos Comandos da Marinha e da Aeronáutica. Os principais clientes de Pelucio no governo são o Ministério da Saúde e o Ministério da Educação, por meio da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, que gere os hospitais universitários.
Os militares, em especial os oficiais da ativa, sejam dasForças Armadasou das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros, são impedidos de exercer atividade empresarial. Segundo oCódigo Penal Militar, é proibido “comerciar ou tomar parte na administração ou gerência de sociedade comercial, ou dela ser sócio ou participar, exceto como acionista ou cotista em sociedade anônima, ou por cotas de responsabilidade limitada”. A pena para a infração é a suspensão do exercício do posto, de seis meses a dois anos, ou reforma.
A burla, no entanto, é comum. De acordo com um levantamento do site Metrópoles, publicado em 2020, 8.432 militaresapareciam em dados da Receita Federal como sócios de empresas. No entanto, apenas 14 militares da ativa conseguirama proeza de Pelucio: ter a empresa contratada pelo próprio Poder Executivo.
Um atenuante, no caso do tenente-coronel, seria que formalmente ele configura apenas como sócio da Bella Pharma, não como sócio-administrador, posto ocupado pela esposa. Isso porque a lei do funcionalismo público federaladmite que servidores ocupem quadros societários, desde que não tenham funções administrativas. No caso dos militares, porém, a permissão não existe.
Pelucio foiindicadoao Gabinete de Intervenção Federal do Rio de Janeiro pelo então comandante do Exército, Edson Leal Pujol, em agosto de 2019. À época, ele já tinha quase uma década de experiência com compras públicas – não nas Forças Armadas, mas em sua empresa. Como chefe de gabinete e ordenador de despesas da intervenção, Pelucio desempenha atividades que incluem o controle e acompanhamento de entregas remanescentes dos contratos públicos, operações administrativas e a instauração e acompanhamento de processos administrativos.
A história do Gabinete de Intervenção Federal é marcada por sucessivas datas de encerramento adiadas. Inicialmente, por decisão tomada ainda durante o governo Temer, a previsão era de que o grupo de servidores responsável pela operação fosse extinto em junho de 2019. A data mudou depois para 31 de março de 2020 e, em seguida, para 1º de dezembro de 2020. Naquele mês, uma nova portaria determinou a continuidade das atividades por mais um ano. Essa prorrogação foi estendida novamente até dezembro de 2022 e, nos últimos dias do governo Bolsonaro, foi definida para junho de 2023.
Sob a gestão do presidente Lula, a equipe foi reduzida, passando de 13 militares para cinco. O prazo para o seu término, porém, foi novamenteprorrogado: agora, até 20 de dezembro de 2023. Em junho, o General Tomás Paiva, comandante do Exército nomeado no atual governo, designou os cinco militares que vão prosseguir ocupando os cargos do Gabinete de Intervenção até sua extinção – um deles, o sócio da Bella Pharma Martinelli & Pelucio.
Entre os temas monitorados pela equipe de Pelucio, está o contrato de mais de R$ 40 milhões, atualmente sobinvestigaçãopela Polícia Federal, que envolve a empresa estadunidense CTU Security. O acordo, firmado sem licitação em 2018, previa a entrega de 9.360 coletes à prova de bala para a Polícia Civil do Rio de Janeiro, a um custo médio de R$ 4,3 mil por colete. No primeiro mês do governo Bolsonaro, o Executivo chegou a pagar R$ 35.944.456,10 à empresa. No entanto, três meses depois, o pagamento foi cancelado e o contrato suspenso.
Tenente-coronel foi designado para atuar como ordenador de despesas, responsável por autorizar os gastos de dinheiro público.
Nesta terça, militares que integraram o Gabinete de Intervenção e empresários foramalvoda Operação Perfídia – não é possível saber se Pelucio é um dos funcionários contra os quais foram expedidos mandados de busca e apreensão. Com a investigação, a PF apura crimes de contratação indevida, dispensa ilegal de licitação, corrupção e organização criminosa na contratação da CTU Security LLC. O general Walter Souza Braga Netto, nomeado interventor pelo então presidente Michel Temer, é investigado e teve o sigilo telefônico quebradopela justiça.
O que a investigação da PF já demonstrou é que Braga Netto continuou mantendocontato com lobistas e intermediáriosde empresas suspeitas de corrupção na compra dos coletes à prova de balas após se tornar ministro da Casa Civil do governo Bolsonaro, em 2020. À época, Pelucio já integrava o quadro de funcionários do Gabinete de Intervenção – inclusive, foi designado para atuar como ordenador de despesas, sendo responsável por autorizar ou não os gastos de dinheiro público.
As investigações que levaram à Operação Perfídia incluíram um relatório do Tribunal de Contas da União que aponta “desvios de finalidade” nos gastos do gabinete. Por exemplo, compras de camarão e de tortas holandesas com o dinheiro que deveria ir para a segurança pública fluminense. “Ao administrador público é imposto o poder-dever de fiscalizar e de revisar os atos de seus subordinados”, afirmou o TCU – nesse caso, sugerindo uma carapuça que serve a Pelucio, mas também a Braga Netto, Michel Temer e Jair Bolsonaro.
O Intercept procurou o Gabinete da Intervenção, mas não houve resposta. Não foi possível localizar os responsáveis pela Bella Pharma Martinelli & Pelucio em seus contatos informados no cadastro da Receita Federal.
O tempo presente vem desnudar o véu da persistente e violenta estrutura escravista brasileira, viva e atual, dispondo de métodos mais sutis de construção de golpes civil-militares híbridos
por Alexandre Aragão de Albuquerque
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Braço forte, mão leve, cara lisa. Em 11 de julho o tenente-coronel do Exército brasileiro, Mauro Cesar Barbosa Cid (Mauro Cid), ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro e filho do general Mauro Cesar Lourena Cid, preso desde maio por ser objeto de oito investigações pelo Supremo Tribunal Federal (STF), apresentou-se fardado para prestar depoimento na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), que apura o atentado golpista de Estado perpetrado no dia 08 de janeiro contra a democracia brasileira.
Esse evento, denominado pelos arruaceiros criminosos de “Festa da Selma”, ocupando e depredando os prédios dos Três Poderes, uma turba coordenada e alimentada ao redor dos quartéis em diversas partes do Brasil, desde o final do pleito de outubro de 2022, demonstrava publicamente o grau de comprometimento daquela força militar com a quadra tenebrosa vigente com a chegada do bolsofascismo ao poder executivo central. Fardado naquela sessão da CPMI, o tenente-coronel Mauro Cid apresentava-se não como uma pessoa individual, mas como uma pessoa coletiva, um representante da instituição.
Para ajudar na compreensão da enorme assimilação de Jair Bolsonaro no Exército, é preciso olhar para a Academia Militar Agulhas Negras (Aman), principalmente para a turma de 1977. Se sua reabilitação naquela força terrestre já havia ocorrido exemplarmente na formatura dos cadetes em 2014, ou seja, bem antes das eleições de 2018, esse processo foi coroado com a chegada, ao topo do poder militar, de seus contemporâneos da Aman. Quando assumiu a presidência do Brasil, quatro dos seus colegas de turma exerciam o posto máximo da carreira: os generais Mauro Cesar Lourena Cid (pai do tenente-coronel Mauro Cid), Carlos Alberto Neiva Barcellos, Paulo Humberto Cesar de Oliveira e Edson Leal Pujol haviam sido promovidos a generais de exército (quatro estrelas).
Edson Leal Pujol, como se sabe, foi nomeado comandante do Exército. Lourena Cid foi nomeado Chefe do Escritório da Agência Brasileira de Promoção de Exportações (Apex), em Miami – EUA. Paulo Humberto virou presidente da Postalis, fundo de pensão dos funcionários dos Correios. E Neiva Barcellos assumiu, em Genebra – Suíça, o posto de conselheiro militar junto à representação do Brasil na Conferência do Desarmamento na ONU.
Mas, além disso, as boas relações dos integrantes da turma da Aman 1977 com o Executivo Federal (Jair Bolsonaro) se estenderam para além do seleto grupo de generais quatro estrelas. Para ficar num único exemplo, o general de brigada (duas estrelas) da reserva Cláudio Barroso Magno Filho atuou como lobista ativo de mineradoras brasileiras e canadenses com interesses em exploração em áreas indígenas, tendo sido recebido pelo menos dezoito vezes no Planalto. (Cf. VICTOR, Fábio.Poder camuflado, Companhia das Letras).
Visando mensurar a dimensão do fenômeno de cessão de integrantes das Forças Armadas para exercer funções de natureza civil no governo Bolsonaro, entre 2019 e 2022 foram produzidos inúmeros levantamentos. Coube ao Tribunal de Contas da União (TCU), a pedido do ministro Bruno Dantas, uma dessas investigações, identificando a presença de 6.157 (seis mil, cento e cinquenta) militares exercendo funções civis na administração pública federal em 2020.
Como atesta o pesquisador Fábio Victor, os benefícios, privilégios e agrados dos mais variados a integrantes das Forças Armadas foram um dos fortes sintomas da militarização da gestão pública federal sob o bastão de Bolsonaro, mostrando abertamente que não se tratava apenas de um governo de militares, mas também para militares. Um dos fortes sinais desta situação pode ser facilmente constatado pela manobra autorizada pelo ministério da Economia de Paulo Guedes, garantindo supersalários para vários militares em altos postos na Esplanada. Generais palacianos como Augusto Heleno (o pequeno), Braga Netto e Luís Eduardo Ramos começaram a ganhar R$60 mil por mês, acima do teto máximo constitucionalmente permitido equivalente ao vencimento dos ministros do STF (op. cit.).
Voltando um pouco na história, importante relembrar que, na véspera do julgamento doHabeas corpusem 04 de abril de 2018, para garantir liberdade ao então ex-presidente Lula, autorizando-o a concorrer à eleição presidencial daquele ano, o general quatro estrelas, da reserva, Luís Gonzaga Schroeder Lessa, que fora comandante militar do Leste e da Amazônia, rosnou numa entrevista concedida ao jornal golpista O Estado de São Paulo: “Se acontecer [o habeas corpus], aí eu não tenho dúvida de que só resta o recurso à reação armada. Aí é dever da Força Armada restaurar a ordem” (Supremo pode ser indutor da violência.O Estado de S. Paulo,03 de abril de 2018).
Às 20h39, do mesmo dia 03 de abril, o general três estrelas Otávio Rego Barros (que viria a ser porta-voz da presidência na gestão Bolsonaro), auxiliar direto de Eduardo Villas Bôas, disparou o tuíte, na página oficial do seu superior, a ameaça do então comandante do exército ao Supremo Tribunal Federal: “Asseguro à Nação que o exército brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social, à Democracia,bem como se mantém atento às suas missões institucionais”. Resultado já sabido, no dia seguinte, o STF negou oHabeas corpusao então ex-presidente Lula. Jair Bolsonaro chegou ao poder executivo central com sua companhia de militares, a partir do histórico emparedamento do Supremo por generais do exército. O autoritarismo seria o traço desta gestão presidencial.
No dia 02 de janeiro de 2019, na cerimônia de posse de cargo do ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, o já presidente Bolsonaro discursou:“General Villas Bôas, o que já conversamos morrerá entre nós. O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui”.Em resposta a Jair Bolsonaro, no dia 11 de janeiro, na transmissão do comando do exército para Pujol, Villas Bôas disse:“A nação brasileira festeja os sentimentos coletivos que se desencadearam a partir da eleição de Bolsonaro”.
Pergunta-se: que sentimentos seriam? A exacerbação da violência social e estatal, da discriminação, da elevação do autoritarismo, da subserviência ao poder estadunidense, da perda da credibilidade internacional do Brasil, do desmonte e entrega do patrimônio público ao capital privado, da propagação indiscriminada defake news, do ataque sistemáticos às urnas eletrônicas e aos Tribunais Superiores, do descaso pelas pautas populares, da insensibilidade diante da miséria a que o povo brasileiro esteve submetido durante os quatro anos do governo passado? Este foi o projeto militar bolsonarista?
O tempo presente, depois do retorno à democracia com a reeleição do Presidente Lula em 2022, vem desnudar o véu da persistente e violenta estrutura escravista brasileira, viva e atual, dispondo de métodos mais sutis de construção de golpes civil-militares híbridos, cínicos, como ocorreu em 2016 e aprofundou-se em 2019, com o objetivo de manter a concentração de renda e poder nas mãos de pouquíssimos privilegiados, avessa a qualquer horizonte democrático alicerçado na liberdade e na igualdade substantivas, bem como na justa distribuição dos bens produzidos socialmente.
Mas agora o ditador está nu e precisa ser combatido tenazmente por toda a sociedade democrática. A nudez do ditador faz lembrar aquele conhecido poema colegial: “Um coleguinha me deu a cola / Eu a distribuí com a tropa / Dos mais argutos aos mais carolas / Todos chafurdaram gatunamente nas pedrarias / A farsa repetindo-se pela histórica e reincidente malandragem da companhia”.
General Augusto Heleno fortaleceu a área de inteligência do governo e era referência para os extremistas terroristas e golpistas e bolsonaristas (Crédito: Gabriela Biló)
O general Augusto Heleno foi um dos mentores intelectuais dos ataques do 8 de janeiro, desmontou a estrutura de segurança que permitiria garantir a integridade da Presidência e era a grande referência militar para os grupos extremistas. Seu papel será julgado pelo STF
por Germano Oliveira & Marcos Streckeri /IstoÉ
Os inquéritos sobre os ataques de 8 de janeiro exibem números impressionantes. Dos 1.398 presos, a Procuradoria-Geral da República (PGR) já denunciou 835. Destes, 645 são classificados como “incitadores”, 189 como “executores” e 1 é um agente público citado por omissão. Mas nenhum militar entrou na mira da PGR. Em breve as apurações sobre a invasão à sede dos três Poderes tomarão um novo rumo. Também será averiguada a participação dos generais mais próximos a Jair Bolsonaro. Entre eles, destaca-se aquele que tinha o controle sobre o aparato de segurança e informações do governo e era o responsável por órgãos que deveriam ter se antecipado aos acontecimentos e agido diante dos riscos de ataque: o general Augusto Heleno. Ele deve ser investigado por seu papel como um dos mentores intelectuais do golpe de 8 de janeiro.
O general deixou no final de dezembro a chefia do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que controlava a Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Será investigado porque desmontou o GSI para que o órgão ficasse totalmente inerte no dia 8. Tirou militares de posições importantes do órgão e da Abin para deixá-los sem reação. “Heleno foi de uma conivência abissal”, diz um ministro do Supremo. O militar só deixou gente da confiança dele nos principais postos, e essa ação foi o que mais contribuiu para a falta de um projeto de reação do governo no dia do golpe.
Muitas dúvidas ainda pairam sobre a atividade dos subordinados no dia dos atentados. Um dos homens de confiança de Heleno, o coronel do Exército José Placídio Matias dos Santos, participou dos eventos e pediu nas redes sociais que as Forças Armadas “entrassem no jogo, desta vez do lado certo”. Ainda conclamou o então comandante do Exército, general Júlio César de Arruda, a “cumprir o seu dever de não se submeter às ordens do maior ladrão da história da humanidade”. O oficial depois apagou as mensagens, mas o recado foi dado. Há muitas questões não esclarecidas. No dia da invasão, o secretário do Consumidor do Ministério da Justiça, Wadih Damous, denunciou em um vídeo o roubo de armas e munições em uma sala do GSI no Planalto. Segundo ele, os invasores tinham informação de que naquele local havia armamentos e documentos. “Isso significa informação.” Também há relatos de que militares do GSI tentaram facilitar a saída de depredadores pelo térreo do prédio, sem serem presos.
Personalidades do mundo jurídico destacam o papel central de Augusto Heleno na preparação para o golpe, mas dizem que será difícil caracterizar o papel do militar encontrando ordens executivas de sua autoria ligando-o aos eventos. Por outro lado, sua culpabilidade poderá ser fundamentada pela conivência ou pelas falhas deliberadas na estrutura que montou e comandou para garantir a segurança da Presidência – e que deixou de atuar no 8 de janeiro. Mas a omissão é um crime difícil de provar. Será preciso averiguar “de baixo para cima” a cadeia de comando para identificar as responsabilidades.
O ex-ministro do GSI é visto como um dos principais, se não o principal, articulador de uma tentativa de golpe de Estado que começou a ser conspirada meses antes das invasões. Fontes ligadas à Segurança Pública e ouvidas por ISTOÉ relatam que Heleno teria usado o aparato técnico do órgão que comandava e a influência nas Forças Armadas para evitar a posse do presidente Lula. As articulações que aconteciam nos bastidores eram retratadas a apoiadores com veemência após a vitória de Lula. E no dia dos ataques isso teria se refletido, entre outras ações, na facilitação do acesso de radicais ao Planalto. “Você acha que alguém entra assim do jeito que entrou?”, questionou uma das fontes. Um almirante influente no governo Bolsonaro e próximo de Augusto Heleno teria enfatizado várias vezes a seus subordinados e em reuniões de segurança que o novo presidente não governaria. “Foi uma tentativa de golpe. Ele não se consumou porque não conseguiram consolidar a maioria no Exército”, disse outra pessoa sob condição de anonimato.
As tentativas de consolidação dessa “maioria” necessária para executar um plano golpista não foram poucas, conforme os relatos colhidos por ISTOÉ. Várias reuniões teriam ocorrido com a intermediação de Heleno. Pelo menos três fontes diferentes citam uma ocasião específica – após o segundo turno – em que estavam presentes Heleno, o general Walter Braga Netto e representantes do Exército, da Marinha e Aeronáutica. A pauta: como articular um possível golpe de Estado. Dentre os participantes do encontro, somente o membro da Aeronáutica teria sido contra a tratativa e se revoltado com a ideia proposta. Mas a revolta foi ignorada pelos demais, e um dos resultados dessa reunião, ainda segundo as fontes ouvidas pela reportagem, foi a minuta golpista encontrada na casa do ex-ministro da Justiça, Anderson Torres. “Não foi uma brincadeira, estivemos a um passo do golpe”, frisou um dos informantes.
Desde que assumiu o núcleo mais sensível no Planalto, o GSI, Augusto Heleno aumentou enormemente o papel do órgão. Passou a controlar a área de segurança, monitorando todas as informações sobre os grupos radicais. Por sua atuação, ele sempre foi uma referência para os extremistas. Em novembro de 2021, a ativista Sara Winter revelou à ISTOÉ que foi orientada diretamente por Heleno, no Palácio do Planalto, na época em que ela articulava o “Acampamento dos 300”. “Ele pediu para deixar de bater na imprensa e no [Rodrigo] Maia e redirecionar todos os esforços contra o STF”, disse ela. No dia 13 de junho de 2020, o grupo marchou em direção ao STF e atacou a sua sede com fogos de artifício, numa “advertência”. O papel do general entre radicais aumentou após a eleição de Lula e especialmente depois que Bolsonaro deixou o País. Um dos posts mais compartilhados na época traz uma manifestante que mostrava um link do Diário Oficial supostamente transferindo a Presidência para Heleno. Seria uma “estratégia” de Bolsonaro. Militantes divulgaram nas redes que “Bolsonaro passou todo o poder para o GSI”, ou então que “o general Heleno é o presidente da República. Ele é o melhor estrategista do País, talvez do mundo”.
Catalisador do golpe
Essa busca de “mensagens ocultas” pode até ter um fundo de verdade, aponta um jurista. Uma resolução publicada no dia 23 de dezembro pelo próprio Augusto Heleno estabeleceu grupos de trabalho técnicos em diversos ministérios sob a coordenação do GSI. “Tudo parece inocente”, mas as más intenções se revelam mais tarde e há um teor “perigoso”, pondera o especialista. Normas como essa poderiam ser empregadas como catalisadores da ala militar hostil ao resultado das urnas. Funcionariam em conjunto com outros documentos golpistas que circularam em Brasília após as eleições, um fato reconhecido pelo presidente do PL, Valdemar Costa Neto, publicamente. Em depoimento à Polícia Federal, mais tarde, o político disse que se tratava de “uma metáfora”. Já a minuta apreendida na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres, citada acima, tinha um conteúdo golpista bem explícito. Era o esboço de um decreto para o então presidente Bolsonaro instaurar estado de defesa na sede do TSE, revertendo o resultado do pleito presidencial e delegando na prática ao Ministério da Defesa a condução do processo eleitoral. Torres, que diz desconhecer a origem da minuta, está preso pela sua omissão nos atentados, quando comandava a Secretaria de Segurança do DF.
Estabelecer a materialidade das iniciativas golpistas é um desafio. Depois de 30 de outubro, circularam áudios no WhatsApp com a voz de Augusto Heleno em que o general dizia com voz serena, mas assertiva, que a eleição havia sido fraudada e que ele não podia adiantar medidas que estavam em discussão, pois “há ainda muita coisa em jogo”. O GSI desmentiu e considerou o áudio como “fake de péssima qualidade”. O jornal O Estado de S.Paulo o submeteu a dois peritos, que disseram não ser possível atribuir a voz ao general. Mas uma gravação vazada após evento da Abin, em 14 de dezembro de 2021, reproduz o general criticando as atitudes de “dois ou três” ministros do STF. Nesse áudio, ele disse que um dos Poderes está tentando “esticar a corda até ela arrebentar”. “Tenho que tomar dois lexotan na veia por dia para não levar Bolsonaro a tomar uma atitude mais drástica em relação ao STF”, afirmou na ocasião.
E não há dúvidas sobre o sentido de suas manifestações públicas. Quando ocorreu uma audiência da Comissão de Fiscalização e Controle do Senado no dia 30 de novembro, em que vários bolsonaristas questionaram o resultado das urnas, o general conclamou: “Vamos lá discutir os temas que nos afligem. Coragem, força e fé. O Brasil acima de tudo”.
Para Leonardo Nascimento, do Laboratório de Humanidades Digitais da UFBA, as manifestações do general Heleno ao longo do tempo contribuíram para galvanizar os grupos bolsonaristas que participaram do 8 de janeiro. Segundo o pesquisador, as declarações e postagens do ex-ministro do GSI foram fundamentais também para que se criasse em torno dele uma certa “mística”. Nascimento vem monitorando grupos bolsonaristas em redes sociais nos últimos anos e acompanha de perto os efeitos das manifestações de Bolsonaro sobre seus seguidores. O ex-presidente seria o “grande oráculo de desinformação” desses grupos, nos quais tudo o que fala tem ressonância direta. Na sua ausência, ganharam mais importância as declarações de ‘sub-oráculos’, caso de Heleno. O próprio general teria se colocado nesse papel. “Heleno sempre foi o que mais deu declarações no sentido da ruptura institucional. Foi sempre o ministro que cumpria esse papel de verbalizar essa possibilidade, essa intenção.”
Sem papas na língua
O general Heleno é conhecido entre os apoiadores por falar sem “papas na língua”. Em julho do ano passado, durante uma audiência da Comissão de Fiscalização e Controle da Câmara dos Deputados, ele defendeu o sargento da Marinha Ronaldo Ribeiro Travassos, alocado no GSI, que gravou um vídeo defendendo um golpe militar. Heleno alegou que se tratava da ação de um cidadão brasileiro que tinha “o direito de se pronunciar”. Parlamentares avaliam como graves os indícios de participação de Heleno em ações golpistas. A deputada federal Dandara Tonantzin (PT) protocolou um requerimento para convidar o general a prestar esclarecimentos. “O depoimento poderá trazer elementos importantes sobre a inação da atuação do GSI no dia 8 de janeiro”, justifica. Já para o deputado Rogério Correa, também do PT, o histórico de Heleno é repleto de conspirações. Em 2020, o parlamentar fez parte do grupo de deputados que protocolaram um pedido de impeachment no STF do então ministro do GSI, após ele falar em “consequências graves” caso Bolsonaro fosse obrigado a entregar o celular no inquérito que apurava se o então presidente havia interferido na PF. “Ele já ameaçava com o golpe desde aquela época. E o 8 de janeiro tem tudo a ver com isso”, enfatiza.
Depois do 8 de janeiro, Heleno sumiu das redes sociais – seus últimos tuites são do dia 7 de janeiro. Ao longo do ano passado, ele vinha se mantendo bastante ativo nas redes, fazendo campanha eleitoral para Bolsonaro e retuitando posts do então presidente, além de atacar Lula, a quem chamava de “ex-presidiário”. A atividade nas redes mudou depois do segundo turno, quando, além do tuíte celebrando a audiência pública golpista do dia 30 de novembro, Heleno fez apenas algumas poucas publicações, em grande parte para contestar reportagens.
O historiador e cientista político Francisco Carlos Teixeira, da UFRJ, lembra o “DNA golpista” de Heleno, que na década de 1970, ainda capitão, atuou como ajudante de ordens do então ministro do Exército Sylvio Frota, que tentou articular um golpe contra o presidente Ernesto Geisel. “Ele já naquela época estava conspirando e fez parte daquela tentativa fracassada de ‘golpe dentro do golpe’, perpetrado pela chamada linha dura dos militares”, diz o professor. “Foi muito grave, não só pela tentativa de ruptura, mas porque foi contra um general presidente, contra um superior hierárquico”, destaca. O professor lembra que posteriormente o ex-ministro foi favorecido pelo governo do PT, que o nomeou para o Haiti. “Isso contribuiu para essa mítica de que eles estiveram em combate, de que são guerreiros. Mas não se lembra que lutaram contra uma população faminta. E esses militares voltam ao Brasil se dizendo aptos a administrar o Estado”, diz. “Vimos militares lotados no GSI participando dos acampamentos antidemocráticos em frente a quartéis. Heleno não sabia? Ou foi ele que incentivou ou mesmo deu a ordem? Porque aí a participação dele muda de patamar. Passa a ser também por ação, e não só por omissão.”
Novos generais
Após os atentados de 8 de janeiro, Lula disse que não foi avisado pelos serviços de inteligência sobre o risco iminente. Mas um relatório sigiloso enviado pelo GSI ao Congresso aponta que o governo foi informado. O alerta teria sido produzido pela Abin e compartilhado com órgãos federais. Na época, o ministro responsável pelo GSI era o general da reserva Gonçalves Dias, indicado por Lula. Por isso, Dias passou a ser visto com reservas pelos petistas. A hipótese de uma conspiração antidemocrática sempre esteve no radar do novo governo. Um exemplo foi quando o GSI tentou fazer parte do esquema de segurança do governo de transição, mas a equipe que cuidava da proteção do presidente eleito explicou aos agentes que a participação deles seria desnecessária. A desconfiança estaria pautada nas suspeitas de que a estrutura estava sendo utilizada com viés golpista. “A certeza é que houve leniência do GSI, antes, durante e depois. Às 6h da manhã o acesso [do Planalto] já estava liberado”, disse uma pessoa que acompanhou as reuniões de segurança após o ato terrorista. “Era a primeira semana de governo, a maioria que estava era a turma antiga”, acrescentou, sobre a equipe que compunha o GSI. Só em janeiro, pelo menos 13 militares do órgão, foram exonerados.
Segue lentamente o trabalho de despolitizar os quartéis. Na terça-feira, 14, o Alto-Comando do Exército definiu os nomes de três generais promovidos a quatro estrelas. Entre eles está Luiz Fernando Baganha, ex-secretário-executivo de Augusto Heleno no GSI. De acordo com uma fonte militar que já transitou na cúpula da caserna, são todos nomes sem atuação política. O Alto-Comando estaria tentando se desvincular “o mais rapidamente possível” da “encrenca” na qual os militares se meteram nos últimos quatro anos. “Os generais da ativa estão focados nisso, sabem o dano causado pelo envolvimento com Bolsonaro e agora só querem ‘tocar o barco’, fazer ‘coisa de soldado’”, afirma o oficial. “Sobrou um monte de trabalho pro Exército, um monte de gente pra punir.” Apesar de ter atuado como braço-direito de Heleno, Baganha não é considerado da sua cota pessoal. Teria trabalhado ao lado dele no GSI de forma “absolutamente circunstancial”. Mas outros nomes ligados a Heleno foram preteridos. O principal é Carlos José Russo Assumpção Penteado, que também foi seu secretário-executivo no GSI e estava no cargo nos ataques de 8 de janeiro.
A movimentação nos bastidores é lenta. O novo chefe do GSI apenas no dia 26 de janeiro abriu uma sindicância para apurar a atuação de funcionários do órgão. O governo tem resistido a apoiar uma investigação extensiva sobre o papel dos militares, em parte para evitar ampliar a resistência que existe na caserna contra o petismo. Lula também tenta impedir a abertura da CPI dos Atos Golpistas. A PF já investiga ações e omissões que permitiram as invasões, inclusive da parte de agentes do GSI. Mas há ministros do STF incomodados com a falta de empenho da corporação e do Ministério da Justiça em relação aos militares. A responsabilização deles é atualmente um dos temas mais nevrálgicos. Muitos gostariam que, no caso dos fardados, tudo ficasse restrito ao Superior Tribunal Militar (STM). Mas, com a disposição do STF de levar adiante a investigação e trazer o caso para sua jurisdição, será difícil evitar esse encontro com a verdade. É um passo importante para evitar que o País volte a enfrentar novas ameaças autoritárias.
Generais serão investigados
Além de Augusto Heleno, Walter Braga Netto e Luiz Eduardo Ramos também estão na mira do STF
Além de Augusto Heleno, o STF decidiu investigar outros dois generais de Bolsonaro que foram decisivos para os atos de 8 de janeiro: Braga Netto e Luiz Eduardo Ramos. Junto com Heleno, os dois foram autores intelectuais do golpe, supõe-se. Braga Netto é visto como tendo um papel-chave. Afinal, ele tinha ascendência com as tropas e era o candidato a vice de Bolsonaro.
Foi ministro da Casa Civil a partir de fevereiro de 2020 até março de 2021, quando o ex-presidente demitiu o então ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, e os comandantes das três Forças: Edson Leal Pujol (Exército), Ilques Barbosa (Marinha) e Antônio Carlos Bermudez (Aeronáutica). Esse episódio representou a maior crise militar desde a demissão do ministro do Exército pelo presidente Ernesto Geisel, em 1977. Na época, Frota articulava um golpe contra Geisel, e tinha como ajudante de ordens exatamente Augusto Heleno. Braga Netto então assumiu o Ministério da Defesa e só se afastou em abril do ano passado, para concorrer como vice na chapa de reeleição de Bolsonaro.
O outro general que está severamente envolvido com o golpe é Luiz Eduardo Ramos, ex-ministro da Secretaria de Governo e da Casa Civil, que chegou inclusive a organizar a “live”, em julho de 2021, em que Bolsonaro iria apresentar evidências de que houve fraude das eleições. Na ocasião, o ex-presidente reconheceu que não tinha provas. Um técnico de informática que participou da transmissão, Marcelo Abrieli, declarou em depoimento à PF que antes dessa participação havia sido chamado ao Planalto por Ramos e que conhecia o general desde 2018, quando este ocupava a chefia do Comando Militar do Sudeste. Ramos foi também titular da Secretaria-Geral da Presidência até dezembro passado, e era amigo próximo de Bolsonaro desde os tempos da Academia das Agulhas Negras, nos anos 1970. Foi preterido para o posto de vice na chapa da reeleição, mas permaneceu atuando no círculo íntimo do presidente. Os três generais, segundo ministros do STF, podem ser considerados os principais articulares militares da tentativa de golpe de Bolsonaro.
Colaboraram Dyepeson Martins e Gabriela Rölke
Os generais comandantes do golpe militar de Bolsonaro
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Impressiona a capacidade da imprensa brasileira – e, de resto, de toda a nossa pretensa elite intelectual – de tratar como “muito séria” qualquer pequena questão no “programa de governo” de Lula – por exemplo, para ficar em um só , a diferença entre “revisão” ou “revogação” da tal reforma trabalhista – e tratar quase que jocosamente a ameaça de golpe para manter Jair Bolsonaro no poder, como se isto fosse simples bravata presidencial, que esbarraria num inexpugnável Tribunal Superior Eleitoral.
Não é e também não é uma ameaça bem distante, no horizonte nebuloso de um longínquo cenário pós eleitoral, no caso provável de uma derrota do atual mandatário.
A um golpe não basta a força – e essa Bolsonaro tem, à medida em que o Exército está, de fato, sob o comando não de seus chefes formais, mas dos generais Braga Netto (bolsonarista antigo) e Paulo Sérgio Oliveira (neobolsonaristaseduzido pela ascensão que experimentou com a queda do general Edson Leal Pujol, no ano passado, depois de este dizer que não queria “a política dentro dos quartéis).
Precisa, por falsas que sejam, de razões para legitimar a agressão que representa à institucionalidade democrática e à manifestação eleitoral da população.
Portanto, fazê-lo depois do pronunciamento eleitoral dos brasileiros é um risco, quase certeza, de não ser legítimo, aqui ou lá fora, porque será, por mais que se fale em “liberdade”, uma evidente negação desta, no seu ponto essencial: o de escolher seus governantes.
Esta é a fonte dos riscos de não terminarmos o processo eleitoral já no primeiro turno.
Entre os dias 2 e 30 de outubro, datas do primeiro e do segundo turnos – estão concentrados os perigos: deputados e governadores já eleitos dificilmente lutarão por mandatos que não sejam os seus; covardias se vestirão de “neutralidade” enem-nensdemonstrarão e tem um só “nem”.
O eleitor brasileiro percebe isso melhor do que os grupos políticos que se entregam a aventuras pessoais ou de grupos, com candidaturas pífias mas que, voluntária ou tolamente impedem que, desde já, se diga que o repúdio ao atual governo é tão esmagador que não se lhe dará a chance de conspirar – e não seria a primeira vez, pois fez-se o mesmo em 1950 – para, estranha expressão, recusar a vitória ao vencedor.
Não custará ao prezado leitor e à distinta leitora capacidade para imaginar o que, naqueles 28 dias, se fará para criar a histérica versão de que estaremos sob a ameaça da China, do comunismo, dogayzismo, da corrupção, das drogas, da dissolução da família e da perseguição religiosa. Há anos temos exemplos de que não lhes falta perversidade para gritar isso e nem tolos que façam coro.
Este é o terreno perigoso e não custa refletir o que poderia ter havido, mesmo num país sem histórico de golpes se o ataque ao Capitólio tivesse ocorrido antes de se formalizar a derrota de Donald Trump, e não depois de proclamados os resultados, como ocorreu.
Não estamos discutindo “voto útil”, algo que pode ou não ocorrer em eleições normais. O que está em questão é que o resultado das urnas prevaleça e, para isso, é preciso que elas falem alto, forte e definitivamente no primeiro turno.
Quem quiser fugir desta evidência, que o faça sabendo do perigo.
Quem é que está falando grosso com os ministros do TSE, o ministro ou o general Paulo Sérgio Oliveira?
Fala em nome do Governo ou das Forças Armadas, como “instituições permanentes”, como as define a Constituição Brasileira?
Num regime que permite a reeleição, o presidente da República, candidato, é parte no processo eleitoral. Seus direitos não são diferentes daqueles que têm os demais candidatos, sejam eles Lula, Tebet, Ciro ou até o tal André Janones.
Algum deles poderia exigir que o Exército montasse uma “apuração paralela” dos votos? Algum deles poderia determinar ao Ministro da Defesa que enviasse ofícios malcriados ao presidente do TSE?
O que é diferente é a responsabilidade que deveria ter em não aproximar-se, na condição de presidente, da ações de Estado relativas ao processo eleitoral. Exatamente o contrário do que faz.
Jair Bolsonaro deixa repetidamente claro o que deseja: que um sistema militar de apuração dos votos diga quem venceu as eleições. É esta a grande suspeita que poderia cair sobre as eleições: ver as Forças Armadas colocadas em posição de serem vistas como “fraudadoras oficiais” do processo eleitoral, papel que não merecem, é evidente.
Mas, de outra parte, porque somos forçados a acreditar que não o seriam? A sua, literalmente, força armada? A insuspeição de um governo entulhado de militares, que beneficia militares e que os transforma em “correligionários”, como se fossem o seu partido político?
Temos um presidente-candidato que caminha por toda parte levando um general, oficialmente “assessor” mas, na prática, ministro da Defesa de fato, Braga Netto, que o acompanha como uma ave soturna, que não fala, não debate, não opina, como competiria ao candidato a vice-presidente que é. Mas manda e, sobretudo, mapeia lealdades dentre as Armas.
Quem aos regulamentos militares for fiel é “degolável”, com o foram o ex-ministro Fernando Azevedo Silva, por não querer colocar o Exército na rua para abrir o comércio na pandemia ou o ex-comandante Edson Leal Pujol, por não querer ceder os quartéis como palanques de comício.
Não adianta ser “bonzinho” e dizer: “olha, não fale dos militares, porque senão eles podem dar um golpe”. Não é isso que o evita e, talvez, nem mesmo falar com a lealdade e o respeito que merecem as Forças Armadas brasileiras.
Este vergonhoso e crítico protagonizado pelo ministro e pelo presidente da República, porém, deveria nos dar uma lição: a de que o Ministério da Defesa deve ser, obrigatoriamente, ocupado por um civil que, por isso, deixe claro que não representa os militares em política partidária ou eleitoral.
Até porque o lugar de ministro é, de fato, civil e político, cuja designação da chefia pertence exclusivamente ao Presidente da República, outro que, necessariamente, é político e civil.
Dados públicos disponibilizados no Portal da Transparência informam que 100 generais de exército (último posto da escala hierárquica do Exército Brasileiro) receberam a patente de marechal, extinta desde 1967 após uma reforma no regramento da força terrestre que pôs fim ao título, normalmente atribuído a oficiais de alto escalão considerados heróis nacionais por comandarem tropas em conflitos bélicos. A partir da promulgação da Lei Federal 6.880, de 1980, chamada de Estatuto dos Militares, a possibilidade de um general passar ao posto de marechal voltou, mas em condições restritíssimas: somente em tempos de guerra.
Entre os generais elevados a tal posto, que não existe mais, exceto em casos de campanha, estão Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GSI) do governo Bolsonaro, os ex-comandantes do Exército Edson Leal Pujol e Eduardo Villas Bôas, além de Sérgio Etchegoyen, que ocupou também o GSI, mas na gestão de Michel Temer. Enzo Peri e Francisco Roberto de Albuquerque, ex-chefes máximos da maior organização militar brasileira durante os governos Lula e Dilma Rousseff, são outros que engrossam a lista de marechais.
Na Marinha e na Aeronáutica, os postos equivalentes ao de marechal são, respectivamente, o de almirante e de marechal do ar, igualmente extintos. Nessas outras duas organizações militares a nomeação para a posição inexistente também corre solta. Na listagem disponível no Portal da Transparência é possível perceber que vários almirantes de esquadra e tenentes-brigadeiros (postos compatíveis com o de general de exército no Exército) receberam a “promoção” que deixou de existir há 54 anos. Eles somam 115 nesses dois ramos militares.
Os ex-comandantes da Aeronáutica Luiz Carlos Bueno, Juniti Saito e Nivaldo Rossato, que chegaram ao topo da hierarquia da FAB como tenentes-brigadeiros, figuram no site que divulga os gastos do governo federal como marechais do ar, da mesma forma que os almirantes de esquadra Roberto de Guimarães Carvalho, Julio Soares de Moura Neto e Eduardo Bacellar Leal Ferreira, que chefiaram a Marinha no passado, e que hoje são classificados como almirantes.
Foi a partir de uma Lei Federal que entrou em vigor em 2019, de número 13.954, que dispõe sobre questões previdenciárias dos militares e que não revogou o ordenamento jurídico anterior, que aparentemente esses generais passaram a figurar como marechais. Não se sabe qual foi a interpretação dada pelo governo federal para proceder com tais promoções, até porque o Ministério da Defesa não esclarece as circunstâncias dessas mudanças na hierarquia, tampouco a data em que elas ocorreram.
A reportagem da Fórum entrou em contato três vezes com a assessoria da pasta chefiada pelo general Walter Braga Netto, desde a última sexta-feira (30), por e-mail e via plantão do Centro de Comunicação, por WhatsApp, mas diferentemente da área de imprensa de outros ministérios, que respondem prontamente, o Ministério da Defesa ignorou os questionamentos sobre o assunto.
Ustra está entre ‘marechais’
Carlos Alberto Brilhante Ustra, coronel do Exército condenado em 2008 pela Justiça brasileira como torturador durante a Ditadura Militar (1964-1985), também foi elevado ao posto de marechal, segundo o levantamento da Fórum.
O fato mais conflitante fica por conta de Brilhante Ustra ter ido para a reserva como coronel, o que no máximo, se passasse a um posto acima, poderia conduzi-lo ao grau de general de brigada, três níveis abaixo da extinta patente de marechal, legalmente possível apenas em tempos de guerra.
Falecido em 2015, o oficial que usava o codinome Dr. Tibiriçá durante as sessões de tortura na sede do DOI-CODI, em SP, transmitiu sua pensão de marechal às filhas Patrícia Silva Brilhante Ustra e Renata Silva Brilhante Ustra, que recebem cada uma 15.307,90, totalizando R$ 30.615,80, valor correspondente aos vencimentos de outros “marechais” do Exército.
Bolsonaro, o fã do torturador
O presidente Jair Bolsonaro nunca escondeu sua admiração pelo coronel Brilhante Ustra, a quem se refere como um “herói nacional”, em que pese todas as acusações de violações aos direitos humanos praticadas pelo torturador condenado, inclusive na presença de crianças filhas de suas vítimas. Durante a sessão que votou o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, em 2016, o então deputado federal dedicou sua decisão favorável ao afastamento da petista com a seguinte frase: “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor da Dilma”.
A fala repercutiu entre autoridades e entidades da sociedade civil, no Brasil e no mundo, e foi classificada, entre outras coisas, como “execrável”, “estarrecedora” e “deprimente”. Os filhos de Bolsonaro, todos parlamentares, também costumam prestar homenagens ao torturador usando camisetas com a foto do militar já morto.
247 – O jornalista Ancelmo Gois, do Globo, publica uma nota que explica a encalacrada das Forças Armadas, que se enfiaram até o pescoço no desgoverno de Jair Bolsonaro. "Veja a história que circula no chamado Forte Apache, como é conhecido o Quartel General do Exército, em Brasília: num encontro recente, o ex-comandante do Exército Edson Leal Pujol comentou com Eduardo Pazuello, o ex-ministro da Saúde de Bolsonaro: 'Pazuello, quando o Bolsonaro lhe proibiu de comprar vacinas, você deveria ter pedido demissão. Obedecendo, você se ferrou e nos ferrou junto'", relata o jornalista.
[Outro general que está com medo é o interventor militar de Michel Temer no Rio de Janeiro. Quer passar para a estória como inimigo da democracia.] O ministro da Defesa, Walter Braga Netto, vem utilizando as cerimônias militares para realizar ‘comícios bolsonaristas” e endossar as ameaças à democracia feitas por Jair Bolsonaro. Nesta terça-feira (20), o general aproveitou a troca de comando do Exército para praticamente anunciar o veto das Forças Armadas a um processo de impeachment, além de ter confrontado a comunidade internacional no tocante ao desmatamento da Amazônia.
“Com o governo pressionado pela abertura da CPI da Covid, Braga Netto disse que ‘é preciso respeitar o rito democrático e o projeto escolhido pela maioria dos brasileiros’. A frase sugere que a eleição deu um salvo-conduto ao presidente, como se ele não precisasse prestar contas à sociedade e ao Congresso”, escreveu o jornalista Bernardo Mello Franco em sua coluna desta quarta-feira (21), no jornal O Globo.
“O ministro também afirmou que o Brasil passa por um período de ‘intensa comoção e incertezas, que colocam a prova a maturidade, a independência e a harmonia das instituições’. Faltou lembrar que os ataques ao equilíbrio entre os poderes partem do Planalto”, ressaltou o jornalista. “Nas últimas semanas, Bolsonaro voltou a atacar ministros do Supremo e acionou sua milícia digital para intimidar os senadores que pretendem investigá-lo na CPI”, completa.
Ainda segundo ele, “o general arrematou o discurso com uma advertência pouco sutil. Disse que as Forças Armadas estão ‘prontas’ e ‘sempre atentas à conjuntura nacional’. A conversa casa com a retórica golpista do capitão, que tem ameaçado adversários políticos com o que ele chama de ‘meu Exército’.
[O general interventor de Temer tem que explicar no Senado, na CPI do Genocídio, quais serviços prestou na estratégia de propagação da Covid-19: propaganda do kit cloroquina me engana, boicote à compra de vacinas, ao lockdow nacional, ao plano nacional de combate `a coronavírus com a participação dos governadores e prefeitos das capitais]
A DEMISSÃO DO MINISTRO DA DEFESA, general Fernando Azevedo e Silva, e dos dos três comandantes das Forças Armadas brasileiras a dois dias do aniversário do golpe militar de 1964 acendeu a luz vermelha na relação dos militares com o governo federal. Com diversos motivos sendo colocados pela imprensa, incluindo uma suposta tentativa de implementação de um Estado de Defesa, a declaração do presidente de que os bastidores não serão divulgados à sociedade é algo de extrema gravidade. A demissão dos mais altos oficiais, no entanto, não inocenta ou sela um compromisso irrevogável das Forças Armadas com a democracia, como bem já explorou o próprio Intercept Brasil. Mas o que esperar agora?
Se Jair Bolsonaro de fato fez algum grave pedido inconstitucional aos militares, não há outra forma de interpretar o fato: o presidente da República tentou um golpe de estado em seu sentido mais clássico, colocando os militares na rua para alterar dinâmicas políticas domésticas. Bolsonaro jamais escondeu seu apreço pelo período da ditadura militar – que ele, inclusive, considerava que tinha sido branda demais.
Também jamais escondeu seus desejos de implantar um regime autoritário dinástico, com a participação ativa dos filhos nas mais importantes decisões políticas do país. Sob sua presidência, o país colocou os militares de volta na política, em número que supera até mesmo a própria ditadura – o que fez Vladimir Safatle considerar que vivemos um regime militar sem golpe. Mas isso pode estar prestes a mudar.
Trabalhemos com quatro possíveis cenários.
No primeiro, Bolsonaro faz como fez até agora no Ministério da Saúde, substituindo o ministro e os comandantes militares até que fiquem meros fantoches, dispostos a aceitar o comando de colocar as Forças Armadas nas ruas em um regime excepcional. Nesse cenário, concretiza-se o anseio do presidente de se firmar como liderança autoritária, com o comando absoluto dos militares e usando-os instrumentalmente para governar de acordo com sua única vontade. Seria o fim do regime democrático pelo golpe de estado de Bolsonaro, e a subjugação total da caserna ao ex-capitão.
Um outro desdobramento possível é uma cisão dentro das Forças Armadas, entre uma ala bolsonarista e uma ala não bolsonarista. Se o alto comando se insubordinar ao comandante-em-chefe (como demonstrou o gesto de Azevedo e Silva e dos três comandantes das Forças), recusando-se a aceitar as ordens do presidente, e talvez promovendo uma retirada em massa dos militares dos cargos políticos que hoje ocupam, teremos, igualmente, um golpe militar. Nesse caso, a retirada do apoio dos militares, um dos sustentáculos fundamentais do governo, promoveria um aprofundamento da crise política, e talvez precipitasse um processo de impeachment de Jair Bolsonaro. Quem assumiria a presidência então seria o general Hamilton Mourão, que, muito provavelmente, traria de volta a elite insubordinada ao centro do jogo político. Seria um cenário perfeito para a manutenção dos militares na política – desta vez, como salvadores da democracia (algo semelhante com 1964?), retirando uma liderança inapta e autoritária.
Um terceiro desdobramento seria, pela demora na liderança do Congresso, os próprios militares desencadearem um golpe de estado, afastando eles mesmos o presidente do Planalto. Os resultados seriam semelhantes ao do cenário anterior, onde Bolsonaro é afastado por impeachment, com um retorno “salvador” dos militares ao comando do país. Nesse cenário, teriam o argumento que era preciso afastar imediatamente o presidente da República, que estaria tentando um autogolpe e forçando as Forças Armadas a segui-lo incontestavelmente. Atropelariam o devido processo legal – e democrático – de afastamento de um presidente via impeachment, mas em “defesa da ordem democrática” (sic). Esse cenário seria baseado na visão distorcida de democracia que ainda permeia a caserna brasileira, na qual teriam um “poder moderador” (sic) e o direito a tutelar a condução política do país.
A nomeação do general Walter Souza Braga Netto para o Ministério da Defesa indicou que o caminho desejado pelo presidente era o do primeiro cenário, ao colocar um nome que aderiu ao bolsonarismo em seus primeiros momentos, e que ajudou a trazer o movimento para dentro dos quartéis.
Braga Netto tomou posse como novo ministro da Defesa dizendo que seguirá as orientações de Bolsonaro dentro do que prevê a Constituição. Foto: Andressa Anholete/Getty Images
No entanto, as nomeações dos comandantes militares indicaram que este primeiro cenário se torna mais improvável, uma vez que ao menos uma queda de braço foi ganha pela caserna. A lógica profissional e institucional de senioridade para a nomeação dos comandantes foi respeitada pelo governo nas três nomeações. Tanto o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira para o Exército, o almirante Almir Garnier para a Marinha e o brigadeiro Carlos Almeida Baptista Júnior para a Força Aérea estão entre a turma de mais antigos altos-oficiais em seus respectivos comandos. Ganhou o aspecto de profissionalização militar, na qual promoções e nomeações não são definidas pelo governo da ocasião, mas seguem um padrão institucional definido pelas próprias Forças Armadas, algo que sociólogos Samuel Huntington e Morris Janowitz desenvolveram nos trabalhos seminais do campo das relações civis-militares.
O presidente perdeu a “queda de braço”, os militares não aceitaram uma ordem inconstitucional e a democracia foi preservada graças às insubordinações salvadoras do alto comando militar, certo? Não. Pelo contrário, a foto ensaiada do general Nogueira de Oliveira com seus antecessores, típica da guerra híbrida e da comunicação social que o Exército vem gerindo há anos, pela hipótese de Piero Leirner, é um exemplo que tudo mudou para nada mudar – algo típico das “revoluções” brasileiras.
A maior crise militar do último meio século tem nos dois prévios comandantes do Exército grande responsabilidade. Villas Bôas foi o comandante do Exército que, pelo Twitter, em texto gerido por todo o alto-comando da Força, deu voz à ameaça ao STF às vésperas do julgamento de Lula em 2018 – algo já bastante explorado pela mídia, e que escancarou as portas dos quartéis para a política. Foi, segundo o próprio Bolsonaro, em mais uma declaração que esconde o conteúdo da conversa, o grande responsável por ele estar onde está.
A foto ensaiada do general Nogueira de Oliveira com seus antecessores é típica da guerra híbrida e da comunicação social que o Exército vem gerindo há anos. Tudo muda para nada mudar. Foto: Reprodução/Exército Brasileiro
Seu sucessor no cargo, já no governo do ex-capitão, Edson Leal Pujol foi o comandante do Exército que, dentre outras coisas, foi um dos responsáveis por permitir que generais da ativa ocupassem cargos no primeiro escalão do governo, isto sem falar nos cerca de 1,6 mil militares na ativa do Exército em cargos de indicação política na administração pública federal. Foi sob sua gestão que um militar da ativa, general Eduardo Pazuello, aceitou como “missão” a obediência cega ao comandante-em-chefe à frente do Ministério da Saúde. Após 10 meses no cargo, saiu com um déficit oficial de mortes por covid-19 de cerca de 265 mil óbitos.
Luiz Eduardo Ramos, ex da Secretaria de Governo e atual ministro-chefe da Casa Civil (sim, um militar é o chefe da Casa Civil), é outro que iniciou seu período de governo ainda na ativa, sob o comando de Pujol. Por mais que o então comandante do Exército declarasse que os militares não queriam fazer parte da política, foi sob sua gestão que isso aconteceu de forma acelerada, consolidando os militares como o grupo político que, mesmo sem afiliação partidária, ocupam uma fatia maior do que a de qualquer partido político na gestão Bolsonaro.
De igual maneira, Marinha e Aeronáutica seguem com militares em postos de primeiro escalão, como o almirante Flávio Augusto Viana Rocha, na ativa pela Marinha, nomeado sob o comando do demitido almirante Ilques Barbosa Junior para a Secretaria de Assuntos Estratégicos ainda em 2020, e que, desde o mês passado, passou também a acumular a função de Secretário Especial de Comunicação Social do Ministério das Comunicações. Marcos Pontes, ainda que na reserva da Força Aérea, ocupa desde o início da gestão Bolsonaro o cargo de ministro da Ciência e Tecnologia. Segundo o levantamento do Tribunal de Contas da União de quase um ano atrás, eram ali mais de 6 mil militares em postos da administração pública federal.
Estamos fadados a conviver com a militarização da política ao menos até o fim do atual mandato
Com salários que chegam à casa das centenas de milhares de reais, como o que o general Joaquim Silva e Luna (primeiro militar a ocupar o Ministério da Defesa, sob indicação de Michel Temer, mostrando que a politização da caserna é prévia ao governo Bolsonaro), que receberá R$ 226 mil por mês no comando da Petrobras, até os “módicos” 30% de bônus que os cargos de indicação política dão aos fardados, o desembarque dos militares do governo parece igualmente um cenário pouco provável. Sem falar nos ganhos institucionais, como a manutenção do orçamento do Ministério da Defesa em meio a cortes gerais em toda a Esplanada, e nos ganhos coletivos, como os privilégios mantidos pela classe durante a reforma da previdência, que veio aliada a uma reestruturação do plano de carreiras para lá de benéfica ao alto-oficialato.
Isso nos leva a um quarto e mais possível cenário, no qual os militares tampouco abandonam o governo, mas também não embarcam nos mais severos arroubos autoritários de Jair Bolsonaro – o que não os torna necessariamente democratas ou amantes da Constituição de 1988. As leituras que os militares são os responsáveis por colocar freios no presidente da República não devem se esquecer jamais que seguem corresponsáveis por um governo calamitoso e irresponsável, e que nada disso provavelmente teria acontecido se não tivessem sido um dos primeiros a apoiar a candidatura do ex-capitão.
Vozes demitidas que hoje tentam soar como moderadas dentro das Forças, e até críticas a Bolsonaro, como o ex-ministro general Carlos Alberto dos Santos Cruz e o ex-porta voz da Presidência da República, general Otávio Rêgo Barros, se esquecem que são igualmente responsáveis pela existência do atual governo e pelo próprio engajamento militar na tutela política no país.
A não ser que os demitidos esclareçam o que de fato aconteceu, jamais saberemos o limite que a elite militar do país estabeleceu para seu grau de engajamento político doméstico. O polêmico projeto de Lei da Mobilização Nacional que o major Vitor Hugo, líder do governo na Câmara, apresentou no mesmo dia da demissão da elite militar do país nos dá uma indicativa do que seria. Não conseguindo o apoio das Forças Armadas, tudo indica que o presidente tentou elaborar uma medida que lhe garantiria o controle das Polícias Militares, de responsabilidade dos governos estaduais. A pergunta que esse cenário nos deixa é: afinal, para quê Bolsonaro quer tanto uma força armada sob seu irrestrito comando?
E, mais uma vez, apresentam-se à nação para salvá-la de um problema que eles mesmos ajudaram a criar
O quarto cenário talvez seja o mais desastroso para o país, uma vez que, não conseguindo o endosso cego dos militares ou o controle das polícias, empurra o presidente a conclamar os “cidadãos de bem”, devidamente armados pelos decretos de flexibilização do acesso a armas e munições emitidos pelo governo, e parte das milícias que controlam setores importantes das grandes cidades do país para o apoio à sua tentativa de autogolpe e a instalação de um governo de caráter autoritário no Brasil. E o recente vídeo do presidente nacional do Partido Trabalhista Brasileiro, Roberto Jefferson, apoiador e entusiasta do atual governo, parece caminhar neste sentido. Nele, Jefferson incita a população a reagir contra as autoridades públicas (ou, em suas palavras, o “satã” ou os “comunistas”) que tentarem fechar templos e igrejas para controle da pandemia do coronavírus.
O vídeo de Jefferson é um guia de incitação à ordem pública, inclusive com a indicação de um adereço militar, a balaclava, usada nos combates militar e policial para preservar a identidade e anonimizar os soldados. Estamos em um cenário em que, incitados por um governo de militares, que conta com amplo apoio de policiais, cidadãos armados podem causar uma convulsão social e precipitar um conflito civil doméstico para garantir as medidas excepcionais desejadas pelo presidente. E tudo isso com o apoio e a conivência dos cidadãos-em-armas que deveriam representar o monopólio legítimo da força dentro do país.
Todos esses cenários são igualmente desastrosos para a democracia brasileira. Nenhum deles teria acontecido se a política não tivesse entrado pela porta da frente dentro dos quartéis. Uma vez que entrou, não há saída que não seja danosa. No primeiro e no último cenários, Bolsonaro radicaliza seu governo. No segundo e no terceiro cenários, ele é substituído, e o general Hamilton Mourão assume a presidência até 2022. Ou seja: estamos fadados a conviver com a militarização da política ao menos até o fim do atual mandato. A visão que os militares salvariam o país da crise causada por Bolsonaro é absurda e falsa, uma vez que são eles também parte do problema. E, mais uma vez, apresentam-se à nação para salvá-la de um problema que eles mesmos ajudaram a criar.
Difícil é prever os custos em danos, em vidas, econômicos, institucionais e políticos que nos meteram os militares, a Lava Jato e o centrão político, que dá sobrevida à gestão de Bolsonaro mesmo com dezenas de crimes de responsabilidade praticados em plena luz do dia.
A semana começou com tensão de fim do mundo e terminou mais calma em Brasília, depois da troca do ministro da Defesa e dos comandantes das Forças Armadas. Será preciso, contudo, monitorar os sismógrafos para aferir se o terreno está, de fato, acomodado, e qual a extensão das fissuras resultantes do abalo sísmico no planalto.
As versões que vazaram dão conta de que o ex-ministro Fernando Azevedo e o ex-comandante Pujol teriam resistido a arroubos extremistas do genocida, seriam avessos ao uso político das forças armadas e, por isso, teriam perdido seus postos. Ora, mas o que fazem os militares, senão política, desde pelo menos 2015, com Villas Bôas no comando do Exército? O que foi o tuíte ao STF (aprovado pelo Alto Comando) na véspera da votação do Habeas Corpus de Lula?
Militares deixando o governo com ares de democratas ofendidos? Nada mais falso. A coesão pode até ter levado uma sacudida, mas os generais estão unidos pelo amálgama do projeto antiesquerda, além, claro, de desfrutarem das benesses do poder. Julgam ter papel de tutela sobre os civis. Nunca engoliram a Comissão Nacional da Verdade.
Até hoje celebram (agora com autorização do Judiciário) a ditadura que torturou, matou e escondeu corpos. Os fardados viram no golpe contra Dilma Rousseff a chance de voltar ao poder na carona de um extremista. Ajudaram a elegê-lo sabendo que tudo nele é extremo: autoritarismo, ignorância, maldade, desprezo à vida, culto à morte.
O Brasil está em marcha célere para 400 mil mortos pela pandemia. O colapso funerário se aproxima. O genocídio é obra coletiva de Bolsonaro e de todos que estão com ele. Nessa guerra, os militares que o apóiam decidiram cerrar fileiras nas legiões do vírus. São avalistas e fiadores, cúmplices e co-autores dessa tragédia. Tratam o povo como inimigo a ser derrotado, deixando-o morrer de doença e fome. Isso é crime de lesa-pátria. A História vai nos cobrar uma Comissão Nacional da Verdade para o genocídio brasileiro.
O mês de março encerrou com o Brasil assumindo definitivamente o papel de epicentro da pandemia. Com a disseminação do vírus absolutamente fora de controle, o país se transformou em celeiro de novas variantes e as restrições impostas aos brasileiros, em vários países, se tornam cada vez mais rígidas. Nações vizinhas começam a fechar fronteiras, colocando-nos em situação de total isolamento. O cientista Miguel Nicolelis avalia que estamos à beira de uma situação irreversível, onde a combinação de um colapso do sistema de saúde com um colapso funerário formará uma tempestade perfeita de cujos efeitos levaremos anos para nos recuperar.
A tragédia em que já se transformou a crise sanitária é de responsabilidade do governo Bolsonaro e, fundamentalmente, da caótica política de saúde conduzida por seu general capacho, Eduardo Pazuello, que militarizou o Ministério da Saúde. Isso necessariamente levou a uma associação entre desastre sanitário e Forças Armadas, cujo peso obviamente começou a incomodar parcela das três armas, o que, inegavelmente, tem sido um dos fatores que levaram os altos comandos a se distanciarem de Bolsonaro. A entrevista ao jornal Correio Brasiliense dada pelo general Paulo Sérgio Nogueira, às vésperas da mudança do ministro da Defesa, bem como a imposição do seu nome para o comando do Exército, soou como uma demarcação de campo com a política negacionista do governo.
Certamente a entrevista de Nogueira e o tratamento dispensado a Pazuello pesaram para que o genocida começasse a manifestar irritação com os comandantes e o ministro da Defesa. No entanto, o fator principal está no ensandecimento de Bolsonaro em decretar estado de sítio ou de emergência, obrigando os governadores e prefeitos a não mais imporem medidas restritivas de atividades ou, no mínimo, tentando intimidá-los com tais ameaças. Para tanto, precisava demonstrar que contava com o poder da força e manifestações favoráveis do braço armado eram fundamentais. Nem Azevedo e muito menos o general Edson Pujol (então comandante do Exército) se prestaram a este papel e a reforma ministerial foi a oportunidade para o Bolsonaro demonstrar sua insatisfação.
A intenção dos três comandantes, ocultada por Bolsonaro, de entregar seus cargos em desagravo à exoneração de Azevedo, demonstrou uma disposição dos militares de se afastar das insanidades daquele que se acha dono do Exército. Diante da situação de crise sanitária, econômica e social e principalmente do quadro que se avizinha, segundo Nicolelis, todo e qualquer fato que aprofunde o isolamento de Bolsonaro é fundamental. No entanto, devemos nos perguntar, os militares estariam dispostos a jogar a criança fora junto com a água do banho?
Há muita gente fazendo coro à versão de o general Villas Boas (ex-comandante do Exército), de que o envolvimento dos militares com os acontecimentos políticos, de 2013 para cá, decorrem de um sentimento de revanchismo às avessas, em resposta ao revanchismo da Comissão da Verdade. Podemos até admitir que a instalação de tal Comissão foi inapropriada naquele momento, mas a versão do revanchismo às avessas é de um simplismo absolutamente inaceitável. Também há aqueles que se iludem com as ideias de projeto, sentido de desenvolvimento e coesão nacional expressos pelo ex-comandante do Exército.
Ao interpretar a história das Forças Armadas brasileiras e enaltecer figuras que de fato expressavam um pensamento transformador e progressista em suas fileiras, alguns se esquecem que o golpe de 1964 estabeleceu um divisor de águas na corporação. Se houve interesse das elites em depor o governo progressista de João Goulart e incitar os militares ao golpe, estes, por sua vez, justificaram tal ação como uma reação à entrada no país de pensamentos estranhos à história, cultura e tradição brasileiras, em decorrência da guerra fria. Ou seja, utilizou-se da tese da guerra fria para negar as contradições da sociedade brasileira e tentar impor aos seus opositores um pensamento único, totalitário e de extrema violência. Pensamentos únicos não admitem divergências de ideias.
Se, enquanto projeto de poder e imposição do pensamento único à sociedade, os militares tiveram que recuar no final da década de 70, início de 80, nas academias militares obtiveram pleno sucesso. Impôs-se a doutrina de que qualquer pensamento que não reze pela teoria da segurança nacional formulada nos anos de chumbo é estranha aos interesses nacionais e deve ser extirpada. Recolhidos à caserna, permaneceram ruminando tais teorias, ajustando-as aos novos cenários, mas mantendo a sua essência. Aqui é fundamental que se entenda que tal teoria levou as estruturas militares a se tornarem impermeáveis a qualquer pensamento discordante. Militares como Nelson Werneck Sodré, entre outros, jamais voltariam a se criar na corporação, pois, segundo reza a doutrina vigente, representam pensamentos estranhos à sociedade brasileira.
Os generais de pijama que ocupam cargos no governo Bolsonaro e aqueles que compõem os altos comandos das Forças Armadas atualmente são os últimos remanescentes do período da ditadura. Passaram pelas academias militares entre a segunda metade dos anos 1970 e primeira metade dos anos 1980. Mais que um revanchismo às avessas, aproveitaram-se das crises ocorridas a partir de 2013 para colocar as unhas de fora, pois seria a última oportunidade de tentar ressuscitar a “Redentora”. Até então, somente figuras toscas levantavam suas vozes em defesa do regime militar. A partir de 2013, começaram a vir a público generais da ativa como Heleno e Mourão, escancarando o pensamento que dominava a caserna. A Comissão da Verdade é hoje tão somente uma justificativa e não a verdadeira razão do envolvimento político dos generais.
O argumento central de Villas Boas, e é importante entendermos que ele não fala por si próprio e sim expressa o pensamento do alto oficialato, é de que a partir dos anos 1980 abandonamos o sentido de desenvolvimento e perdemos a coesão interna. Em nenhum momento, no entanto, coloca o neoliberalismo e a hegemonia da elite rentista como causa das dificuldades que o país enfrentou nestas últimas décadas. Talvez pelo fato de estas mesmas elites entreguistas terem sido as principais promotoras do golpe de 1964. Com a queda do bloco soviético e o fim da guerra fria, o argumento da ameaça comunista se esvaziou, mas, na inexistência de guerras, tais teorias precisam de inimigos externos, ainda que fantasiosos, para gerar o temor interno. Elegeram então como graves ameaças externas atuais, que colocariam em risco a integridade nacional, o que Villas Boas chama do “politicamente correto”, como o ambientalismo, o antirracismo, o feminismo, entre outros movimentos que apresentam grande envolvimento das esquerdas. São colocados como pensamentos exógenos, que devem ser extirpados da sociedade brasileira.
Perdessem a oportunidade aberta com as crises a partir de 2013, corriam o risco de as novas gerações, que não vivenciaram o regime, irem gradualmente abandonando a doutrina que tanto defendem. Não só agiram intensamente nos movimentos de impeachment como entraram de cabeça na campanha e governo de Bolsonaro. Querem não só reescrever a história inscrevendo o golpe de 1964 como um “movimento” que “preservou a democracia” e que deve ser “celebrado”. Não é a reação ao suposto revanchismo da Comissão da Verdade que os movimenta, mas sim o espírito autoritário e reacionário gestado nos anos de chumbo.
Os militares querem ganhar a sociedade para esse pensamento para se reinstalarem no poder. Divergências com Bolsonaro devido a suas ações tresloucadas podem até gerar um distanciamento da corporação, o que é positivo, pois isola ainda mais o genocida. Porém, não acredito que pretendam jogar fora a criança junto com a água do banho. Talvez não haja clima para um novo golpe aos moldes de 1964, mas Forças Armadas que se orientam por uma doutrina totalitarista serão sempre uma ameaça à democracia. A defesa da democracia exige uma luta sem tréguas, no campo das ideias, a estas concepções totalitárias.