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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

19
Nov22

O golpe é um prato amargo, que já fumega no forno, para ser servido no almoço de domingo do povo

Talis Andrade

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Os militares concebem e patrocinam golpes, implantam ditaduras, contingenciam governos. Cabe aos democratas se posicionarem contra

 

por Hildegard Angel

 

Os militares, ao longo de todo o período republicano, julgam-se os condutores dos destinos do país, e para isso não medem esforços. Concebem e patrocinam golpes, implantam ditaduras, contingenciam governos eleitos democraticamente, controlando sua economia.  

Ao longo de toda a República, eles conspiram, dão golpes, implantam ditaduras, controlam governos democraticamente eleitos, e prevalecem. Ocupam espaços que não lhes pertencem. Atraiçoam os próprios juramentos.

Em vez de defender a Pátria, usam os arsenais, que lhes são providos para isso, com a finalidade oposta: oprimir o povo, em nome de seus privilégios, suas prioridades, suas percepções limitadas sobre a sociedade brasileira, sobre a História do Brasil e sobre sua própria atuação no poder, empenhados sempre em negar a liberdade de pensar, falar, criar, em sacrificar a produção cultural com censuras, na tentativa de aquartelar toda a nossa múltipla, diversa, encantadora, espontânea Nação dentro de quatro muros, ou socada num calabouço, uma masmorra, um porão decorado com objetos para torturar gente.

Relíquias da maldade, que deveriam estar em museus para nos lembrar do que são capazes. Contudo, os governos da Nova República foram conciliadores, preferiram deixar pra lá, não contaram essa história nas escolas, não fizeram sua obrigação, foram lenientes, acobertaram, se intimidaram.
 

Um novo golpe está fumegando no forno. Cabe aos democratas se posicionarem contra esse prato amargo, que alguns militares querem nos enfiar garganta abaixo, a pretexto de que seria o desejo de uma suposta 'maioria', parcela do povo intoxicada por falsas verdades, que não sabe discernir entre Democracia e Autoritarismo.

Estou mal... Mas havemos de sair dessa, e já com uma prioridade emergencial: a imensa tarefa de recomeçar pelo básico. Definir o que é Democracia, o que é Autoritarismo. Quem viu primeiro já saiu do Brasil. Quem é verdadeiramente comprometido com nosso país e nosso povo ficou por aqui, resistindo, acreditando que as instituições e o bom senso irão prevalecer. Que a Democracia vencerá.

Já ouço ao fundo o som de coturnos.Confundir as duas formas de governo, invertendo seus significados e princípios, tornando o ilegítimo legítimo, e vice-versa, tem sido a tática de uma guerra em várias frentes, sendo a mais visível a da comunicação, através das redes sociais, empreendida, estima-se que a partir de 2014, por uma facção miliciana-militar-fascista, num projeto iniciado, silenciosamente, com o objetivo de as FA sentarem praça no Poder do Brasil pela eternidade, sem limites, prazos e data pra terminar, sob a liderança do Exército, implícita e aceita pelas duas outras armas.

Deus já deu prova este ano de que é brasileiro. Precisamos da confirmação dessa prova.

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17
Set22

Precisamos voltar a falar dos criminosos e das vítimas da ditadura

Talis Andrade

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Brasil terá de voltar a falar de ditadura, de ditadores e de torturadores, ou assumir que é um país resignado, alienado e acovardado

 

por Moisés Mendes

- - -

O presidente Gabriel Boric é apresentado como o grande perdedor do referendo que rejeitou a nova Constituição do Chile.

A mobilização contra a Constituição acordou direita e extrema direita, quietas desde as manifestações de rua iniciadas em outubro de 2019, que levaram à Constituinte e agora à frustração.

Tanto acordou que grupos pinochetistas foram às ruas, em 11 de setembro, no aniversário do início da ditadura, para enfrentar manifestantes de esquerda.

E o que fez o presidente? Anunciou que, ao contrário do que os fascistas pensam, eles não terão paz. E que o Chile continuará avivando a memória do que aconteceu na era Pinochet.

Como parte do que está sendo planejado para o aniversário do 50º ano do golpe, em setembro do ano que vem, Boric informou que desde agora o governo participa de uma nova empreitada.

O Chile vai em busca de pistas que esclareçam o que aconteceu com os 1.192 cidadãos e cidadãs até hoje identificados como desaparecidos em algum momento a partir de 1973. Mais de 500 eram crianças.

O Chile teve mais de 3 mil mortes e desaparecimentos. Na Argentina, foram mais de 30 mil, mesmo que esse número seja sempre questionado.

No Brasil, o saldo macabro é oferecido quase como um consolo por fascistas e historiadores condescendentes: 434 pessoas mortas e desaparecidas. .

Mas Argentina, Chile e Uruguai conseguiram, uns mais, outros menos, avançar na punição dos criminosos das suas ditaduras. O Brasil nada fez, por conta da anistia de 1979.

O ambiente que se vislumbra, com uma vitória de Lula, nada assegura de mudança na área da reparação judicial.

O Supremo já fechou todas as portas que poderiam levar à punição criminal de torturadores e assassinos ainda vivos.

Mas o futuro governo poderá oferecer, por gesto político, suporte para que se retome o que foi levado adiante pela Comissão da Verdade e outras iniciativas, para que os horrores da ditadura não sejam esquecidos.

Boric está assumindo com os chilenos, em circunstâncias desfavoráveis ao seu governo, um compromisso com a História.

Um novo governo democrático no Brasil, em substituição ao poder fascista de Bolsonaro, também terá que assumir compromissos.

Pela reabilitação do debate em torno do que foi a ditadura. Pelo fortalecimento de lutas esparsas que ainda resgatam essa memória.

Pelo apoio às energias e aos afetos de todos os familiares e amigos que persistem e pelo respeito a torturados, mortos e desaparecidos.

Um novo governo democrata terá de dar conta de demandas desprezadas e perdidas desde 2016.

O Brasil terá que voltar a dizer, sem medo, todos os anos e de forma permanente, como fazem os chilenos e outros vizinhos, que aqui houve uma ditadura sanguinária.

E reconhecer que a impunidade ajuda a explicar o horror que ainda enfrentamos até hoje.

O esquecimento sustentou a vida tranquila de ditadores e de 377 agentes públicos (militares, policiais e outros) envolvidos em crimes de lesa humanidade entre 1964 e 1985, como torturas, assassinatos e ocultação de cadáveres.

O esquecimento nos levou às crueldades e aos crimes do bolsonarismo e à estrutura militar que tutela e sustenta um genocida.

O Brasil terá de voltar a falar de ditadura, de ditadores e de torturadores, ou assumir que é um país resignado, alienado e acovardado.

O ditador Pinochet na visão de Chico Caruso | Acervo

12
Set22

Eletrochoque, vozes, paralisia: histórias de presos políticos em manicômios

Talis Andrade

Roberto Motta foi internado em Santa Catarina; Ivan Seixas, em São Paulo - Yasmin Ayumi/UOL

Roberto Motta foi internado em Santa Catarina; Ivan Seixas, em São Paulo Imagem: Yasmin Ayumi/UOL

Amanda Rossi /UOL

Levantamento inédito do UOL descobriu 24 casos de presos políticos internados pela ditadura militar em instituições psiquiátricas. São 21 homens e três mulheres, em nove unidades da federação. O número pode ser maior que o identificado pela reportagem.

Abaixo, conheça mais sobre a história de alguns desses presos políticos. O UOL só publicou os nomes completos de quem já morreu ou, no caso de quem está vivo, com autorização da própria pessoa ou da família. Os demais casos estão listados apenas com as iniciais.

Dos 24 casos, pelo menos 22 foram submetidos a tortura em prisões comuns, antes de serem internados. É o caso de Paulo Benchimol, que passou a ouvir vozes parecidas "com [a voz de] um daqueles agentes que me interrogaram" e que diziam "que estava de volta para as mãos do diabo". Já S.R. perdeu a memória depois de dez dias de choques elétricos.

Nas instituições onde foram internados, alguns presos políticos continuaram a sofrer maus-tratos. Em Pernambuco, J.S. ficou "dois anos com dificuldades na fala e locomoção" devido à alta dosagem de medicamentos psiquiátricos que recebeu. No Rio, Solange Gomes foi tratada com eletrochoque e convulsoterapia (indução de convulsões).

Procurado, o Ministério da Defesa disse que "os fatos relativos ao período compreendido entre os anos 1964 a 1973 foram abrangidos pela Lei de Anistia".

 

Aparecido Galdino Jacinto, São Paulo

 

 

Aparecidão ficou sete anos no Manicômio de Franco da Rocha - Reprodução - Reprodução

Aparecidão ficou sete anos no Manicômio de Franco da Rocha

 

Lavrador analfabeto, Aparecidão —como era chamado— foi um líder religioso em Rubineia, interior de São Paulo. Em 1970, ele e seus seguidores se opuseram ao alagamento de suas terras para a construção da hidrelétrica de Ilha Solteira —obra da ditadura. Foram presos ao resistirem a uma abordagem violenta da polícia no templo onde se reuniam.

Segundo a Justiça Militar, Aparecidão tinha "ideias delirantes de cunho místico". Enquadradado na Lei de Segurança Nacional, foi condenado a dois anos de internação no Manicômio de Franco da Rocha. Acabou ficando sete anos.

Foi liberado após uma nova perícia médica declarar que não podia ser considerado louco por sua fé: "Pode ser classificada como delirante a ideia de um homem em [ser] benzedor, de pregar a paz, o bem, dizer que sua força era um dom que Deus lhe emprestava? Se assim fosse, a Justiça estaria abarrotada de feitos criminais contra o Papa, os cardeais, os bispos, os padres, os pastores, os médiuns e todos os mais que invocam o nome do Senhor."

 

S.R., Rio de Janeiro

 

Quando um preso político passava em frente à cela de S.R. na prisão de Ilha das Flores, Rio de Janeiro, ouvia dele um apelo: "Eu não agento mais". Pedia que denunciasse sua situação para o exterior, porque os militares queriam que relatasse fatos que não sabia. Era acusado de organizar o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário.

Um dos militantes que conviveu com S.R. na Ilha das Flores incluiu seu caso em um texto de denúncia: "preso aos 20 anos, ficou 20 dias na solitária, espancamentos diários durante um mês; perda de memória depois de 10 dias de choques elétricos, pau-de-arara. Internado no Manicômio Judiciário devido ao seu estado mental".

Tortura e loucura - mapa da prisão política em manicômios - Arte/UOL - Arte/UOL

Internações ocorreram de 1964 até meados da década de 1970 Imagem: Arte/UOL

 

Nilo Sérgio Menezes de Macedo, Rio de Janeiro

 

Depois de um período de prisão em Minas Gerais, Macedo foi condenado a quatro anos de internação compulsória no Manicômio Judiciário Heitor Carrilho, no Rio. "Alegaram que eu estava com problemas mentais. É verdade que eu não estava bem, mas falar que eu estava maluco, de jeito nenhum", diz Macedo.

"O manicômio era um lugar infernal, um ambiente muito pesado. [Quem estava lá eram] pessoas com graves problemas mentais, que tinham cometido crimes comuns, como homicídio. Levei choque elétrico, tinha que tomar umas drogas muito fortes. Fiquei lá uns sete meses. Aí eu pensei: se eu continuar aqui, minha vida está ameaçada. Não vou suportar isso aqui. Aí, eu tentei fugir e me pegaram".

Após a tentativa de fuga, Macedo foi tirado do manicômio e mandado de volta para uma prisão comum, em Ilha Grande. "Foi o que me salvou".

 

Roberto João Motta, Santa Catarina

 

Advogado, Motta foi preso em Santa Catarina sob acusação de integrar o Partido Comunista Brasileiro. Em carta para a Arquidiocese de São Paulo, sua mulher denunciou "as torturas sofridas por seu marido nas mãos do exército e da polícia. Não suportando mais os sofrimentos, tentou por três vezes o suicídio. Foi então removido ao Manicômio Judiciário".

Por fim, a Justiça Militar autorizou sua transferência para uma clínica psiquiátrica particular, com custos pagos pela família, mas não revogou sua prisão —a família também teve que pagar despesas dos policiais que o vigiavam.

 

J.S., Pernambuco

 

Tortura loucura - Comissão da Verdade Dom Helder Câmara - Comissão da Verdade Dom Helder Câmara

Preso político relatou maus tratos durante tratamento psiquiátrico Imagem: Comissão da Verdade Dom Helder Câmara

 

Membro da ALN (Ação Libertadora Nacional), J.S. foi preso, torturado e enviado para tratamento psiquiátrico em diferentes instituições, sob escolta policial.

Em documentos enviados para a Comissão da Memória e Verdade de Pernambuco, relatou que recebeu doses muito altas de medicamentos psiquiátricos, tendo "quase morrido por overdose" e, em outra situação, ficado "dois anos com dificuldades na fala e locomoção".

 

Paulo Roberto das Neves Benchimol, Rio de Janeiro

 

Jornalista, Benchimol ficou preso na Ilha das Flores sob acusação de fazer parte do MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro).

Torturado, começou a ouvir vozes "dizendo que estava de volta para as mãos do diabo". "A voz é parecida com um daqueles agentes que me interrogaram. Algumas vezes a voz falava diretamente com o agente, me acusando, no exato momento em que o interlocutor também me acusava", disse Benchimol para os peritos que fizeram seu laudo psiquiátrico.

Foi mandado para o Manicômio Judiciário, onde foi "submetido a um tratamento psiquiátrico intenso", segundo laudo da época. Recebeu "uma série de oito eletrochoques, sendo que ainda não são visíveis as modificações no quadro depressivo que apresentou. A folha clínica ainda registra três tentativas de suicídio".

Depois da prisão, Benchimol foi para o Chile. Em 1973, com o golpe de Augusto Pinochet, foi detido e torturado no Estádio Nacional de Santiago. 

 

Solange Lourenço Gomes, Bahia e Rio de Janeiro

 

 

Tortura e loucura - Solange Gomes foi exibida nos jornais como 'terrorista arrependida' - Brasil Nunca Mais - Brasil Nunca Mais

Solange Gomes foi exibida nos jornais como 'terrorista arrependida' Imagem: Brasil Nunca Mais

 

Integrante do MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de outubro), Solange estava sendo procurada quando começou a ter alucinações. Resolveu se entregar. Nos jornais da época, foi exibida como "terrorista arrependida", atraída para a subversão por "sexo". Na prisão, "começou a ser vítima de visões terroríficas". [Que infâmia! dos monstros da ditadura militar: atraída para a subversão por "sexo". Quando os militares praticavam estupros, todo tipo de sadismo sexual inclusive zoofilia, alguns tinham inclusive animais de estimação]

Em julgamento na Justiça Militar, foi considerada inimputável —ou seja, incapaz de responder pelos próprios atos— e condenada a um período de internação compulsória em instituições psiquiátricas. Foi tratada com eletrochoque e convulsoterapia (indução de convulsões).

Depois de ser posta em liberdade, não se recuperou. "Pude testemunhar seu enorme esforço para recuperar-se de grave quadro psiquiátrico, psicótico, consequência de sua prisão", disse seu marido para a Comissão de Desaparecidos Políticos. Solange suicidou-se em 1982 (Ainda faltavam três anos para terminar o atroz regime militar)

 

Vitor de Souza Couto, Rio Grande do Sul

 

Soldado da Brigada Militar do Rio Grande do Sul, Couto fazia segurança da casa de Leonel Brizola quando ocorreu o golpe militar. Depois que Brizola se exilou no Uruguai, Couto se apresentou ao quartel e foi imediatamente preso.

Expulso da tropa, foi internado no Manicômio Judiciário, de onde fugiu algumas vezes.

Em depoimento, disse que foi internado compulsoriamente sob a justificativa de que, após uma queda durante o serviço militar, "passou a sofrer de epilepsia". Em uma das fugas, foi para o Uruguai, onde tentou suicídio, "pois se encontrava desesperado, com medo de voltar ao Brasil e ser preso novamente".Número de casos pode ser maior que o identificado pelo UOL - Yasmin Ayumi/UOL - Yasmin Ayumi/UOL

Número de casos pode ser maior que o identificado pelo UOL Imagem: Yasmin Ayumi/UOL

 

Manuel Domingos Neto, Ceará

 

Militante da AP (Ação Popular), foi preso e sofreu torturas físicas e psicológicas. Não podia dormir porque era acordado com pancadas ou com gritos de mulheres —que pensava serem de uma amiga de militância, também presa, ou de sua irmã, que os torturadores disseram estar "no pau".

Entrou "em estado de desespero e pensou em suicídio". "Eu estava muito frágil, com 40 quilos. Eu desmaiei e passei dez dias fora de mim, sem noção das coisas. Aí depois me levaram para o Hospital Militar, onde fiquei preso muitos meses", vigiado por homens armados.

Tal era "seu estado psíquico" que "teve que ingerir comprimidos de psicotrópicos em número de 20 diariamente".

 

Wesley Macedo de Almeida, Bahia

 

Tortura e loucura - Fotografia de Wesley Almeida em sua ficha na prisão - Arquivo Público do Estado da Bahia - Arquivo Público do Estado da Bahia

Fotografia de Wesley Almeida em sua ficha na prisão Imagem: Arquivo Público do Estado da Bahia

 

Estudante em Jequié, na Bahia, e um dos fundadores do cineclube da cidade, foi preso com colegas depois de "derramarem por toda a cidade verdadeira avalanche de panfletos subversivos". Mandado para Salvador, foi muito torturado. Sua família foi até a capital baiana para procurá-lo, mas Wesley não estava em nenhuma prisão. "Quando o encontraram, já estava no manicômio", diz um irmão mais novo.

Até hoje, precisa de tratamento psiquiátrico. "Antes da prisão, ele não tinha nada. Poderia até estar latente, mas desenvolveu na prisão", diz o parente. "A tortura o sequelou, é impossível o ser humano suportar o que ele suportou. De certa forma, continua a ser um preso político. Fica recluso, não sai de casa em virtude do trauma e da doença [psíquica]."

 

I.V., Rio Grande do Sul

 

Preso pela ditadura militar, foi mandado para o Hospital Militar de Porto Alegre para tratamento psiquiátrico, em 1970. "Na prisão, sentiu-se despojado de tudo, passava os dias chorando, com a cabeça entre as mãos, não se alimentava, não conseguia dormir", diz um dos documentos da Justiça Militar a seu respeito. "Vivia na expectativa de algo pior" e tinha "sintomas de forte depressão nervosa".

08
Jun22

De onde vem a fúria bolsonarista com as mulheres?

Talis Andrade

 

Assassinatos covardes de 22 moças, estudantes com idades entre 21 e 35 anos, pela repressão, nos porões da ditadura militar, inspira a misoginia de uma fina-flor de impotentes

 

 

por Homero Gottardello /Jornalistas 

Covardia é o traço mais imundo, a característica mais sórdida dos regimes de exceção. A forma com que o alienado planaltino tratou uma repórter na tarde desta segunda-feira, em Guaratinguetá, na frente de meio mundo, dá o tom da deformidade que tomou o país. Filhote da ditadura militar, o criado de Donald Trump – por falar nele, que fim será que teve? – é o atual defensor de seu aspecto misógino, uma anormalidade expressa no número de moças com idades entre 21 e 35 anos que foram mortas nos porões da repressão, sob a alegação de serem agentes da luta armada. Mulheres “perigosíssimas” capazes de colocar as Forças Armadas em alerta permanente.

Com seus cadernos, estojos e livros, representavam uma ameaça à segurança nacional e, em razão disso, 22 delas foram torturadas e estupradas, trucidadas por gente sádica, indigna, que hoje inspira a fina-flor do bolsonarismo em seu androcentrismo – um comportamento que Freud explica pelo viés da impotência. As estudantes Catarina Helena Abi-Eçab (morta com um tiro na cabeça aos 21 anos), Aurora Maria Nascimento Furtado, de 26 anos (morta sob tortura com queimaduras, cortes e hematomas generalizados, além de um afundamento no crânio de 2 cm por ter sido subjugada à “coroa de cristo”), e Helenira Resende, morta aos 28 anos (metralhada nas pernas, presa e torturada até a morte), cujo corpo nunca foi localizado – são apenas três exemplos. Mas a perseguição se estendeu a outras categorias.

 

O que se nota hoje, passados quase 50 anos do período, é que os DOI-CODIs da vida não deram conta de combater o crime organizando nascente, durante a década de 70, mas usaram de mão-de-ferro contra costureiras e até mesmo donas de casa, como Dona Labibe Elias Abduch, de 65 anos, morta com um tiro no peito, na Cinelândia, Centro do Rio de Janeiro, sem que nunca ter pisado em um sindicato, sem ter filiação partidária ou qualquer ciência sobre organizações de esquerda. Para evitar a implementação de uma “ditadura do proletariado”, a repressão assassinou – oficialmente – 434 pessoas, 56% delas jovens com menos de 30 anos de idade.

A comerciária Maria Ângela Ribeiro é outra vítima deste ódio pelas mulheres, que foi reavivado e, agora, pode ser percebido nos mais simples gestos do bolsonarismo. Também foi morta a tiros, também no Centro do Rio de Janeiro, apenas por estar lá, no dia 21 e junho de 1968, quando policiais cercaram os transeuntes e avisaram que atirariam para matar. Cumpriram sua palavra e lá tombou Maria Ângela: sem culpa, sem motivo, sem saber porquê.

A perseguição a estudantes e camponeses foi implacável, mas os maiores criminosos do país flanaram livremente, durante o período da repressão política. De modo que na lista de mortos pela ditadura militar não constam os nomes de Francisco da Costa Rocha, o “Chico Picadinho”; Luiz Baú, o “Monstro de Erechim”; João Acácio Pereira da Costa, o “Bandido da Luz Vermelha”, ou José Paz Bezerra, o “Monstro do Morumbi”. Os investigadores do DOPS também não foram páreo para Pedro Rodrigues Filho, o “Pedrinho Matador”, cuja pena pelos crimes cometidos durante o período da “redenção” já somava quase 130 anos, em 1973.

Caçada impiedosa

Daí, a incompetência para capturar assassinos em série foi compensada pela caçada impiedosa a jovens inofensivas, como a empregada doméstica Íris Amaral, de 26 anos, morta a tiros durante uma operação contra a Ação Libertadora Nacional (ALN). Íris nunca fez parte da organização política, mas, por azar, estava passando pela estrada Vicente de Carvalho, no Irajá, justamente na hora em que agentes do DOI-CODI abriram fogo em via pública, sabe-se lá contra quem. No caso da camponesa Margarida Maria Alves, cuja luta contra os latifundiários paraibanos à frente do sindicato local, na “metrópole” de Alagoa Grande, sabe-se que o tiro no rosto que ela levou na porta de casa, de um jagunço armado com uma calibre 12, teve como motivação sua luta pelos direitos trabalhistas – é que os trabalhadores rurais eram vistos como uma ameaça comunista pelo regime, da mesma forma que os índios, hoje, o são.

Mirando sua brutalidade contra pessoas notadamente indefesas, a repressão dos anos de chumbo brasileiros é o ponto máximo da patifaria estatal. Da mais alta patente aos praças, dos delegados aos legistas, dos agentes de inteligência aos alcaguetes, reinou um medo absoluto da bandidagem verdadeira, um temor da marginália “de raiz”, um pavor da pistolagem que pode ser constatado pela omissão do estado policial em relação ao narcotráfico e a consolidação do crime organizado no Brasil, durante os anos 70. O fracasso na inibição destes grupos foi tão flagrante quanto o das Primeira e Segunda Repúblicas em relação ao cangaço. E, se herdou do Estado Novo os instrumentos de perseguição política que puseram fim ao banditismo no sertão, a ditadura falhou no combate a grupos como a Falange Vermelha, focando no elo mais fraco e fácil de se romper da cadeia: a militância estudantil e suas jovens ativistas – covardia pura.

A imagem do corpo da professora Maria Regina Lobo Leite de Figueiredo, executada sem que oferecesse resistência à prisão, é uma das mais chocantes fotografias do período de trevas em que o país esteve mergulhado. Para além da tortura, moças vulneráveis, desvalidas, não foram apenas apagadas, mas massacradas, fulminadas com uma ira que diz muito sobre seus algozes. Gente desumana investida do poder público, homens de uma crueldade doentia, de uma morbidez vil, de uma atrocidade aberrante que, neste instante, serve de exemplo para milícias digitais e grupos paramilitares armados, a massa depravada do bolsonarismo. O aumento dos ataques dessa malta às mulheres, bem como sua extensão a negros, índios e homossexuais, é um indicador alarmante de normalização da selvageria e da barbárie. Um país onde os homens não respeitam as mulheres não pode ser reconhecido como nação e um sujeito que agride uma mulher, se aproveitando da condição de ter mais força do que ela, não pode ser admitido como homem.

Ou damos um basta nisso ou vamos todos levar a pecha da ginofobia, do desprezo e da aversão às mulheres. Se os brasileiros elegeram um poltrão, cabe ao próprio povo sua destituição. (Publicado em 21 junho de 2021)

Feminicídio no Brasil - Blog do Ari Cunha

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