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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

25
Out20

"A Lava Jato não acabou e ainda representa um perigo. E precisa acabar"

Talis Andrade

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III - “A PF, em larga escala, é comandada pelos EUA”, diz autor de livro sobre a Lava Jato

 
Daniel Giovanaz entrevista Fernando Augusto Fernandes
 

Os indícios de submissão da PF aos Estados Unidos que você descreve no livro são muito consistentes. Há alguma margem de autonomia para quem atua nessa instituição?

intervenção americana através do DEA [Drug Enforcement Administration, Administração de Fiscalização de Drogas em português], que é o departamento de entorpecentes, é gritante. Há provas, levantadas em CPI, de dinheiro dos EUA recebido pela Polícia Federal. E não é uma jaboticaba brasileira, porque há estruturas semelhantes em outros países da América Latina.

São milhões enviados para doutrinação de policiais, compra de passagens e mesmo dinheiro para operações. Está comprovado, inclusive com entrevistas de agentes da CIA. É escandaloso, mas são coisas que vão se perdendo, peças do quebra-cabeça que estão por aí e precisam ser encaixadas.

Meu livro não é a teoria da conspiração, mas sim, demonstra claramente uma interferência diante da qual não podemos ser inocentes.

A Polícia Federal está, em larga escala, influenciada a comandada pelos Estados Unidos. Mas é preciso entender a profundidade dessa doutrinação.

É evidente que o Moro e o Dallagnol não compreenderam que estão sendo objeto de condução americana, porque eles acreditaram que estavam fazendo algo pelo Brasil republicano, e que prender o Lula seria grande coisa. Eles tinham consciência, sim, das ilegalidades.

Os policiais federais, a mesma coisa. A intervenção é tão profunda que faz com que eles, ganhando milhões para fazer certas operações, acreditem que estão cumprindo um grande papel pelo país.

E os Estados Unidos aproveitam e vendem armas, helicópteros, escutas telefônicas. Esse investimento volta com a guerra armamentista, que antes era sustentada pela Guerra Fria, e hoje se baseia na guerra às drogas.

 

No artigo “Considerações sobre a operação Mani Pulite”, Moro traça um roteiro do plano que pretendia colocar em prática no Brasil. Aquele texto não derruba essa hipótese de que ele seria inocente ou ingênuo sobre o papel que cumpriu na Lava Jato?

Eu diria que atribuir a esses atores plena consciência de que estavam trabalhando pelos interesses americanos, contra a nossa pátria, estaríamos creditando a eles uma inteligência que eu não atribuo. Em segundo lugar, estaríamos falando claramente de agentes internacionais aqui. Eu não acredito nisso.

Não digo que eles são inocentes. Essa palavra é muito forte e soa como absolvição. Por isso, quando faço a dedicatória do livro, eu digo: “Uma história da qual sou advogado e testemunha, mas que a História vai julgar.” Essa absolvição ou condenação virá historicamente.

Eles têm consciência das ilegalidades cometidas, mas a doutrinação é tão profunda – e se mistura com ideologia, religião, com visão de mundo – que eles são manipulados.

 

Quantos réus e investigados você defendeu, e por que nem todos os casos são mencionados no livro?

Não devo dizer o número e o nome de todos, por uma questão de ética profissional. Eu trouxe no livro os casos que são publicamente conhecidos e que têm reflexo direto em fases decisivas da Lava Jato – fase 1, Paulo Roberto Costa [ex-diretor de Abastecimento da Petrobras], e a “fase Lula”.

Defendi o Paulo Okamotto, presidente do Instituto Lula, e colaborei com outros três deputados do PT – Paulo Teixeira, Paulo Pimenta e Wadih Damous – em duas ações muito importantes. A primeira foi o habeas corpus que visava soltar o Lula naquele domingo [7 de julho de 2018].

Embora não tenha sido cumprida, essa decisão é muito importante para se compreender que o Judiciário não pensa todo igual.

A Lava Jato não é a visão integral do Poder Judiciário, e se não houvesse a fraude das distribuições, para que tudo ficasse sempre nas mãos das mesmas pessoas, haveria decisões diferentes. É isso que mostra a tentativa de soltura do Lula naquele domingo.

A segunda foi uma decisão do Lewandowski [ministro do Supremo Tribunal Federal (STF)] garantindo a entrevista do Lula. Nesse caso, o Fux [então vice-presidente do STF] suspendeu a decisão do Lewandowski, algo que se repete agora com o Marco Aurélio [ministro do STF] sobre o traficante [André do Rap, do PCC].

Veja como os autoritarismos se repetem. Naquela tentativa de soltura do Lula, no Rio Grande do Sul, foi o presidente do TRF-4 [Tribunal Regional Federal da 4ª Região] quem deu uma decisão suspendendo [o habeas corpus]. São poderes que os presidentes dos tribunais não têm.

 

Você também é advogado do almirante Othon Luiz Pinheiro, pai do programa nuclear brasileiro e condenado a 43 anos de prisão por supostos atos de corrupção na gestão da Eletronuclear. Nesse caso, também havia interesses internacionais em jogo?

Assumi a defesa do almirante Othon após a sentença em primeira instância, e mais tarde obtive o habeas corpus para soltura dele.

O almirante Othon tem uma importância histórica no programa nuclear brasileiro. Ele foi responsável por um projeto secreto, durante o regime militar. Nessa época, em cima do apartamento dele, havia agentes da CIA monitorando o apartamento.

Veja o tamanho da importância do almirante Othon. Ele também acompanhou Lula e Nelson Jobim [então ministro da defesa] na ONU ajudando o governo brasileiro a recusar determinadas exigências do governo dos EUA em relação aos nossos projetos nucleares. Bastou o almirante Othon ser preso para que esses pedidos americanos retornassem imediatamente.

No livro, nós cruzamos essas informações com um escândalo que ocorreu nos EUA, revelado pelo Glenn Greenwald, do Edward Snowden, demonstrando que os Estados Unidos já monitoravam a Dilma, a Petrobras. Eles já sabiam dos desvios – repare, não estamos dizendo que não houve desvios.

Quando o [Barack] Obama disse ao Lula que os Estados Unidos queriam entrar no projeto do pré-sal, e o Lula disse não, ficou claro o recado. Não é à toa que os EUA invadiram o Iraque, se aproveitando do [atentado de] 11 de setembro [de 2001]...

A retirada do almirante Othon de circulação foi um símbolo do enfraquecimento do Brasil, não só no petróleo, mas no seu projeto de independência nuclear. Ele recebeu a pena mais alta da Lava Jato! Maior que o Sergio Cabral [ex-governador do Rio de Janeiro].

A sentença contra ele foi a primeira dada pelo Bretas, como um exemplo de poder. Ele passou quase dois anos preso, antes de eu assumir a defesa, em um centro de fuzileiros navais. Para quem acha que isso é uma garantia, eu digo que era praticamente uma Guantánamo. Sua cela era pequena, sem contato com absolutamente ninguém.

Ele iria tentar suicídio, se não fosse interrompido por uma militar – porque ele era monitorado por câmeras. Enfim, era uma solidão absoluta.

Foi terrível o que ele viveu.  A questão é muito profunda, e ainda há muito a descobrir.

 

Você dedica um capítulo do livro apenas para falar de religião. Por que você considera esse aspecto da Lava Jato tão importante?

O poder religioso ainda é muito forte. É importante dizer que as igrejas católica e evangélica têm diversas linhas, e essas questões são complexas.

Tem uma faceta importante que é o “catolicismo ilustrado”. É um rebuscamento do catolicismo, como se você escondesse o inquisitorial. É o “amor pelo censor”. A violência – contra a mulher, por exemplo – vem sempre com um “eu te amo”. Tudo isso se conecta ao poder religioso.

E o catolicismo ilustrado tem sempre uma faceta de fingimento, e é aí que eu conecto ao Sergio Moro. Ele, que é um católico ilustrado, finge que não vaza [informações] à imprensa, mas vaza – como ele mesmo escreveu, “vaza como peneira”. Ele finge ser modesto não dando entrevistas durante todo o tempo na operação, mas curtia, de fato, a imagem de super homem.

Ele foi educado em um colégio de freiras e tinha o “caminho da perfeição” como algo fundamental na sua educação. E essa escola era da mesma linha da Universidade de Notre Dame [nos EUA], que depois vai homenageá-lo. As conexões são mais profundas do que parecem.

O Dallagnol fez uma greve de fome contra a soltura do Lula, relembrando um pastor [batista] chamado Enéas Tognini, que durante a ditadura militar utilizou o jejum em defesa da repressão, arregimentando pessoas. 

E como se difere o Dallagnol de outro grande religioso, pastor evangélico, que é o Martin Luther King! É incomparável. No caso da Lava Jato, vemos a utilização da religião para o fim da repressão, para criar permanências históricas de longa duração que nos desviam da democratização.

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A entrada de Moro no Ministério da Justiça e Segurança Pública de Bolsonaro parecia sinalizar um pacto entre a direita liberal e a direita radical. Ou seja, o lavajatismo seria a amálgama entre os dois campos, já que havia impedido o retorno do PT ao governo. Quais os impactos do rompimento entre Moro e Bolsonaro para a Lava Jato e o discurso anticorrupção?

Uma das questões fundamentais da Lava Jato foi dar sequência ao discurso do Mensalão. Na época, Moro era assessor da Rosa Weber [ministra do STF], nomeada pelo PT, e foi um dos responsáveis pela deturpação da teoria de “domínio do fato” para condenar várias pessoas, incluindo o José Dirceu [ex-ministro da Casa Civil no governo Lula].

Foi aí que começaram a colocar uma tatuagem no PT, como se o partido fosse responsável pela corrupção, e o Lula comandasse todo o processo. Não estou dizendo aqui que não houve corrupção, porque há em todos os governos. É como falar de drogas: é impossível um mundo sem drogas.

Não podemos criar uma cultura de combate à corrupção sob um ponto de vista bélico, porque isso nos desvia da democratização.

Eu não acho que a Lava Jato seja uma operação morta. Nós ainda não conseguimos resolver as fissuras democráticas, em especial do STF, sobre a Lava Jato.

 

É preciso compreender que o Moro representa um tipo de repressão e intervenção mais rebuscado, mais admissível para a classe dominante, do que representa o bolsonarismo

Como um juízo consegue conectar vários processos findos para ter a sua jurisdição prolongada eternamente, sem que haja uma distribuição, como acontece em Curitiba, como acontece com o Bretas? Isso é claramente uma ofensa ao princípio do juízo natural.

O Fachin [ministro do STF] continua sendo relator da Lava Jato no STF, o Felix Fischer [ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ)] continua sendo relator da Lava Jato no STJ.  E essas operações, em que pese estarem menores, continuam ocorrendo. Não é página virada. Ainda estamos nesse momento histórico.

É preciso compreender que o Moro representa um tipo de repressão e intervenção mais rebuscado, mais admissível para a classe dominante, do que representa o bolsonarismo. Este só foi admitido pela classe dominante em um contexto de antipetismo, mas o Bolsonaro representa algo mais grotesco, um tipo de repressão mais próximo à doutrina de segurança nacional, que já está ultrapassada.

Ou seja, a Lava Jato não acabou e ainda representa um perigo. E precisa acabar.

 

 

 
25
Jul20

República de canalhas

Talis Andrade

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Advogado analisa foro especial

E distorções que instrumento causa

por ANTÔNIO CARLOS DE ALMEIDA CASTRO /Poder 360

“Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).”
“Só uso as palavras para compor meus silêncios”
Manoel de Barros

 

É interessante notar que, vez ou outra, o tema do foro especial por prerrogativa de função se apresenta, ainda que de maneira indireta. Um exemplo claro de tentativa canhestra de burlá-lo se deu agora com o Delta quando ele optou por escrever uma petição, de maneira a escamotear os nomes completos dos presidentes do Senado e da Câmara. O intuito de não demonstrar que as autoridades citadas tinham foro no Supremo ficou mais evidente pela desculpa esfarrapada no sentido de que os nomes não cabiam no papel. O grande Elio Gaspari expôs o ridículo do argumento:

“(…) foram apanhados pelo repórter Leonardo Cavalcanti chamando Rodrigo Maia de “Rodrigo Felinto” e David Alcolumbre de “David Samuel” numa planilha oficial. Esse golpe é velho, usado por delegados e procuradores que tentam confundir juízes. Justificando-se, a equipe do doutor Martinazzo disse que os nomes completos não cabiam no espaço. Contem outra, doutores. Pode-se fazer tudo pela Lava Jato, menos papel de bobo. O nome Rodrigo Felinto tem 15 batidas, Rodrigo Maia cabe em doze.”

É o que eu sempre afirmei: esta turma da Lava Jato possui um excelente setor estruturado de marketing, pois juridicamente são bem fraquinhos. Eticamente, inexistentes. E, se forem expostos, certamente vão dar vexame se explicando. Eles me lembram o velho rabugento Bukowski: “Posso viver sem a grande maioria das pessoas. Elas não me completam, me esvaziam”.

É claro que a maior de todas as falsidades se deu, inúmeras vezes, pelo então verdadeiro chefe da força-tarefa de Curitiba, o ex-juiz, ao burlar incontáveis vezes o princípio do juiz natural e se autodeclarar juiz universal, com competência e jurisdição em todo o território nacional. Juiz de todas as causas em que o interesse político do grupo que representava estivesse presente. Juiz ad hoc. Muito mais do que juiz parcial. Juiz com definição de interesse específico. O que estivesse no radar do projeto político do grupo passava a ser de competência restrita do magistrado. Essa é uma das importâncias de se discutir a dimensão do que representa o juiz natural. Não apenas por ser um requisito constitucional, mas também por poder afastar os interesses políticos de grupos que não se intimidam em instrumentalizar o Ministério Público e o Poder Judiciário.

Com a espetacularização do processo penal, grupos inescrupulosos viram, na seara do Judiciário, um meio fértil para fortalecer projetos de poder. A discussão sobre o juiz natural sempre foi relevante no direito brasileiro, especialmente quando ocorre tentativa clara de burlar os Tribunais Superiores. Um caso clássico foi o do ex-senador Demóstenes Torres. O Ministério Público, a polícia e um juiz de 1º Grau tentaram burlar a competência constitucional do Supremo Tribunal –afinal, Demóstenes era senador– e fizeram uma investigação sem poderes para tanto. À época, eu era advogado do senador e me vi obrigado a me socorrer ao Supremo Tribunal, com um HC, e, por unanimidade, retirar dos processos todas as provas obtidas de maneira ilegal, com artimanhas e desprezo à Constituição. O resultado foi a anulação, ao final, de todos os procedimentos e processos contra o senador.

Ao longo da vida, advoguei para 4 presidentes da República, mais de 90 governadores, dezenas de senadores, ministros, deputados e sempre os alertei, todos eles, que eu era contra o foro especial por prerrogativa de função. E mais, que eu entendia ser o foro uma “armadilha” contra os réus. Menos à época em que nem sequer havia os processos, as denúncias, mas essa é outra história…

Sempre afirmei que, em um sistema republicano, o foro especial por prerrogativa de função deveria ser extinto. O caso conhecido como mensalão é uma prova cabal do risco que ele representa. O processo foi julgado pelo plenário do Supremo e, antes do espetáculo midiático da Lava Jato, era, até então, o maior sucesso de mídia no Judiciário brasileiro. Com uma massiva campanha pela condenação, com uma mídia opressiva e determinada, o julgamento foi se afastando de qualquer rigor técnico.

Para conseguirem as condenações, os ministros fizeram uma vergonhosa subleitura da teoria do domínio do fato. Alguns por não dominarem a teoria; outros por uma definição prévia de condenação. Fico à vontade para analisar, pois meus clientes, Zilmar e Duda Mendonça, foram absolvidos. Ainda que, como resultado da excessiva exposição midiática, mesmo absolvidos, inocentados, eles, por anos, continuaram no imaginário popular como “mensaleiros”, ou seja, foram condenados. Mas, pelo menos, mesmo condenados pela opinião pública, livraram-se soltos.

Os efetivamente condenados não tiveram como recorrer exatamente em razão do foro “privilegiado”. Julgamento midiático em única e última Instância, tudo que não pode ocorrer em um Estado que se pretenda democrático. Numa República, não há justificativa para foros diferentes, porque a regra é que somos iguais, todos, em direitos e deveres. E a expectativa é um Judiciário independente, rápido, aparelhado para aplicar e fazer cumprir a Constituição.

Proponho uma reflexão sobre a hipótese de manter o foro no Supremo Tribunal somente para os presidentes dos Três Poderes e o procurador-geral da República. As demais autoridades que hoje detêm o foro especial por prerrogativa de função seriam julgadas por um juiz de 1º Grau, com uma relevante inovação: toda e qualquer medida restritiva de direito (prisão, busca e apreensão, afastamento do cargo e quebra de sigilos, enfim, o afastamento de qualquer garantia constitucional) só poderia ser feita por um colegiado de 3 ou 5 desembargadores. O processo seguiria o rito normal com um juiz de 1ª Instância que julgaria o caso, mas as medidas restritivas teriam que ser colegiadas.

Não é salutar um juiz apressado mandar prender o ministro da Fazenda, o presidente do Banco Central ou uma autoridade cuja detenção abale para muito mais das hostes individuais. Esta é uma discussão que cabe fazer neste país onde a velha e a surrada frase “sabe com quem está falando” pula de boca em boca. Ora está na boca de um desembargador; ora, na de um encastelado dos Jardins ou da zona sul, que ainda se sentem melhores do que os demais cidadãos. Como se existissem cidadãos de 1ª e de 2ª classe. É contra esta prepotência, esta pobreza de espírito, esta forma de racismo enraizado, este autoritarismo enrustido que eu proponho esta reflexão.

Assim, quando uma “autoridade” ou um idiota qualquer que se esconde atrás de uma montanha de dinheiro ou de poder sacar um argumento de falsa autoridade, nós poderemos responder: “Não sabemos quem é você atrás desta arrogância, mas aqui é a República”. Parafraseando o cartunista Rafael Corrêa: “E agora, o que faremos? Poesia, esses canalhas não suportam poesia”. Talvez com uma dose de humildade, de humanidade, até mesmo estes pobres de espírito da autointitulada República de Curitiba possam entender o que é República, numa visão humanista e igualitária. Pode não significar nada, mas pode ser um começo. Como ensina a nossa Clarisse Lispector: “E, antes de aprender a ser livre, tudo eu aguentava, só para não ser livre”.

 

18
Jul20

O Moro que sai de vítima do governo é o mesmo Moro que pariu Bolsonaro

Talis Andrade

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II - A hegemonia da crueldade: Como uma elite raivosa enfiou uma faca no coração da democracia

por Maria Inês Nassif

- - -

A Lava Jato que prometia acabar com a corrupção do país se mostrou apenas um instrumento político das elites brasileiras, encerrada em si mesma: não existe Lava Jato para além da armação destinada a tirar o PT do poder, encarcerar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e permitir a ascensão da direita. O resto é fake news.

Esse processo termina agora numa cisão entre facções de classe e uma situação extremamente perigosa em que o grupo vitorioso é um exército de lumpens comandado por um Napoleão de sanatório que tem apoio das Forças Armadas, dos corpos policiais nacional e estaduais e das milícias que corroem a dignidade da população pobre nas periferias da grandes cidades (normalmente sob a liderança de egressos das forças policiais e militares). E encerra uma verdade incontestável: o Moro que sai de vítima do governo é o mesmo Moro que pariu Bolsonaro. A vítima é o algoz. Ambos são a mesma coisa. Não existe Moro sem Bolsonaro. Não existe Bolsonaro sem Moro. A operação Lava Jato foi a mensageira da destruição de um país que um presidente cruel quer completar. O STF, hoje atacado pela horda bolsonarista, é parte: rasgou a Constituição em 2005, quando passou a ser cúmplice do desastre que se avizinhava com o forjamento de um senso comum segundo o qual os governos do PT eram intrinsicamente corruptos e que o lugar da esquerda era na cadeia – a original saída de condenar sem provas pelo instituto do “domínio do fato” ficará na história da mais alta corte brasileira, marcada em brasa na sua pele. O ministro Teori Zavaschi – o relator da Lava Jato que dava substância jurídica às investigações do caso artificialmente montado por um obscuro juiz de primeira instância do Paraná que ganhou notoriedade nacional –  morreu em um acidente aéreo em 2017, e a partir dessa tragédia a máscara do Judiciário caiu completamente: o STF deixou de ser uma corte constitucional para tornar-se o carrasco que leva à forca qualquer um que se configure obstáculo à volta dos donos de poder de fato ao poder de direito. A cruel elite brasileira conquistou a maioria do Supremo Tribunal Federal (STF) antes de embarcar com armas, bagagens e financiamentos de campanha na eleição da extrema-direita, em 2018.

Não por outro motivo pareceu tão natural que Moro, juiz concursado, no governo Bolsonaro, fosse escolhido ministro de Bolsonaro nas primeiras horas após a declaração da vitória eleitoral do representante da extrema-direita. (Continua)

23
Fev20

No Brasil, mistérios de um golpe de Estado judicial

Talis Andrade

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A destituição da presidenta Dilma e o processo espetaculoso e a prisão de Lula, favorito nas eleições de 2018, fundaram-se num mesmo motivo: o combate à corrupção. Muitos observadores apoiaram essa vassourada dada em nome da justiça republicana – antes de perceberem que se tratava de um golpe de Estado que, ao final, favoreceu a extrema direita

por Perry Anderson

Le Monde

A Operação Lava Jato, ligada ao mais importante escândalo de corrupção da história brasileira recente, teve início em março de 2014. Ficou sob a responsabilidade do juiz Sérgio Moro, que tinha mostrado as garras em 2005 quando era assistente em outra questão muito midiatizada: o escândalo do Mensalão, concernente ao pagamento, pelo PT, de propinas a deputados em troca de apoio.

Moro descrevera seu modo de proceder em um artigo publicado em meados da década de 2000. Consiste em imitar os procedimentos utilizados por ocasião da Operação Mani Pulite [Mãos Limpas], que, no início dos anos 1990, derrubou os partidos de governo italianos, antecipando o fim da Primeira República. Em seu texto, Moro salienta a importância de dois aspectos desse método: o recurso à prisão preventiva, de modo a incitar a delação, e a divulgação na imprensa, calibrada para suscitar a ira da opinião pública e pressionar suspeitos e instituições. De acordo com ele, a cenografia midiática tem mais importância que a presunção de inocência.

Durante a Operação Lava Jato, o juiz brasileiro revelou talentos ocultos de produtor artístico. Ataques, prisões com grande espetáculo, confissões: apelos na imprensa e nas redes de televisão garantiram em cada etapa uma grande cobertura das operações que ele orquestrou. Cada uma mais dramática que a outra, elas foram numeradas e dotadas de código emprestado do imaginário cinematográfico, clássico ou bíblico: Dolce Vita, Casablanca, Aletheia (“verdade”, em grego antigo), Julgamento Final, Omertà, The Abyss [no Brasil, O segredo do abismo] etc. Os italianos se vangloriam de ter um senso inato de espetáculo? Moro os fez passar por amadores.

Durante um ano, as acusações miraram antigos diretores da empresa nacional de petróleo Petrobras, acusados de ter recebido propina, antes de provocar a queda do tesoureiro petista João Vaccari Neto e dos dirigentes das duas maiores empresas de construção civil e obras públicas do país: Odebrecht1 e Andrade Gutierrez. As manifestações de apoio a Moro ganharam força. Exigindo a punição do PT e a saída da presidenta Dilma Rousseff, elas pressionaram o Congresso. Só faltava ao presidente da Câmara, Eduardo Cunha, colocar na ordem do dia a destituição da presidenta.
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Juízes, justiceiros ou políticos

Isolada e enfraquecida, Dilma pediu ajuda ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ele utilizou sua habilidade de negociador para reparar as relações com o antigo aliado, o PMDB. Cunha, que parecia ter colocado vários milhões de dólares em contas secretas na Suíça, propôs um pacto de proteção mútua: ele interromperia suas investidas contra a presidenta se o governo lhe fizesse um favor. Lula solicitou a Dilma que aceitasse a mão que lhe era estendida; ela se recusou, com o apoio da direção nacional do PT, que temia que a cumplicidade fosse descoberta. Por fim, os deputados do PT apoiaram as acusações contra Cunha, que reagiu lançando o processo de destituição.

Por sua vez, Moro preparou o tiro fulminante. No início de março de 2016, ele desencadeou a Operação Aletheia. Lula foi interpelado nas primeiras horas do dia, diante das objetivas das câmeras, tendo a mídia sido avisada antes. Suspeitava-se que o ex-presidente tinha se beneficiado da generosidade da Odebrecht. Seguiram-se outras investidas. Moro interceptou – e divulgou para a imprensa – uma conversa telefônica entre Dilma e Lula, que ele grampeara. Nela, os dois dirigentes se referem à possibilidade de este se tornar ministro-chefe da Casa Civil. Como os funcionários de escalão ministerial e os membros do Congresso desfrutam de foro privilegiado, não há a menor dúvida de que se tratava de uma estratagema para impedir sua prisão.

A pressão da rua em favor da destituição chegou a seu paroxismo. Na Câmara, no entanto, nada indicava que a maioria dos dois terços seria obtida. Novas incursões divulgaram anotações da Odebrecht que detalhavam as quantias transferidas para cerca de duzentas personalidades pertencentes a quase todos os partidos. Na classe política, todos os sinais estavam vermelhos: um membro do primeiro escalão do PMDB foi gravado sem que soubesse dizendo a um colega que “é preciso estancar a sangria”. Ora, “os caras do Supremo Tribunal” lhe disseram que isso parecia impossível enquanto Dilma estivesse no poder, uma vez que a mídia estava contra ela. Não havia outra opção, explicou ele, a não ser substituí-la o mais rápido possível pelo então vice-presidente, Michel Temer, e formar um governo de união nacional apoiado pelo Supremo Tribunal e pelo Exército. Em menos de duas semanas, a Câmara aprovou a destituição da presidenta, deixando o campo livre para Moro se desembaraçar de Cunha, que tinha se tornado inútil. Este logo foi expulso da Câmara e acabou na prisão. O Senado validou a destituição da presidenta e Temer assumiu a direção do país.
 

No início de 2017, Lula foi acusado com base em suspeitas de corrupção ligadas à aquisição de um apartamento à beira-mar do qual jamais foi o proprietário legal. Julgado em Curitiba no verão do ano seguinte, foi condenado a nove anos de prisão. Na apelação, a pena subiu para doze anos. Com o primeiro presidente vindo do PT atrás das grades e a segunda destituída sob escárnio, o naufrágio do partido parecia total.

Duas análises do papel dos juízes surgiram então. A primeira os descreveu como justiceiros determinados a lançar por terra a corrupção; a segunda, como agentes políticos prontos a qualquer coisa para chegar a seus fins. Em sua obra O lulismo em crise (Companhia das Letras, 2018), o cientista político brasileiro André Singer rejeita as duas. Segundo ele, os juízes se mostraram perfeitamente republicanos e, ao mesmo tempo, inegavelmente facciosos. Republicanos: como descrever de outra maneira a prisão dos diretores das empresas mais ricas e poderosas do país? Facciosos: que outro sentido dar à perseguição sistemática dos membros do PT enquanto os de outros partidos – exceto Cunha, que se tornou extremamente inconveniente – foram poupados? Sem falar das afinidades políticas dos juízes, dos anátemas que lançaram no Facebook ou das fotografias em que os vemos posar, sorrindo, exibindo os símbolos de partidos conservadores. Uma pergunta subsiste: esses juízes foram republicanos e facciosos em proporções equivalentes?
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Pena reduzida para dono da Odebrecht

No sistema judiciário brasileiro, policiais, procuradores e juízes formam corpos independentes uns dos outros. A polícia reúne as provas, os procuradores proferem as acusações e os juízes arbitram as penas (no Brasil, os júris populares só intervêm em casos de homicídio). Todavia, na prática, as três funções se fundiram na ocasião da Lava Jato, quando a polícia e os procuradores trabalharam sob a supervisão do juiz que controlou as investigações, determinou as penas a serem cumpridas e as pronunciou: uma inegável negação dos mecanismos básicos da justiça, que preveem a separação da acusação e da condenação (sem mencionar o fato de o juiz Moro ter varrido de uma hora para outra o princípio da presunção de inocência).

Outra invenção do sistema judiciário brasileiro: a “delação premiada” permite ameaçar uma pessoa com penas de prisão pesadas, a menos que ela contribua para envolver outra condenável – o equivalente judiciário a uma chantagem. É possível calcular as derivas para as quais contribui um dispositivo como esse no caso de Marcelo Odebrecht, o empresário mais rico interpelado na investigação. Condenado a dezenove anos de prisão por corrupção, ele teve sua pena reduzida para dois anos e meio a partir do momento em que se curvou ao jogo dissimulado da delação. Nesse contexto, teria de se esforçar para superestimar a pressão submetida de modo a fornecer aos magistrados os elementos suscetíveis de contribuir para avançar as investigações que mais os preocupavam.

Mas tudo o que precede pesa finalmente pouco no que diz respeito à introdução do conceito de domínio do fato: a possibilidade de condenar alguém na ausência de prova direta de sua participação em um crime, de acordo com a ideia de que a pessoa pode ser responsável por ele. Esse mecanismo deriva daquele de Tatherrschaft (“controle do ato”), criado pelo jurista alemão Claus Roxin para condenar criminosos de guerra nazistas. Mas Roxin denunciou a utilização brasileira do princípio: figurar em uma posição ou outra num organograma não é suficiente, diz ele, para estabelecer a responsabilidade por um crime. É preciso, além disso, que a justiça possa provar que o dito crime tenha sido comandado pelo acusado. E o juiz Moro não se preocupou com essas sutilezas. Por supostamente ter recebido um apartamento no valor de US$ 600 mil, Lula foi condenado a doze anos de prisão2: dois terços da pena de prisão inicial de Odebrecht por menos de 2% da quantia que este último foi acusado de ter desviado. [Continua]

 

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