A partir de 1968, o regime militar encontrou maior resistência a sua continuidade. Manifestações estudantis e operárias, aliadas ao crescimento da luta armada no país, levaram a edição do AI-5 e do início de uma série de prisões que, muitas vezes, levaram ao desaparecimento de centenas de pessoas consideradas um perigo à segurança nacional.
O contexto da Guerra Fria e a caça aos comunistas
Nos países do bloco capitalista durante a Guerra Fria, a perseguição aos comunistas e simpatizantes ocorreu de norte a sul, como o Macarthismo nos EUA e o fechamento do Partido Comunista do Brasil (PCB) por Gaspar Dutra. Se no dito “Período Democrático” o comunismo foi perseguido, durante a ditadura militar não seria diferente.
Além de cassações de mandatos da oposição e da prisão de estudantes, intelectuais e professores universitários, os militares operaram forte censura aos meios de comunicação, chegando a atentados terroristas contra jornais e revistas de esquerda. Nesse contexto, centenas de brasileiros foram dados como desaparecidos, muitos deles vítimas dos órgãos de repressão da ditadura militar que operavam em nome da Doutrina de Segurança Nacional.
Nesse contexto foram criados ou ressignificados diferentes instituições públicas, tais como o DOPS, o DOI-CODI e o SNI a fim de identificar, interrogar e punir qualquer cidadão considerado subversivo. Mulheres, jovens e idosos também se incluíam nessa categoria e foram vítimas de tortura, desaparecimento forçado e assassinato.
De acordo com o artigo 2º da Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, entende-se o desaparecimento forçado como [...] "a prisão, a detenção, o sequestro ou qualquer outra forma de privação de liberdade que seja perpetrada por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas agindo com a autorização, apoio ou aquiescência do Estado, e a subsequente recusa em admitir a privação de liberdade ou a ocultação do destino ou do paradeiro da pessoa desaparecida, privando-a assim da proteção da lei." (BRASIL, 2016).
Comissão da Verdade e desaparecidos do regime militar
Criada em 2011, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) concluiu seus trabalhos afirmando que a tortura foi uma política de Estado durante o regime militar e sugeriu que fosse revista a Lei de Anistia para os agentes envolvidos em desaparecimentos forçados durante a ditadura. Além disso, recomendou que lhes fosse exigido ressarcimento aos cofres públicos a fim de pagar as indenizações das vítimas. Sugeriu também a extinção da Lei de Segurança nacional, que reflete o pensamento autoritário do período militar e não condiz com o estado democrático vivido na atualidade.
A CNV identificou cerca de 1843 vítimas de tortura, dentre elas 434 morreram ou desapareceram. Esta cifra compreende 191 pessoas que foram assassinadas, 210 que permaneceram como desaparecidas e 33 que tiveram seus corpos encontrados posteriormente. Dentre os grupos mais atingidos, estiveram estudantes (6%) e membros de guerrilhas revolucionárias - ALN, MR-8, VAR-Palmares e VPR - totalizando 30%.
Provavelmente o número de desaparecidos durante a ditadura é superior ao encontrado pela CNV, entretanto, até o presente, esses são os dados comprovadamente relacionados à atuação dos militares durante a ditadura. De acordo com o relatório da comissão, 377 agentes públicos estiveram envolvidos em atos de desrespeito aos Direitos Humanos entre 1964 e 1985.
Bibliografia:
BRASIL. Decreto nº 8767, de 11 de maio de 2016. Promulga a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, firmada pela República Federativa do Brasil em 6 de fevereiro de 2007. Planalto, Brasília, 2016. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/decreto/D8767.htm>. Acesso em: 7 nov. 2017.
O subprocurador-geral da República e procurador federal dos Direitos do Cidadão, Carlos Vilhena, enviou nesta quinta-feira (15) ofício à ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Cristiane Britto, no qual manifesta posição contrária à "extinção prematura" da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos.
O Trilhas da Democracia entrevista a historiadora e professora da Universidade do Estado de Minas Gerais, Janaina Teles. Em questão, os mortos e desaparecidos políticos na Ditadura Militar (1964-1985), a Operação Condor e o reconhecimento de Carlos Alberto Brilhante Ustra como torturador pela Justiça de São Paulo, em 2008. Apresentação: Marco Mondaini.
Em dezembro, o projeto que prevê a legalização de jogos de apostas e cassinos no Brasil recebeu 293 votos favoráveis contra 138 contrários na Câmara dos Deputados. O caráter de urgência foi aprovado e a expectativa é que a proposta seja votada no plenário da casa em fevereiro. Assim, o projeto de lei não precisa ser submetido às comissões da Câmara.
Por isso, os apoiadores da ideia estão confiantes que 2022 pode ser o ano da retomada dos cassinos no território nacional. Lembrando que os cassinos estão proibidos de operar no Brasil desde 1946.
Em 30 de abril do mesmo ano, o presidente Eurico Gaspar Dutra assinou um decreto-lei proibindo a atividade, justificando a medida devido “a tradição moral jurídica e religiosa do povo brasileiro” e disse ainda que “das exceções abertas à lei geral, decorreram abusos nocivos à moral e aos bons costumes”.
Agora, essa pauta está ganhando relevância entre políticos e a população. Mas, a liberação dos jogos ainda encontra resistência dentro da base governista. Na última terça-feira, 4, aGazeta do Povopublicou uma reportagem detalhando todos os pontos que geram essa divisão entre os parlamentares. Confira o texto a seguir!
Do apoio de Trump ao repúdio evangélico: por que os cassinos dividem a direita
Uma peculiar convergência de fatores tem levado analistas políticos a apostarem – com temor ou com torcida – que 2022 será o ano do retorno dos cassinos ao Brasil. Se a previsão se confirmar, o fato disso ocorrer durante a gestão de um governo de direita será emblemático e expõe o quanto o tema divide esse espectro político. No centro do debate moral que envolve o assunto está um dilema entre a liberdade do indivíduo de fazer as próprias escolhas, sem tutela do Estado, e as consequências concretas dessas escolhas à sociedade e à família.
No Congresso
A evidência mais recente da força que o tema está ganhando foi a votação da urgência do Projeto de Lei 442/91, que legaliza e regulamenta os jogos de azar no Brasil. Ocorrida na última semana de sessões na Câmara dos Deputados em 2021, a articulação liderada pelo próprio presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), foi bem-sucedida e obteve 293 votos favoráveis contra 138 contrários, garantindo que o projeto seja votado diretamente no plenário, sem necessidade de passar por comissões. Essa vitória, contudo, está longe de ser o único movimento relevante para favorecer a jogatina.
No Senado, pelo menos quatro propostas que tratam do mesmo assunto – embora se diferenciem nas modalidades e locais onde a prática seria permitida – tiveram avanços na tramitação e ganharam destaque midiático nos últimos anos, em parte, graças à atuação do senador Ciro Nogueira (PP-PI), hoje, ministro-chefe da Casa Civil no governo Bolsonaro, e autor do mais abrangente deles, PLS 186/2014, que libera a exploração de jogos de azar em todo o território nacional.
As posições estratégicas ocupadas hoje tanto por Lira quanto por Nogueira – defensores históricos dos jogos de azar – na sustentação política do governo e no controle da agenda legislativa do Congresso tem relação direta com o otimismo indisfarçável dos grupos que defendem a volta dos cassinos ao Brasil.
No STF
Paralelamente às movimentações dos parlamentares, o Supremo Tribunal Federal (STF) pode acabar impulsionando a regulamentação, dependendo do que decidir no julgamento previsto para 7 de abril, quando discutirá se os jogos de azar podem ou não ser considerados como contravenção penal à luz da Constituição de 1988, já que tal tipificação é anterior à Carta Magna, constando no Decreto-lei 3.688 de 1941, a Lei das Contravenções Penais.
O caso concreto em discussão parte do Recurso Extraordinário 966177, no qual o Ministério Público do Rio Grande do Sul questiona a decisão do Tribunal de Justiça do estado que desconsiderou a exploração de jogos de azar como contravenção penal, sob o argumento de que os fundamentos que embasaram a proibição não se adequam aos princípios constitucionais vigentes. Se os ministros do Supremo concordarem com o entendimento do TJ-RS, a decisão descriminalizará a prática em todo o país, pois em 2016 a Corte já havia reconhecido a repercussão geral do tema.
No governo
Peça essencial nesse tabuleiro, o posicionamento do governo Bolsonaro sobre o assunto é ambíguo, o que acaba por refletir a divisão inconciliável de sua base de apoio quanto aos jogos de azar, a começar pela própria equipe ministerial. Ao lado de Ciro Nogueira está o ministro do Turismo, Gilson Machado, que no início de 2020 foi à Las Vegas acompanhado do filho do presidente, o senador Flavio Bolsonaro, para reuniões com empresários do ramo de cassinos. Em 2019, quando era presidente da Embratur, Machado declarou em entrevista à Folha de S. Paulo que com os cassinos, “o Brasil atrairá o turista que gasta”.
A resistência contra o lobby da jogatina dentro do governo é liderada pela ministra Damares Alves que já afirmou publicamente, em diversas ocasiões, que sua pasta se opõe à liberação, como ocorreu em setembro de 2021, durante entrevista à CNN: “Se o Ministério dos Direitos Humanos for provocado para emitir parecer, com certeza nos manifestaremos contrários à aprovação da matéria”.
Antes de ser ministra, Damares foi uma das fundadoras do Movimento Brasil Sem Azar, grupo que há anos atua para impedir avanços da jogatina no Congresso Nacional. Ela também é próxima da bancada evangélica na Câmara e vem justamente daí o maior obstáculo para os entusiastas do jogo. Com 196 signatários e considerável influência junto a simpatizantes, quando vota unida a Frente Parlamentar Evangélica constitui uma força poderosa para barrar projetos em plenário ou mesmo impedir que entrem em pauta. Foi o que aconteceu em 2016, durante o governo Dilma, quando uma articulação semelhante em favor do jogo foi colocada em curso, mas graças à inflexível oposição combinada dos parlamentares evangélicos, teve que ser abandonada, voltando à gaveta por mais alguns anos.
O presidente
Pressionado por apoiadores a se posicionar de forma mais clara sobre o assunto, após a votação da urgência, Bolsonaro disse num almoço com jornalistas que é contra a liberação dos jogos de azar e prometeu vetar a proposta, caso o Congresso a aprove. Na mesma ocasião, contudo, fez questão de incluir um adendo que muitos tem interpretado como um sinal de que o governo pouco fará para impedir a aprovação: “Se eu vetar e o parlamento derrubar o veto, vamos cumprir a lei”.
Em 2018, quando ainda era deputado e pré-candidato à presidência da república, Bolsonaro já havia optado por manifestações que acenassem tanto aos que se opõem, quanto aos que defendem a volta dos cassinos. “Em princípio sou contra, mas vamos ver qual a melhor saída”, afirmou em maio daquele ano, durante palestra dada na Associação Comercial do Rio de Janeiro.
A divisão de posições sobre o tema parece ocorrer até entre os filhos do presidente. Enquanto Flavio é um defensor explícito da instalação de cassinos no Brasil, o deputado federal Eduardo Bolsonaro foi um dos 138 que votou contra a urgência do tema na Câmara, apesar de sua conhecida admiração por um grande empresário do ramo de cassinos: Donald Trump.
Donald Trump
O ex-presidente dos Estados Unidos, aliás, pode ser um dos fatores que vem fazendo parte da direita brasileira repensar sua histórica oposição à jogatina, afinal, Trump inovou ao se tornar ídolo de conservadores em todo o mundo, mesmo sendo um milionário proprietário de cassinos que fez fortuna com seus empreendimentos de luxo. Não há registro de outro líder político que tenha esse perfil e, ao mesmo tempo, tenha tomado decisões e dado declarações que favorecessem tanto as demandas da direita cristã norte-americana.
Coincidentemente ou não, o parceiro de negócios e maior doador da vitoriosa campanha de Trump em 2016, o milionário dono de cassinos Sheldon Adelson, foi também o responsável pela pública tomada de posição a favor dos jogos de azar do ex-prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, que em 2018 admitiu em entrevista ao jornal Valor Econômico que estava conversando com Adelson para construir na capital carioca um estabelecimento nos moldes daqueles que o magnata possuía em Las Vegas e Cingapura, e que articulava junto aos parlamentares de seu estado para que a legislação brasileira sobre o tema fosse alterada. “As pessoas sabem que se não tivermos emprego, vamos para o caos social. E joga quem quiser”, afirmou Crivella, que é pastor licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus e sobrinho de Edir Macedo, o fundador da instituição.
O que conservadores veem de mal nos jogos de azar?
Apesar dessa relativização por parte de relevantes expoentes da direita política, a posição majoritária dos cristãos e dos conservadores em geral a respeito dalegalização dos jogosde azar permanece sendo de oposição, principalmente por causa das consequências inegáveis às comunidades e famílias das regiões onde cassinos, bingos, caça-níqueis e similares são instalados. O aumento no número de viciados, o endividamento e a desestruturação familiar constituem uma característica constante, comprovada por numerosos estudos em todo o mundo.
O problema do vício é tão grave e afeta tantas pessoas que em 2017 a Organização Mundial da Saúde decidiu incluir o transtorno de jogo oficialmente no Código Internacional de Doenças (CID). Cinco anos antes, a Universidade de São Paulo (USP), por meio de seu Programa Ambulatorial do Jogo Patológico, já havia mostrado que 73% dos viciados em jogos na capital paulista eram também dependentes de álcool, 60%, de nicotina e quase 40% tinham algum transtorno relacionado às drogas.
Em 2004, o trabalho do professor e pesquisador do jogo Earl Grinols, PHD em Economia pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT), provocou grande repercussão entre gestores públicos ao apontar que a cada dólar arrecadado pelos Estados Unidos com o pagamento de impostos pela indústria do jogo, outros três dólares eram gastos para remediar os impactos sociais provocados pela jogatina, especialmente no que diz respeito a crimes e contravenções cometidos por dependentes do jogo. Sua pesquisa ganhou reconhecimento internacional e foi posteriormente publicada em forma de livro pela editora da Universidade Cambridge, no Reino Unido, sob o título Gambling in America – Costs and Benefits.
O impacto na vida dos familiares de um viciado em jogos de azar também já foi objeto de pesquisa por numerosos estudos acadêmicos. Um deles, intitulado Gambling behaviour in Great Britain, foi desenvolvido pela agência nacional de saúde do Reino Unido, com dados de 2015. Um dos resultados aos quais o estudo chegou foi o de que um apostador afeta negativamente a vida de, pelo menos, dez pessoas em seu entorno, deteriorando relações afetivas e profissionais, além de comprometer as finanças domésticas.
Crimes
Além dos fatores que envolvem diretamente os viciados e seus familiares, não se pode ignorar os alertas feitos pelas instituições relacionadas ao combate à corrupção no Brasil, que constantemente tem se manifestado de forma contrária à liberação desse tipo de atividade devido à grande dificuldade de evitar crimes como a lavagem de dinheiro, a evasão de receitas e a sonegação fiscal. Foi nesse sentido que já se pronunciaram no passado, por meio de notas técnicas ou participação em audiências públicas, entidades como o Ministério Público Federal (MPF), o Conselho de Controle de Atividade Financeira (Coaf) e a Receita Federal.
Na nota de 2016, por exemplo, ao analisar a proposta do senador Ciro Nogueira, o MPF chegou a afirmar que “a enorme quantidade de bingos e cassinos cuja abertura é estimulada pelo PLS 184/2014 está em evidente descompasso com a realidade dos órgãos nacionais de controle, ainda que estes fossem dotados de estrutura de fiscalização de primeiro mundo”.
Entidades religiosas
No que diz respeito aos religiosos, não apenas políticos pertencentes a denominações cristãs têm atuado para impedir a aprovação dos jogos, mas também instituições tem tomado parte no debate. No dia 16 de dezembro, data da votação da urgência do PL 442/91 na Câmara, a Associação Nacional dos Juristas Evangélicos (ANAJURE) manifestou seu repúdio, afirmando que a jogatina “facilita atos de corrupção, sobrecarrega os órgãos fiscalizadores e colabora com a decadência social que destrói inúmeras famílias no contexto do vício”, acrescentando que “essa não seria uma pauta urgente para ter atenção do Congresso Nacional neste momento”.
Em 2016, quando os defensores da liberação dos jogos de azar estiveram próximos de alcançar seu objetivo, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) emitiu nota para expor sua apreensão com os mesmos projetos de lei que hoje voltam aos holofotes.
Num texto iniciado pelo versículo bíblico “uma árvore má não pode dar frutos bons (Mt 7,18)”, os bispos reafirmaram sua posição, dizendo que “o jogo de azar traz consigo irreparáveis prejuízos morais, sociais e, particularmente, familiares” e é concluído com um claro recado aos parlamentares: “tenham certeza de que o voto favorável será, na prática, um voto de desprezo por nossas famílias e seus valores fundamentais”.
No caso dos católicos, a oposição à exploração comercial dos jogos de azar não é apenas uma definição de autoridades regionais, mas faz parte de sua doutrina social, constando inclusive no Catecismo da Igreja Católica. O texto eclesiástico, contudo, aponta nuances, destacando-se que não se trata de um mal em si. Conforme o documento publicado durante o pontificado de João Paulo II, “os jogos de azar ou apostas em si não são contrários à justiça. Tornam-se moralmente inaceitáveis quando privam a pessoa daquilo que lhe é necessário para suprir suas necessidades e as dos outros”. O Catecismo diz ainda que “apostar injustamente ou trapacear nos jogos constitui matéria grave, a menos que o dano infligido seja tão pequeno, que aquele que o sofre não possa razoavelmente considerá-lo significativo”.
O passado dos cassinos no Brasil
O Brasil já teve cassinos funcionando a todo vapor em território nacional, mas foi por um período curto: de 1920 a 1946. Historiadores falam que o país chegou a ter entre 50 e 70 casas de jogos, com destaque para aquelas instaladas na cidade do Rio de Janeiro.
A decisão de acabar com a proibição herdada desde o Brasil Império partiu do presidente Epitácio Pessoa que, pressionado por empresários do ramo, permitiu a abertura de cassinos restritos a determinadas regiões com potencial turístico, o que na época significava, em geral, estâncias balneárias ou climáticas, como a cidades de Campos do Jordão e Petrópolis. Os impostos arrecadados seriam usados para custear o saneamento básico no interior do país.
Entusiastas da jogatina costumam se referir aos anos 30 como a era de ouro dos cassinos no Brasil, pois foi com a ascensão de Getúlio Vargas que esse tipo de empreendimento passou a ser não apenas tolerado pelo poder público, mas incentivado e usado para fazer propaganda nacional no exterior. Não por acaso, é no final da década de 30 que surge o fenômeno Carmen Miranda, a artista mais disputada pelos cassinos nacionais e, posteriormente, internacionais.
Com o fim do Estado Novo imposto por Vargas e a eleição do general Eurico Gaspar Dutra, surgiram acusações de que os cassinos pagavam propina a Vargas para serem favorecidos pelo governo. O jornal Diário Carioca, por exemplo, publicou no dia seguinte ao decreto-lei que “o jogo, como toda a escala dos negócios aventurosos, que permitem lucros fáceis e rápidos, é uma planta de estufa dos regimes de ditadura”, acrescentando ainda que “seja qual for o cinismo dos comparsas do getulismo, não poderão disfarçar a condenação moral que receberam do primeiro magistrado da república, fechando-lhes as baiucas e as tavolagens, as quais chegaram a ser um patrimônio e uma política de toda a família Vargas”. A nova gestão também tinha interesse em se desvincular da ditadura recém-encerrada e como Vargas fez questão de vincular sua imagem aos cassinos, uma ruptura com esse setor era até previsível.
Em 30 de abril de 1946, três meses depois de assumir a presidência e ainda dotado dos poderes garantidos pelo Estado Novo – portanto sem a necessidade de aval do Congresso – Dutra emitiu um decreto-lei, proibindo a prática ou exploração de jogos de azar em todo o território nacional. Em sua justificativa, o presidente mencionou “a tradição moral jurídica e religiosa do povo brasileiro” e afirmou que “das exceções abertas à lei geral, decorreram abusos nocivos à moral e aos bons costumes”.
Câmara aprova legalização de cassinos, bingos e jogo do bicho
por Raphael Di Cunto e Marcelo Ribeiro /Valor
A Câmara dos Deputados concluiu nesta quinta-feira a aprovação do projeto de lei que legaliza os jogos de azar, como cassinos, bingos e jogo do bicho, e rejeitou uma tributação maior sobre essas atividades. Todas as emendas propostas pelos partidos para alterar o projeto acabaram rejeitadas nesta quinta-feira. O texto segue agora para análise do Senado Federal.
Após a Câmara aprovar a legalização dos jogos em sessão na noite de quarta-feira, por 246 votos a 202, nesta quinta-feira os principais debates foram sobre os impostos que serão cobrados. Pelo texto aprovado, haverá a cobrança de uma Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) de 17% apenas sobre o faturamento líquido.
De acordo com o texto, não poderá ocorrer cobrança de “quaisquer outras contribuições ou impostos sobre o faturamento, a renda ou o lucro decorrentes da exploração de jogos e apostas”. O PCdoB apresentou emenda para excluir essa isenção, mas foi rejeitada por 234 votos a 175. Outra emenda, do PT, para elevar a Cide a 30%, foi derrotada por 255 a 166.
O relator, deputado Felipe Carreras (PSB-PE), defendeu que a Cide de 17% já seria alta. “A gente está tratando da indústria dos jogos como entretenimento. No Brasil, as empresas de entretenimento pagam carga tributária de 16,33%, incidindo IRPJ, CSLL, PIS/Cofins e ISS, quando o município cobra 5% de ISS. Em várias cidades, o ISS é 2% e as empresas de entretenimento pagam 13,33% de carga total”, disse.
Líder do PCdoB, o deputado Renildo Calheiros (PE) argumentou que o tributo será menor porque o próprio relator prevê que 80% do dinheiro das apostas será pago como prêmio. O dispositivo aprovado diz que os 17% incidirão apenas sobre os valores que ficarem com as empresas –20% do valor apostado, portanto. “É um valor muito pequeno e o projeto invade legislações de competência estadual e municipal, essa isenção é inconstitucional”, afirmou.
Outros deputados compararam que os medicamentos têm carga tributária de 33% e alimentos como arroz, feijão e macarrão, de 18%, superiores ao que será cobrado dos jogos.
“Uma das características desse tipo de tributo é a seletividade, ou seja, as atividades mais danosas pagam mais tributos para que as menos danosas paguem menos tributos”, disse o deputado Marcelo Ramos (PSD-AM). “Uma Cide de 17% vai transformar o Brasil no paraíso fiscal dos jogos porque o mundo inteiro adota 30%, 40%, 50%”, acusou.
Além da Cide, as empresas pagarão uma taxa de fiscalização trimestral entre R$ 20 mil (plataformas digitais e jogo do bicho) e R$ 600 mil (cassinos). Os valores serão atualizados pela taxa Selic anualmente. A fiscalização ficará a cargo de uma agência reguladora a ser criada pelo Executivo e que ficará vinculada ao Ministério da Economia.
O projeto acaba com a proibição da exploração de jogos de azar, hoje uma contravenção penal. O texto trata da regulamentação de cassinos, bingos, jogo do bicho e apostas em plataformas digitais. Essas atividades dependerão da concessão de uma licença emitida pelo governo federal e terão número limitado (no caso de cassinos em resorts turísticos, por exemplo, haverá um limite que varia de um a três por Estado, dependendo da população).
Na votação, os partidos se dividiram, mas a maioria apoiou a legalização dos jogos. Na oposição, o PSB (partido do relator) “liberou” seus parlamentares. O PDT do pré-candidato Ciro Gomes apoiou integralmente. O PT, num processo de reaproximação com o eleitorado evangélico, principal base de apoio do presidente Jair Bolsonaro (PL), votou contra o projeto.
Bolsonaro enviou mensagem de celular para alguns deputados pedindo a rejeição, mas não deu declarações públicas sobre a proposta e seu governo “lavou as mãos”. Novamente, o líder do governo, deputado Ricardo Barros (PP-PR), e o partido de Bolsonaro, o PL, “liberaram” seus deputados para que votassem como quisessem e não trabalharam contra o projeto.
Na base governista, apenas o Republicanos, ligado à Igreja Universal do Reino de Deus, votou contra o projeto. As bancadas evangélica e católica foram as mais ativas na tentativa de barrar a legalização dos jogos. O texto, contudo, teve como principal defensor e articulador o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), aliado de Bolsonaro.
Aviso de gatilho - o artigo a seguir relata a história do Exército e para isso faz descrição de cenas de torturas e massacres em larga escala.
Em 17 de janeiro, o jornalista Luiz Fernando Vianna publicou na revista Época um artigo sob o título “Na pandemia, Exército volta a matar brasileiros”. O texto provocou reação imediata do Exército Brasileiro. Sob ordem direta do comandante do Exército, general Edson Leal Pujol, o também general Richard Fernandez Nunes, chefe de comunicação da Força, enviou uma carta à revista em tons jamais vistos desde o fim da ditadura, com ordem explícita de retratação. Você pode ler a carta aqui e avaliar a dimensão das agressões e ameaças do Exército contra o jornalista, a revista e a liberdade de imprensa no país.
O que escreveu Vianna que provocou a ira verde-oliva?
Nada demais. Uma expressão tímida e parcial do caráter do Exército Brasileiro. O jornalista registrou o massacre de Canudos, em 1897, quando “nem as crianças foram poupadas” pelos militares brasileiros - o que é pura expressão da verdade. Depois, mencionou a Comissão Nacional da Verdade, que apontou as centenas de mortos durante a ditadura militar, “quando as Forças Armadas se uniram às polícias para torturar e assassinar”. Aqui há uma imprecisão histórica de Vianna. Não foram as Forças Armadas que se uniram às polícias na missão de tortura e assassinatos em série. Elas foram as líderes do morticínio, com o apoio das polícias.
Uma das mortes mais emblemáticas do período ditatorial, do jornalista Vladimir Herzog, aconteceu nas dependências do DOI-Codi do II Exército, no que parecia ser um bucólico bairro de classe média paulistana em 1975, significativamente com o nome de Paraíso. Milhares de homens e mulheres e várias crianças foram torturadas em dependências oficiais ou clandestinas das Forças Armadas durante a ditadura e centenas deles morreram - não há registro da morte de crianças. O irmão da jornalista Hildegard Angel, hoje colunista da rede Jornalistas pela Democracia, cujos artigos são veiculados no 247, o jovem Stuart Angel Jones, foi sequestrado por militares, torturado por eles na Base Aérea do Galeão e assassinado de maneira quase indescritível. Stuart foi amarrado a um carro e arrastado por todo o pátio do quartel. Para se divertirem, os militares colocavam a boca do jovem de 25 anos no escapamento do veículo fazendo com que ele aspirasse todos os gases tóxicos. Após ser desamarrado, Stuart foi abandonado no chão, com o corpo bastante esfolado e seguiu clamando por água noite adentro. Até hoje não se sabe se morreu naquela noite ou em novas sessões de tortura executadas pelos militares da Aeronáutica.
Em seu artigo, Vianna salta aos dias de hoje para falar do papel dos militares na pandemia do coronavírus. Digitou o jornalista que o ministro-general Eduardo Pazuello, que ele qualifica de “lambe-botas do presidente”, soube “com dias de antecedência que os hospitais de Manaus entrariam em colapso por falta de oxigênio para os pacientes. Nada fez, a não ser prescrever a inútil cloroquina” e o comprovadamente ineficaz “tratamento precoce” . A afirmativa é tão veraz que o procurador-geral da República, Augusto Aras, enviou neste sábado (23) ao Supremo Tribunal Federal um pedido de abertura de inquérito para apurar a conduta do general Pazuello durante a crise em Manaus. A seguir, o jornalista afirma que “os generais de Brasília (Mourão, Augusto Heleno, Braga Netto, Azevedo e Silva) pouco fazem além de inscrever seus nomes na história como operadores de um morticínio – não se pode usar a palavra genocídio porque algumas damas da intelectualidade ruborizam”.
Morticínio e genocídio, por sinal, são duas palavras correntes nos fóruns internacionais a respeito de Jair Bolsonaro - ele foi denunciado por esses dois motivos ao Tribunal Penal de Haia.
O que então incomodou tanto o Exército?
Sabemos a razão, quem não sabe?
O que incomoda é o fato de Vianna ter levantado ainda que de maneira parcial e tímida, o manto sobre o qual o Exército procura esconder sua história.
Vamos a ela que é este, afinal, o motivo deste artigo: apresentar a você, que talvez ainda não conheça, a história do Exército Brasileiro.
A história do Exército Brasileiro
Na verdade, talvez seja mais apropriado falar em história das forças armadas a serviço da elite, constituídas sob diversas denominações desde a ocupação colonial do território que viria a ser chamado de Brasil a partir do século 16.
Toda a constituição destas forças levaram, ao fim e ao cabo, à criação do Exército Imperial Brasileiro em 1822.
Mas, muito antes disso as forças armadas (com letras minúsculas) das elites conformaram-se como atos preparatórios para a formação do Exército. O que importa reter aqui é que ao longo de toda esta história, até hoje, essas forças armadas cultivaram a doutrina do “inimigo interno”, que foi crescentemente explicitada a partir de 1935 (no levante alcunhado de Intentona Comunista pela liderança militar) e formalizada depois do golpe militar de 1964.
Este espírito presidiu a “guerra aos bárbaros”, que dizimou os povos originários na segunda metade do século 17 no Nordeste e no massacre do Quilombo dos Palmares, complexa organização de comunidades de negros e negras rebeldes fundadas a partir de 1580 e que chegaram a ter 20 mil pessoas e foram também dizimadas em 1710.
Eram os primórdios do que viria a ser o Exército Brasileiro.
Caxias, o carniceiro
Hoje já é atestado de maneira inequívoca que Luís Alves de Lima e Silva, patrono reverenciado pelo Exército Brasileiro, referência militar no Brasil, foi um carniceiro. Ele mesmo, o Duque de Caxias, que recebeu este título de Barão de Caxias de Dom Pedro II em 1841 por ter massacrado impiedosamente a revolta popular da Balaiada no Maranhão - foi promovido a conde e depois marquês conforme crescia a pilha de cadáveres em sua trajetória, até chegar a duque em retribuição pelo massacre do povo paraguaio - incluindo mulheres e crianças, como sempre.
Um ano antes de ser barão, ainda como Luís Alves, Caxias projetou-se no cenário imperial brasileiro por ter liderado o massacre ao quilombo de Manuel Congo e Mariana Crioula, em Vassouras (RJ).
No Maranhão, Luís Alves, futuro Caxias, foi o líder das tropas a serviço dos grandes proprietários de terra e de escravos. A rebelião foi articulada por uma ampla unidade popular entre diversos segmentos que ficaram conhecidos como balaios, apelido de um dos líderes do movimento: uniram-se vaqueiros, artesãos, lavradores, escravos, sertanejos, índios e negros libertos, sem direito à cidadania e nem ao acesso à propriedade da terra - eles lutaram de 1838 até 1841.
A repressão foi um massacre em larga escala. Um ano antes do morticínio, Luís Alves foi nomeado presidente da Província do Maranhão, com esta missão: o massacre. E ele a cumpriu. Matou 12 mil pessoas. Milhares de participantes sobreviventes foram exilados, expulsos do Maranhão e do Piauí.
Engana-se quem pensa que foram apenas esses os dois massacres perpetrados por Caxias.
Três anos depois, na Guerra dos Farrapos, 1845, Caxias foi o grande articulador do Massacre de Porongos, o último conflito da guerra, uma emboscada aos Lanceiros Negros, o corpo de negros libertos e escravos que lutaram sob promessa de liberdade e paz. Em 14 de novembro de 1844, praticamente desarmados, mais de 100 lanceiros negros foram assassinados e os que sobreviveram foram enviados à corte brasileira.
Veio depois a Guerra do Paraguai, celebrada com toda pompa pelo Exército Brasileiro. Morreram 50 mil brasileiros no conflito, no qual Caxias assumiu o comando da segunda etapa da guerra, de 1866 a 1869. O Paraguai foi dizimado: estima-se em mais de 300 mil mortes, mais da metade da população do país, e 80% da população masculina e masculina-jovem, com milhares de crianças assassinadas nos combates.
O massacre de Canudos
O Exército Brasileiro não precisou de Caxias para seus massacres. O Duque morreu em 1880, mas os massacres continuaram e o Exército, que se tornou uma força política decisiva no Império, deu o golpe que derrubou o sistema e instituiu a República dos Marechais, em 1889.
E estreou em “grande estilo” como força armada do novo regime na repressão ao Belo Monte de Antônio Conselheiro, uma experiência comunitária popular original, que terminou no massacre conhecido como Guerra de Canudos (1896-97).
As duas primeiras expedições conduzidas pelo governo baiano fracassaram, derrotadas pelo povo organizado ao redor de Conselheiro, composto por sertanejos e sertanejas miseráveis, negros e negras libertos e lançados igualmente à miserabilidade, bem como indígenas do povo Kaimbé - a primeira indígena vacinada contra a Covid no Brasil, em São Paulo, Vanuzia Costa Santos, presidente do Conselho do Povo Kaimbé, nasceu na região do massacre.
O Exército assumiu a repressão na terceira expedição, que fracassou igualmente. A quarta expedição foi comandada por dois generais e os militares quase foram derrotados, mais uma vez. Foi preciso que o Ministro da Guerra, marechal Carlos Bittencourt, levando mais três mil soldados, fosse em socorro dos generais, para finalmente derrotar a comunidade de Conselheiro, que sempre fora pacífica.
O marechal Carlos Bittencourt é outro carniceiro considerado herói do Exército Brasileiro. Sob sua ordem direta foram assassinados centenas de prisioneiros de guerra, entre homens, mulheres e crianças, inclusive pessoas que haviam se rendido com bandeira branca e que haviam recebido promessas de proteção em nome da República. Alvim Martins Horcades, médico do Exército e testemunha ocular, escreveu sobre a ação do marechal: "Com sinceridade o digo: em Canudos foram degolados quase todos os prisioneiros. (…) Assassinar-se uma mulher (…) é o auge da miséria! Arrancar-se a vida a criancinhas (…) é o maior dos barbarismos e dos crimes monstruosos que o homem pode praticar!" Pode parecer exagero afirmar que o assassino Bittencourt seja herói do Exército. Não é. Em vez de apurar as centenas de denúncias contra ele, o Exército, em 1940, proclamou-o oficialmente "herói de guerra e mártir do dever, que sublimou as Virtudes Militares de Bravura e Coragem". Não bastante, o marechal degolador de mulheres e crianças foi consagrado como Patrono do Serviço de Intendência do Exército Brasileiro.
Guerra do Contestado: outro massacre
A série de massacres perpetrados pelo Exército Brasileiro adentrou o século 20 - e prossegue no 21.
No início do século 20, o Exército perpetrou outro brutal massacre que ficou conhecido como Guerra do Contestado, entre 1912 e 1916 em Santa Catarina e Paraná. Os líderes militares designados para o morticínio foram o general Carlos Frederico de Mesquita, veterano do massacre de Canudos, e o general Setembrino de Carvalho, que se tornaria ministro da Guerra de um dos presidentes mais repressivos da história, Arthur Bernardes (1922-26). O episódio mais marcante da campanha militar foi o massacre de Taquaruçu. O vilarejo, uma das sedes dos seguidores do monge José Maria e de Maria Rosa, foi cercado pelos militares brasileiros com apoio de tropas locais. O povoado foi bombardeado por canhões e granadas que atingiram principalmente mulheres, crianças e idosos, pois a maior parte dos homens havia partido para formar outro reduto, o de Caraguatá. Como em Canudos, um médico militar deixou o registro da ação do Exército Brasileiro para a história. Seu nome era Cerqueira César, e ele relatou o que viu:
“O estrago da artilharia sobre o povoado de Taquaruçu era tremendo: grande número de cadáveres (…); pernas, braços, cabeças juncavam o chão; casas queimadas ruíam por toda parte. Fazia pavor e pena o espetáculo que então se desdobrava aos olhos do espectador: pavor de destroços humanos; pena das mulheres e crianças que jaziam inertes por todos os cantos do reduto. De nada lhes serviram as trincheiras feitas de pinheiro, nem as 105 cavidades quadradas que fizeram no chão onde se metiam para se abrigarem da metralha.”
Depois de derrotar a rebelião popular, com um saldo estimado em 20 mil mortos, o Exército entregou armas e munições para que as elites locais “terminassem o serviço”.
Menos de 10 anos depois, o Exército bombardeou São Paulo em 1924, no contexto da segunda revolta tenentista. As cenas lembravam as da Primeira Guerra Mundial. Mas era o Exército Brasileiro, sob a Presidência de Bernardes e tendo o mesmo Setembrino de Carvalho do massacre de Contestado como ministro da Guerra, destruindo parcialmente São Paulo no maior conflito bélico urbano da história do Brasil e da América Latina no século 20.
Estima-se em 800 mortos, boa parte civis, pelo menos 1.500 edificações em toda a capital destruídas, o comércio saqueado, os hospitais sem dar conta de tantos feridos.
Bombas contra os herdeiros de Padre Cícero
Em 1937, o Exército Brasileiro encerrou, com outro massacre, uma das mais belas experiências de vida comunitária da história brasileira, na fazenda Caldeirão de Santa Cruz do Deserto. Onze anos antes, o Padre Cícero havia alojado o líder betado João Lourenço e sua comunidade em uma grande fazenda denominada Caldeirão dos Jesuítas, situada no Crato, no Ceará. A base do movimento era o trabalho comunitário inspirado pela religiosidade popular. Era uma sociedade igualitária. Toda a produção do Caldeirão era dividida igualmente, o excedente era vendido e, com o lucro, investia-se em remédios e querosene.
A elite local identificou a iniciativa como uma ameaça a seus negócios, pois os sertanejos de toda região começaram a mudar-se para a fazenda, e denunciaram a experiência como “comunismo”. Em 1937, sem a proteção de Padre Cícero, que falecera em 1934, a comunidade foi massacrada pelo Exército, com ataque de artilharia e bombardeio por aviões. Foram mais de mil mortos, dentre eles centenas de mulheres e crianças. Até hoje o Exército Brasileiro não informa onde enterrou os mortos em vala comum. Todos eram seguidoras e seguidores do beato José Lourenço, que buscavam retomar a tradição cristã original de vida em comunidade.
O massacre dos waimiri atroari
Na ditadura militar, além da mobilização do Exército (com apoio da Aeronáutica e Marinha) nas cidades para prisão, tortura e morte dos opositores, houve os massacres nos campos e especialmente dos povos originários.
Bombardeios em ataques aéreos, chacinas a tiros, esfaqueamentos, decapitações de homens, mulheres e crianças e destruição de locais sagrados foram as ações do Exército Brasileiro contra o povo waimiri atroari a partir de 1974 para a construção da rodovia BR-174 (Manaus-Boa Vista), feita pelos militares. De acordo com a Funai, a população dos waimiri atroari era de 3 mil pessoas em 1972. Em 1983, depois do tratamento dispensado pelo Exército Brasileiro ao povo, apenas 350 haviam sobrevivido aos massacres.
A desfaçatez militar não teve limites em relação ao povo waimiri atroari.
O general de brigada Gentil Paes assinou o seguinte ofício em 1974: “Esse Comando, caso haja visitas dos índios, realiza pequenas demonstrações de força, mostrando aos mesmos os efeitos de uma rajada de metralhadora, de granadas defensivas e da destruição pelo uso de dinamite”.
Já o coronel Arruda, comandante do 6º Batalhão de Engenharia e Construção, disse em 1975 que “a estrada é irreversível como é a integração da Amazônia ao país. A estrada é importante e tem que ser construída, custe o que custar. Não vamos mudar o seu traçado, que seria oneroso para o Batalhão apenas para pacificarmos primeiro os índios. […] Não vamos parar os trabalhos apenas para que a Funai complete a atração dos índios”.
São incontáveis os massacres perpetrados contra o povo brasileiro pelo Exército. Eles são o fio que amarra as contas da história militar no Brasil. A lista acima está longe de esgotar os episódios em que, ao longo da história, os militares massacraram parcelas expressivas do povo brasileiro.
Diante das críticas, os militares levantam rapidamente a bandeira das “tropas brasileiras na II Guerra” para afirmar uma farsesca tradição de luta em defesa do país e da democracia, mas a participação nos campos da Europa contra o nazi-fascismo foi apenas a exceção que confirma a regra. A respeito deste episódio, os militares comportam-se como Bolsonaro o fez com o auxílio emergencial: eram contra e tentam faturar depois que a ação foi bem sucedida. Sobre isso escreve o mestre Roberto Amaral: “Fomos à guerra contra a insistente resistência dos generais Eurico Gaspar Dutra, Ministro do Exército, e do todo poderoso general Góes Monteiro, chefe do estado maior da força, como está fartamente documentado. Aliás, na reunião do ministério 27 de janeiro de 1942) que decidiu pela beligerância, a proposta foi apresentada pelo civil Getúlio Vargas, contra o parecer do ministro da Guerra”.O Exército Brasileiro, como afirmou corretamente o jornalista Luiz Fernando Vianna, sabe muito bem matar brasileiros: homens, mulheres e crianças.