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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

25
Mar23

O bom combate: recordando os advogados que resistiram à ditadura militar

Talis Andrade

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Por Danilo Pereira Lima /ConJur

 

No próximo dia 31 de março, o golpe de 1964 completa 59 anos. É sempre importante recordar que não faltaram juristas que colaboraram com a ditadura militar. Doutrinadores, juízes, OAB etc., exerceram papeis destacados na configuração da legalidade autoritária utilizada na institucionalização da ditadura. Contudo, na outra margem do rio, também é importante recordar que um pequeno número de advogados combateu o bom combate em defesa da vida e da liberdade dos presos políticos. Nas palavras de D. Paulo Evaristo Arns, "um grupo de profissionais do Direito que, naquela época de muitos temores, arriscaram suas próprias vidas e carreiras profissionais para se dedicarem a defender, na grande maioria dos casos gratuitamente, as vítimas da violência política" [1].

Com uma pequena margem de manobra e fazendo uso da interpretação mais liberal possível do aparato jurídico utilizado pela repressão [2], os advogados dos presos políticos conseguiram estabelecer uma forma de resistência.

Desde o golpe, os militares e seus juristas começaram a traçar uma engenharia constitucional que, além de favorecer a repressão, também procurava oferecer ao regime um verniz de Estado de Direito para angariar legitimidade perante a opinião pública, seja internamente ou internacional. Era importante mostrar para as nações ocidentais que o Brasil permitia a existência de dois partidos (governo e oposição); que os Poderes funcionavam normalmente; que os presidentes militares não agiam como os caudilhos existentes na América Latina; que os presos políticos eram devidamente processados na Justiça Militar; e que seus recursos inclusive poderiam chegar até o órgão de cúpula do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal.

Isso não quer dizer que a ditadura brasileira deixou de usar a estratégia da guerra suja contra seus opositores. O sequestro, a tortura, o encarceramento, a utilização de sítios clandestinos, o assassinato e o desaparecimento também fizeram parte das engrenagens de seus órgãos de repressão. Em vários casos o regime sequer demonstrou alguma preocupação em formalizar a prisão e abrir um processo na Justiça Militar. Foi o que aconteceu com o comunista David Capistrano da Costa, que, ao tentar retornar para o Brasil em 1974, acabou assassinado num dos principais centros clandestinos de tortura do regime, a conhecida casa da morte de Petrópolis. Ainda segundo relato prestado por um ex-integrante do DOI-Codi, o agente Marival Dias Chaves do Canto, o corpo de Capistrano foi esquartejado e jogado num rio [3].

As prisões muitas vezes aconteciam sem qualquer tipo de controle judicial. Os órgãos de repressão não precisavam pedir autorização ao Judiciário para realizar uma busca e apreensão ou para efetuar uma prisão, pois no momento em que entrava o trabalho da informação e da contrainformação nada podia ser formalizado através de um inquérito. Como muitas vezes a prisão funcionava como um sequestro, os advogados não recebiam qualquer informação sobre a situação de seus clientes. O encontro entre o preso político e seu defensor ocorria somente quando aquele era remetido à Secretaria de Segurança Pública.

De 1964 até o final do ano de 1968 ainda existia uma chance considerável dos presos políticos serem libertados por meio do habeas corpus. Após a suspensão desse remédio constitucional para crimes enquadrados na lei de segurança nacional, os advogados tiveram que buscar outros meios não apenas para defender a liberdade dos presos políticos, como também para levantar informações sobre suas localizações, já que a suspensão do habeas corpus possibilitou a ampliação do número de encarcerados e criou enormes dificuldades para que os advogados localizassem seus clientes.

Foi a partir daí que os advogados passaram a apresentar petições à Justiça Militar que tinham o formato de habeas corpus, mas não podiam ser chamadas de habeas corpus. Eram os chamados habeas corpus de localização [4]. Se a petição não era suficiente para alcançar a liberdade do preso político, pelo menos ela servia para retirá-lo das sombras e forçar um registro formal da sua situação. De acordo com o advogado Mario de Passos Simas, "nós (os advogados) nos valíamos de tudo, de mil requerimentos, de centenas de petições e reclamávamos perícias, invocávamos autoridades estrangeiras, entidades internacionais como a Anistia Internacional. Tudo que era válido era exercido" [5].

Como bem observou D. Paulo Evaristo Arns, "[...] um dos maiores esteios dos presos e de suas famílias eram seus advogados" [6]. Reunindo pessoas de diversas tendências ideológicas, como liberais, conservadores e socialistas, esses advogados estabeleceram uma convergência política e jurídica fundamental para uma resistência não apenas dentro Justiça Militar, mas também por meio do debate feito pela imprensa; das denúncias de tortura feitas em organismos internacionais; da defesa da anistia; e da construção de pontes para a redemocratização. Os advogados da resistência não chegaram a formar uma organização para a defesa dos presos políticos, mas, sem dúvida alguma, ajudaram a movimentar a resistência civil contra a ditadura.

- - -

[1] ARNS, Paulo Evaristo. Prefácio. In: SÁ, Fernando; MUNTEAL, Oswaldo; MARTINS, Paulo Emílio. Os advogados e a ditadura de 1964: a defesa dos perseguidos políticos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Vozes e PUC Rio, 2010, p. 8.

[2] Foi nessa conjuntura autoritária que o uso alternativo do direito surgiu como um meio de resistência dos juristas contra a ditadura. De acordo com Lenio Streck, "o movimento do direito alternativo se colocava, então, como uma alternativa contra o status quo. Era a sociedade contra o Estado. Por isso, em termos teóricos, era uma mistura de marxistas, positivistas fáticos, jusnaturalistas de combate, todos comungando de uma luta em comum: mesmo que o direito fosse autoritário, ainda assim se lutava contra a ditadura buscando 'brechas da lei', buscando atuar naquilo que se chamam de 'lacunas' para conquistar uma espécie de 'legitimidade fática'". Para mais detalhes, ver sua entrevista concedida para o Instituto Humanitas Unisinos: Uma análise sociológica do direito. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2758&secao=305. Acessado em: 24/03/2023.

[3] Sobre o brutal assassinato de David Capistrano, ver: Comissão da Verdade do estado de São Paulo. Disponível em: http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/mortos-desaparecidos/david-capistrano-da-costa. Acessado em: 24/3/2023.

[4] FERNANDES, Fernando Augusto Henriques. Voz humana: a defesa perante os tribunais da República. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 224. De acordo com Nilo Batista, "O habeas corpus, depois do AI-5, se converteu num macabro teste de sobrevivência dos presos. Você requeria um habeas corpus e indicava como autoridades coatoras o Cenimar, o CISA, o DOI-Codi e o Dops. Quando algum deles dizia que o paciente estava preso, significava que estava vivo. Quando a resposta vinha negativa, como no caso do Stuart (Angel Jones), era um mau presságio porque a pessoa tinha sido morta, tinha sido executada, morrido na tortura". SPIELER, Paula. Entrevista com Nilo Batista. In: SPIELER, Paula; QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo (coord.). Advocacia em tempos difíceis: ditadura militar 1964-1985. Curitiba: Edição do autor, 2013, p. 653. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/13745/Advocacia%20em%20tempos%20dif%C3%ADceis.pdf?sequence=1. Acessado em: 24/3/2023.

[5] MOURA, Ana Maria Straube de Assis; GONZAGA, Tahirá Endo. Mario de Passos Simas: mais que um advogado, um patrono. In: SÁ, Fernando; MUNTEAL, Oswaldo; MARTINS, Paulo Emílio. Os advogados e a ditadura de 1964: a defesa dos perseguidos políticos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Vozes e PUC Rio, 2010, p. 80.

[6] ARNS, Paulo Evaristo. Prefácio. In: SÁ, Fernando; MUNTEAL, Oswaldo; MARTINS, Paulo Emílio. Os advogados e a ditadura de 1964: a defesa dos perseguidos políticos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Vozes e PUC Rio, 2010, p. 8.

22
Jan23

Parlamento Europeu repudia Bolsonaro

Talis Andrade

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por Altamiro Borges

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O cerco mundial contra o fascista Jair Bolsonaro – que já era considerado um pária internacional – vai se fechando. Nesta quinta-feira (19), o Parlamento Europeu aprovou, por ampla maioria, uma resolução condenando os ataques golpistas contra a democracia brasileira e culpando o ex-presidente pelo clima de instabilidade e violência no país. 

“Chancelado por 319 deputados, o texto não tem o poder de lei, mas amplia o isolamento de Bolsonaro e cria um constrangimento político sobre qualquer membro da Europa que possa avaliar acolhê-lo. Foram 46 votos contrários e 74 abstenções. Para observadores estrangeiros, a decisão ainda é uma primeira iniciativa para lidar com o que muitos chamam de ‘internacionalização’ da extrema direita e sua capacidade de minar a democracia”, relata Jamil Chade. 

A resolução do Parlamento Europeu “lamenta as tentativas do ex-presidente Bolsonaro e de alguns de seus apoiadores políticos de desacreditar o sistema de votação e as autoridades eleitorais, apesar de não haver evidência de fraude eleitoral, e insta-os a aceitar o resultado democrático das eleições”. 

A conexão com o fascismo transnacional

O texto também alerta para “a conexão entre o fascismo transnacional crescente, o racismo, o extremismo e, entre outros, os acontecimentos em Brasília, a invasão do Capitólio dos EUA em janeiro de 2021 e as prisões em dezembro de 2022, referentes a um ataque planejado ao Bundestag da Alemanha”. E faz duras críticas às plataformas digitais e à sua incapacidade de moderar a difusão de fake news e o crescimento do “fascismo transacional e do extremismo”. 

A resolução manifesta total solidariedade ao presidente Lula e destaca as decisões do ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), como necessárias para defender a democracia. Antes da aprovação do texto, vários deputados criticaram o fascista brasileiro. “Falo para você, Bolsonaro, que a invasão das instituições democráticas no Brasil é sua responsabilidade pessoal. Com seus ataques contra a democracia, com suas mentiras, a difusão do ódio e a tentativa de dividir a sociedade”, afirmou Anna Cavazzini, autora da convocação da sessão. 

“Uma única voz surgiu para destoar dos diversos discursos. Quem cumpriu esse papel foi Hermann Tertsch, deputado da extrema direita espanhola VOX, partido aliado da família Bolsonaro e herdeiro do franquismo. Para ele, foram os apoiadores de Lula quem incendiaram três ministérios no passado. Ele ainda acusou o atual presidente de fazer parte de uma ‘rede narcocomunista’ e que ‘tenta minar a democracia, ao lado de (Fidel) Castro’. Repetindo à risca o discurso bolsonarista, o deputado europeu afirmou que ‘a real ameaça é o Foro de São Paulo’”, comenta em tom de ironia Jamil Chade.

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02
Dez22

Quem canta Caetano a ditadura militar espanta (letra e música)

Talis Andrade

Vaca | Humor Político – Rir pra não chorar | Página: 2

 

Vaca profana
 
Caetano Veloso
 
 
 
 
19
Nov22

'Elite brasileira se propõe a pagar por um governo autoritário', diz analista político e psicanalista

Talis Andrade

Comissão Nacional da Verdade Brasil Comissões Estaduais Estadual Estados  ABC Tortura Violação de Direitos Humanos Ditadura Militar Brasileira Human  Rights Brazil truth commissions lei 7.376/10 7376/10 Congresso Nacional  torture torturadores forças armadas

 

  • Shin Suzuki /BBC News 

 

Apesar do governo Bolsonaro ter estourado as metas de inflação e os tetos previstos para gastos públicos, o mercado em nenhum momento reagiu tão negativamente como reagiu na semana passada a declarações do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva defendendo leniência quanto às responsabilidades fiscais. Para o psicanalista, escritor e analista político Tales Ab'Sáber, isto é uma mostra de que "talvez o ranço antissocial seja tão importante no Brasil a ponto de a elite se propor a pagar por um governo autoritário."

Professor na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e autor dos livros Lulismo, Carisma Pop e Cultura Anticrítica (2012), Dilma Rousseff e o Ódio Político (2015) e Michel Temer e o Fascismo Comum (2018, todos pela editora Hedra), há anos Ab'Sáber se dedica a analisar o cenário político brasileiro.

"Homens que se têm como modernos agenciadores do capitalismo de hoje abriram mão de suas referências, de seus critérios matemáticos, racionais e competitivos para dar aval a um governo que estourou a inflação e um teto de gastos que antes diziam ser fundamental. Sem planejamento, sem horizonte de crescimento, tudo sob aplauso dos 'faria limers'", diz ele, referindo-se aos operadores que trabalham na avenida Faria Lima, em São Paulo, o centro financeiro do país.

Desde 2019, o governo Bolsonaro já alterou por cinco vezes o teto de gastos, principal regra fiscal que limita o crescimento das despesas públicas.

"E é aí que entra uma questão que os psicanalistas podem levantar: há um desejo arcaico, autoritário, sádico que é tão forte quanto os cálculos racionais e que pode relativizar o lucro em nome de uma afirmação antipopular? Existe isso? Eu acredito que sim."

"Se você pega [o livro] Raízes do Brasil, [o historiador] Sérgio Buarque de Hollanda fala de uma mentalidade antimoderna que persistia no país. Porque ela estava totalmente estruturada na lógica da época da escravidão", afirma.

O professor de filosofia da psicanálise na Unifesp publicou neste ano o livro O Soldado Antropofágico: Escravidão e Não-Pensamento no Brasil (N-1 Edições) no qual defende que o regime escravista do passado continua a marcar a sociedade brasileira por meio de exploração social e da ideia do "ponha-se em seu lugar" entre as classes.

"No meu livro eu sustento que existe sim, como dizem os psicanalistas, um gozo de não-pensamento na elite brasileira. O que ocorreu sob o bolsonarismo foi suspender os critérios de pensamento econômico quando houve o estouro da inflação, dos gastos públicos e a degradação do orçamento. Os critérios foram contornados por um traço identificador de classe", diz Ab'Sáber. 

 

     Quem eram os gorilas nos tempos da ditadura civil-militar - Jornal Opção

 

Estado de 'paranoia de guerra'

O psicanalista diz que o bolsonarismo teve adesão nas mais variadas camadas sociais da sociedade brasileira porque ativou um estado de "paranoia de guerra" no qual se inculca a ideia de que valores como a família e a religião estão sob ameaça e há a necessidade de sua defesa a qualquer custo.

Segundo ele, isso pôde ser observado nos protestos em frente a comandos militares nas últimas semanas.

"Não é por acaso que há o pedido constante de 'exército, exército, exército'. Há uma ideia de guerra. Mas, além disso, há a fantasia de que o Exército é o agente civilizatório do caos brasileiro. O Exército é uma instituição que funciona assim historicamente no Brasil e às vezes se vê no direito de intervir", afirma.

"Por isso é perigoso. Se o Exército considera que há solo social para reproduzir essa fantasia, ele pode sim destruir a democracia."

Ab'Sáber compara esse espírito de guerra de um grupo que se vê o tempo todo sob risco à dinâmica de uma seita.

"O grupo identitário em estado de guerra vai se isolando. E essa também é a lógica da seita, em que todo o resto está contaminado e a pureza só está lá. É um sistema desejante-delirante. Talvez uma seita apenas introduza nesse sistema de autoproteção em grupo um valor teológico, um valor transcendental a algum Deus, mas que está sempre nomeado por um líder. Numa seita se segue o desejo do líder."

General gorila defende Golpe Militar e Ditadura contra aos trabalhadores  brasileiros – Voz Operária

 

Teorias da conspiração nos grupos

Além de golpe militar como uma espécie de redenção salvadora para o país, outros elementos do imaginário de grupos conservadores brasileiros foram reunidos em um documentário dirigido por Ab'Sáber ao lado de Gustavo Aranda e Rubens Rewald e lançado em 2018.

Intervenção: Amor Não Quer Dizer Grande Coisa compila vídeos de 2015 e 2016 — um momento ainda pré-bolsonarismo — nos quais aparecem discursos sobre a "ameaça comunista" no país e teorias da conspiração dos mais variados tipos.

"Eu, como psicanalista, quis fazer esse documentário porque as ideias que estão lá têm uma lógica que convida à conversão, à identificação. Se você passa a acreditar naquilo, você passa a funcionar daquele jeito. Tudo o que a gente vê hoje em dia já estava lá nas falas do documentário, mas sem Bolsonaro. Ninguém toca no nome do Bolsonaro. É uma realidade psíquica, uma formação psicológica."

Esse conjunto de ideias que se descolam da realidade, na visão de Ab'Sáber, também está relacionado à instabilidade atual no mundo, cuja complexidade é rejeitada por meio de uma fuga em direção ao arcaico.

"Veja, tudo isso responde também a uma crise contemporânea em que o mundo se torna extremamente complexo e que o entendimento presente nesses grupos não consegue dar conta. Existe uma instabilidade geral e mundial em que se oferecem a esses grupos respostas arcaicas como solução desses problemas."

O psicanalista também vê se desenhando um impasse em que crises de diferentes naturezas, incluindo a ambiental, precisarão ser encaradas para evitar uma catástrofe final.

"O futuro está sobre a crise do trabalho, da renda e a ideia de que uma nova rodada de expansão do capital e da riqueza pode ser também uma rodada final de dissolução do planeta. O horizonte de destrutividade apocalíptica coloca um impasse em que, das duas uma, ou a continuidade, a repetição das mesmas práticas leva à destruição ou são gerados espaços de mediação e pensamento globais para dar conta da crise", diz.

"Essa é a grande complexidade. Essa mediação e esse pensamento têm que ultrapassar a própria lógica da crise. Observar os direitos ambientais, de outros seres vivos e dos biomas é uma revolução na lógica em que a única razão é a produção de mercadoria e de valor. O capitalismo está chegando no seu teto. E esse teto pode ser a catástrofe universal ou o espaço da consciência transformadora."

O CORRESPONDENTE

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17
Set22

O fascismo no Brasil destes dias

Talis Andrade

 

A extrema direita, que depois do fim à brasileira da ditadura, se envergonhava ou permanecia em silêncio, agora está com os demônios soltos

 

17
Set22

Precisamos voltar a falar dos criminosos e das vítimas da ditadura

Talis Andrade

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Brasil terá de voltar a falar de ditadura, de ditadores e de torturadores, ou assumir que é um país resignado, alienado e acovardado

 

por Moisés Mendes

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O presidente Gabriel Boric é apresentado como o grande perdedor do referendo que rejeitou a nova Constituição do Chile.

A mobilização contra a Constituição acordou direita e extrema direita, quietas desde as manifestações de rua iniciadas em outubro de 2019, que levaram à Constituinte e agora à frustração.

Tanto acordou que grupos pinochetistas foram às ruas, em 11 de setembro, no aniversário do início da ditadura, para enfrentar manifestantes de esquerda.

E o que fez o presidente? Anunciou que, ao contrário do que os fascistas pensam, eles não terão paz. E que o Chile continuará avivando a memória do que aconteceu na era Pinochet.

Como parte do que está sendo planejado para o aniversário do 50º ano do golpe, em setembro do ano que vem, Boric informou que desde agora o governo participa de uma nova empreitada.

O Chile vai em busca de pistas que esclareçam o que aconteceu com os 1.192 cidadãos e cidadãs até hoje identificados como desaparecidos em algum momento a partir de 1973. Mais de 500 eram crianças.

O Chile teve mais de 3 mil mortes e desaparecimentos. Na Argentina, foram mais de 30 mil, mesmo que esse número seja sempre questionado.

No Brasil, o saldo macabro é oferecido quase como um consolo por fascistas e historiadores condescendentes: 434 pessoas mortas e desaparecidas. .

Mas Argentina, Chile e Uruguai conseguiram, uns mais, outros menos, avançar na punição dos criminosos das suas ditaduras. O Brasil nada fez, por conta da anistia de 1979.

O ambiente que se vislumbra, com uma vitória de Lula, nada assegura de mudança na área da reparação judicial.

O Supremo já fechou todas as portas que poderiam levar à punição criminal de torturadores e assassinos ainda vivos.

Mas o futuro governo poderá oferecer, por gesto político, suporte para que se retome o que foi levado adiante pela Comissão da Verdade e outras iniciativas, para que os horrores da ditadura não sejam esquecidos.

Boric está assumindo com os chilenos, em circunstâncias desfavoráveis ao seu governo, um compromisso com a História.

Um novo governo democrático no Brasil, em substituição ao poder fascista de Bolsonaro, também terá que assumir compromissos.

Pela reabilitação do debate em torno do que foi a ditadura. Pelo fortalecimento de lutas esparsas que ainda resgatam essa memória.

Pelo apoio às energias e aos afetos de todos os familiares e amigos que persistem e pelo respeito a torturados, mortos e desaparecidos.

Um novo governo democrata terá de dar conta de demandas desprezadas e perdidas desde 2016.

O Brasil terá que voltar a dizer, sem medo, todos os anos e de forma permanente, como fazem os chilenos e outros vizinhos, que aqui houve uma ditadura sanguinária.

E reconhecer que a impunidade ajuda a explicar o horror que ainda enfrentamos até hoje.

O esquecimento sustentou a vida tranquila de ditadores e de 377 agentes públicos (militares, policiais e outros) envolvidos em crimes de lesa humanidade entre 1964 e 1985, como torturas, assassinatos e ocultação de cadáveres.

O esquecimento nos levou às crueldades e aos crimes do bolsonarismo e à estrutura militar que tutela e sustenta um genocida.

O Brasil terá de voltar a falar de ditadura, de ditadores e de torturadores, ou assumir que é um país resignado, alienado e acovardado.

O ditador Pinochet na visão de Chico Caruso | Acervo

15
Set22

Em sua covardia contra uma mulher, deputado copiou Bolsonaro

Talis Andrade

Charge do Amarildo

 

Demonizar a imprensa é a primeira lição que aprende um aspirante a ditador

 
 

Se, impunemente, o presidente da República Jair Bolsonaro pode agredir a jornalista Vera Magalhães chamando-a de “vergonha do jornalismo”, por que o deputado estadual Douglas Garcia (Republicanos-SP) não pode?

O que disse Garcia (foto em destaque) sobre a jornalista foi a mesma coisa que disse Bolsonaro durante o debate da Band entre os candidatos a presidente. Naquela ocasião, não satisfeito, Bolsonaro ainda mandou a senadora Simone Tebet (MDB-MS) calar a boca.

 

Bolsonaro é candidato à reeleição e não perde uma oportunidade de “lacrar” alguém desde que isso lhe traga votos. Com frequência, por causa disso, perde votos. Garcia, bolsonarista de nascimento, é candidato a deputado federal na chapa de Tarcísio de Freitas (PL)

 

A Assembleia Legislativa de São Paulo instalará um processo que talvez resulte na cassação do mandato de Garcia. A Câmara dos Deputados, comandada por Arthur Lira (PP-AL), um dos líderes do Centrão, preferiu ignorar a agressão de Bolsonaro a Vera.

Lira está no bolso de Bolsonaro. Indicou afilhados para cargos no governo e administra uma parte expressiva do bilionário Orçamento Secreto da União, que por secreto escancara as portas à corrupção. Corrupção, por sinal, que Bolsonaro prometera acabar.

Na cartilha dos aspirantes a ditador, uma das primeiras lições é: “Desacredite a imprensa”. Enquanto não o fizer, enquanto ela puder manifestar-se com liberdade, é impossível a ascensão ao Poder absoluto. Os ditadores de 64 aprenderam a lição rapidinho.

Antes de ser despachado do Exército por indisciplina, conduta antiética e um gosto acentuado por dinheiro, Bolsonaro valeu-se da imprensa para se projetar como sindicalista militar, empenhado tão somente em defender salários mais altos para a tropa.

Desfardado, lançou-se à política, elegendo-se vereador pelo Rio e sete vezes deputado federal. Sempre bateu forte na imprensa, de início interessado em chamar a atenção dela para virar notícia. Aumentou os ataques ao decidir ser candidato a presidente.

 

Foi durante a pandemia da Covid que ele, de uma vez, foi para um lado e a imprensa para o outro. Era papel da imprensa cobrar medidas do governo para que se evitasse tantas mortes – foram mais de 680 mil, o terceiro maior número do mundo.

 

Seria papel do governo proteger a vida das pessoas, mas Bolsonaro renunciou à tarefa. Que “morressem os que tivessem de morrer”, ele não era coveiro. Importante era salvar a economia para que o governo se salvasse, admitiu em raro momento de sinceridade.

A imprensa sentiu-se obrigada a se unir, algo raro em sua história, para levantar o número de casos de infectados e de mortos, de vez que o governo deixou de fazê-lo para esconder a realidade. Na ditadura de 64, escondeu-se uma epidemia de hepatite.

As agressões de Bolsonaro a quem quer que seja foram normalizadas. De tanto promovê-las, ele ganhou passe livre para tal. Mas a 17 dias das eleições, para um candidato desesperado por votos, as agressões lhe poderão ser fatais, como se verá.

Entre muitos problemas, Bolsonaro tem um que se destaca: a rejeição das mulheres. Se ele não diminuí-la, adeus a novo mandato. Se não for punido por seus pares, Garcia poderá se eleger deputado federal, apesar do ataque a Vera.

Acostumado a atirar no próprio pé, desta vez Bolsonaro provou a dor de ver seu pé, e o de Tarcísio, candidato ao governo de São Paulo, feridos por um aliado político. Até ontem à noite, Bolsonaro não sabia o que fazer a respeito, daí o seu silêncio.

Quem mandou ele soprar apito de cachorro? Missão dada, missão cumprida pelas feras.

Humor Político on Twitter: "O fascista por Bira Dantas #JairBolsonaro  #armas #Bolsonaro #bozo #cabeçavazia #charge #Democracia #eleitor  #eleitordoBolsonaro #fascismo #fascista #foródesp #gay #índio  #merdanacabeça #ódio #Porrada #preconceito #quilombola ...

11
Set22

Bolsonaro "atravessou barreira legal" ao fazer campanha no 7 de Setembro

Talis Andrade

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Cientista política aposta que a justiça não levará adiante pedidos de adversários de Jair Bolsonao para avaliar se ele cometeu abusos nos eventos do 7 de Setembro. Candidatos ao Palácio do Planalto disseram que feriado da Independência foi sequestrado pelo candidato à reeleição.

Analistas e políticos afirmam que o presidente Jair Bolsonaro ultrapassou as linhas da legalidade ao fazer dos atos oficiais pelos 200 anos de Independência do Brasil um claro palanque eleitoral. Se haverá punição, é outra história. Partidos políticos adversários do presidente anunciaram ações na justiça alegando abuso do poder político e econômico por parte de Bolsonaro na data nacional.

“Ficou claro que ele atravessou a barreira legal fazendo dos atos um comício eleitoral, mas acho muito difícil haver punição. Acredito que o TSE e o Supremo Tribunal Federal vão segurar o quanto puderem essas ações, até para não abrir caminho para os apoiadores de Bolsonaro usarem desse ambiente de guerra jurídica e questionarem a validade das eleições como um todo”, disse à RFI a cientista política Carolina de Paula, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio do Janeiro (UERJ).

“Era uma data representativa que pedia um balanço de nossa história e reflexões sobre nosso futuro”, lamenta a analista da UERJ. Ela lembra que não é a primeira vez que o presidente usa da estrutura montada pelo poder público para fazer discurso de campanha e que em nenhuma ocasião houve sanção da justiça. “Ele poderia perder parte do horário eleitoral, por exemplo, para que seus adversários tivessem o direito de resposta, mas isso dificilmente irá acontecer.”

7 de Setembro vira palanque eleitoral

 

Bolsonaro discursou pela manhã em Brasília assim que terminou o desfile cívico-militar de 7 de Setembro, no qual atacou adversários, sugeriu comparação entre as primeiras-damas em declarações machistas e jogou para seu eleitorado mais conservador e religioso. À tarde no Rio de Janeiro ele pegou novamente no microfone e falou abertamente de eleição enquanto aviões da Força Aérea faziam acrobacias no céu pela data comemorativa.

“Vocês sabem o que é preciso fazer para que esse governo continue a melhorar o Brasil. Esse é um governo que respeita seus militares, que respeita a família, que honra a Deus. E faremos um governo muito melhor com a reeleição”, afirmou Bolsonaro.

Adversários do presidente disseram que o feriado nacional foi sequestrado pelo presidente em benefício próprio, passando por cima da regras eleitorais. “Participei de dois feriados do 7 de Setembro em época eleitoral como presidente da República. E a gente nunca usou essa data como instrumento de política eleitoral", disse o candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva. "O presidente atual, ao invés de discutir os problemas do Brasil, de dizer como vai acabar com a fome, com o desemprego, com o arrocho do salário mínimo, ele tenta me atacar.”

Para o candidato do PDT, Ciro Gomes, o balanço do feriado foi um misto de alívio, por não ter havido violência nas ruas, e revolta pelas atitudes de Bolsonaro. “Aliviado por não ter havido mortes, porque a gente temia que a irresponsabilidade do presidente pudesse estimular atos que descambassem para ações violentas. Mas profundamente frustrado, humilhado por assistir aos 200 de independência liderado por esse espetáculo de vulgaridade, de promiscuidade, de uso despudorado do dinheiro público para fazer comício, usando toda a estrutura do pode público”, criticou Ciro.

A candidata do MDB, Simone Tebet, destacou: “triste o país que tem um presidente preocupado com a sua masculinidade enquanto milhões passam fome, enquanto cinco milhões de crianças vão dormir sem ter o que comer. Um dia tão importante como esse e ele não fala em unir o país, não apresenta um projeto para tirar o país dessa situação. Lamentável o personalismo, o populismo desse presidente”.

 

Reflexo nas urnas

 

A analista ouvida pela RFI acredita que o tom conservador, ofensivo às mulheres e agressivo do presidente não atrai aquele eleitor que hoje é a menina dos olhos dos candidatos, os 20% de indecisos. “Não acredito que esse tipo de discurso tenha poder de convencer aquele eleitor que é menos radical, que ainda não decidiu o voto. A forma de falar, os assuntos abordados, isso tem ressonância entre os que já apoiam o presidente”, avalia Carolina de Paula.

Orientado por sua equipe, o presidente não falou em urnas eletrônicas e dosou as palavras sobre o sistema judiciário. “Todos temos que jogar dentro das quatro linhas da Constituição. Com a reeleição, irei colocar dentro dessas quatro linhas todos aqueles que insistem em atuar fora delas”, discursou Bolsonaro. Antes, num café da manhã, ele havia falado que a “história pode se repetir”, após citar eventos de tensão na política brasileira, alguns inclusive que terminaram com a ruptura institucional, como o golpe militar de 1964.

“Ele deixa no ar o que fará com o resultado das urnas. De todo jeito não vejo que Bolsonaro tenha apoio político para levar adiante um golpe, por exemplo. Veja que os presidentes da Câmara, do Senado e do STF não foram ao desfile, um evento que costuma contar com a participação dessas autoridades, ainda mais um bicentenário”, analisa de Paula. “Se o Exército estaria com ele numa ruptura institucional, não dá para saber com certeza. Acredito que não, pelas informações que temos hoje, mas podemos errar. De todo jeito, ele não conta com o apoio dos demais poderes”, completa.

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14
Ago22

Coronel-araponga infiltrado no TSE constrange o Exército

Talis Andrade

ACESSO Ricardo Sant’ana (à dir.) era um nos nove militares indicados pelo Ministério da Defesa para fiscalizar as urnas eletrônicas. Ele chegou a trabalhar dentro do TSE, mas foi afastado por divulgar fake news (Crédito: Wilton Junior)

 

Escalado pelo Ministério da Defesa para fiscalizar o sistema eleitoral, o coronel do Exército Ricardo Sant’ana publicava informações falsas e críticas às urnas eletrônicas. O TSE suspeita que o mentiroso atuava como araponga para minar a credibilidade do tribunal

 

Se havia alguma dúvida sobre as reais intenções do núcleo de militares criado para fiscalizar o sistema eletrônico de votação no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o caso do coronel do Exército Ricardo Sant’ana, 47, excluído do grupo pela Corte por disseminar fake news sobre o sistema eleitoral, evidencia que o verdadeiro objetivo da unidade era amplificar o discurso do presidente Jair Bolsonaro (PL), que põe em dúvida a credibilidade das urnas eletrônicas. Sant’ana fazia parte da equipe das Forças Armadas que atua na Comissão de Fiscalização do Sistema Eletrônico de Votação do TSE. Foi descredenciado pelo presidente da Corte, Edson Fachin, depois que a coluna do jornalista Rodrigo Rangel, do site Metrópoles, revelou que o militar publicava fake news, atacava as urnas eletrônicas e fazia militância política pró-Bolsonaro.

Em seu perfil numa rede social, o coronel publicou críticas a pelo menos dois dos principais adversários de Bolsonaro na disputa eleitoral, o ex-presidente Lula (PT) e a senadora Simone Tebet (MDB). Compartilhou uma publicação marcada como “informação falsa” que dizia que Lula teria roubado um faqueiro de ouro dado como presente pela Rainha Elizabeth II ao então presidente Arthur da Costa e Silva em 1968; publicou um post que dizia que “votar no PT é exercer o direito de ser idiota”; e, ao comentar um texto em que Tebet diz que “mulher vota em mulher”, escreveu: “e vaca vota em vaca”. O perfil foi deletado horas depois após o Ministério da Defesa ter sido procurado pela imprensa para comentar o assunto.

Engenheiro de Telecomunicações pelo Instituto Militar de Engenharia (IME), Ricardo Sant’ana não era simplesmente “mais um” na equipe de nove militares enviada ao TSE pelo Ministério da Defesa para inspecionar o código-fonte das urnas eletrônicas. O especialista em defesa e ataques cibernéticos chegou a assinar, em nome do grupo, alguns pedidos de informação direcionados ao Tribunal. A inspeção teve início no último dia 3, após o ministro da Defesa, o general do Exército Paulo Sérgio Nogueira, pedir urgência ao TSE para o acesso código-fonte em mais uma trapalhada do Ministério da Defesa, já que o dado já estava disponível desde outubro de 2021 — há dez meses, portanto — para todas as instituições que participam da fiscalização das eleições.

No ofício enviado à pasta da Defesa em que o TSE comunica o descredenciamento de Sant’ana, Fachin e o vice-presidente da Corte, Alexandre de Moraes, explicam que “mensagens compartilhadas pelo coronel foram rotuladas como falsas e se prestaram a fazer militância contra as mesmas urnas eletrônicas que, na qualidade de técnico, este solicitou credenciamento junto ao TSE para fiscalizar”. Os ministros também sustentam que “a posição de avaliador da conformidade de sistemas e equipamentos não deve ser ocupada por aqueles que negam o sistema eleitoral brasileiro e circulam desinformação a seu respeito”. O general Nogueira podia ter passado sem mais essa vergonha: na pesquisa “Confiabilidade Global”, realizada em 28 países pelo Instituto Ipsos e divulgada na terça, 9, os brasileiros estão entre os que menos confiam em suas Forças Armadas. Apenas 30% confiam nos militares — no ano passado, o índice de confiança era de 35%. O Exército não vai indicar substituto para a vaga de Sant’ana.

Ricardo Sant Ana - Chefe de divisão - Exército Brasileiro | LinkedIn

Ditadura: repressão, noções de democracia, tortura, linguagem midiática,  relação passado e presente. | Laboratório de Ensino e Material Didático

Sob o comando de Nogueira, o Ministério da Defesa tem demonstrado pendor em servir de linha auxiliar de Bolsonaro contra o sistema eleitoral. Militares avaliam a possibilidade de promover uma apuração paralela, extraoficial e irregular, já que, segundo a Constituição, cabe exclusivamente ao TSE a contagem dos votos e a proclamação do resultado. Os militares fariam a contagem a partir dos boletins impressos pelas urnas eletrônicas ao final da votação, ou com os dados transmitidos à Corte pelos Tribunais Regionais Eleitorais. A adesão de setores das Forças Armadas ao discurso golpista do presidente, portanto, deve continuar produzindo aberrações que atentam contra a democracia.

charge #ditadura #militar #primeiro #abril - Junião

06
Ago22

CINZAS DA DITADURA

Talis Andrade

 

 

Projeto mostra como militares tocaram plano de ocultação de corpos com apoio da prefeitura de São Paulo. Ilustração: The Intercept Brasil; Folhapress

 

Documentos inéditos indicam que Crematório da Vila Alpina foi planejado para ocultar cadáveres da ditadura

 

 

Aocultação de cadáveres foi apenas um entre tantos crimes cometidos durante a ditadura militar. A prática já havia sido abordada pela Comissão Nacional da Verdade e revelada pela CPI da Vala de Perus, de 1990, realizada após a descoberta de mais de mil ossadas no Cemitério Dom Bosco, em São Paulo. Um detalhe da confissão de um dos agentes da repressão, no entanto, passou quase despercebido pela comissão: o plano da ditadura para construir crematórios onde ocultar cadáveres.

Ex-delegado do Departamento de Ordem Política e Social, o Dops, agente do Serviço Nacional de Informação, o SNI, e membro do esquadrão da morte Le Cocq, Cláudio Guerra foi um dos principais depoentes na Comissão da Verdade sobre os crimes de estado ocorridos durante o regime militar. Hoje pastor evangélico, Guerra revelou em 2014 ser responsável por várias execuções e por incinerar corpos numa usina de açúcar em Campos dos Goytacazes, interior do estado do Rio, em meados dos anos 1970.

Em seu depoimento, ele afirmou que “até 1975, havia um acerto entre o Exército e o administrador do cemitério para que os corpos fossem enterrados clandestinamente” em Perus – onde, já em 1990, 1.049 ossadas foram encontradas em uma vala comum no cemitério local. Mas, segundo ele, devido à opinião pública, esse “esquema” deveria ser alterado. Surgiu, assim, o projeto de um crematório.

“O Cemitério de Perus foi criado para ser um crematório”, confirmou Adriano Diogo, ex-presidente da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo. “O projeto só não foi adiante porque a empresa responsável pelos fornos se recusou a construí-los”. O projeto do crematório migrou, então, para a Vila Alpina. Poucos sabem, no entanto, que o Crematório Municipal Dr. Jayme Augusto Lopes foi viabilizado por um conluio entre funcionários municipais e defensores do regime militar. Um deles, que dá nome ao crematório, foi quem autorizou que as ossadas de Perus fossem cremadas ali, segundo depoimentos. O plano foi frustrado. Os documentos e depoimentos de trabalhadores da época, no entanto, mostram como funcionou o plano de ocultar cadáveres da ditadura em São Paulo, com apoio da estrutura da prefeitura.

VILA VELHA, ES, 15.03.2019 - Retrato de Cláudio Antonio Guerra, 79, ex-delegado do Dops (Departamento de Ordem Político Social) e hoje pastor evangélico da Assembleia de Deus (Foto: Gabriel Lordello/Folhapress)

Cláudio Antonio Guerra, 79, ex-delegado do Dops (Departamento de Ordem Político Social) e hoje pastor evangélico.

 

Foto: Gabriel Lordello/Folhapress

Queima de arquivos

Com o reconhecimento da cremação pelo Vaticano em 1963, a cidade de São Paulo aprovou quatro anos depois uma lei municipal para regulamentar a prática. Foi a deixa para que o então prefeito Faria Lima estabelecesse a licitação e compra dos fornos, inicialmente previstos para o Cemitério Municipal de Vila Nova Cachoeirinha. O prefeito também anunciou em 1968 um incinerador de ossos no cemitério de Vila Formosa.

Prover a cidade com um crematório era igualmente um intento do Cemit, o Departamento de Cemitérios de São Paulo. A sua instalação, conforme os jornais descreviam, seria fundamental para resolver o problema dos corpos dos indigentes, além de uma maneira viável para solucionar a falta de espaço na cidade para ampliações e inaugurações de necrópoles.

Imagens: Reprodução/O Estado de S. Paulo, 23 de março de 1969.

Foi o sucessor de Faria Lima, Paulo Maluf, que tirou o projeto do papel. Prefeito entre 1969 e 1971, ele iniciou a construção do Cemitério Municipal Dom Bosco, em Perus. Nomeado pelo governador Abreu Sodré após determinação do presidente Costa e Silva, Maluf foi o primeiro prefeito biônico de São Paulo e o primeiro a governar sob o AI-5. Um de seus primeiros atos foi criar, em maio de 1969, a CMI, comissão municipal de investigação sobre “corrupção ou subversão”, que atuou em mútuo entendimento com os órgãos de repressão.

Não por acaso, entre 1969 e 1970, foram fundadas a Operação Bandeirante, a Oban, entidade semiclandestina que seria oficializada logo depois como DOI-Codi, a Polícia Militar e a Rota, batalhão de elite da PM paulista. A possibilidade de ter disponível um incinerador para eliminar vestígios de corpos indesejados, especialmente num remoto cemitério destinado a indigentes, deve ter soado como música para os ouvidos dos agentes da repressão.

Conforme o depoimento de Fábio Pereira Bueno, diretor do Cemit de 1970 a 1974 indicado por Maluf, à CPI de Perus, a instalação de um crematório era necessária diante do volume crescente de corpos de indigentes. Segundo ele, eram quase 50 enterrados por dia – número contestado pela CPI, uma vez que, entre 1989 e 1990, quando a população do município era maior do que em 1970, a média desses sepultamentos era de oito por dia.

Na época, os vereadores realmente encontraram um plano geral do Cemitério Dom Bosco, elaborado em abril de 1969, um ano antes do início das obras, que previa a construção de um “crematório eventual”, conforme a expressão impressa no papel. A sua localização, na planta, estava defronte a um dos portões do cemitério.

Imagem digitalizada

Bueno contou à CPI que participou do processo de licitação e aquisição dos fornos em 1968, enquanto era assistente técnico. Optou pela empresa inglesa Dowson & Mason, que forneceria quatro fornos a gás. Juntos, eles poderiam incinerar 96 cadáveres em 24 horas, mais que o dobro da demanda na década de 1960.

No decorrer de alguns meses, o gabinete da prefeitura providenciou projeto de construção de crematório, levantamento completo de topografia e cadastramento dos cemitérios da capital, estudos sobre alteração das leis de exumação e de cremação e, por fim, criou a lei 7420, que reorganizava o Serviço Funerário Municipal, alterando seu Conselho Diretor e orçamento.

Entretanto, a CPI descobriu uma carta de maio de 1969 da empresa fornecedora dos fornos que questionava o projeto do crematório. O diretor da Dowson & Mason apontava discrepância entre entendimentos e sugeria a visita de um técnico à Inglaterra.

Imagem digitalizada

Parece não haver o Hall de Cerimônias nesse projeto e também muitas coisas que, francamente, não entendemos, mesmo considerando estarmos associados e trabalhando há 15 anos em projetos de crematórios em todo o mundo.

Estamos particularmente preocupados com a sala de crematórios descrita em seus desenhos.

Gostaríamos de saber qual o motivo de ter duas enormes portas vai-e-vem nas posições assinaladas A e B, porque na maioria dos crematórios a sala propriamente dita onde as cremações são realizadas é mantida algo discreta (…).

Havia algo muito suspeito e inadequado no projeto da prefeitura. Um novo estudo de arquitetura foi solicitado, mas, antes mesmo de propor alterações, houve a confirmação pelo departamento jurídico de que a cremação não poderia ser aplicada sem o consentimento da família. O plano de incineração em larga escala foi abandonado – ao menos em Perus. Reajustado, o projeto também não foi adotado em Cachoeirinha.

Após mais de um ano sem notícias sobre o crematório, na véspera do Natal de 1970, foi anunciada a mudança de endereço para Vila Alpina: “Para nós, não importa muito o local de instalação. Importa, sim, que seja instalado”, declarou Fábio Pereira Bueno à imprensa na época. Detalhe: havia a promessa da prefeitura para se instalar gás no bairro, o que facilitaria o uso dos fornos. Em janeiro, uma nota dizia que, inicialmente, seriam cremados apenas indigentes e restos hospitalares. A partir daí, o termo “indigente” seria recorrente nas pautas sobre cremação.

Praticamente sem menção nos jornais, os cemitérios de Vila Alpina e Perus foram inaugurados em fevereiro e março de 1971, respectivamente. Maluf, ao final de seu governo, autorizou a concorrência pública para a construção do prédio do crematório. A obra, a cargo da Engeral S/A, empresa que tinha em seu quadro de gerências um ex-estudante da Escola Superior de Guerra, deveria ficar pronta em 1972.

Seis meses após a abertura dos cemitérios, foi aprovada uma alteração da lei de exumação que permitia maior rotatividade nos terrenos, reduzindo de cinco para três anos a permanência do corpo no sepulcro.

A descoberta da Vala dos Perus, em 1990.

 

Foto: Marcelo Vigneron

O ossário clandestino da ditadura

OCemitério Dom Bosco foi inaugurado em 2 de março de 1971 na remota Estrada do Pinheirinho, em Perus, distante 32 quilômetros da Praça da Sé, no extremo noroeste de São Paulo. Antiga reivindicação dos moradores, o cemitério recebeu endereço diferente do proposto pela associação do bairro, que queria sua instalação no centro de Perus.

Antes que as primeiras famílias pudessem fazer uso das sepulturas, o local foi destinado preferencialmente a mortos que chegassem ao IML sem identificação ou que não fossem reclamados por parentes em até 72 horas. Como o IML é dedicado a necropsias de mortes violentas e não naturais, tais medidas tinham seu propósito: a vala escavada ilegalmente ali tornou-se o mais importante esconderijo de corpos da ditadura.

Conhecidas por funcionários da necrópole e por familiares de desaparecidos desde os anos 1970, a desova de corpos e a vala clandestina tornaram-se públicas em 1990, a partir das investigações do jornalista Caco Barcellos. No dia 4 de setembro daquele ano, 1.049 sacos plásticos com esqueletos foram desenterrados de um buraco comprido e estreito.

No dia seguinte à abertura da vala, a então prefeita Luiza Erundina instaurou a Comissão Parlamentar de Inquérito: Desaparecidos Políticos, mais conhecida como CPI de Perus. Foi a primeira comissão legislativa a investigar os crimes da ditadura, servindo de base para comissões posteriores.

Conforme o jornalista Camilo Vannuchi detalha em seu livro Vala de Perus: Uma Biografia, a descoberta de Caco surgiu a partir de pesquisas para seu livro Rota 66: A História da Polícia Que Mata. A pista despontou entre milhares de papéis envelhecidos, sujos de sangue, numa sala no IML de São Paulo. Médicos legistas – entre eles, Harry Shibata, notório pelo laudo de falso suicídio de Vladimir Herzog – marcavam alguns laudos com uma letra “T”, em vermelho, uma designação para “terrorista”, como a ditadura e imprensa classificavam militantes políticos. A marca aparecia nas necropsias feitas entre 1971 e 1974.

Em vez dos nomes originais, os documentos continham codinomes dos militantes – o que dificultava sua identificação. Em vez da descrição de lesões físicas visíveis (feito mutilações ou sinais de tortura), os atestados de óbito relatavam atropelamentos, suicídios ou tiroteios. Os corpos, que, pela lei, deveriam permanecer 72 horas em câmara frigorífica, eram dispensados em menos de 24 horas. Os mortos pela polícia, os indigentes e os “terroristas” tinham um destino comum: o Cemitério Dom Bosco, em Perus.

Quando os corpos chegavam em camburões ao cemitério, por vezes escoltados pela polícia, em caixões de madeira bruta, alguns sem tampa, os coveiros perguntavam: “tem algum especial aí?”. Esses cadáveres eram enterrados nas quadras 1 e 2, onde também eram sepultados os indigentes.

Administrador do Dom Bosco a partir de 1977, Antônio Eustáquio, mais conhecido como Toninho, só descobriu o significado do “T” nos atestados em 1990. Elemento-chave na elucidação dos crimes da ditadura até então encobertos, Toninho havia sido admitido por Jayme Augusto Lopes, superintendente do Serviço Funerário de São Paulo, para “cuidar dos indigentes”, diz ele.

Ao analisar documentos do cemitério, Toninho percebeu que certos dados não constavam nos livros de registro. Segundo o padrão, após três anos sem que nenhuma família reclamasse as ossadas, os restos mortais eram exumados e então enterrados novamente num patamar abaixo para dar lugar a novos corpos. Todavia, em 1975, houve uma exumação em massa de ossadas, documentada, mas sem registro legal do novo paradeiro. “Pelo meu levantamento, mais de 1.500 ossadas desapareceram dos registros”, ele me disse.

‘Mais de 1.500 ossadas desapareceram dos registros’.

Intrigado, ele passou a questionar os funcionários, até descobrir que o operador de retroescavadeira abrira uma vala rente a um barranco. Numa noite, munido de uma sonda, Toninho vasculhou o terreno indicado até encontrar a tal vala. Receoso pelo momento político, ele guardou a informação para si – exceto quando eventualmente era procurado por parentes de desaparecidos.

Graças ao contato de Caco Barcellos com Toninho Eustáquio, a terra começou a ser revolvida há 32 anos. No cruzamento de dados surgiram os nomes (ou codinomes) localizados por Caco. Motivado pelo jornalista, Toninho decidiu pedir autorização à superintendência do Serviço Funerário para escavar o gramado no fundo do terreno, com o pretexto de construir um ossário. Com a vala aberta, mediante pressão de comissão de familiares, os esqueletos da ditadura tornaram-se manchetes.

Instalada a CPI, foram ouvidos, entre outros, funcionários do cemitério e do sistema funerário, policiais e militares, parentes de desaparecidos, Fábio Pereira Bueno, os legistas Harry Shibata e Isaac Abramovitch, o diretor da Polícia Federal Romeu Tuma, ex-delegado e diretor do DOPS, os ex-prefeitos Paulo Maluf e Miguel Colasuonno e o ex-governador Abreu Sodré.

A investigação constatou que as ossadas eram de pessoas sepultadas como indigentes e que, entre elas, havia vítimas do Esquadrão da Morte e dissidentes políticos – até 1990, sabia-se que 19 haviam sido enterrados em Perus. As pesquisas consideraram que os corpos foram exumados em 1975 e, após meses na sala de velório, foram enterrados sem registro na vala comum no ano seguinte – algo injustificável, além de ilegal, uma vez que na época havia muito espaço na necrópole para que ocorresse uma exumação em massa.

A Comissão Parlamentar apurou que 1.564 ossadas foram exumadas. Peritos da Unicamp deduziram que a diferença desse número para as 1.049 localizadas seria a presença de aproximadamente 500 crianças vítimas da acobertada epidemia de meningite que assolou São Paulo na década de 1970, cujas ossadas não resistiram ao tempo. Anos depois, surgiria a hipótese, ainda não comprovada, de existir uma segunda vala no cemitério que teria recebido esses corpos.

ORG XMIT: 262101_0.tif O presidente Arthur da Costa e Silva. (Sem local e data. Foto: Acervo UH/Folhapress)

Arthur da Costa e Silva.

 

Foto: Acervo UH/Folhapress

A indigência como pretexto

ALei Municipal 7017, de 1967, havia determinado que poderiam ser cremados os cadáveres de pessoas que em vida tenham assinado documento em cartório permitindo a cremação ou, em casos especiais, quando as famílias dos mortos permitirem, mesmo nos casos de exumação. Em casos de mortes violentas, a cremação só poderia acontecer com autorização das autoridades policiais. A lei determinou que a prefeitura também poderia autorizar a cremação de cadáveres de indigentes e de desconhecidos, desde que respeitadas as regras previstas na lei.

Mesmo com o fim da ditadura, a lei nunca foi revogada, a despeito da Constituição de 1988 definir que pertence à família o corpo do ente falecido. Na época, a imprensa noticiou que os fornos teriam como objetivo a cremação dos indigentes.

Uma grande reportagem publicada no Estado de S. Paulo em agosto de 1971 anunciou o projeto de um cemitério vertical, reformas em necrópoles e a instalação do moderno crematório na Vila Alpina, com jardins, sala cerimonial circular e elevador para o ataúde. “Após o crematório ficar em quarentena na administração passada, o governo de Figueiredo Ferraz se apressa em construí-lo, pois 45 indigentes por dia são enterrados nos cemitérios de Vila Alpina e Perus, o que já justificaria sua instalação. São corpos que aparecem à margem de estradas, debaixo de viadutos ou simplesmente jogados na rua, sem identificação”, diz a reportagem. “Os engenheiros da Prefeitura encarregados da execução do projeto evitam expor pormenores do funcionamento, temerosos que ‘possam chocar a opinião pública’, mas asseguram que o cerimonial no subsolo será prático, em ritmo industrial”.

Meses depois, o diretor do Cemit revelou que a lei que reduzia o prazo de sepultamento para três anos em valas comuns era suficiente para resolver o problema de vagas nas necrópoles. Resolvida a questão de exumação, Bueno, pessoalmente, tentou buscar subsídios para que a lei municipal fosse adaptada a permitir a construção de um crematório exclusivo para indigentes. Enquanto a autorização para cremação devia ser dada pelo IML ou Secretaria de Saúde, havia, entre seus planos, o projeto de câmaras de refrigeração para acondicionar até 60 corpos.

Engenheiro civil, ele viajou em 1972 pela Argentina e Uruguai (nações envolvidas na Operação Condor, a aliança militar do Cone Sul) para pesquisar os fornos ali utilizados e sua legislação. No mesmo ano, outro engenheiro, Paulo Adiron Ribeiro, viajou para a Inglaterra – o mesmo destino, dois anos depois, de Jayme Augusto Lopes, superintendente do Serviço Funerário Municipal e advogado, a fim de examinar o funcionamento de crematórios e as possíveis adaptações a serem feitas em São Paulo.

Responsável pela instalação do sistema, Ribeiro comunicou ao jornal O Globo em novembro de 1973: “quando for inaugurado o forno crematório, a prefeitura terá que usar cadáveres de indigentes, porque, como ocorreu em outros países, haverá uma repulsa inicial da população à cremação. Mas isso desaparecerá com o tempo”.

Em 1974, todavia, o novo prefeito de São Paulo, Miguel Colasuonno, determinou que os administradores de cemitérios fossem substituídos por pessoas de sua confiança, o que gerou a desautorização do diretor do Cemit e o seu pedido de demissão. Outro fator também poderia ter colaborado para a saída de Bueno: a desaprovação pelo departamento jurídico, mesmo após análise da legislação argentina, da prática de cremação de indigentes.

O novo diretor, Sérgio Barbour, promoveu vistoria nos cemitérios, pesquisa de opinião dos moradores e testes nos fornos, enquanto o secretário dos Serviços Municipais, o sanitarista Werner Zulauf declarou: “ao contrário do que anunciava o antigo diretor do Cemit, Fábio Pereira Bueno, que dizia que o forno iria aliviar os cemitérios, devido ao alto padrão dos sistemas, indigentes, corpos não reclamados e restos mortais não serão cremados”.

Naquele ano, o regime de repressão deixou de anotar a “T” nos laudos do IML, guerrilhas de esquerda foram desmanteladas e a suposta distensão política iniciou-se com o governo Geisel.

Após cinco anos da chegada dos dois fornos em Santos, o primeiro crematório do país foi finalmente inaugurado em 12 de agosto de 1974 na Vila Alpina, ao lado do cemitério São Pedro. Era, supostamente, destinado a classes mais abastadas. Em Perus, no entanto, havia muitos esqueletos de indigentes – e militantes assassinados pelo regime – aguardando por um destino final.

‘A vala clandestina foi o crematório que não existiu’.

Exumadas em 1975, exatamente três anos após a aprovação da lei de exumação, as ossadas permaneceram ensacadas por meses no velório do cemitério. A informação que circulava entre os servidores era que seriam cremadas em Vila Alpina, ficando à espera dessa providência. Depoimentos à Comissão Parlamentar indicavam o conhecimento da exumação e seu fim: “Dr. Jayme”, o superintendente Jayme Augusto Lopes, teria autorizado a cremação, conforme relatou o serviçal do cemitério, João Aparecido André, enquanto o fiscal de cemitérios do SFM, Carlos Eduardo Giosa, disse que o superintendente consentira a abertura de um ossário subterrâneo.

Planejados para incineração, os despojos tiveram outro destino. “Pensamos que as dificuldades de transportar as mais de mil ossadas para o crematório em caminhões, descarregar sacos, sem condições de explicar a fumaça contínua, levaram à abertura da vala”, explica a relatora da CPI, a ex-vereadora Tereza Lajolo. “A vala clandestina foi o crematório que não existiu”, conclui. “Não investigamos sobre os fornos, porque o objetivo era explicar a vala”, diz.

Uma das poucas notas informativas dadas após a inauguração, datada de 1976, ano de abertura da vala, observou que o prefeito Olavo Setúbal considerou o crematório deficitário por cremar menos de dois corpos, em média, por dia. Em 1988, o espaço foi oficialmente nomeado como Crematório Municipal Dr. Jayme Augusto Lopes, em homenagem feita ao superintendente do SFM falecido em 1983. Atualmente, dispondo de seis fornos, ainda é o único crematório de São Paulo.

De acordo com Cláudio Guerra, o crematório chegou a receber corpos oriundos de Perus (por “erro operacional”, segundo o próprio) e de outros locais. Ninguém sabe quem são – e nunca saberá. Segundo Guerra – que confessou, ele mesmo, ter sugerido o uso da usina de açúcar para a carbonização de corpos vindos da Casa da Morte, em Petrópolis – a ideia de utilizar a incineração para ocultar corpos havia partido do SNI, o Serviço Nacional de Informação.

O Crematório Municipal Dr. Jayme Augusto Lopes foi viabilizado por um conluio entre funcionários municipais e defensores do regime militar.

 

Foto: Wikimedia Commons

Esqueletos no armário

AComissão Parlamentar e a Comissão Nacional da Verdade consideraram que o sistema de desaparecimento forçado e ocultação de vítimas foi possível graças ao conluio entre órgãos de repressão, sistema funerário e poder público. Enquanto o monitoramento do sistema era feito pelo SNI, o órgão que promovia a principal conexão entre as várias esferas era o IML, entidade estadual atrelada à Secretaria de Segurança Pública.

A sugestão por sepultamentos em Perus teria partido do IML, além do Serviço Funerário. Fábio Pereira Bueno declarou que foi procurado por Harry Shibata, diretor do instituto, para acertar o uso do Dom Bosco para sepultar indigentes, em vez dos tradicionais cemitérios de Vila Formosa e Lajeado, por estar mais próximo ao prédio onde eram feitas as necropsias.

Por sua vez, o delegado da divisão de Ordem Política do DOPS, Alcides Cintra Bueno, orientava os procedimentos ao IML e ao Serviço Funerário. O uso do “T” seria uma ordem determinada por ele. Segundo o legista Jair Romeu, Cintra teria telefonado diretamente a Jayme Lopes para requisitar um caixão para o ativista Carlos Marighella, na ocasião de sua morte. A inter-relação se estendia inclusive ao âmbito familiar: o filho do diretor do Cemit, Fábio Pereira Bueno Filho, era investigador do DOPS, atuando sob as ordens de Tuma, enquanto Harry Shibata Júnior e Romeu Tuma Júnior trabalhavam no Serviço Funerário .

O acirramento do autoritarismo militar, a partir do AI-5, ocorreu simultaneamente a um período de grandes mudanças no sistema funerário. Entre 1969 e 1970, foram criados o AI-14 (ato que restabelecia a pena de morte no país), Oban, DOI-Codi – chefiado pelo comandante Brilhante Ustra entre 1970 e 1974 –, Polícia Militar e Rota. O DOPS, com Sérgio Fleury à frente, passou a ser subordinado ao 2º Exército. Em 1974, surgiu o chamado Braço Clandestino da Repressão, que modificou o aparelho repressor na direção de uma ação ainda mais furtiva.

No mesmo período, foram fundados três cemitérios municipais em São Paulo – Cachoeirinha, São Pedro e Dom Bosco – e quatro particulares, além do crematório municipal. O Cemitério da Vila Formosa, principal destino de descarte de corpos de indigentes antes de Perus, sofreu em 1975 uma reforma não autorizada, que acarretou na pulverização da quadra dos “terroristas”. O Cemitério do Lajeado, em Guaianases, na Zona Leste de São Paulo, por sua vez, foi alvo de sucessivos incêndios que ocasionaram queima de documentos e morte de um funcionário.

A CPI concluiu que há uma desorganização histórica no Serviço Funerário Municipal no tratamento dispensado às pessoas pobres, genericamente chamadas de indigentes. E que essa manipulação serviu ao ocultamento de corpos de vítimas da violência policial e de presos políticos – em São Paulo, foram sepultados como indigentes cerca de 47 vítimas da ditadura em apenas três cemitérios: Dom Bosco, Vila Formosa e Campo Grande. Por fim, que houve intenção de cremar os corpos de indigentes, entre os quais estavam os de presos políticos.

Em depoimento à CPI feito em sua mansão nos Jardins, em 1991, Paulo Maluf responsabilizou o prefeito Faria Lima pelo projeto de construção do cemitério Dom Bosco. Também negou conhecer Harry Shibata, diretor do IML durante seus três anos como prefeito, e Sérgio Fleury – apesar de ter ido a seu velório. Ele negou ainda ter determinado a construção de crematório em Perus. “Como cristão, jamais permitiria a cremação de indigentes. Sempre soube que os mortos têm de ser enterrados”, disse. Quanto às torturas no DOI-Codi, garantiu que tomou conhecimento delas somente após as mortes do jornalista Vladimir Herzog e do metalúrgico Manoel Fiel Filho, entre 1975 e 1976.

Porém, admitiu a concessão de um jazigo no Cemitério de Campo Grande, na Zona Sul, para a agente do DOPS Estela Borges Morato, morta em novembro de 1969. Na mesma ocasião também morreu o ex-deputado e dirigente da ALN Carlos Marighella – por sua vez, enterrado como indigente em Vila Formosa. Maluf justificou ter assinado a concessão sem ler, em meio a várias outras, trazidas por assessores para receber sua sanção.

Cabe lembrar que ele, como governador, cedeu uso de terreno para o DOI-Codi no final dos anos 1970. Em 1993, quando reassumiu a prefeitura da cidade, pelo voto, sucedendo Erundina, alguns de seus primeiros atos foram a extinção da comissão de acompanhamento de familiares de desaparecidos políticos e a exoneração de Antônio Eustáquio, administrador do Dom Bosco e responsável por revelar a vala de Perus. O gradativo abandono do trabalho de investigações sobre as ossadas foi outro passo. O descaso somente terminaria em 2014, quando a análise forense foi retomada pela Unifesp.

Ao desprezo do prefeito pelo assunto, acrescente-se a destruição proposital dos arquivos do IML, especialmente entre 1969 e 1974, e do DOPS. Os arquivos do último se tornaram públicos em 1992, mas muitos foram retirados por policiais enquanto estavam sob a guarda do então diretor da Polícia Federal Romeu Tuma.

Em 2009, o Ministério Público Federal, por meio da procuradora Eugênia Gonzaga, ex-presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, promoveu uma ação civil contra os ex-prefeitos Paulo Maluf e Miguel Colasuonno, Romeu Tuma, Harry Shibata e Fábio Pereira Bueno, além do Município e Estado de São Paulo e a União. A ação busca responsabilizar os réus por ocultação de cadáveres – os descendentes e representantes de Colasuonno, Tuma e Bueno respondem pelo processo. Em 2019, Eugênia Gonzaga foi exonerada por Bolsonaroda presidência da CEMDP.

As investigações sobre as violações cometidas pela ditadura foram retomadas com as diversas Comissões da Verdade. Dados apresentados pela Comissão Estadual Rubens Paiva mostram que quase 5 mil cadáveres entraram no cemitério Dom Bosco identificados como desconhecidos entre 1971 e 1980. O presidente da comissão, o ex-preso político e deputado Adriano Diogo, considerou vaga a afirmação de que corpos de militantes foram incinerados em Vila Alpina. Mas, frente aos dados levantados pela reportagem, passou a cogitar tal possibilidade. “Começo a crer que corpos possam ter sido levados para lá. Ouvíamos algumas conversas nesse sentido”, conta ele.

Diretor da divisão de cemitérios por menos de um ano, Sergio Barbour afirma que, na sua época, a indigência era atestada pelo SFM e o enterro, administrado pelo Cemit. Ele considerou absurda a ideia de seu antecessor de utilizar a indigência para justificar o uso do crematório e acha difícil provar que corpos foram levados para lá. “Quem faz isso não costuma deixar vestígios”, avalia.

O ex-delegado Cláudio Guerra negou-se a dar entrevista ao Intercept.Questionada por qual razão Vila Alpina se tornou o destino do crematório, a assessoria do Serviço Funerário justificou que os cemitérios de Vila Formosa e Cachoeirinha não comportariam prédio de tal dimensão. Contudo, os dois cemitérios são os maiores da cidade. Envolto em mistérios, o forno crematório original não possui fotos nos arquivos do Serviço Funerário Municipal por conta de um “incidente interno”. Estranhamente, o forno da época teve um fim insólito: foi descartado em 2006 como bem inservível – sucata.

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