No segundo episódio da segunda temporada do podcast “UOL Investiga”, a jornalista Juliana Dal Piva retrata duas visitas na cadeia do presidente Jair Bolsonaro (PL-RJ) e de seu filho mais velho, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), ao ex-capitão do Bope Adriano Nóbrega, entre 2004 e 2005, enquanto este estava preso sob a acusação de assassinato. Em 2019, Nóbrega foi apontado como líder de um grupo de matadores de aluguel chamado Escritório do Crime e foi denunciado por participar de uma milícia em Rio das Pedras (RJ). “UOL Investiga - Polícia Bandida e o Clã Bolsonaro” fala da relação da família Bolsonaro com agentes das forças de segurança que se tornaram milicianos e usaram seu treinamento para cometer crimes. Traz ainda detalhes da relação da família Bolsonaro com Adriano Nóbrega, ex-policial militar morto em 2020 e apontado como chefe de assassinos de aluguel –Jair e Flávio inclusive fizeram visitas ao ex-capitão na prisão. Esta temporada tem também a história completa do roubo de uma moto do presidente em 1995, crime que mobilizou parte da polícia do Rio e simboliza vários problemas da segurança pública.
Bolsonaro visitou o miliciano Adriano Nóbrega na prisão em 2004 e 2005
por Juliana Dal Piva e Elenilce Bottari /UOL
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O presidenteJair Bolsonaro(PL-RJ) e seu filho mais velho, o senadorFlávio Bolsonaro(PL-RJ), fizeram, ao menos, duas visitas ao ex-capitão do Bope Adriano Nóbrega entre 2004 e 2005.
Nóbrega foi apontado pelo MP-RJ (Ministério Público do Rio), em 2019, como líder de um grupo de matadores de aluguel chamado de Escritório do Crime e também denunciado por participar de uma milícia em Rio das Pedras, na zona oeste do Rio.
As histórias dessas visitas foram reveladas no episódio dois dopodcast"UOL Investiga: Polícia Bandida e o Clã Bolsonaro", que estreou nesta sexta-feira (23). No mesmo episódio, está um registro raro e inédito da voz de Nóbrega, obtido com exclusividade pela coluna.
Questionados sobre os dois episódios das visitas na cadeia, a assessoria do presidente e do senador disseram, por nota, que "à época das homenagens era impossível prever que alguns desses policiais pudessem desonrar a farda" e, ainda, que no caso do motim "trabalharam para resolver uma crise". Veja a nota na íntegra no final.
A primeira visita relatada à coluna ocorreu durante um suposto motim de policiais que estavam presos no recém-criado Batalhão Especial Prisional (BEP), em 28 de outubro de 2004.
Já a segunda foi por ocasião da entrega da medalha Tiradentes, a maior comenda do estado do Rio, pedida por Flávio Bolsonaro na Alerj (Assembleia Legislativa do Rio) e entregue por ele a Adriano Nóbrega dentro da prisão. Jair Bolsonaro também esteve presente na cerimônia.
Sobre o episódio de 2004, a coluna ouviu duas pessoas que testemunharam a rebelião no presídio. Uma delas pediu anonimato, mas o sociólogo Paulo Baía, que também esteve lá, concordou em gravar entrevista. Ele foi subsecretário de Direitos Humanos do governo do Rio de 2003 a 2005.
Na época, os policiais reclamavam da criação do BEP em Benfica, onde também estavam presos outros acusados pelos mais diversos crimes e que não eram policiais.
Antes da criação do BEP, os policiais ficavam custodiados na carceragem do Batalhão de Choque (ou em suas unidades de origem) e o comando da polícia avaliava que aquele não era um local adequado para prisão dos policiais porque faltava estrutura para um efetivo controle dos presos, o que permitia que, mesmo presos, esses policiais continuassem gozando de regalias.
Em 2004, Adriano Nóbrega estava preso aguardando julgamento pela morte do guardador de carros Leandro dos Santos Silva, ocorrida em novembro de 2003. Ele e um grupo de policiais foram presos em flagrante acusados de executar Silva, que, dias antes, tinha denunciado um episódio de tortura e extorsão liderado por Nóbrega.
Na carceragem do Choque, enquanto o ex-caveira aguardava julgamento, a então mulher dele, Danielle Nóbrega, chegou a passar algumas noites com ele sem autorização legal, o que rendeu a Nóbrega uma sindicância interna. Rodrigo Pimentel, ex-instrutor de Nóbrega no Bope, recebeu telefonemas do antigo aluno de dentro da carceragem.
No entanto, a transferência dos policiais para o BEP gerou revolta. Os PMs se queixavam que em Benfica estavam no mesmo local onde ficavam presos alguns supostos criminosos que eles tinham ajudado a capturar. Por causa disso, teria se iniciado a rebelião.
O sociólogo Paulo Baía recorda que foi despertado no início da manhã do primeiro dia da rebelião por um telefonema do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, à época, em seu primeiro mandato na Alerj. "Ele falou assim: 'Está havendo uma rebelião e nós fomos acionados e eles estão querendo alguém dos direitos humanos'", conta Baía.
O sociólogo disse que, em seguida, acionou sua equipe e soube que todos também tinham recebido ligações de Flávio nas primeiras horas da manhã. Na sequência, Baía e a equipe foram ao BEP, que ficava na Casa de Custódia de Benfica, na zona norte do Rio.
Baía conta que, ao chegar lá, Flávio e Jair Bolsonaro já estavam no local. "Eu já acompanhei amotinados em várias situações, e a situação de amotinados, os amotinados usam escudos humanos, crianças, mulheres, reféns, para se proteger. Eu nunca vi amotinados de peito aberto, sem uma proteção fora disso".
"Quando eu cheguei no presídio, já estavam lá, o deputado Flávio Bolsonaro e o deputado Jair Bolsonaro. Eu conversei com os dois, mais com o Flávio do que com o Jair, o Flávio era deputado estadual e nós tínhamos uma relação grande porque o Flávio acompanhava os inquéritos", conta.
Baía diz que, durante as negociações, Flávio conversou com Adriano Nóbrega. "O principal interlocutor do Flávio Bolsonaro era o Adriano. E aí eu procurei saber quem é esse rapaz aí que fala com o Flávio?", afirma o sociólogo.
Além disso, segundo Baía, os presos estavam comcelulares dentro da cadeia. "Todos com celulares. Eu não posso afirmar, seria leviandade da minha parte, que eles falaram com Jair Bolsonaro, porque o Jair Bolsonaro foi muito discreto. Ele ficou lá, mas ficou na dele", diz.
"Conversou com o comandante da unidade ao lado dos Bombeiros, ele ficou conversando. Chegaram mais dois oficiais da PM, capitães ou tenentes, e conversaram com ele, mas ele não entrou nas celas de negociação, o Flávio entrou, até porque o Flávio tinha uma função institucional. Ele era deputado estadual e era da comissão de controle", conta Baía.
Na opinião do sociólogo, o episódio foi montado. "Eu quero frisar que esta rebelião é uma falsa rebelião, é um circo armado para projetar Flávio Bolsonaro".
Adriano Nóbrega morreu em uma operação policial na Bahia, em fevereiro de 2020, após passar um ano como foragido da Justiça. Ele foi denunciado na Operação Intocáveis pelo MP-RJ (Ministério Público do Rio).
Outro general chegou a afirmar que o crime foi planejado por quem via em Marielle “uma ameaça a negócios de grilagem de terras na Zona Oeste do Rio”, ramo e local onde, segundo o MP, Flavio Bolsonaro investia com dinheiro de rachadinha.
Nesta segunda-feira, 14 de março, completam-se quatro anos dos assassinatos da vereadora carioca Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, sem que os mandantes do crime tenham sido identificados. Mas, na verdade, parece que os mandantes do crime foram identificados há tempos, por dois homens, dois generais. Um é o mais forte cotado para ser candidato a vice-presidente da República na chapa de Jair Bolsonaro. O nome do outro desponta como eventual substituto do general Paulo Sergio no comando do Exército Brasileiro.
Aos fatos:
Outra efeméride de março é que o general Walter Souza Braga Netto completará no fim do mês um ano à frente do Ministério da Defesa, após ocupar a chefia da Casa Civil do governo Bolsonaro na volta anterior que a Terra deu em torno do Sol. No dia 30 de março do ano passado, Braga Netto rendeu o também general do Exército Fernando Azevedo e Silva no comando da Defesa. Esta não foi a primeira vez, porém, que Walter Braga Netto rendeu Fernando Azevedo e Silva.
Em setembro de 2016, apenas 23 dias após o Senado cassar o mandato de Dilma Rousseff, o então titular da pasta, Raul Jungmann, empossou Braga Netto na chefia do Comando Militar do Leste. Na ocasião, Braga Netto sucedeu justamente a Azevedo e Silva, que tinha assumido a gestão do CML em março de 2015, no meio da intervenção do Exército no complexo de favelas da Maré, na Zona Norte do Rio.
Em fevereiro de 2018, Michel Temer nomeou Braga Netto chefe da intervenção do Exército no Rio de Janeiro. Ao longo de 10 meses, Braga Netto foi o governador de fato do estado, mas não tinha completado ainda um mês de “mandato” quando Marielle Franco, cria da Maré, foi assassinada no Estácio. Neste meio tempo, Marielle bateu-se fortemente contra a intervenção, e bateu fortemente em Braga Netto: (No texto original no blog ComeAnanás a mensagem no Twitter foi apagada)
Poucos irão se lembrar, mas Jair Bolsonaro, curiosamente, também: (Idem a mensagem do presidente também não aparece).
Se a intervenção no Rio de Janeiro foi “um laboratório para o Brasil”, a intervenção na Maré havia sido um laboratório para a intervenção no Rio de Janeiro. Dois militares que tinham participado da intervenção na Maré foram nomeados por Braga Netto para postos-chave da intervenção federal no Rio: o general Richard Fernandez Nunes, que virou secretário estadual de Segurança, e o general Mauro Sinott Lopes, feito coordenador do grupo de trabalho da intervenção.
Hoje, Mauro Sinnott Lopes comanda a 3ª Divisão de Exército, o maior poder de combate da Força Terrestre, baseado em Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Já o general Richard Nunes atualmente é o Comandante Militar do Nordeste, depois de ocupar durante dois anos e meio a chefia do Centro de Comunicação Social do Exército.
Richard Nunes, quando ainda era secretário de Segurança da intervenção, disse que o caso Marielle estava prestes a ser elucidado: “é um crime que tem a ver com a atuação política e a contrariedade de alguns interesses. Se a milícia não está a mando, está na execução. Provavelmente [tem político envolvido]”.
‘Acharam, de repente…’
Quando foi rendido por Walter Braga Netto na Defesa, Fernando Azevedo e Silva saiu do governo não exatamente atirando, mas pontuando um tanto enigmaticamente que enquanto ministro de Bolsonaro logrou malabares de preservar as Forças Armadas como instituições de Estado.
Em janeiro de 2019, logo após o fim da intervenção, o general Braga Netto também deu uma de esfíngico numa entrevista dada à revista Veja logo após o fim da intervenção militar no Rio de Janeiro, por ele chefiada e em cuja vigência Marielle foi executada com quatro balaços na cabeça disparados por um miliciano e vizinho de Jair Bolsonaro em um condomínio na Barra da Tijuca.
Em uma entrevista à revista Veja, quando perguntado sobre o motivo do assassinato de Marielle, se o crime teria sido uma tentativa de desmoralizar a intervenção, Braga Netto afirmou que não, e emendou: “aquilo [o assassinato] foi uma má avaliação deles. Avaliaram mal, acharam que ela é um perigo maior do que o que ela era”.
“Um perigo para quem?”, perguntou, estupefato, o repórter Leandro Resende, da Veja.
“Não vou entrar nesse mérito”, respondeu Braga Netto, para em seguida entrar em contradição, dizendo algo sobre que “acharam, de repente, que o estado, por estar sob intervenção, tinha desorganizado as polícias”…
Não tem grilo?
Já o ex-braço direito de Braga Netto na intervenção, general Richard Nunes, disse ainda em 2018, além de afirmar que o assassinato de Marielle provavelmente tinha envolvimento de políticos, que o crime vinha sendo planejado desde 2017 por gente que via na vereadora “uma ameaça a negócios de grilagem de terras na Zona Oeste do Rio”.
Entre 2016 e 2017, período de salto na evolução patrimonial do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, a mãe e a esposa do ex-capitão do Bope Adriano da Nóbrega, então chefe de uma milícia da Zona Oeste, na favela de Rio das Pedras, ocupavam cargos comissionados no gabinete de Flavio na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj).
Quando Adriano foi morto pela polícia da Bahia, em 2020, no sítio de um vereador bolsonarista e com pinta de queima de arquivo, o miliciano estava sendo procurado pelos crimes de receptação de mercadorias roubadas, cobrança irregular de taxas à população e grilagem de terras.
Em janeiro de 2019, logo após o fim da intervenção e quando saia a inacreditável entrevista de Braga Netto na Veja, o major da Polícia Militar Ronald Pereira foi preso por participação no assassinato de Marielle Franco. Ronald já vinha sendo investigado por crimes como agiotagem e, sempre, grilagem de terras. Ele era apontado como o chefe da milícia de outra favela da Zona Oeste do Rio, a da Muzema, onde são pujantes e notórios os empreendimentos da máfia no ramo imobiliário.
Entre 2003 e 2004, tanto Adriano da Nóbrega quando Ronald Pereira foram homenageados na Alerj – um com a Medalha Tiradentes, outro com moção honrosa – por recomendação de Flavio Bolsonaro.
Em abril de 2020, o Intercept Brasil publicou informações sigilosas de um inquérito do Ministério Público do Rio de Janeiro segundo as quais Flavio Bolsonaro lucrou com a construção ilegal de prédios erguidos pela milícia em áreas griladas nas favelas de Rio das Pedras e Muzema e financiados com dinheiro das rachadinhas de Flavio na Alerj, em esquema que era gerenciado por Fabricio Queiroz e que envolvia Adriano da Nóbrega e Ronald Pereira.
Segundo a investigação do MPRJ à qual a reportagem do Intercept teve acesso, parte do confisco de em média 40% dos salários dos servidores lotados no gabinete de Flavio Bolsonaro – a rachadinha – era repassada para Adriano da Nóbrega aplicar, digamos, em real state: “o lucro com a construção e venda dos prédios seria dividido com Flávio Bolsonaro, segundo as investigações, por ser o financiador do esquema usando dinheiro público”.
A descoberta do esquema de construção irregular em terrenos grilados e irrigado com dinheiro da rachadinha de Flavio Bolsonaro foi feita precisamente em meio aos desdobramentos das investigações sobre os assassinatos de Mariele Franco e Anderson Gomes.
Diz o Intercept:
“A ligação do ex-capitão com as pequenas empreiteiras envolvidas no boom da verticalização em Rio das Pedras e Muzema foi levantada em meio à investigação sobre as execuções da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, na noite de 14 de março de 2018. Foi a partir das quebras de sigilos telefônicos e telemáticos dos integrantes do Escritório do Crime que os promotores descobriram que o grupo paramilitar havia evoluído da grilagem de terras à construção civil, erguendo prédios irregulares na região e, assim, multiplicando seus lucros”.
Ainda segundo o Intercept, a famosa frase “O MP está preparando uma pica do tamanho de um cometa para empurrar na gente”, dita em 2019 por Queiroz em uma conversa de Whatsapp com um interlocutor não identificado, seria uma referência justamente à investigação sobre o uso de dinheiro público desviado no esquema das rachadinhas para financiar o boom de construções ilegais em Rio das Pedras e na Muzema.
A família Bolsonaro vem se valendo de todos os meios que o poder lhe proporciona para sabotar, embaralhar, obstruir as investigações tanto do assassinato de Mariele Franco quanto das rachadinhas de Flavio Bolsonaro na Alerj.
Já a imprensa brasileira de referência, até agora, parece não ter visto nenhum grilo nos possíveis nexos de todas estas informações, que são públicas, desde as declarações dos generais Braga Netto e Richard Nunes, lá atrás, até o teor do inquérito do MPRJ revelado pelo Intercept mais recentemente, envolvendo um senador e filho do presidente da República, e passando pelos laços de Flavio Bolsonaro com os milicianos – e grileiros – Adriano da Nóbrega e Ronald Pereira
Que país é este que não faz questão de que tão perturbadoras conexões sejam de uma vez por todas esclarecidas?
O Planalto, a planície e a cova
Há poucas semanas, o general Fernando Azevedo e Silva desistiu de aceitar o convite para ser o fiador verde-oliva das eleições 2018; desistiu de assumir um cargo chave no TSE, no momento em que Jair Bolsonaro, Braga Netto e comitiva estavam em controversa viagem oficial – e de alguma maneira eleitoral – à Rússia. O motivo alegado foi um problema no coração.
O general Richard Fernandez Nunes, braço direito de Braga Netto na intervenção, é cotado para assumir o comando do Exército de Caxias, em eventual substituição ao general Paulo Sergio, caso o general Paulo Sérgio seja escolhido para suceder a Braga Netto no Ministério da Defesa.
É que no próximo 2 de abril, três dias após completar um ano na Defesa, e meses após condicionar a realização de eleições em 2022 à adoção do voto impresso, o general Walter Souza Braga Netto deve deixar o cargo para ser candidato a vice-presidente da República na chapa de Jair Messias Bolsonaro
Neste domingo, o jornalista Lauro Jardim deu n’O Globo que se Braga Netto acabar não sendo o vice de Bolsonaro na tentativa de reeleição para o Planalto, o vizinho de Ronnie Lessa deverá recompensá-lo, então, com uma embaixada, “para não deixar o general na planície”.
Marielle, por seu turno, não teve escolha. “Eles avaliaram mal o perigo” e mandaram a vereadora do Psol não para Washington, Roma ou Paris, mas para a cova.
CRÉDITO TOMAZ SILVA/AGÊNCIA BRASIL No dia em que o assassinato completou um ano, houve homenagem e protestos contra o fato do crime ainda não ter sido totalmente solucionado
O assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e seu motorista Anderson Gomes completa três anos neste domingo. A investigação do caso trouxe à tona diversas informações sobre o submundo do crime no Rio de Janeiro, mas não solucionou algumas das principais dúvidas sobre os homicídios.
Das três perguntas mais importantes — quem matou Marielle e Anderson, quem mandou matar Marielle e por que motivo —, apenas a primeira começou a ser respondida.
Depois de um ano de investigações, autoridades do Rio de Janeiro apontaram aqueles que teriam cometido os assassinatos. São eles o PM reformado Ronnie Lessa e o ex-PM Elcio Queiroz, que havia sido expulso da corporação. Lessa e Queiroz ainda não foram julgados, mas foram denunciados pelo Ministério Público do Rio. As defesas negam que eles sejam os autores do crime.
Desde então, os responsáveis pela investigação não divulgaram avanços. Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil, critica a falta de transparência sobre os obstáculos para a solução do crime. "Autoridades dizem que é um caso complexo, mas por quê? (...) Tem muita gente preocupada com essa aparente ineficiência", diz ela.
O Rio de Janeiro é um dos Estados onde menos homicídios são solucionados — apenas 11% deles, segundo estudo do Instituto Sou da Paz. Mas, por ser crime político, a complexidade de sua investigação vai além dos problemas típicos de solução de mortes no Rio.
A Polícia Civil, por sua vez, respondeu à reportagem afirmando que não comenta possíveis erros de gestões passadas e que seu foco é a busca de novas provas e linhas de investigação.
"Inclusive, a Polícia Civil destacou um delegado da Delegacia de Homicídios da Capital (DHC) e uma equipe, que estão exclusivos no caso. Só este ano essa equipe, que trabalha alinhada com o Ministério Público (MP), já realizou mais de 100 diligências", declarou, em nota, a instituição.
Relembre os percalços do caso até aqui e saiba como, na visão de especialistas em segurança pública, eles dificultam a descoberta da motivação e dos possíveis mandantes do crime — e o que poderia ser feito para o caso avançar.
CRÉDITO GETTY IMAGES Assassinato de Marielle gerou revolta no país todo
Fragilidades da investigação
Especialistas apontam que as autoridades cometeram erros básicos na investigação em seu primeiro ano, o que prejudicou o trabalho.
Dispensaram testemunhas, por exemplo. Segundo o jornal O Globo, duas pessoas que estavam no local do crime foram orientadas a se afastar e não foram convocadas naquele momento para prestar depoimento. Foram convocadas pela polícia após a publicação da reportagem.
Também houve problemas relativos à coleta e processamento de imagens de câmeras de segurança, como o próprio delegado que foi o primeiro responsável pelo caso, Giniton Lages, disse em depoimento à Justiça revelado pela Folha de S.Paulo.
Segundo seu relato, sua equipe tinha imagens que mostravam o percurso do carro em que estavam os executores do crime — mas apenas a partir de um certo ponto, o bairro do Itanhangá, próximo à Barra da Tijuca.
As imagens não permitiam acompanhar o veículo desse local até o início da orla da Barra da Tijuca.
Meses depois, a polícia recebeu a informação sobre de onde o carro teria partido, uma região conhecida como Quebra-Mar, que fica justamente no início da orla da Barra da Tijuca. Ao revisitar o material coletado pelas câmeras, os agentes perceberam que havia um empecilho técnico que os impedia de avançar na leitura das imagens.
"Revisitaram o banco de imagens, reprocessaram a imagem, descobriram que tinha um problema, colocaram numa ferramenta que era capaz de ler aquela tecnologia, que era ultrapassada, ela leu e o carro se revelou", disse Lages.
Quando os agentes se deram conta disso, voltaram ao Quebra-Mar e à avenida da orla, onde fica o condomínio de Ronnie Lessa, mas as câmeras não tinham mais as imagens do dia do assassinato.
"Muito provavelmente nós íamos pegar o momento em que entraram no carro (...) Isso é um fato, não há como negar isso", afirmou.
Na opinião de Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, que produz relatórios sobre a apuração de homicídios no Brasil, "existe de fato um padrão de baixa qualidade de investigação. Mas esses são erros básicos, graves e, pela seriedade e importância do caso, não poderiam acontecer".
CRÉDITO TOMAZ SILVA/AGÊNCIA BRASIL Lessa e Queiroz foram denunciados à Justiça como autores do crime pelo Ministério Público do Rio de Janeiro
Desvios e contradições
Até chegar aos acusados, a investigação sofreu um grande desvio de rota e suspeita de fraude. Por muitos meses, a principal linha de apuração buscava verificar se o assassinato teria sido cometido pelo ex-policial Orlando Oliveira de Araújo, conhecido como Orlando de Curicica, a mando do vereador Marcello Siciliano (PHS).
Essa linha começou a ser perseguida quando o policial militar Rodrigo Jorge Ferreira prestou depoimento à Polícia Civil dizendo que teria visto os dois conversando sobre o assassinato e que Orlando teria matado Marielle a mando de Siciliano.
Ferreirinha, como é conhecido, dizia que o motivo seria que Marielle estaria atrapalhando negócios ilegais de Siciliano na zona oeste do Rio, reduto da milícia.
Essa linha não prosperou. Mais tarde, ele admitiu à Polícia Federal que o testemunho era falso, segundo o portal UOL. Ferreira e sua advogada foram denunciados pelo Ministério Público por obstrução de justiça.
Orlando foi ouvido pelo Ministério Público Federal. Ele negou ter cometido o crime e disse que teria sido pressionado a confessá-lo pela Polícia Civil. Disse também que haveria na corporação um esquema de corrupção para impedir que investigações de homicídios ligadas ao jogo do bicho e à milícia fossem adiante. Foi em parte com base nisso que a então Procuradora Geral da República, Raquel Dodge, pediu que a investigação dos mandantes ficasse a cargo da Polícia Federal, algo que foi posteriormente negado pelo Supremo Tribunal de Justiça, que entendeu que as autoridades estaduais apuraram o caso devidamente.
É consenso entre aqueles que estudam homicídios no Brasil que as investigações costumam se basear muito em testemunhos. Ludmila Ribeiro, socióloga da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) que coordena pesquisas sobre homicídios, avalia que, mesmo que os investigadores estejam empenhados em solucionar o caso, o envolvimento de pessoas ligadas à polícia no caso torna a corporação vítima dos seus próprios métodos.
"Os autores do crime sabem os métodos investigativos da polícia, portanto parece haver um uso racional de testemunhas para confundir e fazer os investigadores baterem cabeça", diz ela.
Dúvidas sobre depoimento de porteiro
No final de outubro de 2019, o Jornal Nacional divulgou uma informação que gerou mais tumulto na investigação.
Segundo a TV Globo, um porteiro do condomínio Vivendas da Barra, onde morava Ronnie Lessa e onde o presidente Jair Bolsonaro tem casa, teria dito em depoimento que, no dia do crime, Élcio Queiroz esteve ali e disse, ao chegar, que iria à casa de número 58, que pertence ao presidente.
Ao receber Élcio na guarita, o porteiro ligou para a casa 58 para confirmar se o visitante poderia entrar, e alguém na residência autorizou a entrada do veículo. Em dois depoimentos à Polícia Civil do Rio, o porteiro disse ter reconhecido a voz de quem atendeu como sendo a do "Seu Jair", segundo o Jornal Nacional. Jair Bolsonaro estava em Brasília naquele dia.
O porteiro disse, segundo a reportagem, que acompanhou Élcio pelas câmeras de segurança e viu que seu carro tinha ido para a casa 66, onde morava Lessa. Diante disso, ligou de novo para a casa 58, e ouviu da pessoa que atendeu que ela sabia para onde Élcio estava indo. Além desse depoimento, o caderno de registro da portaria mostra o número da casa de Jair Bolsonaro ao lado da placa do carro do visitante.
Segundo o Ministério Público, provas periciais do áudio da chamada da portaria, que mostra, segundo o órgão, que Élcio teria ido para a casa de Lessa e teria sido o próprio a autorizar sua entrada. No entanto, entidades de perícia questionaram a qualidade técnica desse laudo. O inquérito sobre o depoimento segue sob sigilo.
CRÉDITO EPA A mãe de Marielle, Marinete Silva (à dir.), ainda clama por Justiça
Mudanças nas equipes
Na Polícia Civil, a investigação já foi chefiada por três delegados diferentes, o que pode também ter atrasado o andamento do caso.
Giniton Lages ficou à frente por cerca de um ano e foi responsável, junto com o Ministério Público, pela prisão dos suspeitos de cometer o crime. Logo após a denúncia contra os suspeitos, Lages foi substituído por Daniel Rosa, que ficou no cargo por mais de um ano. À época, o então governador Wilson Witzel disse que ele "encerrou uma fase" e que seria enviado para a Itália para participar de um programa de intercâmbio sobre a máfia. Em setembro de 2020, Moisés Santana assumiu a investigação.
Para especialistas, essas mudanças devem ocorrer apenas se ficar claro que a pessoa responsável não dá conta de fazer o caso avançar. Do contrário, são desvantajosas, pois a cada troca é preciso que a pessoa responsável se familiarize com os detalhes da investigação para então buscar possíveis caminhos de apuração.
Segundo Ludmila Ribeiro, da UFMG, que pesquisa homicídios, estudos internacionais dão conta de que a estabilidade da equipe é fator essencial para a solução de homicídios.
As trocas também preocupam os parentes de Marielle. No entanto, Marinete Silva, mãe de Marielle, diz que tem conversado com o atual delegado à frente do caso e que sente que ele está comprometido e fazendo um bom trabalho.
No Ministério Público, o caso também trocou de mãos. No início, estava sob a responsabilidade de Homero das Neves Freitas Filho. Meses depois, foi posto a cargo das promotoras Simone Sibilo e Letícia Emile, que estão ainda à frente do caso.
Ainda no MP, em novembro de 2019, uma promotora que estava envolvida no caso — Carmen Eliza Bastos de Carvalho — se afastou depois que a imprensa veiculou postagens em suas redes sociais em apoio ao presidente Jair Bolsonaro, além de uma foto com Rodrigo Amorim, deputado estadual pelo PSL do Rio que quebrou placa em homenagem à vereadora.
Carmen não participou da investigação, segundo o MP, mas passou a atuar na ação penal em que Ronnie Lessa e Élcio Queiroz são réus.
A Lei Orgânica Nacional do Ministério Público diz que é vedado aos membros do MP "exercer atividade político-partidária". Ao se afastar, a promotora disse que tinha feito isso voluntariamente por respeito aos pais das vítimas.
CRÉDITO VALTER CAMPANATO/AGÊNCIA BRASIL Marielle foi assessora do deputado Marcelo Feixo até ser eleita em 2016
Problemas de controle de armas e munição
A perícia da Polícia Civil do Rio concluiu que a arma usada no crime foi a submetralhadora HK MP5. Essa arma é usada por algumas forças especiais de polícia e pela Polícia Federal. A investigação não apontou até o momento a origem da arma.
A munição usada no crime foi desviada da Polícia Federal, mas ainda não se sabe como isso aconteceu. O lote UZZ18 havia sido vendido à corporação em 2006. O lote tinha 1,8 milhão de balas, muito além do permitido por lei, que é 10 mil. A fiscalização é de responsabilidade das Forças Armadas.
Na avaliação das especialistas do Instituto Sou da Paz, um lote do tamanho do que foi usado torna impossível seu rastreamento. Portanto, além de expor o problema de desvio de dentro da corporação, o caso mostra também como a falta de monitoramento traz consequências graves, dizem.
A PF anunciou no mês dos assassinatos que abriria um inquérito para investigar a origem das munições, mas até o momento não divulgou seu resultado.
O que falta?
A afirmação mais forte que uma autoridade fez até o momento sobre suspeitos da encomenda do crime veio da então procuradora-geral da República Raquel Dodge. Em seus últimos dias no cargo, em setembro de 2019, Dodge denunciou o político do MDB e conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE/RJ) Domingos Inácio Brazão e outras quatro pessoas por suspeita de envolvimento nos homicídios, entre eles, um policial federal aposentado, um policial militar e um delegado federal.
Ela dizia que Brazão teria atuado para plantar a versão do assassinato que dava conta de que o crime teria sido encomendado por Siciliano. Para Dodge, Brazão teria feito isso porque, desde que fora afastado do TCE e preso na Operação Quinto do Ouro, que prendeu integrantes do tribunal sob suspeita de corrupção, Brazão "vinha perdendo terreno em importantes redutos eleitorais para o vereador (Siciliano)".
A denúncia diz que Brazão tem ligação com as milícias do Rio e seria o verdadeiro mentor do crime. É, diz o texto, "de conhecimento público que sua ascensão política se desenvolveu nas últimas décadas em franca sinergia com o crescimento das milícias e sua projeção nesses territórios do crime".
Brazão teria conexão com o grupo de milicianos conhecido como Escritório do Crime, matadores de aluguel, e possivelmente envolvidos nos assassinatos.
No entanto, não está claro qual seria a relação entre Brazão e os acusados de executar o crime, tampouco se sabe qual seria a motivação dele para desejar a morte da vereadora. Uma hipótese é que fosse uma retaliação contra o PSOL, partido de Marielle, pelo fato de o deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ) ter agido, quando era deputado estadual, para impedir a posse de Edson Albertassi, seu correligionário no MDB, como conselheiro do TCE. Brazão nega qualquer envolvimento com o crime.
Freixo presidiu a CPI das Milícias instaurada em 2008 na Assembleia Legislativa do Rio e, desde então, passou a receber diversas ameaças de morte. O relatório final da investigação pediu o indiciamento de mais de 200 políticos, policiais, agentes penitenciários, bombeiros e civis. Antes de ser eleita, em 2016, Marielle foi assessora do deputado.
Segundo a professora Ludmila Ribeiro, da UFGM, que pesquisa homicídios no Brasil, o que falta para o crime ser solucionado é uma maior coordenação entre investigadores e mudanças que indiquem que o caso é prioritário, como, por exemplo, a criação de forças-tarefa.
Três anos após o crime, o Ministério Público do Rio anunciou, no último dia 4 de março, que criaria uma.
"Para mim, foi tempo demais", diz Agatha Arnaus, que era casada com Anderson Gomes. Anielle Franco, irmã de Marielle, vê a criação do grupo com bons olhos e diz que confia no trabalho das promotoras à frente do caso.
Natália Pollachi, coordenadora de projetos do Sou da Paz, diz que um caminho a ser perseguido pelos investigadores seria o financeiro. Um relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) apontou que foi feito um depósito de R$ 100 mil na conta de Ronnie Lessa alguns meses após o crime.
Freixo (PSOL), que acompanha as investigações, não dá detalhes do caso, mas se diz otimista sobre a perspectiva de identificação de mandantes.
"Minha opinião mudou para melhor. O Rio de Janeiro tem uma complexidade grande. O caso mexeu numa estrutura criminosa muito profunda. Foi um tampão que, quando aberto, revelou um esgoto. O crime dela não foi resolvido, mas muita coisa foi atingida. Revelou-se o Rio de Janeiro profundo", diz o deputado.
"Desse Rio, contradições podem gerar informações importantes que façam chegar aos mandantes. Não posso dar detalhes, mas tenho confiança de que a atual delegacia tem vontade de chegar lá e no trabalho que vem sendo feito."
O assassinato da vereadora Marielle Franco completa três anos neste domingo (14/03), ainda sem que investigadores tenham apontado os mandantes do crime e a motivação. Marcado por reviravoltas e perguntas sem resposta, o caso se tornou um símbolo da violência política no Brasil e escancarou os tentáculos do crime organizado no Rio de Janeiro. "Três anos são muito tempo [...] Está mais do que na hora de ter uma resposta", disse Marinete Silva, mãe de Marielle, em entrevista à DW Brasil nesta semana.
Até 2018, Marielle, então com 38 anos, ainda não era muito conhecida fora do Rio de Janeiro. Vereadora de primeiro mandato e atuante em causas sociais, especialmente na luta antirracista e na promoção de pautas feministas e LGBTQ, Marielle logo se transformaria tragicamente num símbolo da violência no Brasil.
Marielle Franco em fevereiro de 2018
Na noite de 14 de março daquele ano, Marielle deixou um debate na ONG Casa das Pretas, no centro do Rio. Pouco tempo depois, o veículo foi emboscado e alvo de tiros no bairro do Estácio, quando seguia para a casa da vereadora. Marielle e o motorista Anderson Gomes morreram na hora. Uma assessora da parlamentar, que também estava no automóvel, sobreviveu - ela deixaria o país posteriormente. O ataque, cuidadosamente planejado, tinha a marca de profissionais – e logo seria revelada a participação de ex-agentes do Estado.
Suspeitos presos, mas nada de um mandante
Desde então, uma das perguntas do caso parece já ter sido respondida: "Quem matou Marielle?" Dois suspeitos foram presos: o policial reformado Ronnie Lessa e o ex-PM Élcio de Queiroz, acusados de envolvimento com milícia. A investigação apontou que Lessa teria efetuado os disparos, enquanto Queiroz teria conduzido o veículo que seguiu Marielle.
Armas apreendidas em endereço de Ronnie Lessa no Rio
Em julho de 2019, Lessa foi preso no mesmo condomínio da Barra da Tijuca em que o presidente Jair Bolsonaro e seu filho Carlos possuem imóveis. Em outro endereço do policial, investigadores encontraram 117 fuzis de assalto incompletos. Além do homicídio, Lessa foi indiciado por tráfico internacional de armas. Os dois suspeitos ainda não foram julgados, três anos após o crime.
Em junho de 2020, veio uma nova rodada de prisões: desta vez um suspeito de ter atirado as armas de Lessa ao mar. Assim com outros envolvidos no caso, ele também usava uniforme: um sargento do Corpo de Bombeiros, que vivia numa mansão de luxo na Zona Oeste do Rio. Em outubro de 2019, outros quatro suspeitos, entre eles parentes de Lessa, já haviam sido presos. O carro e a arma usados pelos assassinos nunca foram encontrados.
Quem mandou mantar Marielle?
Uma série de políticos do Rio de Janeiro figuraram como suspeitos de terem ordenado o crime. A lista chegou a incluir o vereador Marcelo Siciliano (PHS), o ex-vereador Cristiano Girão e o ex-deputado Domingos Brazão, conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Estado (TCE). Todos negam qualquer envolvimento.
O caso de Siciliano também revelou tentativas de obstrução. Em 2019, a Procuradoria-Geral da República denunciou dois policiais federais, uma advogada e Domingos Brazão por tentativa de atrapalhar as investigações. Eles teriam plantado uma testemunha para implicar Siciliano e desviar o foco dos verdadeiros mandantes.
Uma das linhas de investigação da Polícia Civil e do Ministério Público aponta que o assassinato de Marielle foi encomendado como uma forma de vingança contra o atual deputado federal Marcelo Freixo (Psol-RJ), colega de partido de Marielle e que se notabilizou por sua atuação contra as milícias da cidade. Marielle trabalhou durante uma década no gabinete de Freixo antes de ser eleita vereadora.
Em dezembro, uma reportagem da revista Veja apontou que milicianos ligados ao Escritório do Crime, uma organização de matadores do Rio, se filiaram ao Psol logo depois das eleições de 2016, provavelmente para monitorar as atividades de membros do partido.
À época do crime, a segurança pública Rio de Janeiro também estava sob intervenção federal há apenas um mês. Num primeiro momento, houve especulações de que o assassinato poderia ter sido uma reação de grupos criminosos.
Em três anos, as investigações foram lideradas por três diferentes delegados. O primeiro, Giniton Lages, deixou o caso logo após a prisão dos dois executores. O segundo, Daniel Rosa, foi substituído por Moysés Santana em setembro de 2020, depois de mudanças no comando do governo do Rio. As investigações ainda foram objeto de uma disputa em 2019 envolvendo a discussão sobre uma possível federalização, com a mudança de alcançada da Polícia Civil para a Polícia Federal, mas a família da vereadora se opôs.
No início de março, o Ministério Público do Rio anunciou a criação de uma força-tarefa para investigar o caso. O grupo será chefiado pela promotora Simone Sibílio, que esteve à frente do caso no MP-RJ durante a maior parte do tempo. A promotora Letícia Emile, que atuava ao lado de Sibílio, integra a equipe. Anielle Franco, irmã da vereadora e diretora-executiva do Instituto Marielle Franco, avaliou positivamente a iniciativa.
Já a viúva do motorista Anderson Gomes, Ágatha Reis, reconheceu a importância da criação força-tarefa, mas criticou a demora para que houvesse esse avanço nas investigações. "Levou tempo demais. Marielle era uma parlamentar em exercício. Portanto, uma força-tarefa deveria ter sido criada já no início", disse Reis na sexta-feira, durante um lançamento de um dossiê com uma linha do tempo do caso e 14 questões consideradas essenciais para a investigação.
Sombra sobre o clã Bolsonaro
Os assassinatos de Marielle e Anderson ainda criaram constrangimento para o presidente Jair Bolsonaro. Além de um de seus vizinhos ter sido apontado como executor da vereadora, a família presidencial tinha ligações com outro nome que figurou entre suspeitos de envolvimento no crime, o ex-PM Adriano Magalhães da Nóbrega, um notório miliciano do Rio.
Segundo o Ministério Público, a família de Adriano participava do esquema de desvio de dinheiro público do filho mais velho de Bolsonaro, o senador Flávio. Adriano foi morto num cerco policial na Bahia em fevereiro de 2020, quando estava foragido. O caso Marielle e a investigação das "rachadinhas" se entrelaçaram diversas vezes nos últimos dois anos.
Apontado como executor do crime, Lessa vivia no mesmo condomínio em que Bolsonaro e seu filho Carlos têm casas
Em 2019, um desdobramento das investigações da morte de Marielle que mirou a atuação de milícias na Zona Oeste do Rio resultou na apreensão do celular da ex-mulher de Adriano, Danielle Mendonça, que atuou como assessora de Flávio Bolsonaro. Mensagens de Danielle com Fabrício Queiroz, apontado como "operador" das rachadinhas, jogaram luz sobre detalhes do esquema.
Em outro lance estranho do caso, o porteiro do condomínio de Bolsonaro (e Lessa) apontou que na noite do crime, o então deputado e atual presidente autorizou a entrada Élcio de Queiroz, o motorista que dirigiu o carro usado na emboscada.
A versão foi logo apontada como falsa, já que Bolsonaro estava em Brasília naquela noite. O porteiro logo voltou atrás, mas o caso provocou a queda de uma das promotoras do caso, que desmentiu o porteiro e teve sua imparcialidade questionada após imagens das suas redes sociais mostrarem que ela fez campanha para Bolsonaro em 2018.
Além dessas ligações, a própria postura do clã Bolsonaro diante do crime e os elogios do presidente a milicianos em seus tempos de deputado também ficaram em evidência ao longo da investigação. Desde o assassinato de Marielle, os membros da família presidencial se dividiram entre silêncio, desprezo e em minimizar a importância do crime ao longo de três anos de investigações.
Bolsonaro até se viu na posição de ter que negar em 2019 qualquer relação com os homicídios em entrevista a uma rede de TV dos EUA, numa situação inédita para um chefe de Estado brasileiro. "Que motivo eu teria para encomendar um assassinato desses?", disse.
A memória da vereadora também costuma ser um alvo constante da extrema direita bolsonarista, que costuma espalhar mentiras sobre sua atuação e piadas macabras sobre sua morte nas redes sociais.
Legado
A forma como o crime escancarou a ousadia dos milicianos do Rio de Janeiro e as dificuldades nas investigações não têm demovido figuras que pretendem manter o legado de Marielle vivo. Nas eleições municipais de 2020, a viúva da vereadora, Mônica Benício, foi eleita para uma vaga na Câmara do Rio de Janeiro. À época, ela afirmou à DW Brasil que pretende reapresentar projetos da sua antiga companheira.
Mural em homenagem a Marielle em Berlim
A família de Marielle também lançou um instituto que leva o nome da ex-vereadora. Em setembro de 2020, o Instituto Marielle Franco inaugurou o site da Agenda Marielle, que contém um agenda de compromissos e práticas elaborados a partir de discursos e projetos de lei da ex-parlamentar.
Ao todo, 81 candidatos que se comprometeram com a agenda foram eleitos em 54 cidades do Brasil nas eleições municipais de 2020. "Nós devolvemos nas urnas o que eles tentaram nos tirar na bala", disse a vereadora Benício em entrevista à DW Brasil.
A memória de Marielle também tem sido preservada e promovida no exterior. Em 2019, a prefeitura de Paris inaugurou um jardim em homenagem à ex-vereadora. Nesta semana, um enorme mural dedicado a Marielle foi inaugurado em Berlim.
A pergunta "Quem mandou matar Marielle?" continua em aberto no caso que expôs os tentáculos da milícia no Rio. Investigações foram marcadas por tentativas de obstrução e provocaram constrangimento para o clã Bolsonaro
O assassinato da vereadora Marielle Franco completa mil dias nesta terça-feira (08/12), ainda sem que investigadores tenham apontado os mandantes do crime e a motivação. Marcado por reviravoltas e perguntas sem resposta, o caso se tornou um símbolo da violência política no Brasil e do alcance dos tentáculos do crime organizado no Rio de Janeiro. "É como estar num labirinto sem saída", disse Anielle Franco, irmã de Marielle, em entrevista para a DW Brasil em março.
Até 2018, Marielle, então com 38 anos, ainda não era muito conhecida fora do Rio de Janeiro. Vereadora de primeiro mandato e atuante em causas sociais, especialmente na luta antirracista e na promoção de pautas feministas e LGBTQ, Marielle logo se transformaria tragicamente num símbolo internacional.
Na noite de 14 de março daquele ano, Marielle deixou um debate na Casa das Pretas, no centro do Rio. Pouco tempo depois, o veículo foi emboscado no bairro do Estácio, quando seguia para a casa da vereadora. Marielle e o motorista Anderson Gomes morreram. Uma assessora da parlamentar, que também estava no automóvel, sobreviveu. O ataque, cuidadosamente planejado, tinha a marca de profissionais – e logo seria revelada a participação de ex-agentes do Estado.
Suspeitos presos, mas nada de um mandante
Desde então, uma das perguntas do caso parece já ter sido respondida: "Quem matou Marielle?" Dois suspeitos foram presos: o policial reformado Ronnie Lessa e o ex-PM Élcio de Queiroz, acusados de envolvimento com milícia. A investigação apontou que Lessa teria efetuado os disparos, enquanto Queiroz teria conduzido o veículo que seguiu Marielle.
Em julho de 2019, Lessa foi preso no mesmo condomínio carioca em que o presidente Jair Bolsonaro e seu filho Carlos possuem imóveis. Em outro endereço do policial, investigadores encontraram 117 fuzis de assalto incompletos. Além do homicídio, Lessa foi indiciado por tráfico internacional de armas. Os dois suspeitos ainda não foram julgados, quase três anos após o crime.
Armas apreendidas em endereço de Ronnie Lessa no Rio
Em junho deste ano, veio uma nova rodada de prisões: desta vez um suspeito de ter atirado as armas de Lessa ao mar. Assim com outros envolvidos no caso, ele também usava uniforme: um sargento do Corpo de Bombeiros, que vivia numa mansão de luxo na Zona Oeste do Rio. Em outubro de 2019, outros quatro suspeitos, entre eles parentes de Lessa, já haviam sido presos.
Quem mandou mantar Marielle?
Uma série de políticos do Rio de Janeiro figuraram como suspeitos de terem ordenado o crime. A lista chegou a incluir o vereador Marcelo Siciliano (PHS), o ex-vereador Cristiano Girão e o ex-deputado Domingos Brazão, conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Estado (TCE). Todos negam qualquer envolvimento.
O caso de Siciliano também revelou tentativas de obstrução. Em 2019, a Procuradoria-Geral da República denunciou dois policiais federais, uma advogada e Domingos Brazão por tentativa de atrapalhar as investigações. Eles teriam plantado uma testemunha para implicar Siciliano e desviar o foco dos verdadeiros mandantes.
Uma das linha de investigação da Polícia Civil e do Ministério Público aponta que o assassinato de Marielle foi encomendado como uma forma de vingança contra o atual deputado federal Marcelo Freixo (Psol-RJ), colega de partido de Marielle e que se notabilizou por sua atuação contra as milícias da cidade. Marielle trabalhou durante uma década no gabinete de Freixo antes de ser eleita vereadora.
Nesta semana, uma reportagem da revista Veja apontou que milicianos ligados ao Escritório do Crime, uma organização de matadores do Rio, se filiaram ao Psol logo depois das eleições de 2016, provavelmente para monitorar as atividades de membros do partido.
Em mais de dois anos, as investigações foram lideradas por três diferentes delegados. O primeiro, Giniton Lages, deixou o caso logo após a prisão dos dois executores. O segundo, Daniel Rosa, foi substituído por Moysés Santana em setembro, depois de mudanças no comando do governo do Rio. As investigações ainda foram objeto de uma disputa em 2019 envolvendo a discussão sobre uma possível federalização, com a mudança de alcançada da Polícia Civil para a Polícia Federal, mas a família da vereadora se opôs.
Sombra sobre o clã Bolsonaro
Os assassinatos de Marielle e Anderson ainda criaram constrangimento para o presidente Jair Bolsonaro. Além de um de seus vizinhos ter sido apontado como executor da vereadora, a família presidencial tinha ligações com outro nome que figurou entre suspeitos de envolvimento no crime, o ex-PM Adriano Magalhães da Nóbrega. Segundo o Ministério Público, a família de Adriano participava do esquema de desvio de dinheiro público do filho mais velho de Bolsonaro, o senador Flávio. Adriano foi morto num cerco policial na Bahia em fevereiro, quando estava foragido. O caso Marielle e a investigação das rachadinhas têm se entrelaçado nos últimos meses.
No ano passado, um desdobramento das investigações da morte de Marielle que mirou a atuação de milícias na Zona Oeste do Rio resultou na apreensão do celular da ex-mulher de Adriano, Danielle Mendonça, que atuou como assessora de Flávio Bolsonaro. Mensagens de Danielle com Fabrício Queiroz, apontado como "operador" das rachadinhas, jogaram luz sobre detalhes do esquema.
Apontado como executor do crime, Lessa vivia no mesmo condomínio em que Bolsonaro e seu filho Carlos têm casas
Em outro lance estranho do caso, o porteiro do condomínio de Bolsonaro (e Lessa) apontou que na noite do crime, o então deputado e atual presidente autorizou a entrada Élcio de Queiroz, o motorista que dirigiu o carro usado na emboscada. A versão foi logo apontada como falsa, já que Bolsonaro estava em Brasília naquela noite. O porteiro logo voltou atrás, mas o caso provocou a queda de uma das promotoras do caso, que desmentiu o porteiro e teve sua imparcialidade questionada após imagens das suas redes sociais mostrarem que ela fez campanha para Bolsonaro em 2018.
Além dessas ligações, a própria postura do clã Bolsonaro diante do crime e os elogios do presidente a milicianos em seus tempos de deputado também ficaram em evidência ao longo desses mil dias. Desde o assassinato de Marielle, os membros da família presidencial se dividiram entre silêncio, desprezo e em minimizar a importância do crime ao longo de mais de dois anos de investigações.
Bolsonaro até se viu na posição de ter que negar qualquer relação com os homicídios em entrevista a uma rede de TV dos EUA, numa situação inédita para um chefe de Estado brasileiro. "Que motivo eu teria para encomendar um assassinato desses?", disse.
Legado
A forma como o crime escancarou a ousadia dos milicianos do Rio de Janeiro e as dificuldades nas investigações não têm demovido figuras que pretendem manter o legado de Marielle vivo. Nas eleições municipais de 2020, a viúva da vereadora, Mônica Benício, foi eleita para uma vaga na Câmara do Rio de Janeiro. Ela afirmou à DW Brasil que pretende reapresentar projetos da sua antiga companheira.
A família de Marielle também lançou um instituto que leva o nome da ex-vereadora. Em setembro, o Instituto Marielle Franco inaugurou o site da Agenda Marielle, que contém um agenda de compromissos e práticas elaborados a partir de discursos e projetos de lei da ex-parlamentar.
Ao todo, 81 candidatos que se comprometeram com a agenda foram eleitos em 54 cidades do Brasil nas eleições deste ano. "Nós devolvemos nas urnas o que eles tentaram nos tirar na bala", disse a vereadora eleita Benício à DW Brasil.
MULHERES E A LUTA PARA MANTER MARIELLE PRESENTE
por Nádia Pontes (de São Paulo)
PRISCILA, 36
"Marielle virou símbolo para todas nós", diz Priscila, que participou de ato na Avenida Paulista para marcar um ano do assassinato da vereadora. Formada em Serviço Social, Priscila descobriu que poderia ir além do ensino médio ao frequentar um cursinho popular para estudantes negros. "Como Marielle, eu também saí da periferia e consegui estudar. Ela mostrou que todas nós poderíamos ir mais longe."
Herta, 77, Malu, 74
Amigas há pouco tempo, Herta (esq.) e Malu têm um passado comum: ambas foram perseguidas durante a Ditadura Militar. Membro do movimento estudantil, Herta foi presa em 1968, e estava grávida à época. Malu buscou refúgio na França e no Chile, entre outros países. "Marielle teve coragem para denunciar, mesmo sabendo do risco que estava correndo", aponta Malu a semelhança com a própria experiência.
Maria Isabele, 18
"A gente também batalha para levar oportunidade para quem não tem. Era o que a Marielle fazia", diz Maria Isabele, 18 anos, sobre o motivo que a levou ao protesto na Avenida Paulista. Na periferia da Zona Leste, a família de Maria Isabel oferece aulas de dança e grafismo para crianças e jovens carentes. Maria dá aulas de hip hop.
Sheila, 40
"Eu vim pedir justiça, que nunca chega para nós. A morte da Marielle é como a morte de muitas de nós, mulheres negras, pobres e da periferia", diz Sheila. Faz mais de dez anos que a família espera por respostas depois da morte de um primo dela, atingido por uma bala perdida em São Miguel Paulista. O garoto tinha 9 anos. "O caso nunca foi desvendado", contou.
Alice, 66
Na companhia dos netos, Alice protestou contra todos os crimes bárbaros que matam mulheres no país. "Nunca estive sozinha nessa luta", diz ela, que já acompanhou diversas mulheres da vizinhança onde mora para prestar queixa na delegacia depois de sofrerem violência doméstica. Ela também já precisou de apoio. "Se eu não tivesse lutado, nem viva estaria hoje", resumiu.
Luciana, 44
Com o filho de dois anos no colo, Luciana saiu de Embu das Artes, região metropolitana de São Paulo, para participar do protesto. "Sou mãe e pai dos meus filhos. Como Marielle defendia, eu também quero que eles vivam num país sem discriminação, que tenham moradia digna, educação e transporte público de qualidade, atendimento de saúde. Quero que eles vivam num Brasil socialmente justo", afirmou.
Carina, 20, Júlia, 17
"Eu estou aqui movida pela indignação", afirma Carina (à direita, com cartaz). "Não adiantou matar Marielle. Nós agora estamos juntas e somos uma voz que não se cala." Júlia diz não querer mais ficar em casa chorando as mortes que vê na televisão: "Marielle, Mariana, Brumadinho, Suzano. Não quero mais velar corpos. Quero uma cultura de paz. Precisamos nos unir."
Ruth, 22
Estudante de sociologia, Ruth encontrou na pesquisa acadêmica de Marielle uma voz parecida com a de sua mãe adotiva. "Minha mãe sempre falou sobre as dificuldades das mulheres negras e pobres", resumiu. Ao ser adotada, aos quatro anos, Ruth diz ter saído da pobreza para a classe média. A mãe biológica, dependente química e moradora de rua, morreu vítima do tráfico de drogas.
Documentos sigilosos mostram que telefones dos vereadores Marcello Siciliano, Ítalo Ciba, Zico Bacana e do agora deputado federal Chiquinho Brazão estão recheados de contatos…
AO ESQUADRINHAR A ROTINA dos 51 vereadores da Câmara Municipal do Rio, policiais e promotores envolvidos na investigação do assassinato de Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, identificaram uma espécie de “bancada da milícia” atuando no legislativo da cidade. É o que revelam os apensos sigilosos anexados ao inquérito da Delegacia de Homicídios aos quais o Intercept teve acesso.
Os investigadores descrevem as ligações entre quatro vereadores e milicianos que atuam em seus respectivos redutos eleitorais. Trata-se de Ítalo Ciba, do Avante; Jair Barbosa Tavares, o Zico Bacana, do Podemos (ambos ex-policiais militares); Chiquinho Brazão, do Avante, eleito deputado federal em 2018; e Marcello Siciliano, do PP.
As informações foram descobertas a partir das quebras dos sigilos dos dados de comunicação dos quatro e do ex-vereador Cristiano Girão Matias, além de outros 18 suspeitos de envolvimento com grupos paramilitares. Girão perdeu o mandato em 2011 após ter sido preso em decorrência da CPI das Milícias. Em março de 2018, mês em que Marielle morreu, voltou a circular pela Câmara Municipal, como revelamos no Intercept.
Segundo as investigações, o vereador Siciliano mantinha contato frequente com pessoas ligadas diretamente ao policial militar Ronnie Lessa. Preso preventivamente desde março de 2019, ele é acusado pelo Ministério Público do Rio de ser o executor de Marielle e Anderson e apontado como chefe de uma milícia na zona oeste do Rio.
Nas agendas telefônicas de Siciliano estavam os números da academia de ginástica da qual o ex-PM era sócio, juntamente com a esposa, em Rio das Pedras, favela na zona oeste do Rio dominada pelos paramilitares. O vereador tinha ainda os telefones de um sobrinho de Lessa, que também é PM, de Élcio de Queiroz, apontado pelo MPRJ como motorista do Cobalt usado para vigiar os movimentos da vereadora na noite do assassinato, e do sargento do Corpo de Bombeiros Maxwell Simões Corrêa, o Suel.
O bombeiro foi preso no último dia 10 de junho por suspeita de envolvimento na morte de Marielle; o sobrinho de Lessa teve o celular apreendido na mesma operação.
Trecho do inquérito da morte da Marielle mostra as ligações entre o Marcello Siciliano e milicianos, entre eles Ronnie Lessa, preso acusado de ser o executor da vereadora.
Em audiência em outubro, gravada na penitenciária federal de Porto Velho, em Rondônia, Lessa justificou assim o contato com o vereador: “O Siciliano é um cara que chegava na mesa de todo o mundo e abraçava todo o mundo, bebia do copo dos outros. É político, né. Mas nada além. Nunca soube o nome da esposa dele, não sei o terceiro nome dele. É Marcello Siciliano e só”. Já Suel e Élcio disseram em depoimentos prestados à Delegacia de Homicídios que conheceram o político durante a campanha eleitoral para vereador em 2016, mas argumentaram não ter “vínculos de amizade” com ele.
Em uma das ligações grampeadas pelos investigadores em novembro de 2018, uma pessoa identificada como Renata questiona Siciliano a respeito de uma vaga para um vizinho. Ele pergunta de que vaga ela está falando e a interlocutora responde: “Milici… Hmm, pera aí que ele me mandou uma mensagem […]”. “Ah, tá, você está procurando emprego, né. Me manda um WhatsApp”, responde o vereador.
Na relação de telefones na agenda de Siciliano apareciam também os contatos dos ex-PMs e milicianos Orlando Oliveira de Araújo, o Orlando Curicica, e Rodrigo Jorge Ferreira, o Ferreirinha, além de diversos telefones de lideranças comunitárias de áreas sob influência dos paramilitares. Segundo os investigadores, isso revela a influência do político nessas localidades.
Na agenda de Siciliano estão, entre outros, os contatos dos milicianos Orlando Oliveira de Araújo, o Orlando Curicica, e Ronnie Lessa, acusado de ser o assassino de Marielle.
Foi Ferreirinha quem, em depoimento de maio de 2018, acusou o vereador de ter tramado com Curicica o assassinato da vereadora do Psol. A versão acabou desmentida em uma investigação paralela feita pela Polícia Federal por determinação da então procuradora-geral da República, Raquel Dodge. Em setembro de 2019, ela denunciou Ferreirinha e outras quatro pessoas por falso testemunho e obstrução da investigação do caso Marielle.
Como tem direito a foro especial, o conselheiro afastado do TCE não foi indiciado no inquérito da Delegacia de Homicídios e do Ministério Público e figura apenas como testemunha. Entretanto, a investigação quebrou o sigilo de dados de comunicação de seu irmão, o então vereador Chiquinho Brazão, eleito deputado federal em outubro de 2018.
Antes que ele ocupasse a cadeira na Câmara Federal que o afastou das mãos dos investigadores fluminenses, a força-tarefa reuniu evidências da relação de Chiquinho Brazão com milicianos que atuam nos bairros Gardênia Azul, Curicica, Rio das Pedras e outras áreas de Jacarepaguá, também na zona oeste do Rio. Nesses locais, além da cobrança de “taxas de segurança” de comerciantes e mototaxistas, são comuns os casos de milicianos participando de grilagens de terras. (Continua)
A declaração do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, de que vai dialogar com o tráfico e com a milícia na luta contra o avanço da covid-19 no Brasil irritou as melindrosas policiais federais da Liga da Justiça comandada por Moro.
De acordo com a coluna Painel, da Folha de S. Paulo, policiais afirmam que o ministro Mandetta cometeu um erro histórico ao reconhecer a existência de poderes paralelos.
"Em mensagens trocadas em um grupo de WhatsApp, policiais federais disseram que a atitude do ministro não tinha precedentes na história do Brasil", diz a coluna Painel. Que exagero. Que gaiato revelou conversa tão importante para a Grande Imprensa?
Por que a verdade ofende os policiais? Como fazer quarentena nos morros e nas periferias das principais cidades brasileiras sem conversar com as milícias e os comandos do tráfico, citados pelo ministro da Justiça e da Segurança Pública no seu pacote anticrime?
O general Braga, interventor de Michel Temer no Rio de Janeiro, jamais atravessou com suas tropas os limites territoriais das milícias. Não será agora, como chefe da Casa Civil de Bolsonaro, que o general passará a ordem de confronto para Moro. Para combater a máfia libanesa chefiada por Alberto Youssef. Para combater a máfia judia comandada por Dario Messer. A partir de um comentário do portal 247.
O ex-deputado federal Jean Wyllys, que cumpre há cerca de uma semana uma agenda cheia em Paris, concedeu entrevista exclusiva nesta quinta-feira (21) à RFI. Ele comentou as prisões do ex-presidente brasileiro Michel Temer e do ex-ministro Moreira Franco, que classificou de “cabo de guerra entre facções políticas que deram o golpe de 2016”. Wyllys falou também sobre exílio, refúgio político, planos para o futuro e o governo de Jair Bolsonaro no Brasil.
RFI: Um escritor muito querido dos franceses, o Victor Hugo, dizia que “o exílio é uma longa insônia”. Como vem sendo a sua experiência?
Jean Wyllys: Eu digo que ainda não vivi o lado mais pesado e duro do exílio, o momento em que o luto vai chegar mesmo, a melancolia. Estou ainda no tubilhão do impacto da notícia de ter aberto mão do meu terceiro mandato. Estou no olho do furacão. O olho do furacão é calmo, mas também é o lugar mais perigoso. Estou tentando preparar as minhas estruturas internas para esse momento, tendo passado o burburinho das notícias, dessa denúncia que é preciso fazer aqui fora sobre o que está acontecendo no Brasil. Estou me preparando para essa longa insônia que Victor Hugo disse sobre o exílio.
RFI : Em entrevista à televisão francesa, Yann Barthès, apresentador do programa Quotidien, afirmou que você havia se tornado o principal símbolo da oposição ao governo Bolsonaro, pelo menos no exterior. Você concorda com essa afirmação?
JW: Eu concordo, embora não tenha tido essa intenção. Quando decidi abandonar meu terceiro mandato, estava pensando na minha vida. As ameaças eram muito pesadas e tinham se extendido à minha família. Paralelo às ameaças havia uma campanha difamatória muito pesada que destruía minha reputação pública e me colocava vulnerável em quase todos os espaços públicos no Brasil. Eu vivia uma vida pela metade, isso estava impactando na minha saúde física e psíquica, então minha decisão tem a ver com a defesa da minha vida. Essa decisão teve um impacto político tão grande internacionalmente, e como eu sou responsável politicamente, eu decidi utilizar esse lugar que ocupo agora como uma trincheira. Não gosto muito das metáforas da guerra, mas vou usá-la. É uma trincheira para defender a democracia do Brasil e suas minorias. Me converti neste símbolo de oposição ao Bolsonaro, não porque quisesse a princípio, mas concordo com o Yann Barthès. De fato acabou acontecendo.
RFI: Você disse uma vez que Marielle Franco vai derrotar Bolsonaro. O que você quis dizer com isso?
JW: Eu quis dizer que Marielle ronda como um espectro, como na peça de Shakespeare, Hamlet, ela ronda o governo fascista de Bolsonaro. Para mim vão ficar claras as ligações entre Bolsonaro e as milícias, as organizações criminosas de onde saíram os sicários que executaram Marielle. O Ministério Público e a imprensa têm mostrado essas relações. O presidente da República morava a alguns metros de um assassino de aluguel frio. Como é que a Inteligência brasileira, a Polícia Federal não sabia disso?
RFI: Dois ex-policiais foram presos dentro da investigação do assassinato de Marielle Franco. A polícia federal citou o ex-deputado estadual Domingos Brazão (ex-MDB) entre os suspeitos de ser um dos possíveis mandantes, você acha que isso é uma pista concreta ou uma cortina de fumaça?
JW: Pode ser uma possibilidade. Mas pode ser também uma cortina de fumaça, um bode expiatório, uma maneira de desviar a atenção dos parlamentares ou esconder o verdadeiro mandante. Acho curioso que, pouco depois da polícia apresentar os executores da Marielle, o delegado Giniton Lages tenha sido afastado das investigações. Ou seja, quando as investigações passam para uma segunda etapa e quando todos os indícios apontam para uma ligação estreita entre a família de Bolsonaro e os executores de Marielle, o delegado é afastado.
RFI: O ex-presidente da República Michel Temer foi preso dentro das investigações da Lava Jato. O juiz federal Marcelo Bretas que pediu a prisão chegou a dizer que Temer liderava uma organização criminosa. Qual sua opinião sobre isso?
JW: A minha opinião é que a prisão de Temer não passa de um mero lance, de um cabo de guerra entre as facções que deram o golpe de 2016, que foram beneficiadas política e economicamente com o golpe de 2016. A prisão de Temer e de Moreira Franco acontecem na sequência da desmoralização pública que Rodrigo Maia fez de Sérgio Moro. A resposta de Sérgio Moro foi mobilizar seus aliados na Lava Jato para ameaçar Rodrigo Maia através destas duas prisões. Na verdade, Moro faz uma ameaça velada a Rodrigo Maia. Essa foi a maneira do Sérgio Moro devolver o que Maia fez, que foi a desqualificação... Desqualificação não, porque Moro não tem nenhuma qualidade. Moro não precisa ser desqualificado, ele já é desqualificado por si mesmo. Uma pessoa que aceita ser ministro da Justiça do candidato beneficiado com a prisão do Lula, tendo ele realizado essa prisão, não tem nenhuma qualidade. Não comemoro essa prisão de Michel Temer porque ela chega tardia e não passa de mais um ato obsceno na orgia dos farsantes.
RFI: Você acha que a Justiça e polícia brasileiras serão suficientemente independentes para chegar aos mandantes do crime de Marielle Franco?
JW: Eu espero que sejam, a gente tem que pressionar para que sejam. A gente tem que pressionar esse jogo de cartas marcadas da Polícia Civil do Rio de Janeiro agora sob a gestão de Wilson Witzel. A gente precisa botar olho nisso, com os organismos internacionais que já vinham acompanhando, a Anistia Internacional, a Human Rights Watch, Justiça Global, Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA), nós brasileiros que vivemos fora e os brasileiros que estão lá dentro, nas bancadas progressistas, têm que botar olho para que as investigações não se degenerem. A gente quer saber quem mandou matar Marielle, a gente quer saber sobre essas relações entre a família Bolsonaro e as milícias, as organizações criminosas que comandam territórios no Rio de Janeiro.
*Assista aqui o vídeo completo da entrevista com Jean Wyllys nos estúdios da RFI, em Paris.
Desde que vieram à luz novas informações sobre as organizações criminosas chamadas de milícias, como o fato de que Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) empregou parentes e homenageou um miliciano do Complexo Rio das Pedras, essa favela da zona oeste do Rio de Janeiro tornou-se epicentro de um dos mais recentes escândalos políticos do país. Para desvendar o jogo político local, a Pública fez um levantamento inédito sobre os candidatos mais votados naquelas seções eleitorais, com foco especial nos cargos de vereador e deputado estadual.
A Pública constatou que, em 2018, Flávio Bolsonaro foi o senador mais votado em Rio das Pedras, com 8.729 votos, o equivalente a 17% do total.
Historicamente, porém, a performance eleitoral da família do presidente não foi expressiva naquela região. Na disputa para cargos do Parlamento, a melhor votação foi em 2016, quando seu irmão Carlos Bolsonaro (PSL) foi o sétimo vereador mais bem colocado por aquelas urnas, com 399 votos (1,5%).
O patriarca, Jair Bolsonaro (PSL), teve sua melhor performance na disputa pelo cargo de deputado federal na eleição de 2014. Na ocasião, foi o quarto mais votado em Rio das Pedras. O atual presidente obteve então 623 votos (2%). Tanto em 2010 como em 2014 o ex-deputado Eduardo Cunha (MDB) liderou essa disputa.
Desde 2010, o jogo eleitoral foi liderado principalmente pela família Brazão, tradicional grupo político da zona oeste. Conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro, Domingos Brazão foi alvo de uma operação da Polícia Federal na última quinta-feira, que apura tentativas de atrapalhar a elucidação do homicídio de Marielle Franco (PSOL) e Anderson Gomes.
O levantamento revela também candidatos ligados à milícia e outras práticas criminosas, como assassinatos.
Em janeiro, por meio da Operação Intocáveis, a Polícia Civil e o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) prenderam milicianos de Rio das Pedras, acusados de extorsão, homicídios e fraudes imobiliárias utilizando a Associação de Moradores do local. Um dos principais líderes identificados é o ex-policial Adriano Magalhães da Nóbrega, cuja mãe e cuja esposa trabalharam no gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa Estadual do Rio de Janeiro (Alerj).
Em 2018, Flávio Bolsonaro (PSL) foi o senador mais votado em Rio das Pedras | Foto: LG Soares/ Arquivo Alerj
Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), órgão do MPRJ que liderou a Operação Intocáveis, Simone Sibilio diz que as prisões de janeiro não significaram o fim das investigações. Pelo contrário. “A investigação prossegue com farto material, inclusive para aprofundar a possível relação com agentes públicos, por conta do material apreendido e das novas denúncias recebidas desde então. Demos um duro golpe naquela organização, mas temos preocupação que novas lideranças possam surgir ou que o tráfico da Cidade de Deus vá para lá”, comenta a promotora.
Flávio também concedeu a Medalha Tiradentes – mais alta honraria da casa – a Adriano e a outro miliciano denunciado pelo MPRJ. Hoje, Adriano está foragido da Justiça e é suspeito de envolvimento na morte da vereadora Marielle Franco (Psol).
Adriano Magalhães da Nóbrega, capo do Escritório do Crime
Miliciano chegou a obter 75% dos votos da região
Em levantamento municipal, a partir do Censo de 2010, Rio das Pedras já aparecia como a terceira maior favela da cidade, com mais de 63 mil de habitantes. Já a Associação de Moradores sustenta que o número está em torno de 140 mil.
Em 2018, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) registrou 35.006 eleitores nas seções eleitorais atribuídas a Rio das Pedras. Entretanto, os números podem ser ainda maiores, considerando a expansão imobiliária na região e a ausência de delimitações oficiais do local enquanto bairro. Oficialmente, a favela horizontal de Rio das Pedras se espalha entre Itanhangá, Jacarepaguá e Anil.
Rio das Pedras é tido como berço de uma das mais antigas milícias do Rio de Janeiro, que atua desde os anos 1970.
Há mais de 26 anos, o sociólogo José Cláudio Souza estuda as milícias. Ele explica que o domínio mais direto sobre os votos da região onde atuam é uma das inovações dessas organizações em relação a outros grupos criminosos. “Eles fazem um controle dos títulos eleitorais das áreas, quantidade de votos de cada região e passam a vender estes votos”, comenta.
No ano passado, autoridades fizeram um mapeamento oficial que identificou 300 currais eleitorais – entre eles Rio das Pedras – controlados pelo tráfico ou pelas milícias na cidade. O problema é antigo. Dez anos antes, nos idos de 2008, a Alerj criou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar as milícias, após jornalistas que cobriam o tema terem sido sequestrados e torturados. As conclusões já apontavam para a influência das milícias no poder público, inclusive por meio de candidaturas próprias.
Segundo o relatório final da CPI, a concentração de votos por local em eleições proporcionais, como a de deputados estaduais e vereadores, chega normalmente a cerca de 10% quando não há currais eleitorais. Assim, foi adotado o índice de 15% como “marco definidor de um padrão muito elevado” de concentração de votos, o que poderia ser um indício de currais eleitorais ou, no caso, de controle pelas milícias.
Sob esse aspecto, a concentração de votos em Rio das Pedras impressiona. Impulsionado por sua atuação na comunidade via Associação de Moradores e pela transferência dos títulos de eleitor dos moradores imigrantes nordestinos, Josinaldo Francisco da Cruz – o Nadinho de Rio das Pedras – se lançou candidato a vereador em 2004.
Na ocasião, Nadinho conseguiu 75% dos votos de Rio das Pedras e foi eleito, mas sua ascensão política teve um final trágico.
Em uma investigação em 2006 sobre outros criminosos, o MPRJ apontou que Nadinho e outros moradores passaram a integrar um “grupo paramilitar armado”, uma milícia, em Rio das Pedras ainda no final dos anos 1990. À CPI das Milícias, em 2008, Nadinho confirmou a existência de milícia na sua comunidade, mas à época negou fazer parte dela.
Dois candidatos com maior votação em Rio das Pedras
Infográfico: Bruno Fonseca/ Agência Pública
O xadrez das milícias de Rio das Pedras
Em fevereiro de 2007, outro líder local e antigo parceiro de Nadinho foi assassinado. O inspetor policial Félix Tostes foi executado dentro de seu carro, alvejado com mais de 40 disparos. No final do ano, Nadinho foi indiciado como mandante do crime – e, posteriormente, a CPI o apontou como ex-líder da milícia de Rio das Pedras.
Antes disso, porém, em maio de 2007, como vereador, Nadinho recebeu a Medalha Tiradentes na Alerj. O autor da homenagem foi o deputado Natalino, ex-policial preso no ano seguinte sob acusação de liderar a milícia Liga da Justiça, que também atua na zona oeste. Por sua vez, Nadinho também homenageou Natalino com a Medalha Pedro Ernesto, a comenda dos vereadores da cidade.
Em 2008, um delegado da Polícia Civil afirmou à CPI que ambos, Nadinho e Natalino, fizeram uma parceria para eliminar Félix Tostes e ampliar domínio sobre Rio das Pedras. Porém, de acordo com o delegado, outros criminosos fiéis a Félix assumiram o comando e isolaram Nadinho. Entre eles, estaria Beto Bomba, que mais recentemente comandava a Associação de Moradores de Rio das Pedras e foi um dos milicianos denunciados na Operação Intocáveis.
No relatório da CPI, Nadinho aparece como “ex-líder” da milícia de Rio das Pedras, enquanto Beto Bomba e outros figuram como mandantes à época. Além de seis nomes de “prováveis lideranças da milícia” em Rio das Pedras, a CPI incluiu oito nomes de “laranjas”, em especial familiares dos envolvidos.
Nadinho apoiou Rodrigo Maia
À CPI na Alerj, Nadinho confirmou a existência de milícia em Rio das Pedras, mas negou fazer parte dela. Tanto Nadinho como Natalino eram filiados ao PFL, posteriormente renomeado DEM. Era o partido de Cesar Maia, que durante seu terceiro mandato como prefeito do Rio, entre 2005 e 2008, chegou a dizer que preferia as milícias ao tráfico.
Durante o segundo mandato de Cesar Maia, foi assinado – sem licitação – um contrato de R$ 225 mil com a Associação de Moradores e Amigos de Rio das Pedras (Amarp) cobrindo a prestação de serviços de assistência educacional e nutricional para a manutenção de creches no local entre 2003 e 2004. Na época, de acordo com apuração da Pública, Nadinho presidia a associação.
O DEM é o partido de seu filho, Rodrigo Maia, que comanda hoje a Câmara dos Deputados em Brasília. À CPI, Nadinho declarou ter apoiado a candidatura de Rodrigo Maia a deputado federal. Em 2006, ele foi o segundo deputado federal mais votado em Rio das Pedras, com 5% dos votos.
Nadinho declarou ter apoiado a candidatura de Rodrigo Maia (DEM) a deputado federal | Foto: Luis Macedo/ Câmara dos Deputados
O domínio da família Brazão
Durante o depoimento à CPI, Nadinho citou nomes de policiais envolvidos com a milícia na sua comunidade e disse que, a partir de então, sua vida estava em risco. Dito e feito: em 2009, cerca de seis meses depois, ele foi executado, na zona oeste do Rio de Janeiro, com mais de dez tiros.
Após a morte de Nadinho, o sobrenome Brazão passa a se destacar entre os campeões de votos em Rio das Pedras. Antes disso, entre 2004 e 2010, os resultados das urnas mostram uma performance tímida da família. O melhor resultado havia sido em 2006, quando Domingos Brazão (MDB) conseguiu 2% dos votos e foi eleito deputado estadual.
Depois, porém, o jogo mudou. Nas disputas para deputado estadual, em 2010 e 2014, Domingos foi de longe o candidato com melhor performance eleitoral por aquelas urnas, recebendo quase 30% do total de votos da região para o cargo. Já em 2012 e 2016, seu irmão Chiquinho Brazão (MDB) venceu ali todos os vereadores concorrentes, mas concentrou menos votos que Domingos, angariando aproximadamente 15% do total.
Na última eleição, Pedro Brazão (PR) se candidatou pela primeira vez e se elegeu deputado estadual, com a segunda melhor votação em Rio das Pedras. Dessa vez, foram 1.547 eleitores, ou 6% do total. Pedro é cunhado de Domingos Brazão e, em 2018, perdeu a liderança para a candidata Cleusa Preta Loira (PR), do mesmo partido, moradora do local que obteve 7% dos votos.
A atuação eleitoral da família Brazão em Rio das Pedras foi citada por Nadinho e aparece brevemente no relatório da CPI, quando ele trata das relações políticas nos redutos controlados por milicianos. Além de Domingos Brazão, ele nomeou outros candidatos, como Álvaro Lins (PMDB), ex-deputado estadual e ex-chefe da Polícia Civil.
Em entrevista à Pública, Cleusa Preta Loira, que apoiou Nadinho e acompanhou as campanhas políticas em Rio das Pedras desde os anos 2000, afirmou que nunca houve uma relação efetiva entre Brazão e Nadinho. “Pelo contrário, ele [Brazão] nem entrava lá”, afirma. Confirmando os dados levantados, segundo ela, foi a partir de 2010, já após a morte de Nadinho, que a família Brazão passou a ter maior protagonismo eleitoral na comunidade.
Segundo o documento final da CPI, a milícia do bairro de Oswaldo Cruz, na zona norte, também teria influência política sobre a família Brazão. À época deputado, Domingos Brazão não prestou depoimento, mas solicitou a gravação de todas audiências feitas pela comissão.
Domingos Brazão é filho de portugueses, mas nasceu em Jacarepaguá, na zona oeste do Rio de Janeiro. Ele mantinha um centro social com seu nome na região, que foi fechado em 2010 pelo Tribunal Regional Eleitoral por ser usado para fins eleitorais. Entre outras coisas, os fiscais encontraram ali cadeiras de rodas com a marca do Sistema Único de Saúde (SUS) e registros de dados eleitorais de moradores. Por causa desse evento, ele chegou a ter seu mandato cassado em 2011, mas a decisão foi revertida no TSE.
Domingos não só permaneceu no cargo como foi reeleito. Em 2015, foi escolhido pelos deputados da Alerj como um dos conselheiros do Tribunal de Contas do Estado, tendo seu nome ratificado pelo ex-governador Pezão. Enquanto ocupava o cargo, em abril de 2017, Domingos Brazão foi preso com outros conselheiros em um dos desdobramentos da Lava Jato, sob acusação de receber propina de empresas.
Domingos Brazão foi preso em um dos desdobramentos da Lava Jato | Foto: Arquivo Alerj
Não foi a sua primeira vez atrás das grades. Com 22 anos, Domingos Brazão foi preso por assassinato, mas foi solto após a Justiça ter decidido que ele agiu em legítima defesa. Em 2017, ele ficou pouco mais de uma semana preso. Atualmente, Brazão aguarda em liberdade julgamento dos processos por corrupção. Procurados pela Pública, os membros da família Brazão não responderam às tentativas de contato.
Mesmo com Domingos afastado da vida pública, a família Brazão continua se expandindo politicamente. E, em 2018, garantiu uma cadeira na Alerj e outra na Câmara dos Deputados, em Brasília.
Na última eleição, Chiquinho Brazão foi eleito deputado federal pelo partido Avante. Em apenas dois anos, desde sua eleição anterior, em 2016, quando se tornou vereador pelo Rio de Janeiro, sua declaração de bens aumentou de R$ 2,3 milhões para R$ 3,4 milhões, mais de R$ 1 milhão. Já o cunhado Pedro Brazão declarou R$ 1,9 milhão em bens durante a candidatura que o tornou deputado estadual em 2018.
Apesar da migração recente de Chiquinho para o Avante, a família Brazão é tradicionalmente ligada ao MDB, partido que, ao lado do PFL/DEM, concentrou quase metade dos votos de Rio das Pedras para vereador e deputado estadual na última década. O MDB também esteve à frente da prefeitura e do governo do estado do Rio de Janeiro, além de comandar a Alerj.
Outro candidato do MDB bem colocado em Rio das Pedras foi o vereador eleito Thiago K. Ribeiro, sexto mais votado em 2016, com 1,6% dos votos totais. Ele é filho e sócio do economista Jorge Luiz Ribeiro, preso em 2018 e acusado de ser o operador financeiro do esquema de propina de Jorge Picciani, ex-presidente da Assembleia Estadual e conhecido cacique do MDB no Rio.
Da CPI das Milícias ao caso Marielle Franco
A CPI das Milícias reuniu também informações sobre grupos milicianos de regiões próximas a Rio das Pedras, como a favela Gardênia Azul. Ex-presidente da Associação de Moradores do local, o sargento bombeiro Cristiano Girão foi apontado como suposto líder da milícia ali.
Segundo o relatório da CPI, documentos oficiais mostrariam que Girão chegou a assassinar um morador da comunidade em 2004. O motivo seria o fato de ele ter se recusado a colocar em sua casa propaganda política do então candidato a vereador.
Em 2008, pouco depois de eleito vereador – o segundo mais votado em Rio das Pedras, com 5% dos votos –, Girão foi indiciado pela Polícia Federal por extorsão e lavagem de dinheiro. Na denúncia feita pelo MPRJ, ligações interceptadas na Operação Intocáveis mostram animosidade entre a milícia de Rio das Pedras e a de Gardênia Azul.
Depois de preso em 2009 por acusação de envolvimento com a milícia, só há notícias de Girão ter retornado à sede do Legislativo carioca em março do ano passado, uma semana antes do assassinato de Marielle Franco, conforme revelou o site The Intercept. Segundo o site, o miliciano passou pelo sétimo andar do prédio, onde fica o gabinete de Chiquinho Brazão (MDB).
No ano passado, seu irmão Domingos Brazão foi convocado a prestar explicações nas investigações do caso Marielle. Isso porque uma das testemunhas do caso teria relações com Gilberto Ribeiro da Costa, ex-assessor parlamentar de Domingos na Alerj.
Na zona oeste, Siciliano e a família Brazão são tidos como adversários políticos, por disputarem votos. Na eleição passada, por exemplo, enquanto Chiquinho Brazão pedia para si os votos para deputado federal, Marcelo Siciliano apoiou outro candidato, Tio Carlos, que acabou não conquistando o cargo.
O vereador Marcello Siciliano (PHS) seria o possível mandante da execução que resultou na morte de Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes | Foto: Agência Brasil
Depois da morte de Nadinho, o único político a acompanhar seu enterro foi o então vereador Carlos Alberto Lavrado Cupello, o Tio Carlos, que mantinha com ele um projeto social para crianças, conforme relatou a imprensa à época. Ele se elegeu vereador em 2008 pelo DEM.
Em 2012, Tio Carlos foi reconduzido à Câmara dos Vereadores. No cargo, votou a favor da cassação de Deco (PR), vereador acusado de comandar a milícia da Praça Seca, também na zona oeste da cidade.
Dois anos depois, na eleição seguinte, Tio Carlos subiu um degrau e conquistou uma vaga na Alerj pelo Solidariedade (SD), o mesmo partido do ex-policial Geiso Pereira Turques, que em 2016 foi citado em depoimentos à CPI das Milícias como “participante regular do encontro semanal da cúpula da milícia de Rio das Pedras”. Geiso foi um dos políticos indiciados por extorsão e lavagem de dinheiro pela Polícia Federal em 2008, junto com Girão.
Entre 2012 e 2016, Tio Carlos e Geiso tiveram boa performance em Rio das Pedras, ficando atrás apenas da família Brazão nas disputas eleitorais. Na corrida para a Alerj, Tio Carlos conseguiu 6% dos votos de Rio das Pedras em 2012 e 5% em 2014. Já Geiso levou 9% dos votos dali em 2016, mas teve a candidatura indeferida com base na Lei da Ficha Limpa.
Quando concorreu, Geiso declarou ter mais de R$ 1 milhão em bens, sendo R$ 425 mil em dinheiro vivo. Ele era proprietário do Castelo das Pedras, uma tradicional casa de shows da região e já fora eleito vereador em São Gonçalo pelo PDT.
Mais conhecido como Geiso do Castelo, ele foi um dos indiciados pela CPI das Milícias e, em 2015, foi expulso da Polícia Militar. A Pública solicitou à PMERJ esclarecimentos sobre o desligamento do ex-policial, mas não obteve resposta.
Milicianos interferem nas campanhas eleitorais, segundo pesquisadores
O impacto eleitoral das milícias foi analisado em um artigo de 2015 dos cientistas políticos Daniel Hidalgo e Benjamin Lessing. Eles estudaram a influência política das milícias entre 2002 e 2006, em especial nas candidaturas de membros das forças policiais, e concluíram que os milicianos usaram o controle territorial para se elegerem ou puxarem votos para aliados.
Hidalgo é professor de ciência política no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e Lessing leciona a mesma disciplina na Universidade de Chicago, ambos nos Estados Unidos. No estudo, disponível online, eles mostram um aumento de quase 50% dos votos em candidatos de forças de segurança nas comunidades dominadas por milícias.
Nas eleições analisadas pela Pública em Rio das Pedras, 2018 foi a única em que a concentração de votos do candidato mais popular ficou significativamente abaixo da margem de 15%, apontada como possível indício de “curral eleitoral” pela CPI das Milícias. Pela primeira vez, em Rio das Pedras os votos nulos ou em branco superaram as candidaturas para o Parlamento estadual ou municipal. Na eleição de 2018, 25% dos eleitores dali optaram por anular ou votar em branco.
No levantamento histórico dos mais votados, aparecem também partidos identificados à esquerda, mas com menos força. O PT teve as candidaturas de Robson Leite, que ficou entre os cinco melhores em 2008, 2010 e 2018.
Relator da CPI das Milícias, que investigou os grupos criminosos da região, Marcelo Freixo (Psol) foi o terceiro deputado mais votado em Rio das Pedras em 2014. Naquela eleição para a Alerj, ele conseguiu 847 votos nominais na região – ou 3% do total.
Marcelo Freixo (PSOL), foi relator da CPI das Milícias | Foto: Luis Macedo/ Câmara dos Deputados
Já a votação de Marielle Franco não se destacou em Rio das Pedras. Dos mais de 46 mil votos que tornaram Marielle vereadora, apenas 101 foram registrados nas urnas de Rio das Pedras. O equivalente a apenas 0,4% do total daquela área.
Linha do tempo da ascensão dos Brazão em Rio das Pedras, veja gráfico
Adriano Belisário adrianobf@gmail.com Leia mais do autor