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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

01
Set22

Desaparecidos políticos

Talis Andrade

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Por Michelle Viviane Godinho Corrêa

A partir de 1968, o regime militar encontrou maior resistência a sua continuidade. Manifestações estudantis e operárias, aliadas ao crescimento da luta armada no país, levaram a edição do AI-5 e do início de uma série de prisões que, muitas vezes, levaram ao desaparecimento de centenas de pessoas consideradas um perigo à segurança nacional.

 

O contexto da Guerra Fria e a caça aos comunistas

 

Nos países do bloco capitalista durante a Guerra Fria, a perseguição aos comunistas e simpatizantes ocorreu de norte a sul, como o Macarthismo nos EUA e o fechamento do Partido Comunista do Brasil (PCB) por Gaspar Dutra. Se no dito “Período Democrático” o comunismo foi perseguido, durante a ditadura militar não seria diferente.

Além de cassações de mandatos da oposição e da prisão de estudantes, intelectuais e professores universitários, os militares operaram forte censura aos meios de comunicação, chegando a atentados terroristas contra jornais e revistas de esquerda. Nesse contexto, centenas de brasileiros foram dados como desaparecidos, muitos deles vítimas dos órgãos de repressão da ditadura militar que operavam em nome da Doutrina de Segurança Nacional.

Nesse contexto foram criados ou ressignificados diferentes instituições públicas, tais como o DOPS, o DOI-CODI e o SNI a fim de identificar, interrogar e punir qualquer cidadão considerado subversivo. Mulheres, jovens e idosos também se incluíam nessa categoria e foram vítimas de tortura, desaparecimento forçado e assassinato.

De acordo com o artigo 2º da Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, entende-se o desaparecimento forçado como [...] "a prisão, a detenção, o sequestro ou qualquer outra forma de privação de liberdade que seja perpetrada por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas agindo com a autorização, apoio ou aquiescência do Estado, e a subsequente recusa em admitir a privação de liberdade ou a ocultação do destino ou do paradeiro da pessoa desaparecida, privando-a assim da proteção da lei." (BRASIL, 2016).

 

Comissão da Verdade e desaparecidos do regime militar

 

Criada em 2011, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) concluiu seus trabalhos afirmando que a tortura foi uma política de Estado durante o regime militar e sugeriu que fosse revista a Lei de Anistia para os agentes envolvidos em desaparecimentos forçados durante a ditadura. Além disso, recomendou que lhes fosse exigido ressarcimento aos cofres públicos a fim de pagar as indenizações das vítimas. Sugeriu também a extinção da Lei de Segurança nacional, que reflete o pensamento autoritário do período militar e não condiz com o estado democrático vivido na atualidade.

A CNV identificou cerca de 1843 vítimas de tortura, dentre elas 434 morreram ou desapareceram. Esta cifra compreende 191 pessoas que foram assassinadas, 210 que permaneceram como desaparecidas e 33 que tiveram seus corpos encontrados posteriormente. Dentre os grupos mais atingidos, estiveram estudantes (6%) e membros de guerrilhas revolucionárias - ALN, MR-8, VAR-Palmares e VPR - totalizando 30%.

Provavelmente o número de desaparecidos durante a ditadura é superior ao encontrado pela CNV, entretanto, até o presente, esses são os dados comprovadamente relacionados à atuação dos militares durante a ditadura. De acordo com o relatório da comissão, 377 agentes públicos estiveram envolvidos em atos de desrespeito aos Direitos Humanos entre 1964 e 1985.

Bibliografia:

BRASIL. Decreto nº 8767, de 11 de maio de 2016. Promulga a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, firmada pela República Federativa do Brasil em 6 de fevereiro de 2007. Planalto, Brasília, 2016. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/decreto/D8767.htm>. Acesso em: 7 nov. 2017.

LIMA, Wilson. Em relatório final, Comissão da Verdade pede revisão da anistia a torturadores. Último Segundo, iG, Brasília, 10 dez. 2014. Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2014-12-10/em-relatorio-final-comissao-da-verdade-pede-revisao-da-anistia-a-torturadores.html>. Acesso em: 7 nov. 2017.

LIMA, Wilson. Comissão da Verdade identificou 1,8 mil vítimas de tortura durante a ditadura. Último Segundo, iG, Brasília, 10 dez. 2014. Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2014-12-10/comissao-da-verdade-identificou-18-mil-vitimas-de-tortura-durante-a-ditadura.html>. Acesso em: 7 nov. 2017.

LIMA, Wilson. Comissão da Verdade confirma 434 mortes e desaparecimentos na ditadura. Último Segundo, iG, Brasília, 10 dez. 2014. Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2014-12-10/comissao-da-verdade-confirma-434-mortes-e-desaparecimentos-na-ditadura.html>. Acesso em: 7 nov. 2017.

O subprocurador-geral da República e procurador federal dos Direitos do Cidadão, Carlos Vilhena, enviou nesta quinta-feira (15) ofício à ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Cristiane Britto, no qual manifesta posição contrária à "extinção prematura" da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos.

O Trilhas da Democracia entrevista a historiadora e professora da Universidade do Estado de Minas Gerais, Janaina Teles. Em questão, os mortos e desaparecidos políticos na Ditadura Militar (1964-1985), a Operação Condor e o reconhecimento de Carlos Alberto Brilhante Ustra como torturador pela Justiça de São Paulo, em 2008. Apresentação: Marco Mondaini.

Memória em Postais– Dia Internacional dos Desaparecidos 2016 | Comitê  Internacional da Cruz Vermelha

20
Jul22

Torturadas pela ditadura por não seguirem o exemplo das Mulheres de Atenas

Talis Andrade

Luta, substantivo feminino: mulheres torturadas, desaparecidas... -  9788560814381 - Livros na Amazon Brasil

por José Levino

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Uma ditadura militar foi instalada no Brasil (1964-1985) para impedir a implantação das reformas de base que mudariam a estrutura econômica em vista da construção de uma nação soberana e com um modelo econômico voltado para dentro e preocupado com a melhoria das condições de vida para todo o povo. Claro que o novo modelo feria os interesses dos grandes monopólios estrangeiros e seus aliados internos e que esta foi a causa da instalação do regime ditatorial.

No projeto das reformas de base, nada havia de comunismo. Mas este foi o fantasma levantado para angariar o apoio popular e lançar uma campanha de orações por todo o país, com o apoio de setores das Igrejas Católica e Evangélica, pedindo proteção contra a ameaça vermelha.

Discordou do regime, era comunista e vítima de perseguição. Militava ou apoiava alguma organização política de oposição, estava sujeito à prisão legal ou ilegal, às torturas nas casas da morte clandestinas ou mesmo nos porões da repressão oficial.

A tortura existe desde tempos imemoriais como método de combate aos inimigos ou adversários. Mas, com o tempo, foi se sofisticando para não deixar marcas físicas que pudessem comprovar sua aplicação. Tornou-se “tortura científica”. De modo que, não passa de deboche e vilipêndio a afirmação do presidente Bolsonaro de que aguarda um exame de raios-x da mandíbula da ex-presidente Dilma Rousseff para comprovar a fratura decorrente da tortura.

Capitão reformado do Exército (1973-1988), Bolsonaro sabe muito bem que as corporações militares não faziam exames para analisar os efeitos de suas torturas, as sequelas deixadas nos corpos dos que escaparam. Se bem que as principais marcas ficaram foi na alma. O torturador mais famoso e temido, Sérgio Paranhos Fleury, delegado do Dops de São Paulo, que chegou a ser convocado para prestar “serviços” em todo o país, disse para uma de suas vítimas mais famosas, Frei Tito: “Nós vamos te quebrar por dentro”.  Dito e feito. O frade escapou fisicamente, mas não conseguiu viver com as lembranças terríveis da “sucursal do inferno”, e cometeu suicídio.

Quarenta e cinco mulheres constam da lista de mortos e desaparecidos elaborada pela Comissão Nacional da Verdade. Centenas foram vítimas das torturas. Vinte e sete têm seus depoimentos registrados na publicação LUTA, SUBSTANTIVO FEMININO, editada pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Editora Caros Amigos, São Paulo, 2010. Elas não apresentam raios-x, mas seu testemunho confirmado por companheiras/os presos na mesma época e, em alguns casos, até por torturadores que deram seu depoimento para a Comissão da Verdade, assumiram o crime e disseram que fariam tudo de novo. Outros dizem que o erro foi não eliminar todos os presos políticos.

Todos os depoimentos são muito expressivos, mas vamos destacar neste artigo a síntese de alguns, pois o espaço exige uma amostra, apenas.

 

Aborto no quinto dia de sofrimento

 

IZABEL FÁVERO militava na VAR-Palmares. Professora universitária, foi presa com seu companheiro e sogros em Nova Aurora, cidade do interior paranaense, em 1970. Foram torturados a noite toda na frente uns dos outros. Saquearam a casa e levaram tudo, até a roupa de cama. Transferidos para o Batalhão de Fronteira em Nova Iguaçu, as torturas prosseguiram, executadas pelo capitão Júlio Cerda Mendes e pelo tenente Mário Expedito Otresk, que aplicaram pau de arara e choques elétricos. Sabiam que ela estava grávida, mas isso não significava nada para os torturadores. Abortou no quinto dia de sofrimento. Daí, foram levados para o Dops do Rio de Janeiro, onde a tortura foi praticada por policiais com o emblema do Esquadrão da Morte. Levados de volta para Foz do Iguaçu, depois Porto Alegre (Dops). Izabel escapou, mas ficaram as consequências. Durante anos, não conseguia dormir direito, acordava transpirando, passava noites sem pregar os olhos.

 

“Filho dessa raça não deve nascer”

 

HECILDA FONTELES, professora universitária, também estava grávida quando ocorreu sua prisão em Brasília, no ano de 1971. Sob socos e pontapés, ouvia os agentes dizerem: “Filho dessa raça não deve nascer”. Foi levada para o Pelotão de Investigações Criminais (PIC) e submetida à tortura dos “refletores”, pela qual a pessoa é mantida a noite inteira com uma luz forte no rosto. Conduzida para o Batalhão da Polícia do Exército do Rio de Janeiro, conheceu a Cadeira do Dragão. Trata-se de uma cadeira elétrica semelhante àquelas em que são executadas as sentenças de morte nos EUA, só que o torturador controla o nível dos choques para manter a vítima sob intenso sofrimento, mas viva. Ela conta: “Os fios subiam pelas pernas e eram amarrados nos seios. As sensações eram indescritíveis – calor, frio, asfixia. Além disso, batiam no rosto, no pescoço, nas pernas”. De volta a Brasília, jogaram-na numa cela cheia de baratas que roíam seu corpo; conseguiu tirar o sutiã e encobrir a boca e os ouvidos. Levada para o Hospital de Brasília, sentindo as dores do parto, o médico, irritadíssimo, fez um corte sem anestesia. Apesar das condições, Paulo Fontelles Filho sobreviveu.

 

Pau de arara e estupro

 

GILSE COSENZA era recém-formada em Serviço Social e militava na Ação Popular (AP) quando foi presa, em junho de 1969, em Belo Horizonte. Ficou três meses numa solitária, sendo interrogada sob tortura: choque elétrico, afogamento, pau de arara, espancamento, tortura sexual. Manuseavam o corpo, apagavam ponta de cigarro nos seios. À noite, levaram-na de olhos vendados para um posto policial afastado, numa estrada, onde foi torturada de sete da noite até o amanhecer, sem intervalo. Eles tinham um cassetete cheio de pontinhos que usavam para espancar os pés e as nádegas enquanto estava no pau de arara, de cabeça para baixo. “Quando estava muito arrebentada, um torturador me tirou do pau de arara. Caí no chão. Nessa situação, fui estuprada pelo sargento Leo, da Polícia Militar. Depois, como não dei as informações que queriam, ameaçavam trazer minha filha de quatro meses para ser torturada de formas terríveis na minha frente”.

MARIA DO SOCORRO DIÓGENES, professora, militava no Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Foi presa no Recife, em abril de 1972. Arrancaram toda a sua roupa e a sentaram no chão molhado. Passou por afogamento várias vezes, com a cabeça encapuzada mergulhada numa água suja. O corpo ficou todo preto de tanto ser pisado. Foi colocada várias vezes no pau de arara. Abusavam sexualmente com choques nos seios, na vagina, passavam a mão. Foi torturada diariamente durante um mês. Uma vez simularam sua morte. Arrastaram-na pela madrugada e a colocaram num camburão onde tinha corda, pá, ferramentas. Pararam num lugar esquisito, só para aterrorizar.

JESSIE JANE, professora, foi militante da Ação Libertadora Nacional (ALN). Era estudante secundarista quando foi presa em 1º de julho de 1970, no Rio de Janeiro (RJ). “Minha filha nasceu em setembro de 1976, durante o Governo Geisel. Eu tive de fazer o parto num hospital privado, fiz uma cesariana, sofri muita pressão. Eles diziam que tinha de fazer como na Indonésia: matar os comunistas até a terceira geração para eles não existirem mais. E depois, a entrega da minha filha foi muito difícil. Eu a entreguei para a minha sogra, pois minha família estava toda no exílio. Foi a pior coisa da minha vida, a mais dolorida. A separação de uma criança com três meses é muito dura para uma mãe, é horrível. É uma coisa que nunca se supera. É um buraco. De toda a minha história, essa é a mais dramática. A minha gravidez resultou do primeiro caso de visita íntima do Rio de Janeiro. Meu marido estava preso na Ilha Grande e, quando da passagem do Governo Médici para o Geisel, havia uma reivindicação para que nos encontrássemos. Fazia cinco anos que não nos víamos. Foi nessa conjuntura que eu fiquei grávida. A nossa prisão foi muito violenta. Fomos levados para o DOI-Codi, onde fomos muito torturados. As torturas foram tudo que você pode imaginar. Pau de arara, choque, violência sexual, pancadaria generalizada. Quando chegamos lá, tinha um corredor polonês. Todas as mulheres que passaram por ali sofreram com a coisa sexual. Isso era usado o tempo todo”.

 

INÊS ETIENNE ROMEU era bancária e militava na VPR. Foi presa em maio de 1971, em São Paulo, e levada para a Casa da Morte, em Petrópolis (RJ). Pancadas e choques elétricos marcaram sua recepção. Disseram que não queriam informação alguma, apenas matá-la de forma lenta e cruel, como merecem os terroristas. Foi estuprada. Era obrigada a limpar a cozinha completamente nua, ouvindo gracejos e obscenidades grosseiras. Inês só foi libertada após a Anistia, em 1979 e identificou seis torturadores. Morreu aos 61 anos em seu apartamento, num acidente muito suspeito.

“O objetivo da tortura é esse: vilipendiar você como pessoa, para que seu corpo, sua vontade percam o controle e você se sinta um montão de carne, ossos, merda, dor e medo”, afirmou Lilian Celiberti, uruguaia, militante do Partido da Vitória do Povo (PVP), sequestrada em Porto Alegre, em novembro de 1978.

Constituição Federal de 1988, art. 5º, XLIII: a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”.

 

 

17
Jul22

Presa por Ustra na ditadura, Lúcia Skromov relata tortura física e psicológica

Talis Andrade

 

Presa por Ustra na ditadura, Lúcia Skromov relata tortura física e  psicológica | by eDemocratize | eDemocratize | Medium

Foto: Francisco Toledo/Democratize

 

“Eles usavam ratos, os colocando em uma espécie de funil, posicionando na região do ânus. Pegavam camundongos, pequenos, daqueles recém-nascidos, pra entrar. Imagina o estrago que ele fazia no intestino de uma pessoa”, falou ao Democratize a militante Lúcia Skromov, torturada pelo Coronel Ustra durante a ditadura militar

 

Lúcia Skromov foi presa pela primeira vez durante a ditadura em 1968, quando foi detida em uma passeata e levada para o Departamento de Ordem Política e Social, conhecido também como DOPS. Na época, ela era estudante de letras na USP e militava junto a movimentos estudantis.

Um ano depois, o militar de extrema direita, Emílio Médici, assume a presidência, a censura e a repressão passaram a ser ainda mais endurecidas. Nesse período surge a Operação Bandeirante (OBAN), um centro de informações e investigações que combatia toda e qualquer organização de esquerda. Essa entidade foi financiada por Henning Boilesen, que segundo Lúcia, foi o responsável por trazer técnicas de tortura praticadas por nazistas para o Brasil. Mais tarde, a OBAN ganhou um órgão complementar que pertencia diretamente ao Exército do Brasil, o Destacamento de Operações Internas (DOI-Codi).

A militante comunista fazia parte do sindicato dos bancários, em que lutou pela equiparação de direitos das mulheres dessa categoria.

Lúcia relata que quando o Banco do Brasil e o Banco do Estado passaram a admitir mulheres, elas recebiam um salário menor que o dos homens para exercer as mesmas funções. As mulheres então, passaram a ocupar espaços dentro dos sindicatos, e levantavam as bandeiras pela equiparação de direitos e contra a ditadura. Organizavam ações para panfletar nos bancos e emitiam boletins através do sindicato. Além disso, ela colaborava com núcleos de formação marxista que existiam dentro de fábricas na região do ABC e Diadema.

Isso ocorre em um período em que a repressão e a perseguição contra os militantes de esquerda fica ainda mais acirrada, e em 1973 Lúcia é presa pela segunda vez.

Ela foi detida na região da zona norte de São Paulo com mais três companheiros de luta. Dessa vez, foram levados para o DOI-Codi, que era comandando pelo Coronel Carlos Alberto Ustra, local que ficou conhecido como ‘’a casa dos horrores’’, por ser onde aconteciam inúmeros casos de tortura, dos mais variados tipos e lá permaneceu presa por um mês.

Lúcia conta que nessa época, as prisões já eram imensas, e os agentes torturadores passavam a ganhar recompensas por seus trabalhos. Ela cita Charles Chandler como um oficial do exército dos Estados Unidos que veio ao Brasil para ajudar a implementar novas técnicas de tortura.

‘’Ele [Charles Chandler] veio junto com Boilesen, para fazer com que o interrogatório fosse um método capaz de retirar informações. E não há medidas e nem limites para esse interrogatório’’ — afirma Lúcia.

Embora existam testemunhos de militantes e até de militares, de que Boilesen freqüentava o DOI-Codi para assistir e participar de sessões de tortura, o Coronel Brilhante Ustra sempre negou que isso tenha ocorrido.

 

Presa por Ustra na ditadura, Lúcia Skromov relata tortura física e  psicológica | by eDemocratize | eDemocratize | Medium

Foto: Francisco Toledo/Democratize

 

Há também suspeitas de que Boilesen usava os carros da sua empresa, a Ultragás, para descobrir pontos de encontro de núcleos de esquerda.

’’A Ultragás colocava seus carros de venda estratégicamente em vários lugares da cidade em que eles suspeitavam que haviam pontos de encontro dos movimentos’’ — conta Lúcia.

Chandler e Boilesen foram mortos ainda na época da ditadura por militantes guerrilheiros de esquerda.

‘’Na verdade, a gente não pode nem usar a palavra executar, justiçaram o Boilesen, da mesma forma que justiçaram Chandler.’’ — diz Lúcia sobre as mortes do executivo e do militar que apoiaram o período ditatorial.

Texto por Mariana Lacerda
Reportagem por Mariana Lacerda, Carol Nogueira e Francisco Toledo

 

 

 

 

 

15
Jul22

A brasileira que sequestrou um avião acompanhada de dois filhos pequenos durante a ditadura

Talis Andrade

A saga da guerrilheira que sequestrou um avião para fugir da ditadura  militar brasileiraA saga da guerrilheira que sequestrou um avião para fugir da ditadura  militar brasileiraMarília Guimarães: a brasileira que sequestrou um avião - Mega Curioso

 

 

 

Marília Guimarães tinha apenas 22 anos em 1º de janeiro de 1970, quando adentrou o Aeroporto Internacional de Carrasco, em Montevidéu, determinada a embarcar no voo 114 da Cruzeiro do Sul com destino ao Rio de Janeiro - uma viagem que, ela já sabia, mudaria radicalmente sua vida, para o bem ou para o mal.

Acompanhada dos filhos Marcelo e Eduardo, então com 3 e 2 anos, Marília estava carregada de bolsas com fraldas, mamadeiras e brinquedos, além das bagagens. Por baixo do vestido que trajava, levava ainda, colados ao corpo, seis revólveres.

A jovem professora fazia parte de um grupo de seis guerrilheiros - ou terroristas, como preferia a ditadura militar vigente - de um movimento de esquerda radical contrário ao regime. O objetivo dos seis era sequestrar o avião Caravelle e levá-lo para Cuba, onde Marília e os dois filhos poderiam viver em liberdade.

Há um ano na clandestinidade com as duas crianças pequenas, Marília dormia a cada noite em um lugar diferente para despistar os militares. A captura de uma aeronave era a única saída que ela conseguia vislumbrar para voltar a ter uma vida normal. Naquele momento, a ideia não parecia mais perigosa do que vagar sem rumo com os meninos sob a ameaça constante da prisão e da tortura.

Quando você já está no perigo, tem uma força que nem sabe de onde vem", explica. "É como parir: chegou a hora, vai doer, mas não tem outro jeito."

A bagunça que os meninos faziam no saguão do aeroporto era tanta que acabou concentrando a atenção de policiais e funcionários do aeroporto. O embarque ocorreu sem nenhum problema - na época, não havia detector de metais no terminal de Montevidéu.

"Ironicamente, os policiais estavam tomando conta das crianças", lembra Marília.

Além dela e das duas crianças, embarcaram Cláudio Galeno de Magalhães Linhares, o primeiro marido da ex-presidente Dilma Rousseff, James Allen da Luz, o comandante da ação, Athos Magno Costa e Silva, Isolde Sommer e Luiz Alberto da Silva.

Enquanto os passageiros ajeitavam as bagagens e se sentavam, Marília distribuiu as armas entre os companheiros. Assim que o avião levantou voo, o sequestro foi anunciado. "Vamos para Cuba", asseverou James, lendo, em seguida, um manifesto político, em que explicava os motivos da ação.

O que os guerrilheiros não sabiam era que aquela aeronave estava com uma turbina defeituosa e só tinha autonomia de combustível para duas horas de voo, o que complicaria muito os planos de pousar na ilha de Fidel Castro ainda naquele dia. Leia mais. Reportagem de Roberta JansenMarília Guimarães lança livro sobre clandestinidade, sequestro e exílio

Aos 71 anos, Galeno vive na Nicarágua, com a segunda mulher, Mayra, e as filhas Iara e Anna

Os fichados do Dops: primeiro marido da presidente Dilma participou de sequestro de avião

Reportagem de Zero Hora traz à tona 4,6 mil fichas de "coleta e processamento de informações" do Dops gaúcho, papéis que hoje estão sob a guarda do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Nessa parte da reportagem, veja histórias de políticos e militantes de oposição que aparecem no acervo.

Uma das mulheres mais poderosas do planeta hoje, a presidente Dilma Rousseff não mereceu mais do que cinco linhas nos arquivos do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) gaúcho. Foi um mero apontamento em 14 de março de 1969 na ficha nº 25, classificando Dilma como comunista e trotskista.

Ela não tinha atividade subversiva no Rio Grande do Sul, e a informação parece servir mais como um alerta. Mas o documento inclui uma observação adicional (que não faz parte da biografia oficial da presidente no site do Planalto): "É esposa de Cláudio Galeno de Magalhães Linhares". O fichado nº 24.

O cadastro de Galeno contém apenas três tópicos datados de março de 1969, dezembro de 1971 e junho de 1972. Um precário resumo da trajetória do homem que, além de influenciar a formação político-ideológica de Dilma, foi protagonista de uma das mais ousadas ações da esquerda armada na América Latina: o sequestro de um avião brasileiro levado do Uruguai para Cuba.

- Estou surpreso com essa ficha. Foi feita para encher linguiça, fabricada para efeitos de divulgação. Seguramente, queimaram os arquivos verdadeiros. Em 1971, eu estava no Chile e foi registrado que estava no Brasil - recorda Galeno, 71 anos, por telefone, da Nicarágua, onde vive com a segunda mulher, Mayra, e as filhas.

Conhecido pelo codinome Lobato, Galeno, mineiro de Ferros, um estudante de sociologia, repórter de jornal, ex-preso político, vivia em Porto Alegre no final dos anos 1960. Caçado por militares depois da prisão de companheiros da Colina (Comando de Libertação Nacional), Galeno e Dilma foram obrigados a sumir de Belo Horizonte. Desmancharam um casamento de dois anos registrado em cartório e celebrado com festa. Leia mais.

Em site, veja especial multimídia e faça pesquisas nas fichas do Dops

 

13
Jul22

De novo, o tumor Bolsonaro

Talis Andrade

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por Cristina Serra

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A morte a tiros do guarda municipal Marcelo de Arruda, em Foz do Iguaçu, evidencia o quanto a violência associada à campanha eleitoral já está disseminada e tende a piorar. Mas o assassinato do militante petista pelo bolsonarista Jorge José Guaranho não é o primeiro ato de violência política neste Brasil inoculado pelo vírus da brutalidade.

É preciso recuar no tempo. O marco zero do ciclo de barbárie é 14 de março de 2018, com o assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, quando o Rio de Janeiro estava, havia um mês, submetido à intervenção federal na segurança pública, algo inédito desde a Constituição de 1988.

A operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) fora decretada por Michel Temer, diante do que considerou o colapso das polícias no Rio. Temer nomeou como interventor o então comandante Militar do Leste, Braga Netto. Como se sabe, a GLO não resolveu o problema da criminalidade no Rio (que surpresa!). Bolsonaro foi eleito, Braga Netto tornou-se seu ministro e agora pode ser o vice na chapa do chefe. Até hoje, não se sabe quem mandou matar Marielle.

Outro momento de paroxismo de violência em 2018 foi a facada em Bolsonaro. Nem o fato de ter sido vítima de um atentado arrefeceu sua retórica do ódio, reiterada ao longo da campanha (“vamos fuzilar a petralhada”, “vai tudo vocês pra ponta da praia” etc) e potencializada por meio de ações concretas de seu governo.

A inundação de armas na sociedade, a multiplicação dos clubes de tiro, o salvo-conduto para milícias, as operações policiais que afrontam o STF e promovem banhos de sangue em bairros pobres incorporam a selvageria no cotidiano e nos trazem até aqui.

Em agosto de 2020, escrevi que Bolsonaro foi assimilado pelas instituições e pela imprensa como ator político natural da democracia assim como um corpo doente se acostuma a hospedar um tumor. Eis aonde chegamos. Agora, o tumor está perto, muito perto, de explodir.

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06
Jul22

Tortura durante a ditadura, relato de IZABEL FÁVERO

Talis Andrade

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Eram mais ou menos 2 horas da manhã quando chegaram à fazenda dos meus sogros em Nova Aurora. A cidade era pequena e foi tomada pelo Exército. Mobilizaram cerca de setecentos homens para a operação. Eu, meu companheiro e os pais dele fomos torturados a noite toda ali, um na frente do outro. Era muito choque elétrico. Fomos literalmente saqueados. Levaram tudo o que tínhamos: as economias do meu sogro, a roupa de cama e até o meu enxoval. No dia seguinte, fomos transferidos para o Batalhão de Fronteira de Foz do Iguaçu, onde eu e meu companheiro fomos torturados pelo capitão Júlio Cerdá Mendes e pelo tenente Mário Expedito Ostrovski. Foi pau de arara, choques elétricos, jogo de empurrar e, no meu caso, ameaças de estupro. Dias depois, chegaram dois caras do Dops do Rio, que exibiam um emblema do Esquadrão da Morte na roupa, para ‘ajudar’ no interrogatório. Eu ficava horas numa sala, entre perguntas e tortura física. Dia e noite. Eu estava grávida de dois meses, e eles estavam sabendo. No quinto dia, depois de muito choque, pau de arara, ameaça de estupro e insultos, eu abortei. Depois disso, me colocaram num quarto fechado, fiquei incomunicável. Durante os dias em que fi quei muito mal, fui cuidada e medicada por uma senhora chamada Olga. Quando comecei a melhorar, voltaram a me torturar. Nesse período todo, eu fui insultadíssima, a agressão moral era permanente. Durante a noite, era um pânico quando eles vinham anunciar que era hora da tortura. Quando você começava a se recompor, eles iniciavam a tortura de novo, principalmente depois que chegaram os caras do Dops. Durante anos, eu tive insônia, acordava durante a noite transpirando. De Foz, fomos levados para o Dops de Porto Alegre, onde houve outras sessões de tortura, um na frente do outro. Depois, fomos levados de volta para Curitiba, onde fiquei na penitenciária de Piraquara. Quando finalmente fui para a prisão domiciliar, que durou quatro meses, eu sofri muito, fui muito perseguida e ameaçada. Recebia telefonemas anônimos, passava noites sem dormir.

 


IZABEL FÁVERO, ex-militante da VAR-Palmares, era professora quando foi presa em 5 de maio de 1970, em Nova Aurora (PR). Hoje, vive no Recife (PE), onde é professora de Administração da Faculdade Santa Catarina.

31
Mar22

Atrevimento das cúpulas militares com ordem do dia é consequência da impunidade

Talis Andrade

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por Jeferson Miola 

A existência da ordem do dia cretina, alusiva ao golpe de 1964, é consequência direta da impunidade concedida pelo poder civil aos terroristas de Estado que depois de derrubarem por meio de um golpe armado o governo de João Goulart, perseguiram, torturaram e assassinaram os próprios brasileiros.

As cúpulas militares partidarizaram e milicianizaram as Forças Armadas. Os atuais comandantes são o subproduto dos porões mais fétidos da ditadura.

Usufruindo da impunidade que lhes foi erroneamente concedida pela sociedade civil, ao longo desses últimos 30 anos de débil rotina democrática eles agiram secretamente como cupins que devoram a madeira. Infestaram as instituições de Estado, corroeram a democracia para debilitá-la e, assim, conseguirem golpeá-la novamente – desta vez, porém, com a falsa aparência de legalidade.

Os comandantes militares que assinaram a ordem do dia alusiva ao golpe de 1964 representam a renovação geracional da tradição mais anti-profissional, mais conspirativa e golpista da história das Forças Armadas.

Eles são herdeiros da facção que não aceitava nem mesmo a “transição lenta, gradual e segura” do ditador Geisel.– aquele bando que queria a continuidade da ditadura; queria um projeto não só duradouro, mas permanente de poder militar no país.

Mesmo com o fim da ditadura estes conspiradores nunca deixaram de se organizar secretamente e nunca deixaram de atuar politicamente. Infestaram, parasitaram e apodreceram as instituições de Estado, como hoje se percebe de maneira cristalina.

Eles perderam totalmente a confiança e o respeito. As Forças Armadas, comandadas por esta gente, já não podem ser consideradas como instituições de Estado, porque agem como milícias oficiais fardadas que consideram como inimigo o próprio povo brasileiro. Mas, na realidade, são eles mesmos os maiores inimigos da sociedade brasileira e a grande ameaça ao pouco que ainda resta de democracia no Brasil.

A diferença entre essas milícias oficiais e as milícias paramilitares bolsonaristas é que as segundas [ainda] não ganham salários, mordomias e aposentadorias vitalícias pagas pelo Estado. Já as primeiras consomem todo ano mais de R$ 110 bilhões do orçamento público para bancar suas regalias e para financiar seu projeto de poder anti-soberania e anti-povo.

O atrevimento das cúpulas militares com a ordem do dia que considera o 31 de março de 1964 como um “movimento”; “um marco histórico da evolução política brasileira [que] refletiu os anseios e as aspirações da população da época” é o filho bastardo da impunidade.

O Brasil deveria seguir o caminho da Argentina, onde ditadores assassinos foram processados, condenados e alguns pagaram pelos seus crimes e pelo terror de Estado até o último dia da vida na prisão.

Basta de impunidade. Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça!Image

27
Mar22

Morre um torturador: encoberto pela mídia, isento pela Justiça, condenado pela História

Talis Andrade

BESTAS=FERAS. A santíssima trindade da tortura na ditadura de 1964 – Morreu Pedro Seelig:  como o coronel Brilhante Ustra e o delegado Fleury, todos impunes
 

 

Durante os anos mais turbulentos da ditadura militar de 1964, Seelig resumia na sua figura de delegado mais temido do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) o estágio supremo de violência e bestialidade

02
Set21

Dermi Azevedo, uma vida dedicada à justiça e dignidade

Talis Andrade

 

"Muita gente ainda acha que não houve ditadura nem tortura no Brasil”

Morreu nesta quarta combativo jornalista e cientista político, ligado à defesa dos Direitos Humanos. Exemplo de resistência, ele viu o horror da ditadura: preso e torturado, teve filho de um ano também sadicamente seviciado pelos militares

21
Jan21

Militares, crimes e a tentação autoritária

Talis Andrade

Por Roberto Amaral

O general comandante do exército não gostou do artigo “Na pandemia, exército volta a matar brasileiros”, de Luiz Fernando Viana, (Época. 17.1.2021) e mandou o general chefe do centro de comunicação social do exército responder à revista. O subordinado cumpre à risca o mandato do chefe, e, no melhor (embora canhestro) estilo do velho e expurgado florianismo, ou lembrando os tempos do grotesco marechal Hermes da Fonseca, mais que defender a corporação, supostamente injuriada, desanca o jornalista acusado de blasfêmia e tenta intimidar a revista, ou seja, investe contra a liberdade de imprensa: 

“(...) O Exército Brasileiro exige imediata e explícita retratação dessa publicação, de modo a que a Revista Época afaste qualquer desconfiança de cumplicidade com a conduta repugnante do autor e de haver-se transformado em mero panfleto tendencioso e inconsequente”. 
 
O segundo general, por força do hábito, certamente, se expressa como se estivesse dando ordem a um subordinado. Ora, senhor, não existe "imediata retratação" na democracia: o general comandante que busque na Justiça uma possível reparação, nos termos da lei, como qualquer cidadão pode buscar.
 
Agora, conjecturemos. E se a revista não for acometida de medo e pusilanimidade, que farão os dois generais? Se tal é a pena que pesa como espada de Dâmocles sobre o periódico, que estará reservado ao articulista? Fosse nos idos do Estado Novo, ditadura imposta ao país pelas tropas do ministro da guerra, general Eurico Gaspar Dutra, os militares fechariam a revista e o coronel Filinto Muller prenderia o jornalista nas enxovias do DOPS no Rio de Janeiro. Nos idos da ditadura de 1964, os fardados cassariam os direitos políticos do articulista e o confinariam em Fernando de Noronha, como fizeram com Hélio Fernandes. 
 
Mas que fazer agora, quando o regime ainda é o democrático e constitucional? Ameaçam a livre expressão de pensamento, princípio das democracias ocidentais incorporado à nossa ordem constitucional como direito fundamental desde o primeiro texto republicano. Renunciam ao direito de resposta, que implica a contestação do articulado, e ingressam no campo fácil das ameaças e da intimidação, artifício aliás muito cômodo, embora cediço, para quem pode usar a espada como último argumento.

Em síntese: além de arrogantes, os dois generais atentam contra a Constituição o que constitui crime, pelo qual devem ser representados pelo Ministério Público.

Mas o texto dos generais, ademais de não responder ao artigo indigitado, repito, encerra uma série de imprecisões, ou inverdades, que, de tanto serem repetidas, tomam foros de verdade. Comento algumas delas. Não é certo, por exemplo, que devemos nossa unidade territorial aos militares. A expansão é obra de mamelucos, negros escravizados, índios, e da ação genocida de bandeirantes saídos de São Paulo, mas saídos também da Bahia, de Pernambuco, do Maranhão, do Pará e do Amazonas. Segue-se o povoamento do sertão, obra do povo, a que se reporta Capistrano de Abreu. A integridade territorial, por outro lado, foi obra de nordestinos, na colônia, e de gaúchos na colônia e no império em guerras que consumiram milhares de vidas. No Império foi obra da Regência, confirmada e consolidada na república pela diplomacia do Barão do Rio Branco.
  
É verdade que nossos soldados foram para os campos da Itália, já ao final da guerra (1944), combater as tropas do Eixo, mas é igualmente verdade que fomos à guerra contra a insistente resistência dos generais Eurico Gaspar Dutra, Ministro do Exército, e do todo poderoso general Góes Monteiro, chefe do estado maior da força, como está fartamente documentado. Aliás, na reunião do ministério (27 de janeiro de 1942) que decidiu pela beligerância, a proposta foi apresentada pelo civil Getúlio Vargas, contra o parecer do ministro da Guerra. 
  
De outra parte, há certas e incômodas verdades que os generais não comentam, como a “guerra do Desterro”(1894) e o “ajuste de contas” do sanguinário coronel Moreira César, como não têm uma só palavra sobre o covarde massacre dos beatos de Antônio Conselheiro, para proteger os interesses dos latifundiários da Bahia. Ainda na República, em 1937, lembro o bombardeio do Caldeirão, no Ceará, contra os camponeses do beato Lourenço, evento esquecido à direta e à esquerda. Não sei se a marinha registra com orgulho a Revolta da Chibata, de 1916. 

Estamos falando em fatos recentes, republicanos. Mas não foi diverso o papel do exército no império, sufocando, à custa de muito sangue, as tentativas de independência e republicanismo que caracterizaram, por exemplo a Confederação do Equador (1824), esmagada, como a Revolução Praieira (1849), com a mesma fúria que antes se abatera sobre a Revolução pernambucana de 1817 e que terminou com o fuzilamento do Frei Joaquim do Amor Divino Rabelo, que passou à história como Frei Caneca e hoje é pranteado como santo e herói.

O articulista da Época a ele não se refere, mas a historiografia séria desqualifica qualquer entusiasmo cívico diante de nosso papel na guerra do Paraguai.

Os militares sustentaram, até a exaustão, em nome dos grandes proprietários, dois impérios, cujas bases radicavam no escravismo e na estagnação, uma das raízes do atraso de hoje. Preferiram, sempre, um país tacanho, de analfabetos e mal alimentados, de deserdados da terra, a tocar nos privilégios da classe dominante, sejam os velhos latifundiários do Império, sejam os grandes fazendeiros da primeira república, seja o empresariado rentista, improdutivo, de nossos dias.
 
O progresso é visto como ameaça, pois pode desestabilizar o statu quo do mando secular.

E os militares brasileiros, a quem a nação deve outros serviços, jamais se notabilizaram na defesa da democracia. Na República a golpearam insistentemente desde as ditaduras dos marechais Deodoro da Fonseca (1889-1891) e Floriano Peixoto (1891-1894) até hoje. Vide o golpe de 1937, arquitetado por Góes Monteiro e operado por Eurico Dutra; o golpe de 1954 operado pelas três forças e que teve no general Juarez Távora um de seus comandantes, a tentativa de golpe contra as eleições de 1955 (que teve entre seus líderes o general Canrobert Pereira da Costa e o brigadeiro Eduardo Gomes); a intentona de 1961, encabeçada pelos três ministros militares e o chefe do estado maior do exército, general Cordeiro de Farias; o golpe de 1964, que nos legou 20 anos de ditadura, com seu rol de cassações de direitos políticos, prisões, torturas e assassinatos, muitos levados a cabo em dependências militares, como o assassinato de Mário Alves Alves de Souza Vieira, no quartel da polícia do exército no Rio de Janeiro, e de Stuart Angel, na base aérea do Galeão.

Sempre na defesa da ordem (pleiteada por todos os privilegiados), dos interesses da grande propriedade da terra, da burguesia e do capital internacional, contra a emergência dos interesses populares, travando o processo histórico. 

O fato é este: até hoje não se fizeram as reformas necessárias para transformar a nação em país soberano, como a reforma agrária pedida desde o primeiro império por José Bonifácio. Aliás, por defender “reformas de base” um presidente da República foi deposto e implantada, pelos militares, uma ditadura, pesadelo que ainda nos assombra.

As democracias não falecem por doença congênita. Jovens ou maduras elas são assassinadas, e só há uma arma capaz de atingi-las mortalmente: a espada, seja empunhada por uma sedição, seja por um golpe de Estado. No Brasil e no mundo o golpe de Estado é a forma que as forças dominantes dispõem para chegar ao poder evitando os percalços de eleições. Ele ou é dado diretamente pelas forças armadas, ou é levado a cabo com seu assentimento cúmplice. Mas em qualquer hipótese nenhum golpe de Estado se sustenta sem o poder militar. No Brasil ele foi agente de todos os golpes de Estado levados a cabo com sucesso. E foi ele que abriu caminho para a aventura do capitão insidioso, e hoje lhe dá proteção. 
 
Os militares, portanto, na medida em que sustentam e participam do comando do governo, até mesmo (e com escandalosa inépcia) na administração da saúde (onde pontifica a estultice de um general da ativa), estão solidários com todos os seus erros e crimes, inclusive os de lesa-pátria, como a política externa que nos transforma em aliados subalternos do império do Norte e seus interesses.
  
Dessa obviedade histórica não podem fugir. Resta-nos supor que as forças armadas ainda conservem – porque nem todos os generais estão ocupando sinecuras no governo – capacidade de reflexão e, antes que seja irremediavelmente tarde, revejam o papel que estão cumprindo, contra a história que pretendem representar, contra os interesses do país e de seu povo, contra a vida e a esperança. 

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