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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

30
Mar23

"Na democracia, militares devem ficar afastados da política"

Talis Andrade
 
 
 
Memória Sufocada – Papo de Cinema
 
 
 

"Memória sufocada" é o primeiro filme a mostrar as dependências do Doi-Codi em São Paulo. Para diretor Gabriel Di Giacomo, conclusão é que "a ditadura foi um período muito nocivo para o país".

 

por Edison Veiga

 

Se toda história precisa de vilões, em Memória sufocada, que estreia nos cinemas nesta quinta-feira (30/03), eles são todos personagens reais. O principal é Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015), coronel do Exército que chefiou um dos principais centros de tortura e assassinato de oponentes da ditadura militar do Brasil, o Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna (Doi-Codi) de São Paulo.

O outro é um declarado admirador de Ustra, o ex-presidente do Brasil e também militar Jair Messias Bolsonaro, o qual. "enquanto presidente da República, principal figura pública do país, defendeu a ditadura e disse que […] seu livro de cabeceira [é] um livro escrito por um torturador", diz o diretor do filme, Gabriel Di Giacomo, em entrevista à DW.

O título Memória sufocada é uma alusão ao livro escrito por Ustra, A verdade sufocada, que traz sua controversa versão dos fatos ocorridos durante o regime de exceção.

Com uma linguagem dinâmica, em que a edição compila de forma inteligente conteúdos disponíveis na internet, o filme reproduz uma busca por informação sobre a ditadura. Trechos do histórico depoimento dado por Ustra à Comissão Nacional da Verdade, em maio de 2013, funcionam como eixo condutor, "provocando" boa parte das buscas – que, invariavelmente, contradizem as informações dadas pelo militar. 

"Eles eram criminosos? Isso de fato aconteceu? Acho que com essa anistia ampla e irrestrita que foi o final da ditadura no Brasil, as respostas ficam em aberto. O ideal era que a gente tivesse colocado um ponto final nessa história", afirma Di Giacomo.

 

Edson Veiga entrevista Gabriel Di Giacomo

 
Gabriel Di Giacomo - AdoroCinema
Gabriel Di Giacomo
 

 

DW Brasil: Vocês foram a primeira equipe de cinema a filmar o interior das dependências do antigo Doi-Codi em São Paulo?

Gabriel Di Giacomo: Antes já tinham acontecido algumas matérias jornalísticas, mas para o cinema é o primeiro filme que vai mostrar as dependências do Doi-Codi de São Paulo.

 

Quais as impressões sobre o interior do prédio?

Foi um misto de emoções. Era o período [inicial] da pandemia, em [agosto de] 2020, foi a primeira filmagem que eu fiz durante a pandemia. Eu reencontrei a equipe, meus amigos. Vi as pessoas ao vivo, né? Apesar de a gente estar com todos os protocolos, tivesse essa alegria de estar encontrando [os amigos], ao mesmo tempo a gente estava indo cumprir essa missão, que era filmar dentro de um lugar macabro. Eu não sou muito ligado nessas paradas de energias, mas o simples fato de você saber que existiam […] lugares oficiais onde o Estado autorizava a tortura e a execução de presos políticos, isso gera um mal-estar. Você começa a imaginar o que se passou ali dentro.

 

O título do filme alude ao livro do Coronel Ustra A verdade sufocada. Considerando a maneira como o coronel foi propagandeado por Jair Bolsonaro, acredita que esse livro seja a principal fonte de desinformação sobre a ditadura militar por parte da extrema direita brasileira hoje?

Não tem como esse discurso não refletir na sociedade: o Bolsonaro, enquanto presidente da República, principal figura pública do país, defendeu a ditadura e disse que esse é seu livro de cabeceira, um livro escrito por um torturador. Não tem como, na esteira disso tudo, as pessoas não começarem a se sentir autorizadas a reproduzir esse discurso.

E, realmente, nos últimos anos, comecei a reparar que muita gente que nem era tão radical passou a relativizar a ditadura… Isso foi um dos motivadores de eu querer fazer um filme que, eu digo até, é um pouco didático. Porque me parece que alguns se esqueceram do que foi a ditadura. Estamos precisando refrescar um pouco a memória. […] Filmes sobre a ditadura precisam ser feitos. De tempos em tempos, todo ano, sei lá. Não custa a gente repetir o que foi e o que é uma ditadura, para que a gente não ocorra no mesmo erro novamente.

E, no caso do Brasil, como não houve punição para nenhum criminoso da ditadura, para violadores dos direitos humanos, ninguém foi condenado judicialmente, ninguém foi punido, isso também é um dos fatores que deixam essa memória, essa narrativa, essa história do Brasil em aberto. Se a justiça não puniu, não tem um ponto final nessa história. Os torturadores, quem mandou torturar, os mandantes dos crimes, das execuções… Eles eram criminosos? Isso de fato aconteceu? Acho que com essa anistia ampla e irrestrita que foi o final da ditadura no Brasil, as respostas ficam em aberto. O ideal era que a gente tivesse colocado um ponto final nessa história.

 

A linguagem do filme, a maneira como a edição foi feita, dá a impressão de que o espectador, em primeira pessoa, está fazendo buscas sobre o tema na internet, assistindo a diversos trechos de vídeos, ouvindo podcasts, navegando por sites, etc. De que forma isso é uma crítica à superficialidade dos "intelectuais graduados pelo YouTube", de hoje em dia?

Com a popularização da internet, a informação e a desinformação estão acessíveis a qualquer pessoa. Claro que a internet tem todo o tipo de informação. É muito conhecimento. Mas não é tudo que está ali que é idôneo, então a gente tem de questionar sempre qual a qualidade da busca, e há vários meios de fazer isso. Checar de onde veio a notícia, ver se a fonte é confiável, se a notícia está nos jornais, em que está embasada, checar os documentos que comprovam o que está sendo dito. Isso é uma questão muito importante para o futuro do mundo, não só do Brasil. […]

Este buscador funciona como fio-condutor do filme, querendo informações sobre a ditadura. É uma busca que acaba sendo pautada por documentos, depoimentos. Até por isso também fizemos um site do filme, onde você encontra todas as fontes de informação, pode acessar os documentos. É para que o espectador também possa fazer suas buscas e encontrar as respostas. Mas tem uma coisa de que eu não tenho dúvida: algumas conclusões serão iguais às que estão no filme. Porque se você se basear em informações corretas, vai chegar à conclusão de que a ditadura foi um período muito nocivo para o país, não só na questão humanitária, na violência, mas também foi um fracasso econômico, prejudicou muito a educação no país. Um dos papéis do filme é disputar essa memória e reestabelecer alguns fatos históricos que pareciam que eram óbvios, mas que estão um pouco confusos agora.

 

Há uma cena do filme que mostra a manifestação de 2016 em que alguns participantes pedem uma intervenção militar no país. Hoje esse tipo de pensamento ainda é grande no país?

Infelizmente essa opinião ainda está viva. […] Esses grupos foram crescendo […] e de alguma forma realmente ganharam força. O 8 de janeiro [quando golpistas invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes, em Brasília] é a prova de que isso aí está firme. A única forma que a gente tem de combater isso é por meio da informação. Diálogo e informação são a única saída para a gente desarmar essa bomba.

 

A exposição de militares de alta patente na cúpula do governo Bolsonaro contribuiu para derrubar o mito da honestidade e eficiência da categoria, uma herança do período da ditadura? A imagem dos militares acabou arranhada pelos quatro anos de Bolsonaro?

Eu acredito que qualquer um que tenha participado ativamente de um governo desastroso e criminoso como foi o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, de alguma forma sai com a imagem arranhada.

Os militares, como ocuparam cargos importantes num governo que produzia crises quase que diariamente, de alguma forma saem com a imagem arranhada. E é curioso porque, quando acabou a ditadura, eles […] tomaram a decisão de se afastar da vida política do país. E agora voltaram a ter essa participação ativa. E isso me preocupa. Acho que numa democracia saudável os militares devem se manter afastados da vida política, […] as Forças Armadas têm de se restringir às funções que estão determinadas pela Constituição. Isso é o melhor para todo mundo.

28
Jan23

Justiça condena três delegados a pagarem R$ 1 milhão por torturas e mortes na ditadura

TRF-3 apontou que Aparecido Calandra, David Araújo e Dirceu Gravina causaram danos à sociedade ao pa

Talis Andrade

 

Delegado Aparecido Laertes Calandra em audiência da Comissão Nacional da Verdade, em 2014, sobre imagens de Vladimir Herzog, torturado e morto em 1975 | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

 

por Jeniffer Mendonça /Ponte Jornalismo

O Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) condenou, na quarta-feira (18/1), os delegados aposentados Aparecido Laertes Calandra, David dos Santos Araújo e Dirceu Gravina a pagarem, cada um, R$ 1 milhão em indenização por danos morais coletivos sofridos pela sociedade brasileira em razão das torturas e mortes cometidas por eles durante a ditadura civil-militar. O dinheiro deve ser destinado ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, ligado ao Ministério da Justiça e da Segurança Pública.

 
Subordinado ao Exército, o DOI-Codi se dividia em unidades regionais e era responsável por sequestros e violências contra as pessoas detidas pelo regime militar, atuando fora das leis da própria ditadura. Na época, era comandado pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que foi condenado por tortura, mas morreu em 2015 sem pagar pelos crimes.
 
Para a coordenadora da área de Memória, Verdade e Justiça do Instituto Vladimir Herzog, Gabrielle Abreu, a decisão mostra um “avanço tímido” da justiça. “Todas as condenações como essa, de pagamento de indenização, a gente tende a celebrar porque a gente tem um histórico de impunidade em relação aos crimes perpetrados pelo Estado durante a ditadura. Pode não ser a decisão ideal, mas a gente celebra porque sempre é um avanço, ainda que tímido, e é uma oportunidade de colocar esse tema de volta ao debate público, sobretudo agora que a gente tem discutido a questão da anistia para os eventuais crimes do Bolsonaro e sua horda”, afirma.
 

13 anos de idas e vindas

 

A decisão acontece após um imbróglio de quase 13 anos. O MPF entrou com a ação civil pública em 2010, mas o tribunal não aceitou os pedidos, alegando que alguns já teriam prescritos e que valia a aplicação da Lei de Anistia, de 1979, para afastar a responsabilidade civil e administrativa dos torturadores. Em 2020, porém, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou que o TRF-3 processasse os delegados devido ao entendimento de que a Lei de Anistia não incide sobre causas de caráter civil e que “a reparação civil de atos de violação de direitos fundamentais cometidos no período militar não se sujeita à prescrição”.

Dirceu Gravina durante depoimento à Comissão Nacional da Verdade, em 7/4/2014 | Foto: Thiago Vilela/Ascom-CNV

A Procuradoria havia feito seis solicitações: que os delegados indenizassem o estado de São Paulo e a União pelos valores pagos com indenização às vítimas e familiares de vítimas; o cancelamento das aposentadorias; a perda da função pública e de qualquer cargo público que tivessem no estado de São Paulo; que o governo paulista disponibilizasse a relação de todos os servidores, com nomes e cargos, que atuaram no DOI-Codi; que a União e o governo paulista fizessem “pedido de desculpas formal a toda a população brasileira”, com a citação dos casos específicos da ação civil pública e divulgação em canais oficiais e em pelo menos dois jornais de grande circulação em São Paulo; que os delegados pagassem indenização de danos morais coletivos.

 

 

A juíza federal Diana Brunstein acatou apenas o pedido sobre os danos morais coletivos, afirmando que os três delegados, “investidos de poder estatal” e pela prática de tortura e assassinatos, “causaram indiscutíveis danos psíquicos/morais à sociedade brasileira como um todo”. Ela argumenta que a prática de tortura era “institucionalizada”, mesmo com a proibição da antiga Constituição de 1969, e que não só as vítimas, mas a população como um todo “até hoje se ressente das arbitrariedades praticadas por agentes de estado no período ditatorial e, de maneira geral, teme o retorno das violações perpetradas no período”.

A juíza federal Diana Brunstein acatou apenas o pedido sobre os danos morais coletivos, afirmando que os três delegados, “investidos de poder estatal” e pela prática de tortura e assassinatos, “causaram indiscutíveis danos psíquicos/morais à sociedade brasileira como um todo”. Ela argumenta que a prática de tortura era “institucionalizada”, mesmo com a proibição da antiga Constituição de 1969, e que não só as vítimas, mas a população como um todo “até hoje se ressente das arbitrariedades praticadas por agentes de estado no período ditatorial e, de maneira geral, teme o retorno das violações perpetradas no período”.

A magistrada estipulou o valor de R$ 1 milhão para cada acusado pelo “relevante interesse social lesado” e pelas condições financeiras deles. De acordo com o Portal da Transparência do estado de São Paulo, Aparecido Calandra e David Araújo receberam, respectivamente, R$ 19.753,68 e 19.787,61 em valores líquidos em dezembro de 2022. Já Dirceu Gravina, R$ 27.846,80.

Sobre os demais pedidos do MPF, Brunstein argumentou que as indenizações pagas pelo governo de São Paulo e pela União prescreveram e que os delegados não poderiam ter as aposentadorias canceladas nem perderem as funções públicas porque caberia a abertura de um procedimento administrativo, o que não estaria na alçada do Judiciário. A juíza também escreveu que, “mesmo que a instância administrativa pudesse ser suprimida em tais casos, as leis estatutárias preveem prazos prescricionais para a instauração de ações disciplinares, os quais, considerando a data dos ilícitos cometidos, já teriam se esgotado”.

Sobre o pedido público de desculpas, a juiza afirmou que não seria necessário porque, na sua visão, “o Estado brasileiro, há tempos, reconheceu oficialmente sua responsabilidade pelas mortes e desaparecimentos ocorridos no período da ditadura e vem, ao longo dos anos, promovendo diversos atos que visam o resgate e memória da verdade dos fatos ocorridos em tal momento histórico”. E sobre a divulgação de servidores que atuaram no DOI-Codi, argumentou que a Lei de Acesso à Informação garante esses dados e que “não houve pretensão resistida na via administrativa” para isso.

À Ponte, a assessoria disse que o MPF vai recorrer da decisão em vista dos outros pedidos negados.

David dos Santos Araújo, agora reconhecido pela Justiça como torturador e assassino 

 

Nesta semana, o ministro de Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida, publicou portaria que reformula a composição da Comissão de Anistia, criada em 2002 para avaliar pedidos de reparação de vítimas da ditadura, mas que havia sido descaracterizada, durante o governo Bolsonaro, com a inclusão de militares entre seus membros. Com a nova reformulação, os militares ficam de fora e no seu lugar entram perseguidos políticos. “A exclusão de militares da comissão foi fundamental. Não pode haver em um instrumento como esse representantes das Forças Armadas que foram perpetradoras de crimes de Estado durante a ditadura. Precisam ser civis sensibilizados com a causa e com prioridade, inclusive, em figuras que foram atravessadas de alguma maneira pelas violências da ditadura”, aponta Gabrielle Abreu, do Instituto Vladimir Herzog.

No ano passado, o Instituto Vladimir Herzog levantou que, dos 50 acusados em mais de 70 ações judiciais propostas pelo MPF,  31 ainda estão vivos. Entre os algozes com maiores números de ações estão Dirceu Gravina, que aparece em quinto lugar, com seis ações, e Aparecido Calandra em sétimo lugar, com quatro denúncias.

Gabrielle sinaliza que esse histórico de impunidade se dá pela morosidade de responsabilização dos envolvidos. “Isso revela a demora do Brasil em encaminhar uma justiça de transição. A gente só foi ter um fórum de discussão dos crimes da ditadura décadas após o fim do regime, com a Comissão Nacional da Verdade em 2012, que fez um trabalho extremamente relevante e fundamental, mas tardio, porque os crimes identificados pela comissão. Muitos deles jamais serão apurados e investigados para além do âmbito das comissões [nacional e regionais], que não têm esse caráter punitivo, mas de fazer recomendações para aperfeiçoamento do Estado Democrático de Direito”, critica.

“A impunidade é uma constante na história do país, se dá pela período da escravidão, passa pela ditadura e acomete também os crimes do Estado no presente”, completa.

 

Veja as vítimas de tortura e morte pelos delegados, reconhecidas pela Justiça

 

Delegado Aparecido Laertes Calandra:

  • Hiroaki Torigoe (tortura e desaparecimento)
  • Carlos Nicolau Danielli (tortura e homicídio)
  • Maria Amélia de Almeida Teles (tortura)
  • César Augusto Teles (tortura)
  • Janaína Teles (tortura)
  • Edson Luís Teles (tortura)
  • Manoel Henrique Ferreira (tortura)
  • Artur Machado Scavone (tortura)
  • Paulo Vannuchi (tortura)
  • Nádia Lúcia Nascimento (tortura)
  • Nilmário Miranda (tortura)
  • Vladimir Herzog (tortura e homicídio)
  • Manoel Fiel Filho (tortura e homicído)
  • Pierino Gargano (tortura)
  • Companheira de Pierino Gargano (tortura)

 

Delegado David dos Santos Araújo:

  • Joaquim Alencar de Seixas (tortura e homicídio)
  • Ivan Akselrud Seixas (tortura)
  • Fanny Seixas (tortura)
  • Ieda Seixas (tortura)
  • Iara Seixas (tortura)
  • Milton Tavares Campos (tortura)

 

Delegado Dirceu Gravina:

  • Lenira Machado (tortura)
  • Aluizio Palhano Pedreira Ferreira (tortura e desaparecimento)
  • Altino Rodrigues Dantas Junior (tortura)
  • Manoel Henrique Ferreira (tortura)
  • Artur Machado Scavone (tortura)
  • Yoshitane Fujimore (tortura e desaparecimento)

 

21
Jan23

General Etchegoyen é exemplo encarnado de uma força que ameaça a democracia

Talis Andrade
www.brasil247.com - General Sérgio Etchegoyen
General Sérgio Etchegoyen 

 

Família do general se envolve na política há quase um século e agiu contra a soberania popular em vários momentos

 

por Joaquim de Carvalho /Portal 247

O general Sérgio Westphalen Etchegoyen deu uma entrevista esta semana à rádio Gaúcha em que demonstrou desrespeito ao comandante supremo das forças armadas e, em razão disso, uma visão deturpada do papel das Forças Armadas em uma república.

Lula disse que perdeu a confiança em parte das Forças Armadas, depois dos atos terroristas de 8 de janeiro. E ele tem motivo para externar esse sentimento. 

Afinal, o Palácio do Planalto foi invadido e vandalizado por militantes de extrema direita que se encontravam acampados em área do Exército. A invasão ocorreu apesar de existir o Batalhão da Guarda Presidencial, desmobilizado antes dos atos terroristas e, durante estes, seu comandante, o coronel do Exército Paulo Jorge da Hora, foi gravado em vídeo sendo advertido por policiais militares, aparentemente porque tentava interferir em favor dos invasores. “Está doido, coronel?”, disse um oficial da PM, segurando-o pelos ombros.

À rádio Gaúcha, Etchegoyen disse: “Um presidente da República, comandante supremo das Forças Armadas, que vai à imprensa dizer que não confia nas suas Forças Armadas, sabe desde já que nenhum general vai convocar uma coletiva para responder à ofensa. Então, isso é um ato de profunda covardia, porque ele sabe que ninguém vai responder”.

Na cabeça de Etchegoyen, os militares estão em pé de igualdade com o comandante supremo das Forças Armadas, e não são subordinados. Sendo subordinado, nenhum integrante das Forças Armadas tem o direito de responder ao presidente da República, sob pena de incorrer em grave ato de indisciplina.

Sem obedecer aos princípios de hierarquia e indisciplina, uma Força Armada deixa de ser instituição de Estado, e passa a ser uma milícia ou gangue. 

A posição de Etchegoyen segue um padrão da família, segundo registros históricos. Seu avô, Alcides, era tenente do Exército em Cruz Alta, Rio Grande do Sul, quando, ao lado do irmão, liderou motim para impedir a posse do presidente Washington Luiz.

Eles eram do movimento tenentista da época, do qual fazia parte também Luiz Carlos Prestes, na época já comandando a coluna que, pela definição de hoje, poderia ser considerada de caráter progressista.

Alcides e o irmão, no entanto, logo se revelaram com uma visão bem diferente da de Prestes, quando Alcides, no complexo governo de Getúlio Vargas, assumiu a chefia da polícia no Distrito Federal, então no Rio de Janeiro, em substituição a Felinto Muller.

Nos anos 50, ele já era oposição a Getúlio Vargas, e encabeçou a chapa “Cruzada Democrática” para o Clube Militar, e derrotou o general nacionalista Newton Estilac Leal. Em agosto de 1954, Alcides assinou o manifesto que exigia a renúncia de Getúlio Vargas, a quem havia servido, num ato que agravou a crise política e levou ao suicídio do então presidente.

Quando o general Alcides morreu, em 1956, dois filhos já estavam no Exército, Cyro e Leo, este pai de Sergio Etchegoyen. Em 1964, eles participaram do golpe contra Goulart. Leo seria nomeado, um ano depois, secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, e o irmão, Cyro, assessoraria o general Milton Tavares, chefe do Centro de Informações do Exército, o poderoso CIE.

O jornalista Marcelo Godoy registrou em artigo no jornal O Estado de S. Paulo que Léo dizia, talvez justificando a tortura, que "quem enfrenta a guerra suja tem de usar métodos semelhantes ao do inimigo, sob a pena de ser derrotado”.

Em 1979, segundo Godoy, o pai de Sergio Etchegoyen elogiou o tenente-coronel Dalmo Lúcio Muniz Cyrillo, chefe do DOI-Codi em São Paulo, pela atuação dele na prisão coletiva de sindicalistas e líderes metalúrgicos do ABC paulista, entre estes Lula.

Durante o governo de Dilma Rousseff, Sergio Etchegoyen era chefe do Departamento Geral do Pessoal do Exército e atacou o relatório da Comissão Nacional da Verdade, que citava o pai dele como comandante de unidades onde ocorreram violações de direitos humanos.

Etchegoyen disse que o trabalho, criado por lei proposta pelo Executivo e aprovada no Congresso Nacional, era “leviano”. Não foi punido, porque o governo Dilma considerou que a manifestação dele se dava em caráter familiar. O general tentou retirar o nome do pai no relatório da Comissão Nacional da Verdade com ação na Justiça, mas perdeu.

É nessa época que generais, conspirando contra Dilma, se aproximaram de Jair Bolsonaro, para que ele representasse os militares nas eleições de 2018. Justamente Bolsonaro, que havia sido condenado em Conselho de Justificação do Exército, por mentir e ser indisciplinado, considerado sem vocação para a carreira militar, entre outros motivos pelo desejo de enriquecer rapidamente

Depois do golpe contra de Dilma, Etchegoyen assume o Gabinete de Segurança Institucional, a que está subordinada a Abin, e se destaca como homem forte de Michel Temer. Ao mesmo tempo em que a presença militar volta à rotina da vida civil no país, é mantido um acampamento em frente ao Comando Militar do Sudeste, que, em 2016, já pedia intervenção militar.

Antes disso, o ativista Jair Krischke participou de um projeto regional que pretendia instalar pedras memoriais em frente a estabelecimentos do Rio Grande do Sul onde, durante a ditadura, houve violação de direitos humanos, a exemplo do que existe na Alemanha (nazismo) e Argentina (ditadura militar).

Etchegoyen convidou Krischke para uma conversa, e os dois se falaram, durante horas. A certa altura, Etchegoyen perguntou a Krischke: “Você está querendo colocar pedras em frente a meus quartéis?”. Krischke respondeu: “Pensei que os quartéis fossem do Estado brasileiro”. A conversa terminou, e o projeto não foi adiante.

Na eleição de 2022, os militares foram derrotados juntamente com Bolsonaro. Sim, os militares estavam na disputa, direta e indiretamente. 

Com o resultado das urnas, o país tem agora a oportunidade de superar esse longo período em que generais como Etchgoyen se colocam em pé de igualdade com o presidente da República, detentor do mandato que reflete a soberania popular e lhe confere o lugar constitucional de comandante supremo das Forças Armadas.

 

11
Dez22

Senzalas & campos de concentração

Talis Andrade

Jornal PASQUIM "Brasileiro é tão Bonzinho! É... Mas

 

Nos consideramos gente boníssima, mas somos?

 

por Alex Castro

O Brasil se considera uma nação boa e pacífica. Mas é só porque esqueceu ter sido a maior economia escravocrata de todos os tempos.

Muitas vezes, o sono tranquilo não é consciência limpa: é falta de memória.

"O melhor bife batido da cidade está na Lanchonete Doi-Codi!"

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Senzalas eram lugares de morte, tortura, exploração. Por que associar seu restaurante a ISSO?

No coração do centro histórico de Paraty, cidade colonial construída com o sangue e o suor de muitos escravos, em pleno mês da consciência negra, acabou de ser inaugurado um novo restaurante:

Senzala Churrascaria Rodízio.

Não deveria me chocar mas ainda me choco. Afinal, o que não falta, em todo Brasil, são estabelecimentos chamados Senzala.

Na Alemanha, pelo menos, não existe nenhum Restaurante Auschwitz.

Eles teriam vergonha.

 

As maravilhas do tráfico humano

Nesse cela, eram colocados para morrer de fome os escravos problemáticos. Elmina, uma maravilha da arquitetura colonial portuguesa!

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Em 2009, Portugal promoveu um concurso para escolher as "7 Maravilhas de origem portuguesa do mundo".

Dentre os vinte e sete indicados, muitos eram locais fortemente identificados com a escravidão, com a compra e com a venda, com a morte e com a tortura, com o desterro e com o desenraizamento de milhões de pessoas. Pessoas como eu e como você. Pessoas cujo sofrimento não deveria ser esquecido:

Por exemplo, o forte Elmina foi construído em 1482 para fazer ali o comércio de escravos, hoje abriga um museu onde os visitantes são convidados a visitar as celas onde os Africanos ficavam confinados antes de serem enviados para as Américas. No sítio da votação, encontra-se uma longa descrição do forte e nem sequer uma linha, uma palavra mencionando o tráfico de africanos escravizados. ...

É como se Auschwitz participasse em uma eleição das sete maravilhas alemãs no mundo.

(Leia mais ou confira a lista dos vencedores.)

 

A feliz união das raças da maior democracia racial do mundo!

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Todos são iguais... mas um tem maior expectativa de vida que os outros. Adivinha qual?

Ninguém realmente deveria ficar surpreso. No mundo lusófono, o apagamento da memória da escravidão sempre foi a regra.

A grande maioria dos brasileiros aprende na escola que nosso lindo país foi construído por brancos, negros e índios, todos felizes, de mãos dadas e cantando kumbayá. Como se a colonização do Brasil tivesse sido um comercial da Benetton.

Para manter a mentira primordial no cerne do nosso mito de origem, a escravidão nunca é mostrada em seu verdadeiro horror:

Sim, alguns de nossos avós escravizaram nossos outros avós, mas, no fim das contas, eram todos bons amigos, os escravos eram muito bem tratados e, olha só, pelo menos nunca tivemos as leis racistas dos EUA! No Brasil, país bondoso e generoso, até a escravidão era a melhor do mundo!

(Aliás, não faz sentido falar em "escravidão melhor" mas, somente nos Estados Unidos, a população escrava tinha crescimento vegetativo, ou seja, aumentava e se reproduzia. No resto da Américas, a mortalidade era tão alta que, mesmo com os nascimentos, era preciso sempre importar novos escravos. O Brasil foi o maior importador de escravos de todos os tempos porque aqui, nessa terra tão bondosa e tão pacífica, era onde eles mais rapidamente morriam. Esse artigo clássico de Herbert S. Klein explora essas contradições.)

 

Somos tão legais hoje que nem parece que éramos tão escrotos ano retrasado!

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Sim, vamos parar de falar de racismo! Afinal, essa tática tem dado tão certo no último século... (pra nós, brancos, claro!)

Um trecho do Hino à Proclamação da República, escrito em 1890:

Nós nem cremos que escravos outrora

Tenha havido em tão nobre País…

Hoje o rubro lampejo da aurora

Acha irmãos, não tiranos hostis.

Somos todos iguais! Ao futuro

Saberemos, unidos, levar

Nosso augusto estandarte que, puro,

Brilha, ovante, da Pátria no altar!

Somente um ano e meio depois de abolida, a escravidão já começava a ser sistematicamente lavada da memória nacional.

 

Escravidão e Holocausto, ensinados lado a lado

"Eu, Barack Obama, o 44º presidente eleito dos Estados Unidos, peço desculpas pela escravidão."

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Para muitos brasileiros, o bicho-papão racial são os Estados Unidos. Não podemos implementar cotas, pois senão "nos tornaríamos um Estados Unidos"; "temos muitos defeitos mas pelo menos não somos os Estados Unidos", etc etc.

Pois eu morei lá e morei aqui, e estudei a fundo a história da escravidão nos dois países. Somos ambos profundamente racistas, mas o Brasil é pior por um motivo:

A cultura do deixa-disso. Por pensarmos que o não-falar sobre o racismo e a escravidão vai resolver por si só o problema.

Enquanto isso, o presidente norte-americano, em visita a Gana, um dos principais portos exportadores de escravos, afirmou que a escravidão, como o Holocausto, é daquelas coisas que não pode ser esquecida.

Para Obama, a visita aos calabouços de escravos remeteu à sua viagem ao campo de concentração Buchenwald: ambos nos fazem lembrar da capacidade humana para cometer o Mal.

E completou afirmando:

A escravidão e o Holocausto deveriam ser ensinados nas escolas de modo a conectar a crueldade passada aos eventos atuais.

 

Homens que não entendem porque tanto alarde pelo câncer de útero

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"Nunca esqueça! Nunca esqueça! Sai dessa, pô!"

Desconfie sempre de quem fala "sai dessa" quando o "essa" é algo que ele nunca experimentou.

Afinal, do ponto de vista de quem está bem acomodado e seco no convés do barco, não há motivo pra se debater tanto lá embaixo no mar só porque tem água entrando nos seus pulmões... SAI DESSA!

 

"Por que esses cadeirantes preguiçosos não deixam de se fazer de vítima e sobem as escadas como todo mundo, hein?"

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A meritocracia do Brasil, em uma charge.

Pior ainda são aquelas pessoas (muitas negras) que são contra as cotas (e similares) argumentando que "nunca precisaram delas".

E eu faço uma cara pensativa e respondo:

Concordo, claro, como não? E tem mais, também sou contra esse negócio de diálise em hospitais públicos e rampas para cadeirantes nos prédios.

Oras, se passei a vida inteira sem precisar de nenhuma dessas coisas, é porque não são tão importantes assim, certo?

Afinal, dado que eu sou o centro do universo e a medida de todas as coisas, as pessoas só deveriam receber o que eu recebi e as únicas necessidades válidas são as que eu também tenho!

(Sobre isso, leia meu texto O assunto não é você.)

Somos os melhores em esquecer nossos crimes

Durante sete anos, morei em Nova Orleans, principal porto escravista norte-americano. Assim como o Rio de Janeiro, uma bela cidade, sexy e musical, turística e carismática, construída nas costas de escravos desesperados e agonizantes.

Um dia, enquanto passeava com meu cachorro pelo bairro universitário, uma soccer mom enfiava cuidadosamente seus quatro filhinhos, todos brancos e roliços, em seu jipão utilitário de luxo, também branco e roliço. Era uma senhora baixinha e gorducha, bochechas rosadas e orelhas de abano, carregando mochilas e merendeiras, parecendo dotada daquela infinita paciência que só uma mãe de quatro meninos pode ter. E, em seu para-choque traseiro, discretamente, estava o adesivo:

The South Will Rise Again (“O Sul se Erguerá Novamente”)

Como não se sentir ameaçado? Não conheço o contexto dessas palavras. Por tudo que sei, é um inocente desejo de revitalizar a economia local. Mas, ainda assim, nenhuma racionalização poderia apagar o meu calafrio ao ler aquela frase; nenhuma explicação lógica faria aquele adesivo soar menos sinistro. De certo modo, era como se o ressurgimento do Sul fosse indistinguível e indissociável do reescravizamento de toda uma raça.

E pensei: o Brasil foi tão ou mais escravista do que o Sul dos Estados Unidos, e resistiu por muito mais tempo até libertar seus escravos. Ainda mais doloroso pra mim, dos nove únicos deputados que tiveram a cara-de-pau e a temeridade de votar contra a Lei Áurea em pleno maio de 1888, já na véspera do século XX e na contra-mão de todos os ventos filosóficos do XIX, oito eram do Rio de Janeiro. Legítimos representantes eleitos do meu estado.

Entretanto, não ficamos nem o Rio e nem o Brasil maculados por essa nódoa. Um adesivo “O Brasil Crescerá” despertaria calafrios? Claro que não. Nem o Paraguai tem medo do Brasil. E concluí, aliviado: ainda bem que pelo menos o bom nome do meu país e do meu estado não estão ligados à escravidão.

Um segundo depois, bateu o estranhamento: mas… por que não?

A falta de calafrios não corresponde à falta de crimes. O Sul dos EUA teve, no Norte, um vizinho incômodo que manteve viva a memória de seus crimes. Já em nosso caso, simplesmente varremos nossos crimes para debaixo do tapete.

Não somos mais virtuosos: somos melhores em esconder o corpo.

(Ao contrário do que muita gente pensa, a Abolição não foi um "presente da monarquia", mas uma lei disputada voto a voto no Parlamento, somente sancionada pelo Poder Executivo, naquele momento representado pela Princesa Isabel. Mais detalhes nesse meu rascunho de uma História da Abolição.)

 

"Shoah", um documentário impossível

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"Shoah", o fim da viagem.

Shoah é uma palavra íidiche que significa "calamidade". Para muitas pessoas, é um termo preferível à Holocausto – que, afinal, significa "oferenda aos deuses".

"Shoah" também dá título a uma das grandes obras de arte, de qualquer arte, do século vinte, realizado pelo boy-toy de Simone Bouvoir, Claude Lanzmann.

São nove horas de filme, sem nenhuma imagem de arquivo: são somente depoimentos, e depoimentos, e depoimentos. Lanzmann entrevista três tipos de pessoa: sobreviventes, algozes (oficiais de campos de concentração) e testemunhas (poloneses que moravam perto dos campos).

Com os sobreviventes, Lanzmann é implacável. Ele praticamente os obriga a falar:

“Não foi uma crueldade fazê-las reviver, através da fala, tudo o que sofreram, no caso dos judeus. Era absolutamente necessário. Não acho que tenha sido sádico, mas fraternal. Durante as entrevistas, eu toco suas mãos, seus ombros, seus braços. Uma forma de dizer ‘eu estou com você’. Não faço interrogatórios para que alguém se diga culpado. Eles sofrem. Mas eu também sofro. Eu não os torturei. Eles se sentiram liberados. Eu não estava falando com uma pessoa qualquer, mas com um grupo muito especial de sobreviventes – e não há mais do que um punhado deles no mundo”.

Abaixo, talvez a cena mais emocionante no filme. O barbeiro não consegue falar, mas Lanzmann pressiona (em inglês):

Link YouTube | "Shoah", e a impossibilidade de lembrar

"Shoah" é um filme de insuportáveis silêncios: das nove horas de filme, cinco horas e meia são de puro silêncio. Diz Lanzmann:

"Não é uma reconstituição, não é uma ficção, não é um documentário. O filme é uma ressurreição, uma reencarnação, tem uma arquitetura, uma construção em torno de uma obsessão pessoal. Eu fazia sempre as mesmas perguntas, geralmente referentes à primeira vez. E não tinha nenhuma intenção de acusar, denunciar, culpar. Nada disso, isso não me interessava.

Houve uma decisão consciente de fazer um filme sobre o presente, e não sobre o passado:

"O pior dos crimes, ao mesmo tempo de ordem moral e artística, quando se quer consagrar uma obra ao Holocausto, é considerá-lo como passado. Meu filme é uma anti-lenda, um contra-mito, vale dizer, uma investigação sobre o presente do Holocausto ou, ao menos, sobre um passado cujas cicatrizes estão ainda tão fresca e vivamente inscritas nos lugares e nas consciências que ele se dá a ver numa alucinante intemporalidade. ... Os homens e as mulheres que falam diante da câmera dão sempre a impressão de não estarem contando lembranças, mas de as viverem mesmo, com força e clareza, no presente. ... Enquanto fazia o filme, a distância entre o presente e o passado foi totalmente abolida. Em Treblinka só havia pedras, filmei as pedras como um louco, por todos os lados. Quando o espectador vê as pedras de Treblinka, ele vê os judeus sendo mortos. Da mesma maneira que quando o trem chega a Treblinka o espectador vê a tabuleta com o nome do campo exatamente como os judeus que iam para morte deviam ver. É um ato de cinema muito violento. Por isso o filme é fundamentalmente uma invenção, não uma lembrança. ... O filme é sobretudo uma ressurreição, as pessoas entrevistadas revivem aquele tempo de tal maneira que, quando falam, até alternam os tempos dos verbos – presente e passado. ... No filme, quando as pessoas falam, confundem presente e passado. Na mesma fala, dizem: eu estava lá e pouco depois: eu estou lá."

Mais do que tudo, é um filme sobre a impossibilidade de recordar, de conceber, de articular o Mal:

Comecei precisamente com a impossibilidade de recontar essa história. Situei essa impossibilidade bem no início do meu trabalho. Quando comecei o filme, tive que lidar, por um lado, com o desaparecimento dos vestígios: não havia coisa alguma, absolutamente nada, e eu tinha que fazer um filme a partir desse nada. E por outro lado tive que lidar com a impossibilidade, até mesmo dos próprios sobreviventes, de contar essa história; a impossibilidade de falar, a dificuldade que pode ser vista ao longo do filme de trazer luz e a impossibilidade de nomear: seu caráter inominável.

Para celebrar os 30 anos de sua estréia, "Shoah" está sendo lançado em DVD pelo Instituto Moreira Salles. Recomendo nos mais enfáticos termos.

Mas não assista sozinho. É muito duro.

(Sobre "Shoah", leia também: A dificuldade de falar de "Shoah" e It's a beautiful thing.)

 

O Holocausto foi terrível mas não foi único

Estudo raça e racismo há muitos anos. Um dos meus livros preferidos sobre o tema é The Racial Contract, de Charles W. Mills.

Segundo Mills, o racismo seria um sistema político e uma estrutura de poder baseados em um Contrato Social (na verdade, um Contrato Racial) no qual os membros da raça dominante formariam um acordo tácito de, ao mesmo tempo em que garantem para si a maior parte das riquezas/oportunidades/etc da sociedade, também consentem em não ver o próprio sistema, criando assim a “alucinação consensual” de um mundo sem raças, meritocrático e igualitário, que passa a mediar sua interpretação da realidade.

Raça, para eles, sera invisível porque o mundo seria estruturado em função deles; eles seriam a norma em oposição a qual seriam medidas as pessoas de outras raças (“esses outros tem raça, não eu!”). Assim como o peixe não vê a água, os membros da raça dominante não veriam o racismo.

Mills também embarca em uma comparação perigosa, mas praticamente inevitável, entre o racismo e o Holocausto.

Visto de fora pelos não-europeus, que sabem na pele que a civilização européia se baseia em praticar barbarismo fora da Eueropa, o Holocausto não representaria “uma anomalia transcendental no desenvolvimento do Ocidente”, mas, pelo contrário, sua unicidade estaria apenas no aplicação do Contrato Racial contra europeus.

Ao colocar o Holocausto no contínuo cultural de outras políticas exterminatórias colonialistas européias, Mills não deseja negar o seu horror, mas somente sua singularidade histórica.

Tudo o que o nazismo tinha de operacional já vinha sendo aplicado, legitimado, tolerado, negado e esquecido pelos europeus há muitos séculos: a maior transgressão de Hitler seria aplicar contra europeus métodos que antes eram aplicados exclusivamente contra árabes, negros e índios.

A própria percepção do Holocausto, de um horror tão fora de escala e colocado num plano moral muito diferente de todos os outros massacres de não-europeus por toda a história, seria evidência da força ideológica do Contrato Racial.

Além disso, ao narrar o racismo como uma invenção aberrante de figuras como Gobineau e Goebbels, o Holocausto presta à intelligentsia européia do pós-guerra um importante serviço: sanitizou seu passado racial.

Link YouTube | "Nação do Medo", legendado, completo, um filmaço de ficção científica.

Por fim, Mills cita o romance de ficção científica “A Nação do Medo” (Fatherland), que mostra um futuro alternativo onde os nazistas ganharam a guerra e nunca existiu a memória do Holocausto.

Na verdade, aponta Mills, nós JÁ vivemos nesse mundo não-alternativo: a única diferença é que os vencedores foram outros, mas eles também apagaram a memória dos massacres que cometeram, esvaziando sua importância e subtraindo seu ultraje.

Daí o esquecimento dos horrores da escravidão.

(O livro de Mills é realmente brilhante: leia minha resenha completa.)

 

O Epcot da escravidão nos Estados Unidos

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Em Williamsburg, escravo é perseguido.

Mas se devemos lembrar sempre a escravidão... como?

Nos Estados Unidos, a cidade de Williamsburg oferece uma janela ao passado. Em troca do passe diário de US$36, o visitante passa o dia em uma "autêntica" vila colonial, onde tudo é como antigamente (menos os banheiros!), todos estão vestidos à caráter, em roupas de época, falando em vocabulário antigo, essas coisas. É um dos destinos turísticos e educacionais mais famosos do país.

Entretanto, sempre foi criticado por apresentar uma versão muito fácil, sanitizada e maniqueísta da história. Mais do que tudo, cadê os escravos? Afinal, na época da colônia, os Estados Unidos tinham escravidão e metade da população de Williamburg era negra.

Hoje em dia, o parque faz um esforço consciente (e polêmico, claro) para retratar a escravidão: além de incluir mais atores negros, criou-se também um "passeio" chamado Enslaving Virginia ("Escravizando a Virgínia") especificamente sobre os horrores da escravidão.

Deve ser horrível mesmo: vários atores negros já se recusaram a interpretar os escravos (por considerar muito humilhante), as crianças choram tanto que foram criadas sessões explicativas posteriores para enfatizar que era tudo faz-de-conta e já aconteceu de visitantes interromperem o passeio para "salvar os escravos".

Melhor assim. Preferível ser repelido por um simulacro do horror que nos gerou do que fingir que ele nunca existiu.

 

Encenação da escravidão à brasileira

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O guia do engenho, vestido de escravo, se oferece para ser chicoteado pelos turistas.

E no Brasil?

Vassouras, no estado do Rio de Janeiro, já foi uma das cidades mais ricas do país, no centro da região que produzia a mais importante riqueza nacional: café. Hoje, é uma cidadezinha de vinte mil habitantes, que vive dos turistas que atrai com seus palacetes e fazendas coloniais – algumas com polêmicas encenações históricas.

Na fazenda São João da Prosperidade, há cinco gerações com a mesma família, a proprietária recebe os turistas vestida de sinhá e suas empregadas, de escravas:

Da janela, aponta a senzala: "Tenho 300 escravos" orgulha-se, voz impostada e dedo em riste. De repente, entra correndo pela varanda uma negrinha com remendos de algodão e cabelos presos em tranças. A menina, de apenas seis anos, se agarra à barra da saia da sinhá, põe o dedo polegar na boca e fixa os olhos nos visitantes. Basta um gesto da sinhazinha para que a pequena escrava abaixe a cabeça e saia da sala. "Não vê que estou com visitas?" – esbraveja a senhora. A menina vai brincar no alambique. Pouco depois, uma mucama adentra o salão, sob ordens de servir café aos convidados. (fonte)

Em uma fazenda próxima, Cachoeira Grande, que eu visitei agora em novembro, são só os empregados que estão vestidos à caráter: os proprietários se vestem e falam como se estivessem no século vinte.

Mais para o norte, na Zona da Mata de Pernambuco, o engenho Uruaé também encena a escravidão:

Vestido como "escravo da casa", o jovem guia mostra o "quarto da sinhazinha" e explica a genealogia da família proprietária do engenho através dos retratos na parede. Na senzala, que chegou a ter 300 escravos de uma vez, ele coloca uma peça de ferro no pescoço e anuncia, sorridente: "Quem era moreno como eu era aqui". O mais constrangedor vem depois, do lado de fora: o guia se amarra no tronco e pede que um voluntário simule açoitá-lo. Foi difícil arranjar alguém disposto a interpretar o papel. (fonte)

O engenho Uruaé também está na mesma família há sete gerações. Durante a visita, a proprietária afirma:

"A gente tem mais é que se orgulhar dos nossos que vieram antes. Nós ainda não fizemos nada."

Fui só eu que achei esse "ainda" um pouco sinistro? O que essa senhora ainda está planejando fazer, meu Deus? Re-escravizar todo mundo?

Mas isso é implicância minha. A raiz filosófica do problema é outra:

Como retratar os horrores do passado?

 

Qual é a medida certa do horror?

As encenações históricas da escravidão nas fazendas coloniais parecem não agradar ninguém.

Por um lado, argumenta-se que elas não são horríveis o suficiente. Que encenam somente os aspectos mais, digamos, reprodutíveis da escravidão, aqueles por definição mais doces e inofensivos. Que perpetuam a ideia de que a escravidão era somente uma forma de trabalho entre tantas outras.

Afinal, se a escravidão é algo que uma doméstica contemporânea pode reproduzir, se a escravidão se resumia a se vestir de branco e trazer café pra uma mulher que você chama de "sinhá", bem, então não era tão ruim assim, né? (Ou talvez ser empregada doméstica é que é horrível demais, mas não entremos nisso.)

Por outro lado, argumenta-se que são horríveis demais. Que mesmo doces e meigas, ainda mais quando encenadas pelos descendentes das vítimas, são sempre humilhantes:

Outros, no entanto, não sabem como reagir diante da interação realista dos 'escravos', que circulam vestidos em pobre algodão e, não raro, se curvam para obedecer às ordens da sinhazinha. "Será que esta criança tem idéia do que está fazendo? Ela ainda não tem idade para entender e pode ficar com a idéia de que deve se comportar como escrava, de que isso é normal" - indigna-se uma visitante paulistana, depois de recusar um copo d'água servido pela 'mucama'.

Já o historiador Milton Teixeira, que trabalha como guia de turismo nas fazendas do café, defende a prática:

Não é degradante representar um escravo. Se o turista se sente incomodado, muito bem. O passado de escravidão tem de incomodar bastante, e não deve ser esquecido. ... Ora, representações são feitas em toda parte do mundo. Na Europa, tem famílias pré-históricas; nos Estados Unidos, há simulação das batalhas da Guerra de Secessão, e, aqui no Brasil, é natural que haja uma encenação com escravos. Muito pior seria querer mostrar que não houve escravidão. (fonte)

Não deixa de ser simbólico que muitas dessas fazendas ainda estejam nas mãos das mesmas famílias. Ontem, lucraram nos ombros de seus escravos plantando cana ou café. Hoje, a mesma família continua lucrando nos ombos dos descendentes dos escravos, agora reduzidos a guias de turismo que reproduzem para turistas curiosos o horror da vida de seus avós.

Como escreveu o historiador e jornalista Fabiano Maisonnave, para a Folha:

De forma explícita ou não, as visitas aos engenhos transformam esses verdadeiros campos de concentração numa bufonaria, diluindo um dos piores crimes da humanidade, principal responsável pela imenso fosso social brasileiro, em um exemplo acabado do "racismo cordial". A escravidão é exaltada, a casa-grande, absolvida, e a cana-de-açúcar, revalorizada como "energia renovável", se torna bênção econômica do passado e do presente.

Mas como reproduzir de forma correta e didática o verdadeiro horror da escravidão? Como mostrar os corpos jovens mas enfraquecidos e fragilizados pelo criminoso excesso de trabalho? Como mostrar as marcas da tortura? Como mostrar as frequentes mutilações causadas pelo machete durante o corte da cana ou pelas engrenagens dos engenhos durante a moagem? Como mostrar as feridas emocionais de famílias desfeitas e de vidas sem esperança? Como mostrar os escravos revoltosos que davam e tiravam vidas para não voltarem ao cativeiro?

Será possível mesmo começar a quantificar esse horror? Quem dirá reproduzi-lo?

Existem encenações históricas em Auchwitz? O que o mundo pensaria de ver sorridentes atores descendentes de arianos brincando de depositar chorosos descendentes de judeus dentro dos fornos? Mas é só mentirinha, gente! É educacional!

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Holocausto reencenado na Polônia. Grande idéia. Só que não.

(Na verdade, como o instinto humano da burrice é inesgotável, já houve tentativas de encenar o holocausto, como essa aqui na Polônia. Muitas vezes, dá merda e acaba em processo, como dessa vez no Texas.)

 

Escravidão: essa pica é nossa!

A escravidão africana nas Américas foi talvez a maior tragédia da Era Moderna.

Estima-se que cerca de 11 milhões de pessoas tenham sido transportadas à força da África para a América.

(Outras estimativas mais agressivas calculam que cerca de 40 a 75 milhões de vidas africanas tenham sido perdidas por causa do tráfico, entre mortos em guerras para obter escravos, em emboscadas para capturar escravos, ou em marchas forçadas para os portos exportadores de escravos no litoral.)

Dentre as muitas nações responsáveis por esse lucrativo e criminoso tráfico, os maiores culpados são os portugueses.

(Principais transportadores de escravos para as Américas: Portugal, 4,6 milhões; Reino Unido, 2,6 milhões; Espanha, 1,6 milhão.)

Dentre as muitas nações que receberam esses escravos e que construíram sua riqueza nas costas deles, o maior culpado é o Brasil.

(Principais destinos de escravos nas Américas: Brasil, 4 milhões; América Hispânica, 2,5 milhões; Índias Ocidentais Britânicas, 2 milhões.)

Reparem no tamanho da seta que nos cabe.

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Dentre os muitos portos brasileiros que receberam essa massa humana desgraçada, o principal foi o Rio de Janeiro. (Dos nove deputados que votaram contra a Lei Áurea, vamos lembrar, oito eram da província do Rio.)

Além disso, quem inventou esse lucrativo e terrível modelo de negócios foram os próprios portugueses – não por acaso, os primeiros homens brancos a explorar sistematicamente a África. Em 1441, Antão Gonçalves teve a dúbia honra de se tornar o primeiro europeu a comprar e trazer para casa escravos africanos.

Depois disso, a história se desenrolou rapidamente, comprovando o tino comercial dos portugueses: já em 1452, arrancaram do Papa uma bula autorizando-os formalmente à escravizar os infiéis; em meados de 1470, estavam comerciando escravos no golfo do Benim e no delta do rio Níger; e, finalmente, em 1482, construíram a Fortaleza de São Jorge da Mina, em Gana, que em 2009 seria indicada candidata a "maravilha de origem portuguesa do mundo".

(Por si só, a escravidão é mais antiga que andar pra frente. Todos os povos de todos os continentes de todas as épocas já tiveram algum tipo de escravidão, mas quase sempre cerimonial e economicamente insignificante. A escravidão africana nas Américas é um novo tipo de fenômeno humano porque, pela primeira vez, temos nações economicamente dependentes de milhões de escravos que compõem muitas vezes a maior parte de suas populações.)

Por fim, muitos e muitos séculos depois, no outro extremo dessa triste história, a última nação das Américas a abolir essa escravidão africana inventada pelos portugueses, a nação que mais teimosamente se agarrou aos seus escravos até o último minuto possível, foi justamente a nação gerada do ventre português: o Brasil. Nós.

De um modo bem real e doloroso, é difícil evitar a conclusão que esse enorme crime contra a humanidade é, em grande parte, uma responsabilidade lusófona e, dentro disso, brasileira. (E, mais especificamente ainda, e não que os outros estados sejam inocentes, carioca e fluminense.)

Passei seis meses na Alemanha durante a década de noventa. Mesmo cinquenta anos depois da Segunda Guerra, mesmo entre meus amigos adolescentes cujos pais nem eram nascidos durante a guerra, basta uma menção a nazismo, Holocausto ou Auschwitz para fazê-los abaixar a cabeça em silêncio, envergonhados, culpados, tristes.

Nós, brasileiros, se tivéssemos vergonha na cara, se tivéssemos um pouco mais de memória, faríamos a mesma coisa ao ouvir menções a senzala, navio-negreiro, escravidão.

Essa pica é nossa.

 

Cais do Valongo, o elevador de serviço do século XIX

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Desembarque de escravos no Cais do Valongo, pintado por Rugendas em 1835.

No Rio de Janeiro, o principal porto de desembarque de escravos foi o Cais do Valongo. Estima-se que, entre 1758 e 1843, tenham chegado por ele quase um milhão de pessoas. (897.748, segundo o The Transatlantic Slave Trade Database.)

Provando que não foi de repente que nos tornamos o povo que faz subir pelo elevador de serviço a doméstica que faz o nosso serviço sujo, em 1770 o desembarque de escravos é proibido no porto principal da cidade (onde hoje fica a Praça XV e o Paço Imperial) e transferido exclusivamente para o distante Valongo.

Afinal, quando se está chegando de um grand tour pela Europa, a última coisa que se quer ver é um escravo nu agonizando no cais perto de você! Pelo amor de Deus!

Por fim, em 1843, cada vez mais envergonhado com a escravidão que lhe pagava as contas, o Império desativa e aterra o Cais do Valongo, construindo por cima dele o elegante Cais da Imperatriz.

E fim de história. Assim esqueceu-se o Valongo. Afinal, nós nem cremos que escravos outrora tenha havido em tão nobre país!

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Uma escavação arqueológica em pleno centro do Rio de Janeiro.

Fast-forward para o presente. Em meio a um frenesi de obras para preparar o Rio de Janeiro para a Copa e para os Jogos Olímpicos, a prefeitura acabou de descobrir e desencavar o Cais do Valongo em pleno centro da cidade.

Agora reformado e reembalado para turistas ("são nossas ruínas romanas!", disse o empolgado prefeito), o Cais do Valongo foi inserido no recém-criado Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana, ao lado de outras atrações como a Pedra do Sal, o Cemitério dos Pretos Novos (onde eram enterradas as vítimas da travessia atlântica) e os Jardins Suspensos do Valongo, esses últimos uma das coisas mais lindas e surpreendentes que já vi nessa cidade. (Veja o mapinha abaixo.)

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O recém-criado Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana, no Rio de Janeiro.

Mas que não seja só um espaço para turista tirar fotos.

O que falta ao Brasil e ao Rio de Janeiro, e o que esse circuito histórico pode começar a timidamente fornecer, é uma verdadeira compreensão dos horrores que engendramos, um pálido retrato do terror que aconteceu (e ainda acontece) debaixo dos nossos olhos, nesse nosso chão, na nossa senzala, no nosso quartinho de empregadas.

O texto que você está lendo só existe porque calhei de visitar o Cais do Valongo no dia seguinte de assistir "Shoah".

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O Cais do Valongo, hoje, aberto à visitação pública.

 

É possível quantificar o horror?

O Holocausto perpetrado pelos alemães matou cerca de seis milhões de judeus, um terço de todos os judeus no mundo. Além de incontáveis milhões de outras pessoas.

Não é minha intenção negar nem suavizar esse horror.

Mas não foi nem de longe o único horror perpetrado por europeus em sua longa história de horrores.

É impossível visitar lugares de tortura e morte como Auschwitz, Treblinka, Sobibor sem uma atitude de respeito e reflexão, sem pensar na memória das centenas de milhares de pessoas que sofreram ali.

Mas por que nós, brasileiros, não temos a mesma atitude ao visitar uma senzala, o Pelourinho (onde os escravos eram castigados publicamente) ou o Cais do Valongo?

Auschwitz matou 1,1 milhão de pessoas, Treblinka, 900 mil, Sobibor, 200 mil.

Enquanto isso, o Brasil recebeu 4 milhões de escravos, sendo que um milhão só pelo Cais do Valongo, logo ali, no centro do Rio.

Quem consegue compreender a enormidade desses números? Quem consegue quantificar tamanho sofrimento?

 

O passado é presente

Por isso, ali de pé diante do Cais do Valongo, um dia depois de assistir "Shoah", eu tentei esquecer os números e somente imaginar como teria sido a experiência individual, una, indivisível, de pisar em terra firme ali, naquelas pedras, naquele chão.

Imagino que fui arrancado de minha família e de tudo que conheci; que atravessei o oceano cercado de pessoas agonizantes em um navio infecto; que não pude trazer uma roupa, um livro, nenhum objeto pessoal; que não sabia se jamais veria minha terra; que estava condenado a um castigo literalmente e potencialmente infinito, pois a escravidão não seria apenas minha, mas sim herdada por todos os meus descendentes até o fim dos tempos.

Imagino que o Rio de Janeiro, para mim, escravo recém-chegado, era um lugar desconhecido e cheio de horrores. Era o porto onde meus companheiros mais fracos vinham morrer. Era o chão onde começava a escravidão do meu corpo. Era minha primeira experiência nesse novo mundo onde seria cativo e explorado.

Imagino então que hoje o Rio de Janeiro continua sendo um lugar de horror para os meus descendentes, que são ao mesmo tempo a maior parte das vítimas de assassinato e também a maior parte da população carcerária, e ainda têm que ouvir que racismo não existe no Brasil.

Tudo isso aconteceu ontem, e continua acontecendo hoje. O passado, como uma pedra jogada no lago, cria ondas concêntricas na água e repercute no presente. O passado é o presente.

As cotas raciais são necessárias hoje não para corrigir as injustiças históricas do passado, mas para corrigir as injustiças cotidianas de hoje. As cotas raciais são necessárias porque hoje a Polícia Militar não invade do mesmo jeito a cobertura do descendente do escravista e o barraco do descendente do escravo.

O que fica claro é que não dá pra pensar nesses fenômenos como se pertencessem a universos tão diferentes assim. Não faz sentido chorar assistindo A Lista de Schindler e depois ir espairecer tomando o milkshake do Senzala.

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Esse texto faz parte do livro Outrofobia: Textos Militantes, publicado pela editora Publisher Brasil em 2015. São textos políticos, sobre feminismo e racismo, transfobia e privilégio, feitos pra cutucar, incomodar, acordar.

Outrofobia, o espetáculo | alex castrooutrofobia | alex castro

 

09
Set22

A vingança de quem sabe que já perdeu as eleições: Bolsonaro corta 59% das verbas do Farmácia Popular

Talis Andrade

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Quantos brasileiros morreram de Covid com a militarização do Ministério da Saúde: o atraso na compra das vacinas e o kit cloroquina me engana? Quantos brasileiros vão morrer por não ter dinheiro para comprar medicamentos de uso contínuo?  O remédio é votar em Lula que criou o Programa Farmácia Popular

 

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Logo após fazer sua festa particular do 7 de setembro, Jair Bolsonaro (PL) corta cerca de 59% das verbas da Farmácia Popular, que atinge milhões de brasileiros, fornecendo medicamentos de graça ou a preço abaixo do mercado. Tudo isso para garantir o orçamento secreto em 2023.

O programa que atende mais de 23 milhões de brasileiros, sofreu cortes do governo Bolsonaro e um corte drástico de 59%, o que deve afetar diretamente os mais pobres. O corte ocorre para garantir os recursos do Orçamento secreto, esquema revelado pelo jornal Estado de São Paulo.

Na contramão do corte desses programas, as emendas de relator incluídas no orçamento da saúde cresceram 22%. 

O levantamento foi feito por Bruno Moretti, assessor do Senado e especialista em orçamento da saúde. Os dados completos serão publicados em Nota de Política Econômica do Grupo de Economia do Setor Público da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

A parcela gratuita do Farmácia Popular é voltada para medicamentos de asma, hipertensão e diabetes. Em 2022, as despesas com a gratuidade do programa prevista no Orçamento somaram R$ 2,04 bilhões. Já no projeto de Orçamento de 2023, o governo previu R$ 842 milhões: corte de R$ 1,2 bilhão.Image

Geraldo Alckmin  
Aquele programa que garante a você o acesso gratuito a medicamentos para tratamento de asma, diabetes e hipertensão. Além de afetar a indústria farmacêutica nacional, essa ação desumana do governo vai retirar remédios gratuitos de quem mais precisa já a partir do próximo ano.
Mas, Bolsonaro não vai conseguir sufocar os brasileiros de novo. - quem criou o Farmácia Popular - e eu, com seu apoio, vamos fortalecer o SUS e reconstruir o Brasil.
 
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05
Set22

Bolsonaro quer acabar com Comissão de Mortos e Desaparecidos da ditadura mesmo sem achar corpos

Talis Andrade

Bolsonaro quer acabar com Comissão de Mortos e Desaparecidos da ditadura  mesmo sem achar corpos

O então deputado Jair Bolsonaro exibe em 2004 um cartaz em seu gabinete onde protesta contra a procura dos restos mortais dos guerrilheiros do Araguaia. 

 

Grupo do Ministério Público Federal pretende impedir que órgão criado por Fernando Henrique Cardoso seja desmantelado pelo governo sem que a procura das vítimas tenha sido concluída

 

por Marcelo Godoy

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Caro leitor,

O governo de Jair Bolsonaro pretende pôr um fim à Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP). Trata-se de velho desejo do capitão. Para tanto, o presidente da comissão, Marco Vinícius Pereira de Carvalho, convocou a 84.ª reunião do órgão para o próximo 28 de junho. Carvalho é um advogado bolsonarista simpatizante do regime militar, que foi nomeado para o cargo pela então ministra Damares Alves. Antes, ele promoveu ações em que tentava impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como ministro da Casa Civil, em 2016, e o impeachment do ministro do STF Dias Toffoli.

O plano é usar a reunião do dia 28 para aprovar um relatório final dos trabalhos para fazer desaparecer a comissão. Fundada em 1995 no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), ela foi o resultado de um acordo entre o ministro da Justiça, Nelson Jobim, e o ministro do Exército, Zenildo Lucena. Tratava-se de cumprir o que estava nas disposições transitórias da Constituição de 1988, reconhecendo a responsabilidade do Estado brasileiro no desaparecimento e na morte de presos políticos. Ao mesmo tempo, mantinha-se a Lei de Anistia, de 1979, que impedia a punição dos torturadores e assassinos de prisioneiros sob custódia.

Após 27 anos de trabalhos, poucos corpos foram localizados. Surgiram relatos de militares e de policiais, além de documentos, que ajudaram a esclarecer dezenas de crimes, como o sequestro, tortura, morte e desaparecimento do ex-deputado federal Rubens Paiva. Também foi possível identificar na vala comum do cemitério de Perus, em São Paulo, as ossadas de cinco desaparecidos políticos: Dênis Casemiro, Frederico Antonio Mayr, Flávio de Carvalho Molina, Dimas Antonio Casemiro e Aluísio Palhano Ferreira.

Quatro deles foram assassinados pelo Destacamento de Operações de Informações (DOI), do 2.º Exército, e um pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Dops paulista. Na região do Araguaia, apenas dois corpos dos mais de 60 desaparecidos na guerrilha do PCdoB foram localizados, mesmo depois de o major Sebastião Curió confessar 42 execuções de prisioneiros ao jornalista Leonencio Nossa.

A Lei 9.140/95, que criou a comissão, previa o seu fim quando os trabalhos estivessem concluídos. Em 2019, ao deixar a presidência da CEMDP, a procuradora da República Eugênia Augusta Gonzaga consignou em relatório o que ainda precisava ser feito. O doutor Carvalho, que a substituiu, considerou que tudo o que se fizera até então estava errado. Seu objetivo era encontrar supostas irregularidades para desqualificar o trabalho. Dizia que a procura de corpos devia se limitar às pessoas cujas famílias requisitaram isso e apresentaram indícios de onde estariam segundo o prazo. Era uma espécie de “marco temporal” dos desaparecidos, um jeitinho para se furtar ao trabalho humanitário.

Apoiado no colegiado por dois oficiais do Exército, o doutor bolsonarista foi mais longe: chegou a questionar por que certidões de óbitos foram entregues aos familiares. O doutor Carvalho fez isso após a comissão entregar o atestado de óbito do estudante Fernando Santa Cruz, militante da Ação Popular - contrário à luta armada - ao seu filho, o então presidente da OAB, Felipe Santa Cruz. O ato provocou a reação de Bolsonaro e a demissão de Eugênia. Fernando foi assassinado por militares do Centro de Informações do Exército (CIE), liderados por um outro tipo de doutor que habitava os porões do regime: o Doutor Cesar.

Com a repercussão do caso, Bolsonaro inventou a mentira desmentida por documentos do próprio Exército de que Fernando mudara de lado, traíra os colegas. Agora, o doutor Carvalho quer a interpretação da lei acima do direito humanitário, enterrando a esperança dos familiares com a ideologia da extrema-direita. Rompe-se, assim, o acordo político, tratado pelos seus autores como parte do processo de pacificação, conforme explicou à coluna o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Eros Grau. Relator da ação que pedia no STF a derrubada da Lei de Anistia, Grau deu o voto que manteve a medida.

Para o Grupo de Trabalho Memória e Verdade, da Procuradoria da República, entregar os corpos às famílias é dever humanitário que vai além do que diz a Lei 9.140/95. Os procuradores prepararam um parecer contrário ao encerramento da comissão, pois acreditam que o trabalho dela não está concluído. Para eles, a CEMDP foi ratificada pela Comissão de Anistia e pela Comissão Nacional da Verdade, bem como pela condenação do Brasil na Corte Interamericana dos Direitos Humanos (CIDH) nos casos Gomes Lund e Vladimir Herzog.

ConJur - Entrevista: Eugênia Gonzaga, procuradora regional da República

A procuradora da República Eugênia Gonzaga. em São Paulo 

 

Diz o parecer: “o enfrentamento das questões relativas aos mortos e desaparecidos políticos não pode ser realizado somente com base nas Leis n° 9.140/1995 e 10.536/2002. Elas evidentemente não esgotam o tratamento da matéria, por isso devem ser analisadas e interpretadas em conjunto com os demais instrumentos aplicáveis. Uma conclusão em sentido contrário, levaria ao paradoxo de se conferir uma proteção insuficiente para familiares de mortos e desaparecidos políticos, o que é vedado”.

Os procuradores usam a Convenção de Genebra, da qual o Brasil é signatária no parecer. “Entre os vários princípios adotados nas referidas convenções, cabe citar: a) feridos e enfermos serão recolhidos e tratados; b) mortos devem ser previamente identificados e enterrados de modo a permitir a sua identificação futura; c) não deve haver segredos sobre a localização de corpos, tudo deve ser relatado; d) os Estados têm o dever de emitir atestados e certidões de óbito dos atingidos pelo conflito”. Tudo o que o Doutor César desrespeitou.

O parecer prossegue afirmando que as normas destinadas a situações de guerras declaradas entre nações são “em tudo aplicáveis a vítimas de conflitos internos, inclusive integrantes de movimentos de resistência, de libertação ou de guerrilha, conforme mais tarde ficou claro nos protocolos adicionais às convenções acima”. Esses protocolos, aprovados em 1949, foram ratificados no Brasil pelo Decreto 849, de 1993. “Ora, agentes da ditadura brasileira, vigente entre 1964 e 1985, sempre justificaram as prisões ilegais e assassinatos praticados com base na ideia de que havia uma guerra interna. Porém, ainda que verídica essa versão, nota-se que não foram cumpridos os deveres acima por parte do Estado”.

Ou seja, o Doutor César e seus homens cometeram crimes de guerra ao desaparecer dolosamente com os corpos e executar prisioneiros sob sua custódia. “Desse modo, a instauração da CEMDP, com a função de identificar mortos, localizar corpos ocultos, não entregues às famílias, bem como de emitir os competentes atestados de óbito, teve a função (ainda que tardia) de suprir as omissões do período ditatorial. Assim, tendo em vista que a situação no Brasil permanece longe de se garantir a familiares dos mortos e desaparecidos políticos seus direitos, não há como se defender a extinção do único órgão existente no País com essa finalidade”, conclui o parecer dos procuradores.

Quando era deputado, Bolsonaro protestou em 2004 contra os trabalhos da Comissão. Diante de um cartaz em que um cachorro mordia um osso, o futuro presidente dizia “quem procura osso é cachorro”. O capitão debochava do sofrimento dos familiares dos mortos e desaparecidos. Em mais de uma oportunidade levou ao Congresso militares veteranos de órgãos de informação e de operações responsáveis pela prisão, tortura e morte de opositores políticos. Tratava-os como heróis, como se referia ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o Doutor Tibiriçá, do DOI/II Exército e do CIE.

Coronel Ustra! - UOL Notícias

O coronel reformado do Exercito Carlos Alberto Brilhante Ustra presta depoimento sobre crimes durante o regime militar, na Comissão Nacional da Verdade, em Brasília 

Para a procuradoria, “sequer a esfera de discricionariedade do Poder Executivo poderia respaldar uma decisão de extinção da CEMPD no momento atual”. A razão disso é que as leis, assim como as recomendações emitidas pela CNV – ainda não cumpridas – determinam que se faça o contrário. “Ou seja, em vez de extinguir um dos únicos órgãos existentes na temática, o Estado deve fortalecer esse órgão e lhe dar as condições necessárias para que possa intensificar as suas atividades”, afirmam os procuradores.

O GT Memória e Verdade, da Procuradoria Federal dos Direitos dos Cidadãos, conclui seu parecer afirmando: “Tendo em vista a possibilidade iminente de extinção da comissão, solicita à Procuradoria Regional dos Direitos dos Cidadãos (de Brasília), que promova as medidas necessárias, administrativas e judiciais, para que a CEMDP não seja extinta enquanto persistir a situação de não cumprimento das decisões da CIDH nesta seara, bem como das recomendações da CNV”. Eis aqui a reação do MPF à conduta do doutor Carvalho.

A pressa com que o governo Bolsonaro quer acabar com a comissão parece ter duas finalidades. A primeira é fazer tudo o que for possível antes de ser obrigado a deixar o poder, em caso de vitória de Luiz Inácio Lula da Silva. A outra é ter mais um trunfo para mobilizar sua base extremista com um acerto de contas com a herança do governo de FHC, considerado por Bolsonaro um “gêmeo siamês” das administrações petistas. E, para tanto, pouco importam as considerações legais e humanitárias ou a reação judicial à medida.

01
Set22

Desaparecidos políticos

Talis Andrade

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Por Michelle Viviane Godinho Corrêa

A partir de 1968, o regime militar encontrou maior resistência a sua continuidade. Manifestações estudantis e operárias, aliadas ao crescimento da luta armada no país, levaram a edição do AI-5 e do início de uma série de prisões que, muitas vezes, levaram ao desaparecimento de centenas de pessoas consideradas um perigo à segurança nacional.

 

O contexto da Guerra Fria e a caça aos comunistas

 

Nos países do bloco capitalista durante a Guerra Fria, a perseguição aos comunistas e simpatizantes ocorreu de norte a sul, como o Macarthismo nos EUA e o fechamento do Partido Comunista do Brasil (PCB) por Gaspar Dutra. Se no dito “Período Democrático” o comunismo foi perseguido, durante a ditadura militar não seria diferente.

Além de cassações de mandatos da oposição e da prisão de estudantes, intelectuais e professores universitários, os militares operaram forte censura aos meios de comunicação, chegando a atentados terroristas contra jornais e revistas de esquerda. Nesse contexto, centenas de brasileiros foram dados como desaparecidos, muitos deles vítimas dos órgãos de repressão da ditadura militar que operavam em nome da Doutrina de Segurança Nacional.

Nesse contexto foram criados ou ressignificados diferentes instituições públicas, tais como o DOPS, o DOI-CODI e o SNI a fim de identificar, interrogar e punir qualquer cidadão considerado subversivo. Mulheres, jovens e idosos também se incluíam nessa categoria e foram vítimas de tortura, desaparecimento forçado e assassinato.

De acordo com o artigo 2º da Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, entende-se o desaparecimento forçado como [...] "a prisão, a detenção, o sequestro ou qualquer outra forma de privação de liberdade que seja perpetrada por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas agindo com a autorização, apoio ou aquiescência do Estado, e a subsequente recusa em admitir a privação de liberdade ou a ocultação do destino ou do paradeiro da pessoa desaparecida, privando-a assim da proteção da lei." (BRASIL, 2016).

 

Comissão da Verdade e desaparecidos do regime militar

 

Criada em 2011, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) concluiu seus trabalhos afirmando que a tortura foi uma política de Estado durante o regime militar e sugeriu que fosse revista a Lei de Anistia para os agentes envolvidos em desaparecimentos forçados durante a ditadura. Além disso, recomendou que lhes fosse exigido ressarcimento aos cofres públicos a fim de pagar as indenizações das vítimas. Sugeriu também a extinção da Lei de Segurança nacional, que reflete o pensamento autoritário do período militar e não condiz com o estado democrático vivido na atualidade.

A CNV identificou cerca de 1843 vítimas de tortura, dentre elas 434 morreram ou desapareceram. Esta cifra compreende 191 pessoas que foram assassinadas, 210 que permaneceram como desaparecidas e 33 que tiveram seus corpos encontrados posteriormente. Dentre os grupos mais atingidos, estiveram estudantes (6%) e membros de guerrilhas revolucionárias - ALN, MR-8, VAR-Palmares e VPR - totalizando 30%.

Provavelmente o número de desaparecidos durante a ditadura é superior ao encontrado pela CNV, entretanto, até o presente, esses são os dados comprovadamente relacionados à atuação dos militares durante a ditadura. De acordo com o relatório da comissão, 377 agentes públicos estiveram envolvidos em atos de desrespeito aos Direitos Humanos entre 1964 e 1985.

Bibliografia:

BRASIL. Decreto nº 8767, de 11 de maio de 2016. Promulga a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, firmada pela República Federativa do Brasil em 6 de fevereiro de 2007. Planalto, Brasília, 2016. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/decreto/D8767.htm>. Acesso em: 7 nov. 2017.

LIMA, Wilson. Em relatório final, Comissão da Verdade pede revisão da anistia a torturadores. Último Segundo, iG, Brasília, 10 dez. 2014. Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2014-12-10/em-relatorio-final-comissao-da-verdade-pede-revisao-da-anistia-a-torturadores.html>. Acesso em: 7 nov. 2017.

LIMA, Wilson. Comissão da Verdade identificou 1,8 mil vítimas de tortura durante a ditadura. Último Segundo, iG, Brasília, 10 dez. 2014. Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2014-12-10/comissao-da-verdade-identificou-18-mil-vitimas-de-tortura-durante-a-ditadura.html>. Acesso em: 7 nov. 2017.

LIMA, Wilson. Comissão da Verdade confirma 434 mortes e desaparecimentos na ditadura. Último Segundo, iG, Brasília, 10 dez. 2014. Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2014-12-10/comissao-da-verdade-confirma-434-mortes-e-desaparecimentos-na-ditadura.html>. Acesso em: 7 nov. 2017.

O subprocurador-geral da República e procurador federal dos Direitos do Cidadão, Carlos Vilhena, enviou nesta quinta-feira (15) ofício à ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Cristiane Britto, no qual manifesta posição contrária à "extinção prematura" da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos.

O Trilhas da Democracia entrevista a historiadora e professora da Universidade do Estado de Minas Gerais, Janaina Teles. Em questão, os mortos e desaparecidos políticos na Ditadura Militar (1964-1985), a Operação Condor e o reconhecimento de Carlos Alberto Brilhante Ustra como torturador pela Justiça de São Paulo, em 2008. Apresentação: Marco Mondaini.

Memória em Postais– Dia Internacional dos Desaparecidos 2016 | Comitê  Internacional da Cruz Vermelha

21
Jul22

Dulce Pandolfi: “Fui objeto de uma aula de tortura”

Talis Andrade

A ditadura militar e as Diretas Já - Jornal Plural

Mulheres perseguidas relembram as situações e os sentimentos ao longo da ditadura e comentam o momento negacionista vivido sob o governo Bolsonaro: "Nós temos uma dor que jamais será apagada"

 

“Este é um momento político muito oportuno para relembrar que existiu uma ditadura civil-militar no Brasil”, introduz a repórter Tatiana Merlino, sobrinha do jornalista Luiz Eduardo Merlino, morto e torturado pelos militares em 1971. A convite da Pública, Tatiana entrevistou ao vivo Victória Grabois, do Grupo Tortura Nunca Mais, e parente de desaparecidos políticos da Guerrilha do Araguaia, e Dulce Pandolfi, historiadora que foi torturada no DOI-Codi da Tijuca.

A conversa foi em meio aos recentes fatos que envolvem o governo Jair Bolsonaro, que, três meses após tomar posse, determinou que fossem comemorados os 55 anos da ditadura militar no Brasil.

Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade estipulou pelo menos 434 mortos e desaparecidos no período de exceção. Segundo o Human Rights Watch, mais de 20 mil pessoas foram torturadas pelos militares brasileiros.

As mulheres, embora em menor número, tiveram papel essencial nos movimentos pela liberdade e democracia e não passaram impunes pelo regime. A seguir, publicamos alguns trechos da conversa no Rio de Janeiro, no dia 27 de abril de 2019. Veja a íntegra aqui:

 

 

Tatiana Merlino — Para vocês, que viveram, combateram e passaram todos esses anos do período da redemocratização denunciando o que foi a ditadura, como é que viver esse momento político no Brasil?

Victória Grabois — Vivi durante 16 anos da ditadura civil-militar do Brasil na clandestinidade. A tortura física é algo imensurável. Já conversei isso com muitas mulheres, que viveram tanto a clandestinidade, como viveram e foram torturadas e sobreviveram e viveram na cadeia, e elas diziam que a pior coisa da vida é a clandestinidade porque você tem que ser outra pessoa.

Entrei na clandestinidade com 21 anos e sai aos 36. Casei durante a clandestinidade, tive um filho na clandestinidade, tive documentos falsos. E viver na clandestinidade é algo que não dá para dizer a vocês. Eu não cheguei a ser guerrilheira no Araguaia, porque dentro do partido comunista tinham uma mentalidade de que mulher não ia ficar na guerrilha, e voltei para São Paulo. Voltei para São Paulo, fiquei grávida e tive um filho. Sempre digo: meu filho salvou minha vida. Se eu não tivesse meu filho, hoje eu não estaria aqui conversando com vocês. Alguém sobrou da família? As mulheres e as crianças sobraram para contar essa história. Então eu vivi épocas muito difíceis, e agora, depois de velha, com filhos criados, com netos, estou vivendo algo que eu jamais imaginaria que voltasse, e para mim voltou de uma forma muito dura. E o que mais me chama atenção é o desmonte da educação neste país. Por enquanto esse governo não me atingiu fisicamente, mas acho que vou ser atingida. Sou do grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, eles não chegaram no grupo, mas vão chegar. Tenho quase certeza de que eles vão em cima da gente.

Victória Grabois – Resistência, Substantivo Feminino

Victória Grabois

Tatiana Merlino — Você acha que estamos vivendo um negacionismo, um revisionismo histórico?

Dulce Pandolfi — Para mim, é muito emocionante falar sobre essas coisas. Para nós, que passamos as agruras do regime militar, é muito duro estar vivendo isso no Brasil. Costumo dizer que é como se fosse um governo de ocupação. Existe um projeto, e eles estão implantando um projeto, que é de destruição e que atinge diversas áreas: a questão ambiental, a questão indígena, as universidades, a educação, a nossa área de direitos humanos. Então é muito cruel. A gente está vivendo agora uma situação de barbárie.

No meu entender, não se trata mais de uma linha divisória. Não se trata mais de democracias, nem ditaduras. A história não é um processo linear. Os direitos são mutáveis, surgem novos direitos. Cada batalha da gente tem objetivos, e a gente tem ganhos, tem algumas perdas e depois novas batalhas, com novos ganhos e novas perdas. O que a gente está vivendo hoje, também, não é um revisionismo. O que a gente está vivendo é outra coisa, é o que a gente chama de negacionismo, uma coisa completamente absurda. É quando, por exemplo, esses homens dizem que o partido do Hitler era de esquerda e nega todas as fontes que dizem o contrário.

Lembrando, também, que, no Brasil, a gente tem uma elite muito complicada, e que todos os momentos onde a gente teve governos que tentaram fazer transformações, até pequenas, mas projetos mais vinculados aos pobres, propostas mais inclusivas, esses governos foram rechaçados por essa elite. Foi assim em 64, foi assim com Vargas e foi assim agora, nesses governos de Lula e Dilma.Dulce Pandolfi conversa sobre ditadura

Dulce Pandolfi

Tatiana Merlino — Dulce, voltando à questão do negacionismo, por que você acha que a gente chegou até aqui? A justiça de transição do Brasil foi muito tardia, ineficiente? Qual sua avaliação?

Dulce Pandolfi — Acho que tem uma relação, sim. A história é feita de rupturas e continuidades. Nenhum processo se rompe totalmente, sempre tem coisas que continuam e coisas que você rompe. Mas no Brasil, por exemplo, as continuidades, as permanências são mais fortes do que as rupturas. De um modo geral, tem sido assim a nossa história. E assim foi com a passagem, também, do regime ditatorial para o regime democrático. E a lei da anistia, que este ano está comemorando 50 anos em agosto, também complicou muitas coisas. Mas por quê?

Os que estavam fora do país voltaram e a volta foi muito comemorada. Imagine, pessoas que estavam fora do Brasil desde 64, que nem conheciam suas famílias. Conheço muita gente que não conhecia nenhum parente, porque tinha saído daqui em 64, deixando filho, mulher, e não conheceu mais ninguém. Mas a lei tem um problema muito sério: os torturadores não foram julgados no Brasil. O que quero é o reconhecimento público da tortura no Brasil. Quero é que um torturador seja reconhecido publicamente, e que a tortura seja condenada como tal, como um crime de lesa-humanidade, portanto inadmissível de ser feita contra mim, contra você e contra qualquer um de vocês, contra qualquer pessoa da sociedade brasileira.

Dulce Pandolfi: "Fui objeto de uma aula de tortura" - Agência Pública

A jornalista Tatiana Merlino entrevistou Dulce Pandolfi e Victória Grabois

 

Tatiana Merlino — Victória, por que você acha que o Brasil não conseguiu, ainda, punir os torturadores, apesar das muitas ações que foram movidas pelo MPF contra agentes da ditadura?

Victória Grabois — Acho que não teve vontade política de nenhum presidente que sucedeu o regime militar. Eu sinto muito de ter que falar isso. Por que Lula, no primeiro governo dele, que tinha 80% da aprovação do povo brasileiro, não teve a coragem política de abrir os arquivos da ditadura? Ele podia ter feito isso, mas não teve, em nome da governabilidade. Quer dizer, é uma questão seríssima. Nós somos uma sociedade atrasada, somos uma sociedade conservadora, e nós sentamos em cima da chamada redemocratização.

Tatiana Merlino — Dulce, você poderia contar um pouco da sua história, da sua militância e da sua tortura.

Tatiana Merlino

Tatiana Merlino

Dulce Pandolfi — Eu sou pernambucana e me engajo na luta ainda bastante jovem, quando o estado era governado por Miguel Arraes. Era um governo bastante avançado. Pernambuco foi um centro importantíssimo no período. É de lá que surgiu o Paulo Freire, Francisco Brennand, as ligas camponesas, o Julião, Gregório Bezerra, que também era líder dos trabalhadores rurais, Pelópidas Silveira… Enfim, toda uma liderança que fez do governo Arraes um governo muito particular. Então, no dia do golpe, eu tinha 13 para 14 anos, e aquilo foi uma marca muito forte na minha vida. Meu pai era um liberal de esquerda, professor da universidade, e lembro lá os amigos reunidos, queimando livro, escondendo livro, enfim, as pessoas em pânico.

Entro na universidade em 67, ou seja, sou dessa geração de 68, que é uma geração muito especial. Entrei para fazer ciências sociais, que o Bolsonaro odeia, e fui fazer sociologia. Esse curso considerado, hoje, menor. Fui uma jovem do movimento estudantil, do diretório estudantil, depois do diretório central dos estudantes e depois ingresso na ALN – Aliança Libertadora Nacional. Eu sou presa em 1970, aqui no Rio de Janeiro, e fui barbaramente torturada.

A repressão também tinha sua escala, né? A ALN era uma organização dirigida por Carlos Marighella, que era considerado o inimigo mortal da ditadura. Fui de fato supertorturada, um período muito duro, difícil.

Eu passei três meses no DOI-Codi, totalmente ilegal, uma prisão que não tinha rastros, vamos dizer assim, que podiam ter desaparecido comigo… Fui para o Dops, depois para Bangu, depois vou para Recife, porque também tinha processo lá…

Mas enfim, depois desse período, depois da legalidade, a gente frequentava as auditorias militares, onde os processos rolavam. E lá a gente era interrogada sobre os nossos processos e, no final, os militares, aquela coisa bem solene, perguntavam se você tinha alguma coisa a acrescentar. E várias pessoas, entre elas eu, mas vários outros companheiros, a gente fazia denúncia das torturas. Enfim, contava os detalhes da tortura, e aquilo era assinado por nós e pelos militares, pelos auditores. Aquilo tudo ficou selado, é um negócio realmente impressionante. Não é à toa que, quando começa a se discutir a anistia, os advogados vão lá, pegam aquela documentação, e isso redundou numa coisa preciosíssima, que são os arquivos do Brasil: Nunca Mais.

Então, meu caso é um caso, digamos assim, bastante badalado, porque eu também fui objeto de uma aula de tortura. Eu, depois como professora, quando penso nisso, é uma coisa, assim, que me dói da cabeça até o dedo do pé. Você saber que você está sendo uma cobaia onde as coisas eram explicadas para os alunos. Qual tortura mais eficiente, fazendo assim, fazendo assado. Eu já estava presa há um tempo, quase dois meses. Foi uma barra super pesada.

Acho que o caso da Victória também é um caso muito emblemático, muito duro, mas eu queria marcar uma pequena diferença, porque eu acho, Victória, que tudo isso, que os avanços que a gente conseguiu, foram em função de uma luta, de uma disputa. Não foi o presidente da república A, B, C ou D. A gente não teve condições. A sociedade brasileira não abraçou a nossa causa como a gente queria.

Então, por exemplo, acho que a Comissão da Verdade foi um grande ganho. Claro que se avançou pouco do ponto de vista dos mortos e desaparecidos, entendo sua dor. Porque nós temos uma dor que jamais será apagada. Até digo: a tortura, como o desaparecimento, é uma tatuagem, que eu levo comigo até a morte.

As pessoas não falavam de tortura e foi a partir da Comissão da Verdade que a gente conseguiu socializar essa discussão. Acho que o grupo dos familiares dos mortos e desaparecidos e o grupo Tortura Nunca Mais são heroicos, tiveram papel fundamental. Lutaram com unhas e dentes o tempo inteiro. É uma luta incansável. Mas eu acho que a gente tem que reconhecer também os avanços, e se a gente não avançou mais é porque a sociedade brasileira, exatamente por nossa história, pela escravidão, pelo tipo de colonização que a gente teve, pelo tipo de transição que a gente teve, pelo tipo de direitos humanos que tem no Brasil, não conseguiu avançar mais.

Victória Grabois — Primeira coisa: não sou vítima, sou sobrevivente. Eu nunca fui vítima. Eu até brinco com as minhas amigas que eu devo ser um ser à parte, porque o que vejo do sofrimento das pessoas…

No grupo Tortura Nunca Mais, nós tivemos uns 15 anos com um projeto clínico-psicológico em que nós atendemos os familiares de mortos e desaparecidos políticos e os companheiros que foram torturados. Você ir no grupo Tortura Nunca Mais é um choque quando você entra. E consegui sobreviver a isso, de viver na clandestinidade, de criar meu filho, de reconstruir a minha vida, de ser militante. Eu sou uma sobrevivente da ditadura militar. Eu não quero que ninguém ache que eu sou uma vítima.

Queria dizer, também, que 68 foi marcante, porque a gente teve um movimento na França, um movimento que eclodiu no mundo e veio refletir no Brasil. E eu sou da geração de 64, eu sou mais velha que você. Eu era estudante da Faculdade Nacional de Filosofia, hoje é o IFCS, e tinha um diretor que chamava Eremildo Viana. Quem lê o Elio Gaspari, vê lá: Eremildo, o idiota. É o próprio. E na época, nós fizemos um movimento para que o novo diretor da Faculdade Nacional de Filosofia fosse eleito, e nisso 15 alunos foram suspensos por tempo indeterminado. Eu sou uma dos 15 alunos e, quando veio o golpe em abril, eles expulsaram os 15 e mais quatro, então são 19. E um dos expulsos é o Elio Gaspari. Dulce, toda vez que mudava um governo, vinha um ministro da Justiça novo, nós íamos para Brasília conversar com os ministros e escutamos sempre: em nome da governabilidade, nada pode ser feito. O pior ministro que recebeu os familiares de mortos e desaparecidos políticos, em cinco minutos, foi o ministro Márcio Thomaz Bastos. Me desculpem falar isso, não é mágoa que eu tenho, não. Mas é um mínimo de respeito por aquelas senhoras que perderam seus filhos. Vocês não podem imaginar o que é a perda de um filho. A gente sabe perder pai e mãe, mas perder filho? E tem mães dos desaparecidos que perderam três filhos. A família Petit perdeu três na guerrilha. Então, é o mínimo que esses governos que se diziam democratas, que se diziam do nosso lado, teriam que nos receber com dignidade. Esses casos precisavam ser esclarecidos, e no Brasil não foi. O Lula só mandou projeto da Comissão da Verdade porque nós estávamos na Costa Rica, porque os ministros, os juízes da CIDH [Comissão Interamericana de Direitos Humanos] iam falar que era o país mais atrasado que tem no mundo. Quantos desaparecidos no Brasil? 136? Total 434? Não é verdade. E a matança dos indígenas? Cadê os indígenas na Comissão da Verdade? Sempre dissemos que a tortura no Brasil era uma política de Estado… A Comissão da Verdade é um ganho? É. Porque eles disseram: era uma política de Estado, dito pelo próprio Estado brasileiro. Mas isso é muito pouco. Você vai no Araguaia e vê índio louro de olho verde. Os militares brasileiros estupravam as índias durante a guerrilha. As coisas que eles faziam lá… A Comissão da Verdade não colocou isso. Mal e porcamente colocou lá a questão dos camponeses que foram torturados, que até iam receber uma indenização pecuniária que o Bolsonaro mandou cortar, entendeu? Esse papo não é de mágoa, não, é questão política. Vou dizer uma coisa: a esquerda só se une na cadeia. A união da esquerda é na cadeia porque você vê o Bolsonaro, tem o grupo dos militares, o grupo do Paulo Guedes, o grupo dos filhos, o grupo do Moro… Eles estão se engalfinhando, mas eles estão lutando, e nós não. [Este texto foi publicado há mais de 3 anos. As previsões de Dulce Pandolfi e Victória já ocorreram ou estão, infelizmemte, acontecendo. Que o povo mude a História do Brasil neste 2 de outubro próximo]

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21
Jul22

Luta, substantivo feminino – Mulheres torturadas, desaparecidas e mortas na resistência à ditadura

Talis Andrade

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Verdade publica a seguir dois depoimentos extraídos do livro Luta, substantivo feminino  – Mulheres torturadas, desaparecidas e mortas na resistência à ditadura, publicado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, que testemunham as brutalidades cometidas pelos torturadores da Ditadura Militar, verdadeiros terroristas que continuam impunes e protegidos pelas Forças Armadas, e a falta de coragem do Governo e do Congresso Nacional.

“Fomos colocadas na solitária, onde ficamos por três meses, sendo tiradas apenas para sermos interrogadas sob tortura. Era choque elétrico, pau de arara, espancamento, telefone, tortura sexual. Eles usavam e abusavam. Só nos interrogavam totalmente nuas, juntando a dor da tortura física à humilhação da tortura sexual. Eles aproveitavam para manusear o corpo da gente, apagar ponta de cigarro nos seios. No meu caso, quando perceberam que nem a tortura física nem a tortura sexual me faziam falar, me entregaram para uns policiais que me levaram, à noite, de olhos vendados, para um posto policial afastado, no meio de uma estrada. Lá, eu fui torturada das sete da noite até o amanhecer, sem parar. Pau de arara até não conseguir respirar, choque elétrico, espancamento, manuseio sexual. Eles tinham um cassetete cheio de pontinhos que usavam para espancar os pés e as nádegas enquanto a gente estava naquela posição, de cabeça para baixo. Quando eu já estava muito arrebentada, um torturador me tirou do pau de arara. Eu não me aguentava em pé e caí no chão. Nesse momento, nessa situação, eu fui estuprada. Eu estava um trapo. Não parava em pé, e fui estuprada assim pelo sargento Leo, da Polícia Militar. De madrugada, eu percebi que o sol estava nascendo e pensei: se eu aguentar até o sol nascer, vão começar a passar carros e vai ser a minha salvação. E realmente aconteceu isso. Voltei para a solitária muito machucada. A carcereira viu que eu estava muito mal e chamou a médica da penitenciária. Eu nunca mais vou esquecer que, na hora que a médica me viu jogada lá, ela disse: Poxa, menina, não podia ter inventado isso outro dia, não? Hoje é domingo e eu estava de saída com meus filhos para o sítio’. Depois disso, eles passavam noites inteiras me descrevendo o que iam fazer com a minha menina de quatro meses. ‘Você é muito marruda, mas vamos ver se vai continuar assim quando ela chegar.

Estamos cansados de trabalhar com adulto, já estudamos todas as reações, mas nunca trabalhamos com uma criança de quatro meses. Vamos colocá-la numa banheirinha de gelo e você vai ficar algemada marcando num relógio quanto tempo ela leva para virar um picolé. Mas não pense que vamos matá-la assim fácil, não. Vocês vão contribuir para o progresso da ciência: vamos estudar as reações, ver qual vai ser a reação dela no pau de arara, com quatro meses. E quanto ao choque elétrico, vamos experimentar colocando os eletrodos no ouvido: será que os miolos dela vão derreter ou vão torrar? Não vamos matá-la, vamos quebrar todos os ossinhos, acabar com o cérebro dela, transformá-la num monstrinho. Não vamos matar você também não. Vamos entregar o monstrinho para você para saber que foi você a culpada por ela ter se transformado nisso’. Depois disso, me jogavam na solitária. Eu quase enlouqueci. Um dia, eles me levaram para uma sala, me algemaram numa cadeira e, na mesa que estava na minha frente, tinha uma banheirinha de plástico de dar banho em criança, cheia de pedras de gelo. Havia o cavalete de pau de arara, a máquina do choque, e tinha uma mamadeira com leite em cima da mesa e um relógio na frente. Eles disseram: ‘Pegamos sua menina, ela já vai chegar e vamos ver se você é comunista marruda mesmo’. Me deixaram lá, olhando para os instrumentos de tortura, e, de vez em quando, passava um torturador falando: ‘Ela já está chegando’. E repetia algumas das coisas que iam fazer com ela. O tempo foi passando e eles repetindo que a menina estava chegando. Isso durou horas e horas. Depois de um tempo, eu percebi que tinham passado muitas horas e que era blefe.”Gilse Cosenza, moça e combatente de Minas - Mauricio Grabois

Gilze Cosenza, ex-militante da Ação Popular (AP), era recém formada em Serviço Social quando foi presa em 17 de junho de 1969, em Belo Horizonte (MG)

 

 

“Toda vez que o guarda abria a cela e vinha com aquele capuz, a gente já sabia que ia apanhar. Numa dessas vezes que foram me buscar, quando chego na sala de tortura, ao tirarem meu capuz percebo que era uma aula. Havia um professor e vários torturadores. Pelo sotaque, percebi que alguns não eram brasileiros, mas provavelmente uruguaios, argentinos. Então me disseram que eu era uma cobaia. Eles começaram a explicar como dar choque no pau de arara. Eu passei muito mal, comecei a vomitar, gritar. Aí me levaram para a cela e, dali a pouco, entrou um médico com outros torturadores.

Ele me examinou, tomou minha pressão e o torturador perguntou: ‘Como ela está?’. E o médico respondeu: ‘Tá mais ou menos, mas ela aguenta’. E aí eles desceram comigo, sob gritos e protestos das companheiras de cela. A aula continuou e acabou comigo amarrada num poste no pátio com os olhos vendados, e os caras fazendo roleta russa comigo, no maior prazer. Essa brincadeirinha levou muito tempo, até que no sexto tiro a bala não veio. Na minha época, eu fui a única a servir de cobaia, acho que eles tinham uma ‘predileção’ especial por mim. No DOl-Codi, a barra foi pesadíssima. Teve pau de arara com choque elétrico no corpo nu: nos seios, na vagina, no ânus. Lá tinha um filhote de jacaré de estimação dos torturadores que eles colocavam para andar em cima do nosso corpo, amarrado numa cordinha. Fiquei três meses no DOl-Codi, depois fui para o Dops e, depois de um tempo, para o presídio de Bangu. Então, fiui transferida para o presídio de Bom Pastor, em Pernambuco.”Dulce Pandolfi conversa sobre ditadura

Dulce Chaves Pandolfi, ex-militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), era estudante de Ciências Sociais quando foi presa em 14 de agosto de 1970, no Rio de Janeiro

 

 

20
Jul22

Como a ditadura elogiada por Bolsonaro torturou crianças e jovens

Talis Andrade
 
 
 
 
 
Relatos de vítimas de tortura praticada pelo ídolo de Bolsonaro, Brilhante Ustra e seus comparsas, mostram a face mais cruel da Ditadura Militar brasileira

 

Em diversas oportunidades, o candidato do PSL, Jair Bolsonaro, já falou com todas as letras que admira o período de ditadura militar no Brasil, que de 1964 até 1985 impediu a livre manifestação política, caçou, torturou e assassinou seus opositores. Além disso, ele diz que seu ídolo é o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, morto em 2015, enquanto ainda respondia diversas acusações de tortura, que incluíam mulheres grávidas e crianças.

Bolsonaro ainda afirma que a autobiografia de Ustra, “A Verdade Sufocada” é seu livro de cabaceira. No texto, Ustra tenta justificar as atrocidades que cometeu.

Janaína de Almeida Teles, Edson Luis de Almeida Teles, César Augusto Teles, Maria Amélia de Almeida Teles e Criméia Alice Schmidt de Almeida acusaram Ustra de sequestro e tortura em 1972 e 1973. Ustra chefiou o DOI-CODI de 1970 a 1974. Nesses período, outros tantos foram torturados e assassinados no local.

Apesar das centenas de casos, muitas dessas histórias só vieram a tona de maneira explícita com a Comissão Nacional da Verdade, instalada em 2011 e encerrada em 2014. No ano de 2013, Ustra chegou a ser intimado e prestou depoimento.

A partir dos relatos na Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, foi produzido o livro “Infância Roubada – Crianças atingidas pela Ditadura Militar no Brasil“, da onde foram extraídas as histórias abaixo. A Comissão da Verdade foi presidida pelo então deputado estadual Adriano Diogo e o livro teve coordenação e produção editorial de Tatiana Merlino.

Torturado com espancamento, choques e pau-de-arara aos 16 anos

Ivan e seu cachorro, alguns anos antes da tortura

 

Ivan Akselrud de Seixas, foi militante do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT) e tinha 16 anos em 1971, quando foi preso com seu pai. Além de ser brutalmente espancado, foi obrigado a ver o pai sofrer violência similar, além de ser induzido a pensar que ele havia sido assassinado.

“Rasgaram minha roupa toda, me dominaram, amarraram as mãos e me puseram no pau de arara. Eu sempre fui gordo e o cano foi cortando atrás do meu joelho. Tudo é de uma extrema violência. A primeira vez que você é pendurado tem uma sensação horrorosa. Fica de ponta cabeça, não sabe o que vai acontecer. Aí puseram os fios da máquina de choque no polegar e o outro dentro da orelha. Na sala, tinha uns cinco torturadores. E aí começou a gritaria. “Vai falar ou vamos te matar?” A única coisa que me veio à cabeça eu falei: “Não vou falar. Vão para a puta que os pariu”. Eles queriam ponto, eles tinham uma necessidade urgente de pegar pessoas com quem eu tinha contato.”

Em outro trecho, ele cita a presença de Ustra. “Na hora que eu estava algemado, pronto para ir, entra o [à época major, Carlos Alberto Brilhante Ustra] e fala: ‘Não, ele não vai, ele pode estar fingindo, vai correr e vamos ter que matar, não é para matar agora. E ele está mancando, vai denunciar e o Clemente vai fugir. Leva o Juracy que está colaborando’. Aí eu pensei ‘Pelo menos vou ficar sem apanhar’.”

“Levaram o Juracy e eu fiquei levando umas porradas, choques, mas não pendurado. Acho que depois de uma hora volta o Otavinho [vulgo do delegado Otávio Moreira Júnior] furioso, gritando, com aquela voz fininha: “Era ponto frio! Ele nos enganou”. Ele pegou um pedaço de pau no chão e acertou no meu braço tão forte que na hora levantou uma bolha de sangue pisado.”

“Ele disse: ‘Agora eu quero aparelho’. E eu disse: ‘Eu entro de olho fechado na casa do Rei’. Aí teve mais paulada, ele acelerou, batendo mais rápido, repetidamente. Rasgaram minha roupa toda, me puseram no pau de arara de novo e foi barra pesada, pancadaria pesadíssima. Foi quando quebraram a minha vértebra. De tão furioso da porrada que levou, o Davi ficou em pé em cima do meu peito.”

Em outro trecho de seu relato, Ivan fala de como a mãe foi tratada por Ustra. “No tempo que esteve presa, minha mãe dizia para eles: “Vocês são uns monstros. Torturar meu filho e matar meu marido do jeito que vocês mataram”. Lá, todos chamavam minha mãe de Dona Fanny, menos o Ustra. Um dia, ela estava numa cela com outras mulheres, ele chegou e disse: “Olha aqui, velha filha da puta. Olha o que o assassino do seu marido fez com o industrial [referindo-se à Henning Albert Boilensen]”. E ela respondeu: “Muito me admira um oficial das Forças Armadas tratar uma senhora desse jeito. Você deveria ter vergonha”. Ele, totalmente perturbado, foi embora. O comandante do II Exército chamou a atenção dele diante da oficialidade por causa disso”.

 

“Quem é essa pessoa que tem a voz da minha mãe?”

 

Edson Luís de Almeida Teles, filho de Maria Amélia de Almeida Teles e César Augusto Teles, foi preso com apenas 4 anos e obrigado a ver sua mãe espancado e nua após sessões de tortura.

“Eu tinha 4 anos de idade e a Jana 5. Nessa manhã, eu estava fazendo o que sempre fazia, que era assistir [ao programa de televisão] Vila Sésamo na sala. Eu gostava de ficar de ponta cabeça, tentando fazer o cérebro mudar a imagem que eu estava vendo na televisão. E foi nesse momento que chegaram os policiais”.

Sobre o DOI-CODI, ele relembra “a cena que mais me ficou presente foi o meu primeiro contato com a minha mãe. Parece que eu estava de costas para a janelinha de uma cela ou de um portão que tinha uma janelinha. Ela me chamou e eu, feliz da vida, reconheci a voz e me virei. Quando eu vi o rosto, eu não o reconheci. Ele já estava roxeado, desfigurado. E me causou um forte estranhamento porque eu pensei: “Quem é esta pessoa que tem a voz da minha mãe? Mais do que a voz, tem o jeito de se comunicar comigo que eu reconheço claramente, mas não é a minha mãe”

“Eu não sei quantas vezes nós fomos levados ao DOI-CODI, mas éramos acompanhados por uma policial, que nos levava a uma casa onde dormíamos na cozinha, num colchão no chão. E no dia seguinte éramos levados de volta ao DOI-CODI. O próprio Coronel [Carlos Alberto Brilhante] Ustra, que comandava a instituição, o DOI-CODI, assumiu no seu livro [A Verdade Sufocada – A história que a esquerda não quer que o Brasil conheça] dizendo que estava fazendo um ato de benevolência com esses presos, levando seus filhos para visitar os pais.”

“Eu não sei quantos dias esse processo durou. Acredito que pela minha idade e talvez por mecanismos saudáveis daquilo que a gente lembra e esquece, eu não lembro de muitas cenas desse momento. Mas claro, a gente era criança, então mescla esses momentos de terror, espanto, com outros que você começa a brincar ali no pátio do DOI-CODI, correr para lá e para cá. Por quê? Porque nada daquilo fazia sentido.”

 

Com 5 anos, Janaína foi levada para ver mãe na “cadeira do dragão”

Janaína e Edson Teles, então com 11 e 10 anos

 

Janaína de Almeida Teles, é a irmã mais velho de Edson Luís, filha Maria Amélia de Almeida Teles e César Augusto Teles. Foi presa junto com o irmão quando tinha 6 anos. Hoje é historiadora e pesquisadora do programa de pós-doutorado do Departamento de História da USP

“Fomos levados para o DOI-CODI (localizado na 36ª. delegacia de polícia). Eu tinha 5 para 6 anos, então, imagino que por isso eu tenha mais lembranças do que o Edson. Fui levada para uma cela onde meus pais estavam sentados numa mesa, onde parecia haver dois pratos de sopa ou de outra comida. Eles não conseguiam se mexer e nem falar direito porque estavam muito machucados.

Antes, eu fora levada para a cela onde minha mãe estava sendo torturada, eu a vi na cadeira do dragão. Mas não me lembro disso. Só me recordo de ter ficado muito chocada e de abraçá-los, beijá-los e, mesmo assim, eles não conseguiam se mexer. Depois de muitos anos, senti-me culpada por não conseguir lembrar-me dessas coisas direito. Isso me atormentava um pouco. Depois, fui entendendo que isso era uma autoproteção e que não havia como lembrar de fatos tão dolorosos.”

 

Eles não conseguiam se mexer e nem falar direito porque estavam muito machucados.

 

“O comandante do DOI-CODI/SP entre 1970 e 1974, Carlos Alberto Brilhante Ustra, deu uma versão cínica para o nosso sequestro em seu primeiro livro. Segundo ele: “[…] Para não mandar as crianças para o Juizado de Menores, uma moça, Sargento da Polícia Feminina do Estado de São Paulo, ofereceu-se para tomar contar dos menores em sua casa, enquanto aguardávamos a chegada dos familiares do casal, que se encarregariam da guarda deles. Diariamente, a meu pedido, as crianças eram levadas ao DOI para visitarem seus pais. […]”. Vale ressaltar que a casa onde me recordo ter pernoitado era bem grande e não poderia ser a moradia de uma sargento da Polícia Feminina.”

“Apesar de ser uma experiência muito dolorosa, minha família se esforçou para denunciar o coronel Ustra como torturador – em 2008 ele foi condenado em uma ação civil movida por nós contra ele –, assim como os demais crimes de que foi testemunha. Fazemos questão de denunciar que Ustra e o comandante do II Exército, Humberto de Souza Mello, torturaram pessoalmente minha tia Crimeia, então grávida de 7 meses.”

 

Torturada aos seis meses de gravidez

 

Crimeia com sei filho Joca

 

Crimeia Alice Schmidt de Almeida era militante estudantil, foi presa no Congresso de Ibiúna e depois entrou para a guerrilha do Araguaia.  Presa em uma das viagens periódicas que fazia à São Paulo, foi torturada até o nascimento de seu filho. Ustra participou pessoalmente.

Em depoimento à Comissão Estadual da Verdade de São Paulo, Criméia contou que um suposto médico acompanhava suas torturas. “[Ele dizia:] ela aguenta a tortura nos pés e nas mãos, só não pode espancar a região da barriga.”

Depois, foi levada a Brasília, onde continuou sendo torturada até dar à luz a seu filho, ainda que sob constantes ameaças dos militares de que ele não sobreviveria. Após o parto, Criméia foi impedida de vê-lo e só pôde recuperá-lo 53 dias depois de seu nascimento, desnutrido e dopado.

“Em 29 de dezembro de 1972, com seis meses e meio de gravidez, fui sequestrada pelo DOI-CODI/SP. O fato de estar em estado já bastante adiantado de gravidez não foi empecilho para as torturas físicas e psicológicas. Levei choques nos pés e mãos, muitos espancamentos, ameaças de fuzilamento e outras violências. E o pior, a ameaça de sequestrarem o bebê, se ele nascesse branco, saudável e do sexo masculino.”

“O primeiro a me torturar foi o major Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do DOI-CODI/SP à época. Mas não foi o único. Até o carcereiro me torturava quando me tirava da cela para levar às salas de interrogatório. Durante essa época, o feto apresentava soluços, os quais eu tentava amainar alisando a barriga e cantando baixinho para ele. Até hoje, em momentos tensos meu filho apresenta soluços.”

“Nos primeiros dias o bebê ficou isolado no berçário e só me era entregue para as mamadas. Com o passar dos dias notei que ele foi ficando muito molinho, sonolento, sem forças para chorar e para mamar. Perguntei ao pediatra o que estava acontecendo, respondeu-me que estava tudo bem. Então, perguntei à auxiliar de enfermagem, que o trazia para as mamadas, e ela me disse que a criança chorava muito e, por isso, o pediatra lhe prescreveu “Luminaleta”, um tranquilizante de uso infantil.”

 

Fichado como terrorista aos 6 anos

Luis Carlos Max do Nascimento, quando foi fichado em 1970

 

Luis Carlos Max do Nascimento, preso com 6 anos em 1970, foi fichado como terrorista e mais tarde banido do país com toda a família.

“Aí fomos para Peruíbe. E foi lá que fomos presos. A tensão maior foi quando de madrugada a polícia chegou em casa, foi em março ou abril de 1970. Estávamos eu, vó, Samuel e Zuleide. O Lavechia já não estava mais lá. Ali sim percebemos que a coisa era pesada mesmo. Vimos a brutalidade daquela invasão.”

“Fomos levados para São Paulo, para o DOPS. Até hoje, quando me lembro, é doloroso. Fomos colocados em uma sala e sabíamos o que estava acontecendo. A situação estava tensa. Hoje eu vejo meus filhos com 6, 7 anos… Eu não vejo neles o preparo psicológico que tínhamos. Aí falamos: “Mas com 6 anos você fazia isso, fazia aquilo, você sabia o que estava acontecendo?” A gente vivia aquilo, tinha que saber. De uma forma ou de outra, os nossos companheiros também não deixavam que as dores maiores chegassem até nós.”

“No DOPS, foi uma crueldade quando nos colocaram em uma sala e nos separaram da vó. Eu, que sempre fui o mais rebelde dos irmãos, me agarrei muito na minha vó e comecei a chorar. Aí dois policiais pegaram a minha avó pelo braço e outro me desgarrou dela. Ela me disse: “Carlinhos, fique tranquilo que não vai acontecer nada, tá? Depois a gente se vê”. Mas eu fiquei muito mal, porque a partir dali eu não a vi mais. Ficamos horas e horas naquela sala. E depois fomos levados para o Juizado de Menores. Eu fiquei muito mal, mas muito mal. Eu não queria me alimentar, não queria brincar com as outras crianças que estavam lá. Nunca tinha me separado dela. Lembro disso até hoje.”

Da redação da Agência PT de notícias, com informações do livro Infância Roubada – Crianças atingidas pela Ditadura Militar no Brasil

Tatiana Merlino é organizadora do livro “Infância Roubada”, que conta a experiência de crianças atingidas pela Ditadura Militar no Brasil. A publicação relata, em textos escritos na primeira pessoa, 24 dramas de crianças filhas de militantes políticos e guerrilheiros que lutaram contra a repressão militar. A obra é resultado do ciclo de audiências “Verdade e Infância Roubada” realizada pela Comissão da Verdade do estado de São Paulo “Rubens Paiva”. Os depoimentos foram marcados por lembranças da prisão, do exílio, do desamparo, de questionamentos em relação às suas identidades, de medo, insegurança, isolamento, solidão e vazio que, em muitos casos, são traumas não superados. É possível acessar a versão digital do livro no site http://verdadeaberta.org

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