No próximo dia 31 de março, o golpe de 1964 completa 59 anos. É sempre importante recordar que não faltaram juristas que colaboraram com a ditadura militar. Doutrinadores, juízes, OAB etc., exerceram papeis destacados na configuração da legalidade autoritária utilizada na institucionalização da ditadura. Contudo, na outra margem do rio, também é importante recordar que um pequeno número de advogados combateu o bom combate em defesa da vida e da liberdade dos presos políticos. Nas palavras de D. Paulo Evaristo Arns, "um grupo de profissionais do Direito que, naquela época de muitos temores, arriscaram suas próprias vidas e carreiras profissionais para se dedicarem a defender, na grande maioria dos casos gratuitamente, as vítimas da violência política"[1].
Com uma pequena margem de manobra e fazendo uso da interpretação mais liberal possível do aparato jurídico utilizado pela repressão [2], os advogados dos presos políticos conseguiram estabelecer uma forma de resistência.
Desde o golpe, os militares e seus juristas começaram a traçar uma engenharia constitucional que, além de favorecer a repressão, também procurava oferecer ao regime um verniz de Estado de Direito para angariar legitimidade perante a opinião pública, seja internamente ou internacional. Era importante mostrar para as nações ocidentais que o Brasil permitia a existência de dois partidos (governo e oposição); que os Poderes funcionavam normalmente; que os presidentes militares não agiam como os caudilhos existentes na América Latina; que os presos políticos eram devidamente processados na Justiça Militar; e que seus recursos inclusive poderiam chegar até o órgão de cúpula do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal.
Isso não quer dizer que a ditadura brasileira deixou de usar a estratégia da guerra suja contra seus opositores. O sequestro, a tortura, o encarceramento, a utilização de sítios clandestinos, o assassinato e o desaparecimento também fizeram parte das engrenagens de seus órgãos de repressão. Em vários casos o regime sequer demonstrou alguma preocupação em formalizar a prisão e abrir um processo na Justiça Militar. Foi o que aconteceu com o comunista David Capistrano da Costa, que, ao tentar retornar para o Brasil em 1974, acabou assassinado num dos principais centros clandestinos de tortura do regime, a conhecida casa da morte de Petrópolis. Ainda segundo relato prestado por um ex-integrante do DOI-Codi, o agente Marival Dias Chaves do Canto, o corpo de Capistrano foi esquartejado e jogado num rio [3].
As prisões muitas vezes aconteciam sem qualquer tipo de controle judicial. Os órgãos de repressão não precisavam pedir autorização ao Judiciário para realizar uma busca e apreensão ou para efetuar uma prisão, pois no momento em que entrava o trabalho da informação e da contrainformação nada podia ser formalizado através de um inquérito. Como muitas vezes a prisão funcionava como um sequestro, os advogados não recebiam qualquer informação sobre a situação de seus clientes. O encontro entre o preso político e seu defensor ocorria somente quando aquele era remetido à Secretaria de Segurança Pública.
De 1964 até o final do ano de 1968 ainda existia uma chance considerável dos presos políticos serem libertados por meio do habeas corpus. Após a suspensão desse remédio constitucional para crimes enquadrados na lei de segurança nacional, os advogados tiveram que buscar outros meios não apenas para defender a liberdade dos presos políticos, como também para levantar informações sobre suas localizações, já que a suspensão do habeas corpus possibilitou a ampliação do número de encarcerados e criou enormes dificuldades para que os advogados localizassem seus clientes.
Foi a partir daí que os advogados passaram a apresentar petições à Justiça Militar que tinham o formato de habeas corpus, mas não podiam ser chamadas de habeas corpus. Eram os chamados habeas corpus de localização [4]. Se a petição não era suficiente para alcançar a liberdade do preso político, pelo menos ela servia para retirá-lo das sombras e forçar um registro formal da sua situação. De acordo com o advogado Mario de Passos Simas, "nós (os advogados) nos valíamos de tudo, de mil requerimentos, de centenas de petições e reclamávamos perícias, invocávamos autoridades estrangeiras, entidades internacionais como a Anistia Internacional. Tudo que era válido era exercido"[5].
Como bem observou D. Paulo Evaristo Arns, "[...] um dos maiores esteios dos presos e de suas famílias eram seus advogados"[6]. Reunindo pessoas de diversas tendências ideológicas, como liberais, conservadores e socialistas, esses advogados estabeleceram uma convergência política e jurídica fundamental para uma resistência não apenas dentro Justiça Militar, mas também por meio do debate feito pela imprensa; das denúncias de tortura feitas em organismos internacionais; da defesa da anistia; e da construção de pontes para a redemocratização. Os advogados da resistência não chegaram a formar uma organização para a defesa dos presos políticos, mas, sem dúvida alguma, ajudaram a movimentar a resistência civil contra a ditadura.
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[1] ARNS, Paulo Evaristo. Prefácio. In: SÁ, Fernando; MUNTEAL, Oswaldo; MARTINS, Paulo Emílio. Os advogados e a ditadura de 1964: a defesa dos perseguidos políticos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Vozes e PUC Rio, 2010, p. 8.
[2] Foi nessa conjuntura autoritária que o uso alternativo do direito surgiu como um meio de resistência dos juristas contra a ditadura. De acordo com Lenio Streck, "o movimento do direito alternativo se colocava, então, como uma alternativa contra o status quo. Era a sociedade contra o Estado. Por isso, em termos teóricos, era uma mistura de marxistas, positivistas fáticos, jusnaturalistas de combate, todos comungando de uma luta em comum: mesmo que o direito fosse autoritário, ainda assim se lutava contra a ditadura buscando 'brechas da lei', buscando atuar naquilo que se chamam de 'lacunas' para conquistar uma espécie de 'legitimidade fática'". Para mais detalhes, ver sua entrevista concedida para o Instituto Humanitas Unisinos: Uma análise sociológica do direito. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2758&secao=305. Acessado em: 24/03/2023.
[4] FERNANDES, Fernando Augusto Henriques. Voz humana: a defesa perante os tribunais da República. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p. 224. De acordo com Nilo Batista, "O habeas corpus, depois do AI-5, se converteu num macabro teste de sobrevivência dos presos. Você requeria um habeas corpus e indicava como autoridades coatoras o Cenimar, o CISA, o DOI-Codi e o Dops. Quando algum deles dizia que o paciente estava preso, significava que estava vivo. Quando a resposta vinha negativa, como no caso do Stuart (Angel Jones), era um mau presságio porque a pessoa tinha sido morta, tinha sido executada, morrido na tortura". SPIELER, Paula. Entrevista com Nilo Batista. In: SPIELER, Paula; QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo (coord.). Advocacia em tempos difíceis: ditadura militar 1964-1985. Curitiba: Edição do autor, 2013, p. 653. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/13745/Advocacia%20em%20tempos%20dif%C3%ADceis.pdf?sequence=1. Acessado em: 24/3/2023.
[5] MOURA, Ana Maria Straube de Assis; GONZAGA, Tahirá Endo. Mario de Passos Simas: mais que um advogado, um patrono. In: SÁ, Fernando; MUNTEAL, Oswaldo; MARTINS, Paulo Emílio. Os advogados e a ditadura de 1964: a defesa dos perseguidos políticos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Vozes e PUC Rio, 2010, p. 80.
[6] ARNS, Paulo Evaristo. Prefácio. In: SÁ, Fernando; MUNTEAL, Oswaldo; MARTINS, Paulo Emílio. Os advogados e a ditadura de 1964: a defesa dos perseguidos políticos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Vozes e PUC Rio, 2010, p. 8.
Esse título me foi sugerido pelo próprio título do filme “Aftersun” mas também pelo próprio filme, a primeira obra longa-metragem da cineasta escocesa Charlotte Wells, que foi lançado no ano passado em Cannes e no Brasil, em dezembro de 2022, e agora na Mubi. Assim, é um filme novo e que me parece interessante para podermos fazer algumas comparações entre os filmes dos anos 1950 e esses que estão sendo realizados agora em qualquer parte do mundo.
A causa principal de como são os filmes de hoje é que os de antes eram feitos por pessoas chamadas práticas. Cinema não era trabalho para intelectuais, mas simplesmente para pessoas inteligentes, embora não ‘ilustradas’. Essas pessoas faziam literatura ou no máximo teatro ou então música erudita.
Hoje, uma moça como essa escocesa Charlotte Wells deve ser uma verdadeira intelectual, e cria uma obra em que a linguagem busca fugir da ligação direta com o cotidiano. As sequências vão acontecendo, se ligando mais ao jogo da imagem do que ao realismo, como era comum. Por exemplo, temos uma sequência em que as pessoas jogam bilhar, mas o que o espectador vê são as bolas do bilhar e não os jogadores. Quase nunca há o realismo de se ver as coisas ou mesmo as pessoas completas. Nunca que um filme de uma jovem cineasta deixou o objetivo se apresentar, mas utiliza a montagem para deixar que o jogo da imagem seja a força principal da própria linguagem.
Isso é um dos motivos inclusive dos intérpretes praticamente não serem mais grandes forças na divulgação de um filme. O importante cada vez mais vai sendo a montagem, e antes a fotografia, e claro a própria direção. Embora me pareça que a maioria dos espectadores, principalmente dos filmes de Hollywood, estejam preocupadas em buscar diversão nos filmes e continuem assim a ver grandes espetáculos e séries. Pelos enredos. A Mubi informa os nomes dos atores, inclusive os dois principais Paul Mescal e Frankie Corio que fazem o pai e a filha. Penso, porém, que os detalhes aparecem muito mais que eles. É um filme com boa, bela estrutura estética, mas curto. Dura só 1h36m.
Que independência é essa?
Vi ontem no canal TVT uma quase palestra do economista Ladislau Dowbor sobre o porquê do Presidente Lula estar contra a ‘independência’ do Banco Central, e por que todos os comentaristas da imprensa e os deputados apoiarem o presidente do Banco Central; eu já achava que a coisa era assim. Mas achei ótimas as explicações do economista, pois fiquei sabendo por que a grande mídia defende essa ‘liberdade’. Isto é, foi o Governo Federal deixando que os próprios bancos nacionais e internacionais se assenhoreassem do Governo a quem devem sem dúvida obediência. Foi Bolsonaro que conseguiu isso para eles. Claro que não podem ser os ratos a mandarem no gato. Não pode o Presidente da República aceitar o que os financistas querem. E o economista Ladislau Dowbor explica muito bem. E tem total documentação. São bilhões roubados do povo brasileiro através do jogo financeiro e nada mais.
O pior é que esse roubo de Bolsonaro, revelado nestes dias pela imprensa, certamente não será o maior, pois se pensarmos em locais como as minas das terras dos Yanomamis, o que os Bolsonaros devem ter conseguido açambarcar deve ser muito mais do que 16 milhões de reais. E o que me entristece é o fato de existirem milhões de brasileiros que votaram e são ainda capazes de votar nesse chefe da quadrilha.
Acho que é importante lembrar que muitos desses milhões de eleitores pensam dessa forma pela consequência da ditadura militar de 64. Foram os ditadores que impuseram esse pensamento no país a partir do mando sem limites. Uma assessora de Lula, que trabalha com ele há 40 anos,Clara Ant, deu entrevista ontem para Mário Sérgio Conti. Ela agora é assessora especial, e disse muito claramente como o Brasil foi dilapidado por esse grupo que ficou no governo nesses últimos quatro anos.
Uma monarquia árabe mandou de presente para a primeira-dama de Bolsonaro um conjunto de joias no valor de 16 milhões de reais e essas joias foram colocadas por um militar numa sacola para escapar da Alfândega. E um funcionário interceptou. Esse funcionário deveria ser premiado. Isso aconteceu em outubro do ano passado e Bolsonaro tentou de tudo para retirar as joias da Alfândega. E não conseguiu. A coisa foi descoberta, claro, no Governo atual.
É claro que isso não deve ser presente coisa nenhuma. Senão alguma cochambrança dos governos árabe e Bolsonaro, que segue certamente as mesmas normas de qualquer quadrilha.
Os nexos, ao longo do desenvolvimento capitalista brasileiro, entre tutela militar e relações com as classes populares em democracias liberais restritas
Dois aspectos adquirem enorme importância na atual crise política brasileira: uma forte expansão do neofascismo que até deixa saudades de quando, uns cinco anos atrás, discutimos sobre a existência de uma onda conservadora no Brasil; o debate sobre a tutela militar quase cai na boca do povo.
Inevitável não é, mas, pelo que temos visto e vivido, é bastante provável que, especialmente no caso de uma intensificação das contradições internas à formação social brasileira e um aprofundamento da crise econômica mundial em um jogo geoestratégico complicadíssimo, este país constitua um cenário bastante favorável ao crescente entrelaçamento – e mesmo à fusão – da forte presença política dos militares com o avanço do neofascismo.
Este artigo, longe de abordar a questão em toda a sua complexidade, o que implicaria levar em conta, por exemplo, dimensões corporativas específicas das Forças Armadas, centra o foco, de modo ainda bastante genérico, nas relações, ao longo do desenvolvimento capitalista brasileiro, entre tutela militar e as classes populares em democracias liberais restritas.
Passado e presente da tutela militar
Segundo diversos estudiosos, a tutela militar se constituiu com a formação do Estado independente a partir de 1822-24 e jamais se foi. Até porque, apesar do debate, não temos um conceito suficientemente claro de tutela militar, deixo, neste momento, de discuti-la no interior de formações sociais pré-capitalistas e apenas registro uma dúvida teórica que, no Brasil atual, tem imediatas implicações políticas: a distinção qualitativa entre o Estado escravista moderno e o Estado burguês não deveria ser mais considerada ao falarmos de uma bicentenária tutela militar?
Creio que, se traçarmos esta linha de continuidade muito direta, corremos o risco de legitimar posições que, de um modo ou de outro, justificam a proeminência militar na política contemporânea com a referência a um passado mítico de um povo apático, inclusive em razão de determinações raciais, e, portanto, incapaz de se conduzir. Centro o foco no período marcado pela presença de um Estado nacional brasileiro cuja existência coincidiu com a da forma de governo republicana ao longo de 121 anos de História.
Mesmo assim, assinalo um problema: a questão da tutela militar no Brasil se escancara a céu aberto quando se trata de democracias liberais de massas, pois, em se tratando de ditaduras militares, corre-se o sério risco (não a inevitabilidade) de ficar a meio caminho do truísmo e da redundância. O que, ironicamente, não impede que, nas constituições ditatoriais brasileiras, artigos mais diretamente relacionados com o papel das Forças Armadas lhes atribuem um papel mais subalterno ao Executivo. Já as Cartas Magnas das duas democracias liberais de massas neste país, 1945-1964 e desde 1989, trazem o registro da tutela militar: artigos no.177 e 142 das Constituições de 1946 e 1988, respectivamente.
Estranho país no qual a simples aceitação da democracia é acompanhada do aviso constitucional de que as Forças Armadas estão de olho e prontas para agir. Neste texto, centro o foco em alguns aspectos das relações entre o ramo militar da burocracia do Estado brasileiro e a Presidência frente às lutas das classes populares.
Transição de capitalismo e lutas político-ideológicas
No período 1945-1964, militares atuavam em todas as frentes de disputa a respeito da política de Estado. O principal eixo da discórdia girava em torno da implementação de políticas necessárias ao desenvolvimento nacional brasileiro, o que, de tão genérico, beirava o consensual. Em termos objetivos, estava em disputa a continuidade da política de desenvolvimento capitalista industrial (dependente) implementada durante a Era Vargas (1930-45). Em torno desta é que se manifestavam interesses e variantes ideológicas contraditórios no interior da classe dominante, entre camadas da classe média e segmentos do aparelho estatal em um período marcado, do início ao fim, pela ascensão política das classes populares.
Comparados aos atuais 38 anos do regime atual, os 19 daquela democracia foram de prender o fôlego.
As contendas não se limitaram aos debates orais e escritos dentro e fora dos partidos políticos, no parlamento, na imprensa e, ao longo dos anos 1950, na intelectualizadíssima Revista do Clube Militar. Beiraram as vias de fato quando, na undécima hora, o general Lott liderou o famoso “golpe da legalidade” (11/11/1955) que assegurou a posse da dupla Kubitschek e Goulart, legitimamente eleita mas contestada pelos adversários civis (udenistas) e militares adeptos do candidato derrotado, general Távora.
Questionamento da vitória eleitoral, longe de invenção tucana, foi fortíssimo em relação a dois importantíssimos presidentes brasileiros: Vargas, em 1950, e Kubitschek em 1955, quando o general Lott deu o “golpe da legalidade”, sem falar no risco de confronto armado produzido pelo veto dos três ministros militares à posse do vice-presidente João Goulart na esteira da renúncia de Jânio Quadros. Enfim, em todas as eleições presidenciais do período, houve sempre um militar (em 1945, dois) entre os candidatos mais votados.
Nestes breves 19 anos de vida, ocorreu formidável ascensão das lutas operárias e também, a partir de 1955, o ingresso promissor das ligas camponesas na luta política. E, no frigir dos ovos, esta ebulição sociopolítica desembocou na montagem de um capitalismo industrial dependente que deixou para traz o debate sobre a vocação agrária da economia brasileira. Neste processo, os conflitos no interior do ramo militar da burocracia de Estado foram decisivos. O que justifica o recurso à noção de tutela militar.
Lutas de trabalhadores e transição transada
A crise da ditadura militar foi marcada por uma extraordinária presença das lutas operárias e populares que até hoje deixam registros nos nomes de partidos, movimentos e entidades de representação corporativa de trabalhadores e segmentos da classe média, produção cultural, sem falar nas atividades que, perdidas na memória, requerem pesquisa. Houve momentos em que pessoas de classe média, ao encherem o carro de compras no supermercado, reservavam um pouco delas para doarem ao fundo de greve.
Todavia, essas lutas que encantaram boa parte do mundo não conseguiram dirigir o processo de transição. Um dos resultados da transição transada – expressão do saudoso Florestan Fernandes – é a Constituição Cidadã com este famoso artigo 142. Ela mal completou 35 dias e ocorreu forte intervenção do Exército na cidade de Volta Redonda para reprimir a greve dos trabalhadores da Companhia Siderúrgica Nacional (o chamado Massacre de Volta Redonda). Cinco anos depois, a empresa foi privatizada. Tropas do Exército também atuaram contra a greve dos Petroleiros em maio de 1995 (governo FHC), com impactos importantíssimos para as lutas dos trabalhadores neste país. E, expressando a virada das relações sociais, as operações de GLO, estritamente de acordo com o famoso artigo 147, foram transmitidas de governo a governo. Ou seja, a atual democracia (restrita) brasileira nasceu com o selo da tutela militar.
A tutela e seus limites
Durante o interregno Temer, no bojo da reafirmação da hegemonia da grande finança, pari passu com as derrotas das classes populares, liquidou-se o que restava da “herança varguista” e, em meio à crise do sistema partidário, a cena política foi inflada de agremiações reacionárias e conservadoras ligadas a setores da burguesia interna rural e urbana. E um grupo de generais passou a intervir ostensiva e simploriamente na implementação de políticas estatais, como a econômica, externa, cultural, de costumes e eleitoral.
Neste último caso, bloqueou a candidatura Lula e se envolveu diretamente na de Jair Bolsonaro. Estas políticas foram apresentadas como racionais, voltadas para a defesa da lei e da ordem e a regeneração nacional, o que implicaria profundo combate à corrupção. E, no geral, receberam apoio entusiástico do conjunto da classe dominante brasileira, amplos setores da classe média e todos os grandes meios de comunicação.
Com o mesmo apoio, então bem mais emocionado e com maior penetração nas classes populares, emergiu a candidatura vitoriosa de Jair Bolsonaro e se configurou uma relação entre militares e política que, salvo melhor juízo, não tem precedentes na história deste país.
Estabeleceu-se um governo fascista profundamente atentatório à democracia liberal, atrelado ao financismo, voltado para a exportação de bens primários e refratário a políticas de desenvolvimento industrial e de apoio à pequena produção rural e urbana. O modo de exercício da hegemonia do capital financeiro levou à defesa objetiva, sob o nome de responsabilidade fiscal, de uma política econômica de aspectos genocidas, atentados constantes à democracia liberal, política internacional desastrada e política sanitária catastrófica, sempre com o envolvimento do referido grupo predominante no interior das Forças Armadas.
O que seria uma simples disputa eleitoral abriu a espaço para, na ausência de qualquer inimigo real ou potencial, um surto de descoordenação nos (e entre os) diversos segmentos do ramo repressivo do Estado (Forças Armadas, Polícias Militares, Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal). E o centro do palco foi ocupado personagens movidos à violência cega e formulações simplistas quase sempre expressadas por meio de escasso repertório de xingamentos idiotizastes. Aguardemos as pesquisas sobre a inserção social dos que vandalizaram a Praça dos Três Poderes.
Se, mesmo nos casos clássicos, a ascensão de fascismos passou pela impregnação (e posterior comando) do aparato repressivo do Estado, a ascensão do bolsonarismo, cujo líder já foi declarado nada afeito à carreira castrense, mas é admirado pela base da tropa, sinaliza o risco de preocupante mutação da tutela militar no Brasil.
JÁ ESTÁ CLAROque a tragédia vivida pelo povo Yanomami não é meramente fruto da omissão do governo Bolsonaro. É muito mais que isso. É consequência da retomada de um projeto antigo das Forças Armadas que se iniciou nos primeiros anos da ditadura militar. Como bem lembrou Carla Jimenez na última newsletter doIntercept, “a ditadura militar foi pródiga em dizimar indígenas em nome do progresso”.
A Funai foi criada pelos militares três anos após o golpe de 64 e foi comandada por militares guiados pelo lema da bandeira nacional: Ordem e Progresso. A política indigenista da ditadura tinha como objetivo integrar o indígena ao “mundo civilizado”. Em 1970, durante o governo Médici, o regime militarcomandou o Plano de Integração Nacional, com objetivo de expandir as fronteiras internas do país, abrir rodovias e criar novas cidades. Para isso foi necessário perseguir, prender, torturar e assassinar lideranças indígenas que lutavam pelos seus territórios. Em 1972, o general Ismarth de Araújo, superintendente da Funai,disseque “índio integrado é aquele que se converte em mão de obra”. Os indígenas que se rebelaram contra esse projeto acabaram mortos.
O ex-capitão do Exército Jair Bolsonaro, que sempre foi reconhecidamente um deputado vagabundo, trabalhou bastante contra os povos indígenas — especialmente contra o povo Yanomami — durante sua passagem pelo parlamento. O então deputadoatuouincansavelmente pela extinção da etnia. Em 1992, ele apresentou um decreto legislativo que previa a extinção da reserva Yanomami, que tinha sido demarcada no ano anterior. O projeto foi arquivado, mas Bolsonaro tentou emplacá-lo em outras quatro oportunidades. Em um dos seus discursos no plenário em defesa do decreto, Jair Bolsonaro disse: “a cavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema no país”.
A ascensão do bolsonarismo ao poder possibilitou a continuação desse projeto militar. Assim como na ditadura, a política indigenista do governo Bolsonaro oferece duas opções aos povos indígenas: a integração forçada ou a extinção. As cenas de homens, mulheres e crianças Yanomami subnutridos, com os ossos do corpo inteiro aparecendo, retrata o sucesso da retomada desse projeto. A desnutrição e a fome são consequência direta da ocupação de seus territórios por garimpeiros ilegais. A garimpagem na região impede o povo Yanomami de exercer suas atividades produtivas básicas.
Não me recordo de uma tragédia mais anunciada do que essa. Durante os últimos quatro anos, o avanço do garimpo ilegal e a saúde dos povos indígenas foram assuntos de destaque no debate público nacional. Reportagens e órgãos públicos como o Ministério Público Federal,o STFe aCorte Interamericana de Direitos Humanosalertaram sobre a gravidade da situação. Desde o primeiro ano de governo Bolsonaro, o MPFfez pelo menos oito recomendaçõesrelacionadas à falta de atenção básica de saúde nas terras Yanomami.
Deputada Joênia Wapichana e Dario Yanomami em reunião com o Vice-Presidente Hamilton Mourão. Foto: Divulgação/Planalto
Em 2020, o MPF fez o primeiro alerta ao governo sobre a fome dos Yanomami em Roraima. O órgão determinou que a Sesai, a Secretaria Especial da Saúde Indígena, deveria providenciar a compra de alimentos para abastecer a comunidade. Absolutamente nada foi feito. Claro, durante o governo Bolsonaro a Sesai serviu ao projeto iniciado no regime militar. Nesse período, elafoi comandada por militaressem nenhuma experiência em saúde indígena. O primeiro a assumir a pasta foi o coronel do Exército Robson Santos da Silva. Depois, foi a vez de outro coronel: Reginaldo Ramos Machado,amigo pessoal de Jair Bolsonaro. Ambos comandaram a destruição da estrutura de atendimento da pasta. Cargos e departamentos importantes do órgãoforam encerrados. Mecanismos de controle e participação social como os Conselhos Distritais de Saúde Indígena (Condisi) e o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) foram extintos. A fome dos Yanomami é resultado de uma política muito bem planejada pelas Forças Armadas e pelo governo Bolsonaro.
A garimpagem na região impede o povo Yanomami de exercer suas atividades produtivas básicas
As digitais dos militares estão impregnadas em todos os pontos da tragédia vivida pelos Yanomami. O ex-vice-presidente e hoje senador Hamilton Mourão presidiu por três anos o Conselho Nacional da Amazônia Legal. O general não convidou ninguém da Funai e do Ibama para integrar o conselho. Escolheu 19 militares da sua confiança. A função desse conselho é prestar assistência aos povos indígenas da região, mas Mourão e os militares fingiram não ver o descalabro.Em entrevista ao Jornal da Globo, a liderança Dário Kopenawa contou que conversou pessoalmente com Mourão em julho de 2020. A principal reivindicação foi a retirada dos garimpos ilegais de ouro instalados no território indígena. O garimpo nessa região é comandado maciçamente porempresas clandestinas ligadas ao contrabando e ao crime organizado. General Mourão ouviu o pedido dos Yanomami, publicou foto com Kopenawa e não tomou absolutamente nenhuma providência.
A reivindicação não foi atendida, pelo contrário. Os militares bolsonaristas atuaram para legalizar a garimpagem no território dos Yanomami. No fim do governo Bolsonaro, antes de apagar as luzes, o general da reserva Augusto General Heleno, ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional, o GSI, autorizou o garimpo de ouro em área próxima à Terra Indígena Yanomami.
A pessoa agraciada com a autorização é uma garimpeira que já cumpriu pena por tráfico de drogas e já foi acusada pelo Ministério Público por receptação de pneus roubados. Essa é a política da “ordem e progresso” beneficiando diretamente uma garimpeira com histórico de envolvimento com o crime em detrimento da saúde de povos indígenas. Trata-se de um episódio bastante representativo da hipocrisia que integra a essência do bolsonarismo.
Não é que os militares simplesmente permitiram a garimpagem em áreasy indígenas. Eles atuaram em conluio com os garimpeiros. Militares do Sétimo Batalhão de Infantaria da Selva por exemplo,chegaram a ter um grupo de WhatsAppcom garimpeiros da região Yanomami para poder avisá-los sobre eventuais ações desencadeadas ali. Esse é apenas um exemplo. Há uma pororoca de outros que mostram como os ataques dos militares contra os povos indígenas.
Vejamos algumas manchetes que pipocaram no noticiário nos últimos tempos:
Não é que os militares simplesmente permitiram a garimpagem em área indígenas. Eles atuaram em conluio com os garimpeiros
A ministra dos Povos Indígenas Sônia Guajajara iniciou uma desmilitarização da Funai. Já foram demitidos 43 militares que boicotavam a proteção dos povos indígenas. Esse é o começo de um longo processo necessário para reconstruir o órgão. É urgente que o país puna severamente os militares e todos aqueles que encamparam esse projeto de dizimação dos povos indígenas desenhado durante a ditadura militar. Trata-se de um crime de lesa humanidade. As Forças Armadas precisam ser enquadradas para que não tentem retomar esse projeto no futuro. Não é possível mais ver uma importante instituição da democracia brasileira trabalhando diretamente pela destruição dos povos originários, enquanto atua em conluio com garimpeiros, golpistas e terroristas.
É preciso que fique claro que o genocídio sofrido pelos Yanomami não foi um mero caso de incompetência e omissão de um governo, mas um projeto de governo dos militares.
ARTIGOS RECENTES
Vozes. Missões evangelizadoras têm que entrar no rol de investigados pelo genocídio Yanomami, por Ronilso Pacheco
As agências missionárias estavam lá quando a tragédia começou. Mas, confortáveis sob a proteção do governo Bolsonaro, não denunciaram e não agiram.
Ladrões de Floresta. Ministério do Meio Ambiente de Bolsonaro abriu mão de defender 8 milhões de hectares na Amazônia, Pantanal e Cerrado, por Fernanda Wenzel
Pasta não apenas se omitiu de buscar novas áreas para preservar como entregou de bandeja outras 39 que poderia transformar em unidades de conservação.
Manifestante segura placa com dizeres “cadeia para Bolsonaro e seus generais” durante protesto pela democracia na Avenida Paulista, em 9 de janeiro | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo
Human Rights Watch aponta em relatório que Bolsonaro, entusiasta de torturadores, promoveu ataques às instituições e incitou apoiadores a pedir golpe militar; pesquisadores recomendam revisão da Lei da Anistia
Os ataques às instituições e à imprensa e o descrédito do processo eleitoral promovido pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) são a ponta do iceberg que ensejou atos golpistas com pedidos de intervenção militar, acampamentos em frente a quartéis e a violência perpetrada às sedes dos Três Poderes em Brasília, no domingo (8/1). Mas há também um capítulo da história do Brasil que não foi resolvido e que se reflete nesse cenário: a ditadura civil-militar de 1964, de acordo com a organização Human Rights Watch (HRW), que elencou uma série de retrocessos em políticas do governo brasileiro emrelatóriopublicado nesta quinta-feira (12/1), englobando uma análise da situação de direitos humanos em 100 países em 2022.
“A impunidade para crimes gravíssimos gera enormes problemas para a sociedade, é um fardo enorme para a população”, declara o diretor da entidade, César Muñoz. “No Brasil, não teve justiça pelos abusos que teve na ditadura, não teve julgamentos, não teve um ato público sobre o que aconteceu na ditadura e isso é muito grave porque agora você tem pessoas criando narrativas alternativas do que aconteceu e isso alimenta as pessoas a dizerem que não teve ditadura.”
“A dificuldade hoje de a gente responsabilizar policiais por excessos cometidos tem tudo a ver com a nossa herança de impunidade relativa ao período da ditadura militar”, complementou.
A organização aponta que a Lei de Anistia protege abusadores e que deveria ser revista. “O Supremo Tribunal Federal, em contradição à decisão internacional, manteve essa lei válida”, declarou a diretora Maria Laura Canineu em referênciauma decisão do STF, de 2010, que sacramentou a lei de 1979que impede a punição de militares por crimes cometidos no período, embora a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu que ela viola as obrigações legais internacionais do Brasil.
“A dificuldade hoje de a gente responsabilizar policiais por excessos cometidos tem tudo a ver com a nossa herança de impunidade relativa ao período da ditadura militar”, complementou.
Entre os efeitos no campo da segurança pública, por exemplo, está o fato de que o Brasil tem um dos maiores índices de letalidade policial no mundo, com 6.145 mortes em 2021, das 84% das vítimas eram negras, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
“Para se ter uma comparação, são 1.000 pessoas mortas pela polícia nos Estados Unidos por anom um país que tem maior população que o Brasil”, declarou Muñoz. “Existe uma vinculação clara da impunidade em casos de violência e a corrupção na polícia porque a possibilidade de matar com a impunidade faz com que a polícia tenha um enorme poder.”
Por isso, os pesquisadores indicaram, dentre diversas recomendações para a gestão do presidente Lula (PT), para que seja elaborado um plano nacional de redução de letalidade policial,indicador que foi excluído por Bolsonaro em 2021, e também a garantia de independência e fortalecimento de instituições, como o Ministério Público que tem previsão de constitucional de controle externo das polícias.
“A gente tem certeza que as instituições devem funcionar em conjunto, mas existe uma responsabilidade fundamental de um ente, que é muitas vezes deixado de lado da conversa, que é o Ministério Público para o controle da atividade, seja na ação, quando mata não em legítima defesa e comete excessos, seja na omissão, como no caso dos atos antidemocráticos no Brasil no domingo”, afirma Maria Laura Canineu.
"SEM ANISTA"
Ela faz alusão ao papel das forças de segurança pública que realizaram a proteção dos edifícios, sendo que algunspoliciais militares do Distrito Federal foram flagrados abandonando barreira e comprando água de coco enquanto bolsonaristas invadiam o prédio do STF. Outra figura que ela destaca é a da procurador-geral da República, Augusto Aras, que foi escolhido por Bolsonaro fora da lista tríplice fornecida pelo Ministério Público Federal e que se comportou de maneira omissa às condutas do ex-presidente, que envolvem desde a condução da pandemia de Covid-19 à investigação dos protestos golpistas e o enfraquecimento ao combate à corrupção. Não à toa, durante a posse de Lula, o público fez um coro das palavras de ordem “sem anistia” durante o discurso.
Entre as recomendações da HRW, Canineu destacou que o novo governo terá de reforçar os pilares da democracia “para recuperar a credibilidade das pessoas e a realização dos direitos fundamentais”, que envolvem o respeito à liberdade de expressão e de imprensa, tendo em vista os ataques a jornalistas feitos por Bolsonaro; a promoção da transparência e fortalecimento dos poderes, como “eleger um procurador-geral da República que seja independente”; “fazer uma política externa que não seja carregada de vieses ideológicos”, já que Bolsonaro criticou governos da Venezuela e Cuba, mas apoiou líderes autoritários como o presidente da Rússia, Vladimir Putin, e o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orban; e promover os direitos humanos para todos, tendo em vista o recrudescimento de políticas voltadas ao meio ambiente, aos povos indígenas, às mulheres, às pessoas com deficiência, privadas de liberdade e comunidade LGBT+.
247 -Orelatório do Ministério da Defesa sobre as urnas eletrônicasnão surpreendeu ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), segundo Bela Megale, do jornalO Globo. O documento produzido pela pasta apontou suposto "risco à segurança" do processo eleitoral, mas não conseguiu comprovar a existência de fraude na eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para a Presidência.
Para ministros do Supremo, o relatório é um “capítulo vergonhoso na história das Forças Armadas”. "Um magistrado afirmou à coluna que o Ministério da Defesa 'se desmoraliza' com o parecer e 'o jogo de cena' que fez em torno da fiscalização das urnas", relata a jornalista.
"Uma ala do STF e TSE minimizou o potencial do documento de exaltar os ânimos dos apoiadores de Bolsonaro, já que o texto não aponta fraudes. Outra ala avalia que, mesmo assim, o material pode ser um 'pretexto' do presidente para inflamar seus apoiadores", diz a reportagem.
O presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, publicou nota na quarta-feira (9) após a divulgação do relatório. Ele afirmou que o TSE recebeu "com satisfação" o documento, que "não apontou a existência de nenhuma fraude ou inconsistência" no processo eleitoral.
Palhaçada
Bolsonaro convoca 'reunião de emergência' com generais para discutir relatório da Defesa e protestos
O correspondente do jornal francêsLe Mondeno Brasil, Bruno Meyerfeld, lança nesta segunda-feira (12), em Paris, o livro “Cauchemar brésilien” (Pesadelo brasileiro, em tradução livre) pela Editora Grasset. Baseada em reportagens pelo país, entrevistas e pesquisas sobre a história política do Brasil, a obra expõe a visão do jornalista sobre a personalidade e a trajetória do presidente brasileiro Jair Bolsonaro e as ações de seu governo.
“O Bolsonaro é uma figura diversa e muito complicada. Foi difícil atribuir um título só para esse personagem. Ele é um produto do interior do Brasil, do Rio de Janeiro, onde foi deputado durante muitos anos, e um produto da política de Brasília”, diz Meyerfeld sobre o processo que o levou a escolher o título da obra.
“Alguns dizem que ele é um doente, um louco, outros dizem que ele é um grande estrategista, que conseguiu criar uma configuração perfeita para chegar ao poder. Ao mesmo tempo, outros dizem que é um ditador, um fascista. Mas os que gostam dele dizem que ele é um democrata e que o STF o impede de governar”.
Finalmente o título do livro foi definido em uma conversa de bar no Rio, quando uma prima do jornalista expressou seu sentimento de que sob Bolsonaro os brasileiros vivem um verdadeiro pesadelo.
“Pesadelo é interessante porque é apavorante, parece surreal, mas fala muito sobre você e seu inconsciente. Acho isso uma característica muito forte do Bolsonaro e tão louco que pareça o bolsonarismo hoje, e especificamente o presidente, ele fala muito sobre a história do Brasil, a sociedade brasileira e suas raízes. Para mim, de certa forma, ele é um pesadelo”, diz o jornalista franco-brasileiro.
Sob o ponto de vista francês, a política do governo Bolsonaro para o meio ambiente é um dos pontos que justifica qualificar sua gestão de pesadelo. “Para os franceses, esse processo de destruição incrível que acontece na Amazônia é apavorante”, afirma. Mas, segundo Meyerfeld, para os brasileiros,as maiores críticas podem vir da gestão da Covid-19 e da crise econômica, agravada pela inflação alta, a taxa de desemprego e a fome que atinge 33 milhões de cidadãos.
No entanto, para o correspondente doLe Monde, que chegou ao Brasil em 2019, quando Bolsonaro assumiu o governo, o mais grave diz respeito à crise relacionada à democracia do país. “Os ataques do Bolsonaro, dos bolsonaristas e de seu governo contra as instituições e contra as urnas eleitorais e o sistema de votação brasileiro, que era um motivo de orgulho dos brasileiros até hoje, vão ter consequências no longo prazo”, avalia.
O grande número de armas em circulação no Brasil, estimado em 1 milhão, também são motivo de preocupação. “Essas armas vão ficar e poderão ter um impacto bastante grande nas relações sociais e no clima de violência que existe no Brasil”.
No texto, o autor alerta que o Brasil se transformou em uma espécie de “laboratório sobre os riscos do extremismo” e Bolsonaro é uma demonstração concreta do que o populismo de extrema direita é capaz de fazer, como a propagação da desconfiança na democracia e a utilização das redes sociais em um país que se encontra, segundo Bruno, em uma “bolha”. “Nessa bolha você pode fazer e falar o que quiser, exprimir qualquer tipo de opinião e está tudo bem. Tudo é muito extremo no Brasil porque às vezes você não tem o autocontrole, uma parte da sociedade brasileira se sente legítima para falar o que quiser”, afirma.
Bruno Meyerfeld refuta qualqueratribuição de Bolsonaro como “Trump Tropical”, em referência ao ex-presidente americano Donald Trump, ou de comparações com outros políticos populistas, como o húngaro Viktor Orban e a francesa Marine Le Pen, líder da extrema direita no país. “Isso é ignorar as especificidades do Brasil e do Bolsonaro. Ele é produto de uma história do Brasil moderno, da ditadura militar, da época da construção de Brasília também dos anos 1950 e 60, e de 30 anos de democracia. Ele tem características próprias”, garante.
França virou obstáculo
No livro de 361 páginas, Meyerfeld busca fornecer pistas de reflexão para os franceses que, na sua opinião, estão com uma certa dificuldade em acompanhar as mudanças que ocorreram no Brasil desde a ascensão de Jair Bolsonaro ao poder.
“Estou percebendo uma forma de incompreensão muito forte. O Brasil de alguns anos atrás era visto como um símbolo de desenvolvimento, progresso de uma democracia mais alegre e progressista, com um líder operário que conseguiu tirar milhões de pessoas da pobreza e de diminuir a taxa de desmatamento em 80%, era algo forte. Era uma democracia nova que estava dando certo. Hoje, com o Bolsonaro, que é visto aqui como o extremo do extremismo, um símbolo de desespero e retrocesso, as pessoas não entenderam muito bem a transição”, avalia.
Durante o processo da produção do livro, Bruno Meyerfeld tentou várias vezes entrevistar o presidente, mas sem sucesso. Segundo ele, Bolsonaro não tem uma relação difícil apenas com a imprensa brasileira, mas também com os jornalistas estrangeiros e particularmente franceses. O obstáculo é reflexo também deuma crise diplomática entre os dois países depois dos embates de Jair Bolsonaro com o francês Emmanuel Macron, um recorrente crítico das políticas ambientais em vigor no Brasil. “Há pessoas inclusive do primeiro escalão do governo [brasileiro] que têm bastante respeito, até são francófilas, mas tem uma certa dificuldade em demonstrar afinidade por causa dessa briga do presidente com Emmanuel Macron”, explica.
“Fui a Brasília várias vezes, falei com vários assessores e entendi muito rapidamente que Bolsonaro não iria dar uma entrevista a um jornalista francês”. O pior, segundo Bruno Meyerfeld, é que o presidente conseguiu expandir sua visão hostil sobre a França para diferentes regiões. “Muitos setores favoráveis ao presidente Bolsonaro têm uma antipatia e até uma certa raiva contra a França. Isso dificulta muito mais o meu trabalho”, explica.
O livro “Cauchemar Brésilien” é lançado às vésperas do 1° turno da eleição presidencial no Brasil, ocasião para os franceses entenderem melhor o clima político instaurado no país e que pode se tornar imprevisível. “Lula é favorito e tem grandes chances de ganhar, mas o Bolsonaro tem uma dinâmica muito forte e ninguém pode menosprezar as chances do atual presidente se reeleger. Oito meses atrás ele tinha perdido cerca de metade dos eleitores dele. Atualmente, a perda é entre 20% e 25% . Hoje ninguém ganha com 70% no segundo turno e a sociedade vai continuar bastante dividida no futuro, com certeza”, opina.
'Réquiem por Tatiana' é o primeiro livro de uma trilogia sobre sua vida
Presa política durante o regime militar, Sylvia de Montarroyos, lançou em 2013 no Museu do Estado, no Recife, o livro de memórias "Réquiem por Tatiana". Em 1964, aos 17 anos, a autora foi presa por pertencer a um movimento de resistência. Montarroyos conseguiu escapar, mas foi recapturada e torturada por não denunciar seus companheiros.
O drama vivido pela ativista é relatado nas mais de 400 páginas do livro, primeiro volume da "Trilogia da América Latina". Os próximos são "Tempestade em Tegucigalpa" e "Vagas Estrelas da Ursa Maior". Segundo Sylvia, Réquiem relata suas memórias desde 2 de novembro de 1964, quando foi presa, até o momento que saiu do Brasil, quase dois anos depois.
"Durante este tempo, fui brutalmente torturada em vários quartéis de Pernambuco e cheguei a ser internada no Hospital Psiquiátrico Ulysses Pernambucano, que na época era Hospital da Tamarineira, onde fiquei por cerca de 10 meses. Cheguei lá pesando 23 quilos. O tratamento da época era à base de choques elétricos e drogas, mas mesmo assim consegui me recuperar um pouco. Então fui para a casa dos meus pais, mas fiquei só uma semana lá, pois os militares expediram mais um mandato de prisão. Fugi do Recife, passei um tempo no Rio de Janeiro e em São Paulo e, depois, fui para o Uruguai", relatou Sylvia de Montarroyos.
A autora ainda disse que escreve praticamente desde os 3 anos, pois contava histórias para sua mãe e ela anotava tudo, até que Sylvia aprendeu a escrever por conta própria. Como tem uma relação de amizade com as pessoas da Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder, aceitou a proposta de escrever uma narrativa sobre o período do regime. O título, "Réquiem por Tatiana", foi escolhido porque esse era o codinome que ela usava enquanto era torturada.
Sylvia de Montarroyos atualmente mora em Portugal, mas já passou pela França, Bruxelas, Uruguai, Argentina, México e Iraque, onde atuou como psicóloga voluntária. No Recife, a militante participou de uma sessão pública na Associação dos Docentes da Universidade Federal de Pernambuco, no Campus da UFPE, onde rememorou sua história de prisioneira pelos quartéis do Recife.
Internação psiquiátrica de presos políticos ocorreu em pelo menos nove estados do Brasil. Imagem: Yasmin Ayumi/UOL
por Amanda Rossi /UOL
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Ali estava a perigosa "terrorista" pernambucana de quem os jornais falavam em fins de 1964. Desacordada, recebia soro na ala feminina do Manicômio da Tamarineira, no Recife. Os "olhos diabolicamente ingênuos", como descreveu o delegado que a prendera, estavam fechados. Media 1,55 m e pesava menos de 30 kg. Os cabelos longos tinham sido raspados em um quartel do Exército. No braço esquerdo, uma das queimaduras de cigarro que marcavam sua pele tinha infeccionado e cheirava a carne podre.
Nome, Silvia Montarroyos. Codinome, Tatiana. Idade: "21 anos", segundo sua ficha prisional. Já a família alegava que tinha 17 anos —a data de nascimento teria sido alterada ao ingressar na escola. Acusação: crime contra a segurança nacional. Atividades: participação em um partido trotskista, distribuição de um jornal com conteúdo "subversivo", alfabetização de lavradores.
A militância durou pouco. Em novembro de 1964, sete meses depois do golpe militar, Silvia foi presa. Em dezembro, após um mês de tortura, os militares a mandaram para o manicômio. Passou os três primeiros dias desacordada. Ao recobrar os sentidos, foi tratada com eletroconvulsoterapia —eletrochoque.
Ivan Seixas, um dos presos políticos enviado ao manicômio, relata como foi a captura junto com o pai e torturas sofridas durante seis anos. "Fui mantido desaparecido junto com pessoas que desapareceram para sempre (...) Fiquei numa situação que era para me enlouquecer", relatou.
Um levantamento inédito do UOL descobriu 24 casos de presos políticos internados pela ditadura militar em instituições psiquiátricas, em nove unidades da federação. Pelo menos 22 foram antes submetidos a tortura em prisões comuns. As internações foram determinadas pela Justiça Militar ou por autoridades que tinham os presos políticos sob custódia.
Leia neste link documentos da internação de presos políticos durante a ditadura militar.
Informado sobre o levantamento, o Ministério da Defesa afirmou, por nota, que "os fatos relativos ao período compreendido entre os anos 1964 a 1973 foram abrangidos pela Lei de Anistia, que alcançou, de forma ampla, geral e irrestrita, atos de cidadãos brasileiros". O Ministério da Defesa responde pelas Forças Armadas.
Número de casos pode ser maior que o identificado pelo UOL. Imagem: Yasmin Ayumi/UOL
Tortura que leva à loucura
Algumas formas de tortura empregadas pela ditadura militar tinham como objetivo "provocar danos sensoriais, com consequências na esfera psíquica, tais como alucinações e confusão mental", diz o relatório da Comissão Nacional da Verdade —criada para investigar violações de direitos humanos no regime militar.
Alucinações e confusão mental, assim como depressão profunda ou ideias suicidas, são quadros relatados na maioria dos 24 casos. Há, inclusive, laudos psiquiátricos —elaborados por peritos indicados pela própria Justiça Militar— que sugerem que esses sintomas psíquicos foram desencadeados pela experiência na prisão.
"A tortura é tão desagregadora que a pessoa nem sempre vai encontrar recursos psíquicos para se defender, por isso enlouquece", diz a psicanalista Maria Cristina Ocariz, uma das coordenadoras da Clínica do Testemunho —projeto de atenção psicológica para vítimas de violência do Estado durante a ditadura.
Também há casos de presos políticos internados sem nenhum sintoma de ordem psíquica. Um deles é Ivan Seixas, colocado em uma prisão psiquiátrica no interior de São Paulo, sem indicação médica. Tinha 19 anos. Em carta de denúncia, sua mãe escreveu que os próprios peritos do Estado tinham atestado "tratar-se de rapaz normal, equilibrado, sem nenhum distúrbio psicótico".
Para identificar os casos, o UOL analisou documentos produzidos durante a ditadura —como processos da Justiça Militar— e informações levantadas por comissões da verdade. Uma das principais fontes de pesquisa foi a biblioteca digital do Brasil Nunca Mais. Também foram feitas entrevistas com presos políticos e seus familiares. O número de casos pode ser maior, já que muitos documentos da época foram destruídos e outros não estão acessíveis.
Dentre os 24 casos, estão 21 homens e três mulheres, internados entre 1964 e meados de 1970. A maior parte das internações ocorreu em prisões psiquiátricas —naquela época, chamadas de manicômios judiciários. Outras se deram em alas psiquiátricas de hospitais, principalmente hospitais militares, e quase sempre sob vigilância de forças de segurança.
Não foram incluídos no levantamento os casos de internação psiquiátrica depois da prisão, sem participação do Estado.
"Nós nunca soubemos disso. Só sabíamos de casos isolados. E, de repente, são 24 casos, e você tem uma nova dimensão de algo que se achava que não tinha acontecido no Brasil", diz Seixas, que coordenou a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo.
"Jamais houve uma reconstituição ampla desses eventos. [O levantamento do UOL] é um complemento ao relatório da Comissão da Verdade, que não teve a oportunidade de tratar especificamente desses casos", diz Paulo Sérgio Pinheiro, um dos autores do relatório.
"É um capítulo de mais um crime praticado pela ditadura de 64: além de desaparecer com pessoas, internou outras no manicômio. É muito importante reconstituir esses fatos, porque esses espaços também eram lugar de tortura", continua.
Silvia Montarroyos foi presa, torturada, e depois internada em manicômio no Recife. Imagem: Yasmin Ayumi/UOL
'Fábrica de loucos'
Na prisão, Silvia Montarroyos sofreu diferentes tipos de tortura. "Eram bofetões, queimaduras de cigarro... Me colocaram em uma jaula de uns 80 cm quadrados. Eu tinha que agachar e abraçar as pernas para dormir, mas jogavam balde de água gelada para me acordar. Eu só recebia meio pão seco e meio copo de água", lembra Silvia Montarroyos, hoje uma senhora com mais de 70 anos.
Privação de sono e de alimento, isolamento e incomunicabilidade são algumas das torturas psíquicas que, segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade, podem desencadear alucinações.
"Mas eu fiquei calada. O ódio que eles tinham de mim era porque eu não falava nada", diz Silvia, com um sotaque misto de Pernambuco e do país europeu onde vive desde o exílio durante a ditadura —e cujo nome pediu que não fosse citado, para preservar sua privacidade. Um ofício militar de dezembro de 1964 confirma que Silvia "vinha recusando-se a prestar qualquer declaração, desde a data de sua prisão, e ultimamente apresentava sintomas de alienação mental".
"Eu estive além da dor. Daí para a loucura foi a coisa mais natural do mundo. Tive alucinações visuais e auditivas", diz a ex-presa política.
Ao chegar no Manicômio da Tamarineira, Silvia estava inconsciente e muito machucada. "Você chegou aqui quase morta", disse um dos médicos que trataram dela. O profissional acreditava que Silvia tinha sido mandada para o manicômio para morrer, de modo que a culpa da morte não fosse atribuída à tortura.
Como tratamento, Silvia não recebeu apenas eletrochoques. Também foi tratada com insulinoterapia, que consistia na aplicação de doses excessivas de insulina para provocar convulsões e até levar ao coma. "Dos choques elétricos eu não lembro, mas está no laudo médico. Já a insulina eu lembro ligeiramente. Precisavam me amarrar na cama, senão eu caía, de tanto que me debatia com as convulsões. Eram formas de tortura", relata.
A insulinoterapia foi abandonada pela psiquiatria há décadas. Já o eletrochoque é usado de forma muito mais limitada e controlada. A própria internação psiquiátrica foi colocada em xeque pela luta antimanicomial, que pediu o fim dos manicômios, a partir do final dos anos 1970. "A forma de tratamento utilizada nos manicômios era medieval. Sem dúvida, agravava o quadro de quem ficou louco pela tortura", diz a psicanalista Maria Cristina Ocariz.
"A ditadura foi uma fábrica de mortos e uma fábrica de loucos. Como eu, muita gente enlouqueceu na tortura. Muitos outros precisaram [de suporte psiquiátrico] depois da prisão", diz Silvia.
Manicômios funcionavam como prisões e adotavam tratamentos hoje rechaçados pela medicina. Imagem: Yasmin Ayumi/UOL
Perigo para a sociedade
"Entre as torturas que me fizeram, a pior foi... [silêncio] Está me vindo um branco agora. Acho que é porque eu estou mexendo em um assunto que estava um bocado enterrado, sabe? Mas é necessário contar, para que fique para a posteridade o que aconteceu, é um caso histórico", diz Silvia, engasgando para relatar uma lembrança que já tem 56 anos.
É final de novembro de 1964. Em uma sala escura de um quartel no Recife, a militante é colocada frente a frente com Pedro Makovski. Uruguaio de 24 anos, Makovski emigrou para o Nordeste para chefiar o grupo político que Silvia integrava, o Port (Partido Operário Revolucionário Trotskista).
Os dois haviam sido presos juntos, de mãos dadas, quando tentavam fugir da polícia. Estavam noivos. "A luta e eu eram toda a vida dele. E ele era leal a nós duas e só se dedicava a nós duas."
Desde a prisão, no início daquele mês, os noivos não se viam. Neste reencontro promovido pela ditadura, Silvia foi estuprada, e Makovski foi obrigado a assistir. "Eu estava completamente ensanguentada... ele viu que eu ia morrer se continuassem... foi aí que ele falou [aceitou depor]."
Documentos militares enviados para o Arquivo Nacional confirmam que Makovski foi reinquirido em 23 de novembro de 1964. E que, desta vez, deu um longo depoimento —são nove páginas de testemunho.
Ao ser julgado pela Justiça Militar, anos depois, Makovski denunciou que "um dos meios conseguidos para forçá-lo a assinar os depoimentos foram torturas físicas impostas a sua noiva". E que, "em consequência das torturas sofridas, Silvia foi internada no Manicômio da Tamarineira em estado de coma" e que "ainda hoje se encontra mentalmente abalada".
"As pessoas [torturadores] que fizeram isso com Silvia constituem um perigo para a sociedade", disse o jovem uruguaio.
Diante do relato de Makovski, o procurador militar debochou, dizendo que o preso político, "por um processo de transferência explicado por Freud, quer transmitir a outrem sua própria periculosidade". Mas sua "periculosidade" era apenas de ideias. O julgamento de Makovski não revelou nada além de crimes de pensamento. Já o que viu a noiva sofrer foi extremamente material.
"O estupro foi o que mais me fez enlouquecer. Mas foi o conjunto das torturas, não só a ignomínia da violência sexual, que me levou à loucura", escreveu Silvia no livro de memórias Réquiem por Tatiana.
Internações ocorreram de 1964 até meados da década de 1970. Imagem: Yasmin Ayumi/UOL
Soro da verdade
Em agosto de 1964, poucos meses antes de Silvia ser internada no Manicômio da Tamarineira, o médico que dirigia a instituição enviou duas cartas para o tenente-coronel do Exército Hélio Ibiapina. Por ordem do militar, e sem mandado judicial, dois outros presos políticos tinham sido enviados ao manicômio. Era o início da ditadura.
O texto das duas cartas era idêntico, só mudava o nome do preso: "Acontece que a Lei que rege a Assistência a Psicopatas no Brasil, ao falar de Manicômios Judiciários diz: 'Os internamentos serão feitos pelo Juiz'. A palavra Juiz, na Lei, compreende os Magistrados e os órgãos auxiliares da Justiça. Diante da Lei, está o paciente acima internado ilegalmente neste serviço. Saudações cordiais".
Eram cartas ousadas, quase uma insubordinação. O tenente-coronel Ibiapina era amigo de Castello Branco, primeiro ditador do regime militar e um dos articuladores do golpe. Além disso, Ibiapina não escondia que ocorriam torturas em Pernambuco.
Certa vez, ao se queixar das intervenções de Dom Hélder Câmara em favor dos presos políticos, Ibiapina afirmou: "Nunca neguei que as torturas existissem. Elas existem e são o preço que nós, os velhos do Exército, pagamos aos jovens. Caso tivessem os oficiais jovens empolgado o poder, os senhores estariam hoje reclamando não de torturas mas de fuzilamentos. Nós torturamos para não fuzilar". A declaração veio a público em 1966, no livro Torturas e Torturados, de Marcio Moreira Alves.
A mensagem do diretor do manicômio, o médico Ruy do Rego Barros, para o tenente-coronel Ibiapina era clara: a internação de presos políticos, sem ordem judicial, por simples mando militar, era ilegal.
Ainda assim, os dois presos políticos citados nas cartas foram mantidos na Tamarineira. Um deles era Edival Freitas, que trazia diversas marcas de injeção pelo corpo. Sobre ele, a equipe médica do manicômio avaliou que seu quadro "foi decorrente das torturas e, provavelmente, doses excessivas do soro da verdade" —como era chamado o pentotal, um anestésico usado na tentativa de fazer os presos políticos falarem.
Aos psiquiatras, Freitas disse que "enlouqueceu quando estava preso". O diagnóstico do laudo de sanidade confirmou: "acometido de uma crise de psicose maníaco-depressiva, com predominância de depressão, consequência da prisão".
O segundo preso era Antônio Albuquerque, um lavrador acusado pelos militares de participar de movimentos camponeses de oposição à ditadura. Sobre ele, há apenas registros de que tremia e berrava ao ver alguém de farda no Manicômio da Tamarineira.
Roberto Motta foi internado em Santa Catarina; Ivan Seixas, em São Paulo. Imagem: Yasmin Ayumi/UOL
Porões da loucura
As primeiras internações de presos políticos ocorreram em Pernambuco e na Paraíba, em 1964. Nos anos seguintes, os casos se espalharam pelo país: São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Bahia, Distrito Federal, Ceará.
Em São Paulo, em 1971, presos políticos mantidos na rua Tutóia, no Paraíso (zona sul da cidade), puderam acompanhar a deterioração do estado mental de Antonio Carlos Melo, estudante de Geologia na USP (Universidade de São Paulo). No local funcionava o DOI-Codi —sucessor da Oban (Operação Bandeirante), criada para centralizar a investigação de organizações de esquerda. Hoje, é uma delegacia.
"Eu sou Tadeu, Tadeu eu sou, sou comandante revolucionário. Eu sou Tadeu, Tadeu eu sou, sou comandante revolucionário. Vanda! Vanda! VAR-Palmares!", cantarolava Melinho, como era conhecido, enquanto andava de um lado para o outro da cela.
Tadeu era seu codinome. Vanda, o codinome de Dilma Rousseff, que viria a ser eleita presidente da República em 2010. Ambos integraram a VAR-Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária Palmares), uma organização política de esquerda que pretendia derrubar o regime militar, inclusive por meio de ações armadas.
O estudante foi preso em 1970, mesmo ano que Dilma. "Melinho foi barbaramente torturado, porque queriam que falasse sobre algumas pessoas. Uma delas era a Vanda [Dilma]. Mas ele não falou", diz Ivan Seixas, que também ficou preso no DOI-Codi em 1971, antes de ser mandado para a prisão psiquiátrica.
"O Melinho foi enlouquecido na tortura. Eu fiquei em uma cela do lado da dele. Ele ficava cantando essa música sobre Tadeu e Vanda, depois entrava debaixo do cobertor e falava sozinho", lembra o colega de prisão.
Em 1972, Melinho foi mandado para o Manicômio Judiciário de Franco da Rocha, região metropolitana de São Paulo. A Justiça Militar o considerou inimputável —ou seja, incapaz de responder pelos próprios atos— e o condenou a dois anos de internação compulsória. Mas só foi liberado quatro anos depois, em 1976. Quando se viu livre, Melinho foi ajudado por antigos colegas da Geologia da USP, mas nunca se recuperou totalmente.
"Que monstruosidade fizeram com ele", disse Dilma a Ivan Seixas, em um encontro em Brasília quando a ex-presa política era presidente.
Ao sair do manicômio, Melinho foi questionado por amigos se havia outros presos políticos em Franco da Rocha. Respondeu que não tinha como lembrar. Estava sempre sob efeito de medicamentos psiquiátricos muito fortes, que tiravam a consciência da realidade.
Durante a ditadura militar, uma das drogas usadas no Manicômio de Franco da Rocha foi a escopolamina. Sob altas doses, a substância pode produzir sensação de morte iminente. Médicos nazistas a combinaram com morfina para praticar eutanásia. Já em Franco da Rocha, a droga foi usada como forma de "disciplina e não terapêutica", cita um ofício assinado pelo diretor do manicômio em 1968.
Também no início dos anos 1970 passou pelo Manicômio de Franco da Rocha o jornalista João Adolfo Castro da Costa Pinto, acusado de fazer parte da Ação Libertadora Nacional (ALN) —o que ele negava. Em seu laudo psiquiátrico, Costa Pinto disse que "sua doença iniciou-se um ano após ser preso".
"Eu apanhei muito, me deram choque na cabeça, nos testículos e acho até que estou impotente. Aí me disseram que eu fiquei muito nervoso, tinha ocasião que eu saía de mim, mas não sei explicar. Eu sei que não consigo me distrair, não tenho fome, não durmo, só tenho vontade de ficar deitado", relatou Costa Pinto ao psiquiatra do manicômio.
Em conclusão, o médico assinalou que o jornalista passava por "um quadro mental de intensa apatia e depressão, com ideias delirantes de ruína".
Solange Gomes, Aparecidão Galdino e A.S. foram internados a mando da ditadura. Imagem: Yasmin Ayumi/UOL
Queima de arquivo
No início dos anos 1970, enquanto Melinho e Costa Pinto estavam no Manicômio de Franco da Rocha, a pernambucana Silvia Montarroyos foi considerada foragida.
No primeiro semestre de 1965, depois de quase seis meses de internação, sua defesa conseguiu um habeas corpus para tirá-la do manicômio no Recife. Livre, mas com medo de ser presa ou internada novamente, Silvia decidiu fugir de Pernambuco. O medo tinha razão: logo depois, a Justiça Militar voltou a decretar sua prisão preventiva.
O risco de ser identificada durante a fuga era grande. Cartazes com a fotografia de Silvia tirada no dia da prisão ainda estavam estampados por Recife. O rosto parecia de menina, mas o texto dizia se tratar de uma perigosa subversiva.
Católica devota, a família Montarroyos conseguiu articular uma fuga com benção da igreja: Silvia se escondeu debaixo de um andor de Nossa Senhora do Carmo, que foi transportado por um jipe dirigido por dois frades franciscanos, do Recife a João Pessoa.
Da Paraíba, Silvia foi para o Rio de Janeiro. Depois, fugiu para outro país da América Latina. Já estava fora do país quando, em 1966, a Justiça Militar a condenou a oito anos de prisão por crimes contra a segurança nacional. Em 1970, fugiu de vez para a Europa, onde se exilou. Sua pena foi extinta com a Lei da Anistia, em 1979.
No exterior, Silvia estudou, se casou, teve filhos e netos. Em 2001, voltou ao Recife e bateu às portas do Manicômio da Tamareira, já renomeado Hospital Psiquiátrico Ulysses Pernambucano. Queria ver sua ficha médica. Mas o único registro de sua passagem pelo manicômio era de que dera entrada em 1964. Nada mais. Os documentos completos tinham sido destruídos.
Segundo a instituição, não havia "condições de fornecer melhores dados por causa da enchente ocorrida em 1975 que destruiu grande parte de nosso arquivo". Já segundo Silvia, funcionários do antigo manicômio confidenciaram que só os documentos dos presos políticos foram destruídos.
"Mesmo assim, não podem negar o que aconteceu, porque há o meu depoimento e o de diversas pessoas que me viram lá."
Um deles é o do psiquiatra Othon Coelho Bastos Filho, que trabalhou no Manicômio da Tamarineira. O médico relatou para a Comissão da Verdade de Pernambuco, em 2013, que recebeu na instituição uma estudante universitária "em estado deplorável", levada pela rádio patrulha (antiga designação para as rondas ostensivas da Polícia Militar), em 1964.
"Ela chegou... aquela coisa humana", disse. "Essa moça, eu me recordo bem, chamava-se Silvia".
"Apesar do estado de perturbação da consciência, ela tinha momentos de plena lucidez. Ela conseguiu dizer, por exemplo, 'eu fui seviciada sexualmente'. O testemunho dela, para nós, tinha fidedignidade", declarou o médico, que morreu em 2016.
Outra testemunha, o uruguaio Pedro Makovski, noivo de Silvia à época, morreu em 2006. Depois que saíram da prisão, os dois voltaram a se ver uma única vez, em 1986, quando visitaram o Recife com as respectivas famílias.
Já era democracia no Brasil outra vez. "Quando eu perguntei sobre esse episódio [o estupro], ele ficou com os olhos cheios de lágrimas, segurou minha mão e falou: petiza [pequena, em espanhol], há coisas que é melhor esquecer".
"Eu só me lembro de cenas deste dia [do estupro]. Cheguei até a fazer um tratamento de regressão de memória. Mas, com o tempo, eu entendi que, se eu não lembro, é porque minhas forças ainda não são capazes de suportar. A natureza é sábia: sepultou a dor no subterrâneo da memória", diz Silvia, a quem o Brasil já chamou de terrorista por ter ideias políticas e distribuir jornais.
A International Publishers lançou recentemente “A Mais Longa Duração da Juventude”, um romance recente do escritor pernambucano Urariano Mota, com tradução de Peter Lownds. Em uma conversa com o site americano People’s World Peter falou sobre como e por que ele se envolveu nesse projeto
Eric Gordon: Vamos começar com uma pergunta direta. Como você se tornou um tradutor, Peter?
Peter Lownds:Eu cresci em uma família bilíngue. Meus pais falavam alemão quando eles não queriam que eu entendesse. Isso arrepiava meus ouvidos. Na escola, eu comecei francês na quinta série e latim na sexta, e mantive as duas línguas no ensino médio. Eu fui para Yale e gastei muito tempo no que então era chamado de “casas de arte” lá, e em Manhattan assistindo filmes estrangeiros com legenda. Quando eu tinha dezessete anos, eu vi o filme de Marcel Camus, Orfeu Negro, pela primeira vez. Ele veio a desempenhar um papel importante na minha vida e eu vou usá-lo para ilustrar um dos princípios da tradução: que tudo é uma questão de perspectiva.
Eric: Totalmente. Eu mesmo estou envolvido em mais de um projeto de tradução, então eu acho que sei o que você quer dizer. Mas a experiência de cada um é diferente. Vá em frente.
Peter:Para Sacha Gordine, o produtor do filme, Orfeu Negro era uma adaptação francesa de uma peça do poeta brasileiro Vinícius de Moraes: Orfeu da Conceição, “uma tragédia carioca em três atos,” que passou uma semana no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1956.
Eric: Carioca significa do Rio de Janeiro, certo?
Peter:Correto. Bem, Vinícius recrutou dois talentosos compatriotas para produzir a importantíssima música para a peça: o compositor Antônio Carlos Jobim e Luís Bonfá, um virtuoso guitarrista e compositor estabelecido, que sentava nas sombras do palco enquanto o ator interpretando Orfeu cantava. Vinícius tinha servido como vice-cônsul brasileiro em Paris, antes de pegar uma licença para voltar ao Brasil e trabalhar na peça. Ele detestava a versão simplificada do filme de seu mito transposto, que foi roteirizada pelo diretor Camus e Jacques Viot, pelo qual Gordine exigiu que o trio de brasileiros escrevesse uma nova partitura para que ele pudesse ter uma parte dos rendimentos, que eram substanciais.
Bonfá e Jobim estavam gratos pelo filme, que trouxe atenção para sua música de uma enorme audiência internacional. Mas para os diretores brasileiros do cinema novo, homens como Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra e Carlos Diegues, que tinham que mendigar estoque de filme branco e preto para fazer suas versões neorrealistas da vida da favela, um romance tecnicolor filmado no histórico morro da Babilônia e nas ruas do Rio durante o carnaval era equivalente a uma intervenção colonial, um tapa na cara do Primeiro Mundo.
Da perspectiva de Abdias do Nascimento, que interpretou Aristeu, o amante ciumento de Eurídice, e que, em 1944, fundou o Teatro Experimental Negro, as bases de treinamento artístico para nove membros do elenco totalmente negro da peça, a execução truncada da peça de Vinícius foi uma decepção. Abdias tinha quebrado a linha de cor no Teatro Municipal, em 1945, dirigindo uma produção do Teatro Experimental Negro da peça de Eugene O’Neill, O Imperador Jones. Antes disso, as únicas pessoas negras a pôr os pés no palco estavam lá para limpa-lo. Vinícius financiou a produção de seu próprio bolso e os atores, cantores e dançarinos que Abdias cultivou no Teatro Experimental Negro não eram pagos em semanas. Eles se queixaram para seu mentor e ele escreveu uma carta de advertência ao dramaturgo. Isso terminou no que pode ter sido uma colaboração histórica.
Eric: E tudo isso tem algo a ver com a sua tradução de A Mais Longa Duração da Juventude?
Peter:Abdias foi meu mentor. No inverno de 1969, ele entrou em um café do campus com sua esposa. Eles estavam falando português brasileiro. Eu não tinha falado a língua desde que eu retornei de Recife seis meses antes, então eu me apresentei.
Você fala português, meu filho?
Falo, sim, senhor.
Você é uma dádiva de Deus!
Abdias explicou que ele tinha que se dirigir a Escola de Teatro de Yale no dia seguinte e falava apenas poucas palavras de inglês. Eu interpretaria? É claro! Na tarde seguinte, nós ficamos lado a lado na frente do corpo docente da Escola de Teatro reunido e estudantes. Abdias contou a maravilhosa história da fundação do Teatro Experimental Negro. Ele fez as circunstâncias tão vívidas, a história tão atraente, que eu senti que eu era uma das pessoas de pé em fila no calor tropical para fazer uma audição para o empreendimento teatral revolucionário, que ele lançou na idade de 30 com um anúncio de procura nos jornais do Rio, que de uma vez por todas chamaria a atenção para a invisibilidade artística da maioria étnica do País, os descendentes de milhões de africanos vendidos para a escravidão.
Abdias era feroz e persuasivo. Ele tinha passado um tempo na prisão por suas crenças e fugiu da ditadura que Urariano Mota escreve em “A Mais Longa Duração da Juventude”. Uma das coisas que me atraem ao romance é que o autor fala sobre suas raízes, a perda de sua mãe quando ele tinha cinco anos, sua bebedeira, sua ascendência mestiça, seu apego a um trabalho humilhante em consideração aos camaradas miseráveis que dependiam dele por comida e abrigo. Urariano, como muitas pessoas do Nordeste do Brasil, é uma fascinante mistura de dureza e ternura. Isso permeia sua prosa. A fome, os tempos difíceis, mas, acima de tudo, a aceitação das peculiaridades e paixões das outras pessoas como a expressão de sua humanidade, particularmente sob pressão. A camaradagem foi além das políticas de fidelidade partidária, em um Pernambuco dilacerado durante os anos de guerra civil não declarada, mas real, e luta clandestina sobre que Urariano escreve. Em nenhum lugar isso era mais evidente do que nos mocambos, as favelas ao redor de Recife e Olinda. Essa foi minha introdução a violência da vida cotidiana no Brasil.
Eric: Espere um segundo. Se eu entendo sua linha do tempo corretamente, eu mesmo estava no Brasil durante parte daquele tempo. Era o verão de 1967 – inverno no hemisfério sul, é claro. Eu passei a maior parte do meu tempo no Arquivo Nacional, no Rio, fazendo pesquisa para a minha tese de mestrado. Eu estava consciente da ditadura militar na época e segui o conselho do meu orientador ao pé da letra: mantive a minha cabeça baixa o tempo todo. Mas, o que o levou ao Brasil?
Peter:Isso é tão estranho. Nós não nos conhecemos em Yale, e nós não nos encontramos no Brasil, mas 50 anos depois nós nos achamos em Los Angeles!
De qualquer forma, eu estava no Corpo da Paz da Saúde e Voluntário de Desenvolvimento Comunitário, em Recife e Olinda, no estado de Pernambuco, de 1966 a 1968. Como você se lembra, o envolvimento dos EUA no Vietnã estava aumentando quando nós saímos da faculdade, e por um tempo o Corpo da Paz era um adiamento do serviço militar. Meu treinamento era nos Estados Unidos, em Chicago. A única coisa boa nisso era o programa de línguas. Nós tínhamos cinco falantes nativos, três homens e duas mulheres, todos de diferentes partes do País com dialetos regionais distintos, e dois Voluntários do Corpo da Paz Retornados, todos ótimos. Todo o resto era um encobrimento. Naquele tempo inimaginável antes da internet e dos celulares, a informação era mais difícil para passar por aqui e os graduados da faculdade mantinham o que hoje seria considerado sua virgindade na mídia.
O que arrancou as escamas dos meus olhos foi uma visita de três representantes, todos negros, da perto Fundação de Áreas Industriais, onde o organizador comunitário Saul Alinsky estava ajudando comunidades marginais a exigir que senhores de terra, políticos e líderes empresariais reconhecessem seu poder social, político e econômico. Eles queriam saber o que nós tínhamos aprendido sobre o Brasil. Como nós não tínhamos ideia de quem eles eram, ou porque eles estavam lá, nós sentamos lá, rígidos e mudos.
“Não muito, a parte de algumas frases úteis em português,” eu me voluntariei depois do que pareceu um longo minuto. Era o meu 22º aniversário e silêncios prolongados me deixavam nervoso. O líder, que me olhava como um Pantera Negra à paisana, franziu o cenho: “Nesse caso, você pode não saber que o Brasil contém mais pessoas de descendência africana do que qualquer país, exceto a Nigéria. Ou que João Goulart, o presidente eleito popularmente, foi derrubado em um golpe militar apoiado pela CIA, dois anos atrás, e que Castello Branco, um general do exército cujo nome se traduz por “castelo branco”, está agora no comando.
As pessoas que comprarem “A Mais Longa Duração da Juventude” vão ter uma noção do feliz acaso de nossa colaboração em seu ensaio preliminar, com sua capacidade como meu editor da People’s World, e como o editor de cópia para esse livro, e também do ensaio de José Carlos Ruy e o meu prefácio. O autor, Urariano Mota, me mandou um PDF de seu romance em um ponto quando o abrigo para COVID-19 entrou em vigor em todo o mundo e as vacinas ainda não estavam disponíveis. Ele tinha quase 300 páginas e eu pensei comigo , essa vai ser uma boa maneira de passar as horas.
Mas havia uma outra, ainda mais forte atração – o mundo que ele estava descrevendo era um que eu lembrava e com o qual me importava. Meu tour de dever pelo Corpo da Paz em Recife e Olinda terminou em 1968, e eu voltei para visitar em 1969, ano em que o romance começa, com o encontro de dois amigos em frente a um marco do Recife que eu tinha apadrinhado, o Cinema São Luís, especialmente às 8 da manhã nos sábados, quando eram mostrados filmes da Nova Onda francesa e italianos. Como se viu, Urariano também. Essa foi apenas uma de uma série de circunstâncias que me atraíram para “A Mais Longa Duração da Juventude”. Outras foram o fato de que o autor era um homem mais velho olhando para trás em sua vida, um poeta e fã de jazz, que tinha tido uma infância traumática. Todas essas coisas nós compartilhávamos, apesar do fato que nós nunca tínhamos nos conhecido, ou ouvido um do outro. Você vê o que eu quero dizer por feliz acaso.
Eric: Esse é o primeiro romance que você traduziu?
Peter: Não, o segundo. O primeiro, Animal Tropical (2002), era de um autor cubano, Pedro Juan Gutiérrez. Isso aconteceu através de um interessante conjunto de circunstâncias que eu não vou entrar aqui.
Mas havia mágica nisso. O que os dois livros tinham em comum era que eu tive que trabalhar com um escritor vivo, alguém com quem eu pudesse me relacionar e, no caso de Pedro Juan, encontrar. Eu ainda não me encontrei com Urariano. Nós nunca nos falamos pelo telefone, ou mesmo pelo Skype. Nós permanecemos em contato por e-mail. Eu envio para ele os capítulos do meu trabalho em progresso e ele pareceu geralmente satisfeito com eles. Um trabalho de um tradutor varia de livro para livro. Com “A Mais Longa Duração da Juventude”, eu realmente aprendi muito de você, Eric, como você editou várias provas do livro. O fato de que você tinha editado minhas traduções de despachos da Amazônia para a People’s World, e que nós ambos falamos, lemos e traduzimos do português para o inglês foi tudo uma grande vantagem. Eu estou feliz que essa não foi a minha primeira tradução literária. Embora eu seja mais fluente em português do que em espanhol, Animal Tropical foi um livro mais fácil de traduzir. Ambos eram narrativas em primeira pessoa, com uma quantia justa de diálogos. Pegar a “voz” e o ponto de vista do narrador é essencial em tais casos. Como é achar o jargão americano apropriado para o modo que os personagens brasileiros e/ou cubanos falam e pensam. Com “A Mais Longa Duração da Juventude”, eu anotei certas referências no texto para os leitores que não fossem familiarizados com a cultura e a história brasileiras sejam capazes de consulta-las quando eles leem.
Eric: Eu fiquei feliz de ajudar você e a International Publishers nesse livro. Aliás, para deixar claro, eu também peço por ajuda com o meu trabalho. É sempre bom obter outros pares de olhos em seu trabalho para fazê-lo mais forte.
Peter:Você sabe, o Nordeste do Brasil, como a América do Sul ainda era principalmente agrícola quando eu cheguei. Plantações de cana de açúcar e moinhos proliferavam, e, após a crise dos mísseis, a administração Kennedy temia que a região se tornasse uma outra Cuba. O presidente Goulart era um admirador de Fidel Castro, e tinha tido tentativas sustentadas de sindicalizar os cortadores de cana e os trabalhadores dos moinhos de açúcar em Pernambuco. De fato, o presidente Kennedy tinha marcado para voar para Recife uma semana depois que ele foi assassinado. No final dos anos de 1960, 70% das pessoas da região eram analfabetas. Se eles não podiam assinar seus nomes, eles não podiam votar. Goulart tinha pressionado Paulo Freire em serviço e estava lançando uma campanha nacional de alfabetização baseada nos experimentos linguísticos de Freire com camponeses, pescadores e trabalhadores da construção, nos estados nordestinos de Pernambuco e Rio Grande do Norte, quando o golpe de estado militar apoiado pela CIA ocorreu, no Dia da Mentira, em 1964. Em 1969, quando o livro começa, o regime militar tinha pegado as rédeas firmemente nas mãos e censurava quaisquer notícias que fossem consideradas desfavoráveis à sua causa. Aulas de faculdades eram infiltradas por informantes em roupas civis se colocando como estudantes.
Os personagens de Urariano são comunistas novatos. Eles são membros de grupos de estudantes que se encontram e formam células clandestinas, onde eles são doutrinados com resumos mimeografados das teorias de Marx, Lenin e Mao Tse-Tung. Alguns deles estiveram ou estão em perigo de serem “expostos” como terroristas urbanos. Esse é o caso com o novo amigo do narrador, Luiz do Carmo, e outro militante, Vargas, que tem uma esposa grávida e parece resignado ao martírio pela causa. Ele entra em conflito com um notório agente duplo e eventualmente sucumbe a caça às bruxas. O mesmo vale para Soledad Barrett, uma beleza paraguaia de uma longa linhagem de anarquistas, que treina com Fidel e Che na Sierra Maestra e vem para Recife encontrar seu horrível destino. O romance é cheio de alvoroço e incidentes. Jovens se apaixonam e desapaixonam, são obcecados por sexo, percebem que são sonhadores sem armas ou uma ideologia convincente e seguem suas vidas. Eles ficam deprimidos, famintos por comida e reconhecimento, vão a filmes, leem livros, discutem sobre música e escrevem poesia. Eu conheci pessoas assim em Recife.
Eric: Isso soa tão similar com minhas próprias experiências no movimento estudantil antiguerra e anteprojeto, nos EUA, na mesma época, sob Nixon. Acredite-me, eu reconheci a mim mesmo e ao meu círculo de camaradas e amigos na inexperiência e confusão, e deriva ideológica daqueles anos.
Peter:As mesmas coisas estavam acontecendo em muitos lugares ao redor do mundo então. Em 1969-70, eu ensinava na Escola Americana do Rio, e as coisas mudaram. Ninguém fora da comunidade americana falaria comigo, porque eu tinha toda a boa fé de um agente da CIA – “pálido, masculino e Yale!” Traduzir A Mais Longa Duração da Juventude me deu a chance de encontrar e me envolver com meus colegas revolucionários, todos esses anos depois. Eu apreciei a experiência, mais do que eu possa realmente expressar em palavras. Eu confio que os leitores do livro também vão, e muitos por suas próprias razões subjetivas.
Eric: Obrigado, Peter. Eu acredito que os leitores vão ter uma ideia muito melhor do que esperar quando eles envolverem suas mãos em torno desse novo lançamento da International Publishers.