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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

13
Jul22

Patricia Facchin entrevista Jair Krischke (vídeos)

Talis Andrade

Na charge do Amarildo: AI-5 | A Gazeta

 

Jair Krischke é ativista dos direitos humanos no Brasil, Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai. Em 1979, fundou o Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, a principal organização não governamental ligada aos direitos humanos da região sul do Brasil.

 

IHU On-Line — Quais são suas lembranças do dia 13 de dezembro de 1968, quando Arthur da Costa e Silva emitiu o AI-5?

Jair Krischke — Tudo começou um pouco antes. Nós que participávamos daquilo que veio a ser depois o Movimento de Justiça e Direitos Humanos, imaginamos que o AI-5 era um golpe a mais, que era mais uma das tantas quarteladas que aconteciam na América Latina. Porém fomos surpreendidos, pois se tratava de um golpe baseado em uma doutrina de segurança nacional, que viria para ficar por muito tempo. Nós do Movimento de Justiça e Direitos Humanos já estávamos envolvidos em retirar brasileiros perseguidos do Brasil e em levá-los para o Uruguai e a Argentina, mas em 1968 já começávamos a sentir a falta de esperança em relação à redemocratização e então começamos as articulações para enfrentar a ditadura, especialmente no terreno político.

Antes do AI-5 foi criada a Frente Ampla, que reuniu três figuras políticas de grande importância no Brasil, Juscelino Kubitschek, João Goulart e Carlos Lacerda; algo inimaginável. Essa Frente Ampla estava se articulando para politicamente fazer frente à ditadura, quando o grupo da chamada “linha dura”, pretendendo se eternizar no poder, lançou o AI-5. Nessa época eu estava em Porto Alegre, envolvido em retirar do Brasil companheiros sindicalistas, líderes estudantis e políticos e levá-los para o refúgio.

Meses antes da instituição do AI-5, o então deputado Márcio Moreira Alves, do MDB, fez um discurso na Câmara dos Deputados, em setembro, recomendando às moças e às senhoras que se recusassem a sair com oficiais do Exército e que, inclusive, no baile de Sete de Setembro não dançassem com eles. Esse discurso foi tomado pelos militares, especialmente pelo então ministro do Exército, o General Costa e Silva, como uma ofensa aos militares, que solicitaram a cassação de Márcio Moreira Alves. No dia 12 de dezembro, o Congresso recusou a cassação, com uma diferença de 75 votos, e mesmo a Arena, partido da ditadura, votou contra a cassação dele. No dia seguinte, 13 de dezembro, fomos surpreendidos com o AI-5. Somente depois — a história não pode ser avaliada no tempo em que está ocorrendo — nos demos conta de que esse AI-5 era um golpe dentro do golpe, era um endurecimento daquilo tudo que a ditadura já havia feito.

 

Com a instituição do AI-5, o setor mais reacionário das Forças Armadas decidiu terminar com as mínimas garantias com as quais a cidadania ainda contava, e deu poderes extraordinários à ditadura. Isto é, o presidente da República passou a ter um poder que não requisitava apreciação judicial para fazer aquilo que bem entendesse em termos não só da União Federal, mas dos estados e municípios. Além disso, o presidente tinha poder para intervir no Congresso Nacional, e mais tarde o fechou, como fechou também as Assembleias Legislativas dos estados e as Câmaras de Vereadores. Além disso, o AI-5 estabeleceu a censura prévia a tudo que se possa imaginar: a censura foi estabelecida não só na comunicação social — jornais, rádios e TV —, mas também em todas as expressões artísticas. Isso deu vigência plena à doutrina de Segurança Nacional.

Depois daquele discurso de Márcio Moreira Alves, nós já estávamos esperando que alguma coisa iria acontecer, mas não imaginávamos que seria algo com a gravidade que aconteceu, de forma tão radical. Com o AI-5, a repressão voltou forte e com requintes de uma crueldade que antes não havia acontecido. Tivemos que tirar muitas pessoas do país, porque a perseguição começou a se dar de uma forma indiscriminada: se suspeitassem que alguém tivesse feito isso ou aquilo, já era razão suficiente para a perseguição. O AI-5 estabeleceu uma possibilidade de prisão sem fundamentação jurídica, sem direito a acesso a advogado ou aos familiares. Para temas de “crimes políticos” não havia possibilidade de habeas corpus, que também foi suspenso com o AI-5.

Foi difícil dar conta de proteger todos aqueles que novamente vieram a ser perseguidos. Lembro disso muito bem, porque isso foi gerando consequências. Como a repressão endureceu muito, começamos a perceber que os serviços de inteligência do exército, da marinha, da aviação, da polícia federal e militar, começaram a agir de forma desenfreada, nos dando um trabalho imenso.

 

IHU On-Line — Como o AI-5 interferiu na sua atividade de retirar pessoas do país naquele momento?

Jair Krischke — Passamos a viver com muita cautela e cuidado, porque sabíamos que a repressão estava aí, que éramos vigiados e que a qualquer momento um de nós poderia ser preso. Por exemplo, mesmo nas nossas reuniões, quando uma pessoa na qual não confiávamos muito estava presente, para não tocar em assuntos delicados sobre a segurança de outras pessoas, tínhamos uma norma: qualquer um de nós, ao perceber que a presença de alguém era problemática, perguntava “que horas são?”; esse era o nosso sinal de alerta.

 

IHU On-Line – Isso acontecia com muita frequência?

Jair Krischke — Não com muita frequência, mas acontecia. Assuntos sensíveis eram compartimentados e o próprio processo para retirar pessoas do Brasil passou a ser bastante compartimentado: quando alguém saía de São Paulo e ia até o Paraná, não sabia quem seria o responsável pelo trecho que o levaria do Paraná até Santa Catarina, que por sua vez não sabia quem seria o responsável pelo trecho de Santa Catarina até o Rio Grande do Sul. Se informava apenas que uma pessoa estaria no tal local, com uma camisa branca e com um exemplar do jornal Correio do Povo embaixo do braço, ou que uma moça com um lenço branco amarrado na bolsa estaria em tal local. Não se informava quem eram essas pessoas, mas se davam sinais de como encontrá-las.

Eu tomei uma decisão nesse momento: todas as manhãs quando despertava, prometia a mim mesmo “hoje não vou ficar paranoico”. Isso valia por 24 horas. Quando você se envolve nesse tipo de atividade e sabe que há uma repressão muito forte, que qualquer descuido vai impactar a vida de alguém, a tendência à paranoia aumenta.

Nós passamos a ser seguidos e tivemos que aprender a evitar o seguimento. De repente estávamos circulando de automóvel e achávamos que o carro de trás estava nos seguindo. Nessa situação, tentávamos atrair o carro para uma sinaleira que estivesse fechando e tratávamos de cruzar no último momento. Se o carro que vinha atrás também cruzava, era porque estava nos seguindo. Então, várias vezes eu e meus companheiros fazíamos esse teste e muitas vezes o carro seguia mesmo e tínhamos que dar um jeito de mudar o trajeto ou mudar de carro, e fizemos isso muitas vezes.

 

IHU On-Line — Como o senhor e outros se articularam para fazer frente ao AI-5? Houve essa possibilidade?

Jair Krischke — Nós lutávamos contra um poder realmente imenso e não podíamos ser tolos a ponto de achar que poderíamos enfrentar as Forças Armadas no seu terreno; sabíamos que deveríamos enfrentá-la com inteligência. E isso nos levou a criar mecanismos de defesa, como aquele da pergunta “que horas são?” ou mesmo esses testes para ver se estávamos sendo seguidos, ou seja, desenvolvemos uma série de mecanismos de defesa porque começamos a entender como o aparelho repressivo passou a funcionar depois do AI-5.

Nós não tínhamos como reagir e não tínhamos como enfrentar os militares no campo da força. Tivemos que estudar o inimigo, ver suas fraquezas e explorá-las. Aqueles grupos que resolveram enfrentá-los, o fizeram com a maior generosidade que se pode imaginar, e aqueles jovens que ingressaram na luta armada para ir para o enfrentamento pagaram um preço altíssimo. Nós do Movimento de Justiça e Direitos Humanos fizemos uma avaliação do que poderia ser feito. A nossa primeira avaliação foi a de que nenhum de nós iria sair do país. A segunda avaliação foi examinar quais eram as condições para operar salvando pessoas. Decidimos, então, estudar como os militares agiam, nos prevenir e fazer aquilo que achávamos que tínhamos que fazer. O nosso maior prejuízo foi em novembro de 1969, quando vários companheiros foram presos.

Nessa época, em novembro de 1969, o aparelho repressivo já estava bastante azeitado, funcionando a mil, e montou o assassinato de Carlos Marighella. Os militares dizem que foi um enfrentamento, mas foi uma execução. Nessa ocasião também foram presos os dominicanos, entre eles o Frei Betto. Em decorrência disso, muitos companheiros nossos foram presos.

 

IHU On-Line – Esse foi o período mais tenso de toda a ditadura para o senhor?

Jair Krischke — Sim, foi o mais tenso porque toda essa estrutura repressiva agia por sua própria conta, praticando barbaridades, sem freio ético e moral. O grande comandante desse período foi o famoso delegado Sérgio Paranhos Fleury, e se deve a ele todas as barbaridades que se possa imaginar, como o Esquadrão da Morte.

Em novembro de 1969 eu passei todo o mês esperando ser preso, porque tive que “colocar a cabeça para fora” para tirar os companheiros que estavam presos no Departamento de Ordem Política e Social - DOPS, mas não fui preso. Essa é uma outra história.

Alguns militares chamavam a ditadura de guerra psicológica, porque também era uma guerra psicológica. O Brasil, comparado com outros países da região, não teve tantos mortos e desaparecidos. Em termos proporcionais, a Argentina, que tinha à época 40 milhões de pessoas, teve 30 mil desaparecidos na sua ditadura, e o Brasil, que à época tinha 90 milhões de pessoas, não chegou a registrar 500 mortos e desaparecidos. Por quê? Por ser uma ditadura branda? Não, porque a ditadura foi uma repressão seletiva e feita com o objetivo de criar terror e pavor na sociedade brasileira. E ela criou um pavor tão grande, que nós ainda hoje não discutimos os assuntos relativos ao aparelho repressivo.

Há uma negativa porque à época as pessoas tinham medo de falar sobre isso. As pessoas viviam a sensação de terror de que a qualquer momento poderia acontecer alguma coisa com elas. Isso porque, quando se estabelece um regime de exceção, pode acontecer de tudo, como aconteceu. Pessoas que não tinham nada a ver com a contestação da ditadura foram presas. Aqueles que foram presos e que não tinham nada que ver foram os mais torturados, porque os repressores imaginavam que estavam diante de um durão que não queria contar o que sabia e o torturavam mais.

 

IHU On-Line — Qual foi a sua reação quando o AI-5 foi revogado?

Jair Krischke — Nós do grupo Movimento de Justiça e Direitos Humanos estávamos esperando que isso acontecesse. Então, quando começaram a anunciar que possivelmente o AI-5 deixaria de existir em 31 de dezembro de 1978, já começamos a projetar uma série de reuniões para tornar o Movimento de Justiça e Direitos Humanos oficial. Assim, em janeiro de 1979 conseguimos reunir, uma vez por semana, umas 30, 40 pessoas para tratar da organização do Seminário de Justiça e Direitos Humanos. Ao final do seminário foi proposta a criação do Movimento, oferecemos um estatuto que foi aprovado e elegemos a primeira diretoria. Desde outubro de 1978 já tínhamos claro que, ao cessar a vigência do AI-5, tínhamos que “pendurar o bilhete no pescoço do tigre”.

Cumprimos as exigências legais para oficializar o Movimento e fomos ao cartório para registrá-lo. Eu conhecia o oficial do cartório, mas ele não quis registrar o Movimento. Deixei o documento lá e voltei depois de uns dez dias, mas o oficial já estava com a negativa pronta e assinada. Como ele negou o registro por escrito, nós recorremos, entramos com uma ação na Justiça e, por sentença judicial, o Movimento foi registrado em agosto de 1980. Então, quem era o apavorado nessa história toda? Era alguém que tinha posse de direito. Resumindo, quando a imprensa noticiava que o Geisel iria anunciar o fim do AI-5, nós aproveitamos para estabelecer o Movimento.

 

IHU On-Line — Retrospectivamente, 50 anos depois, que avaliação faz da instituição do AI-5 no Brasil? Quais foram os impactos políticos do AI-5 para o país e como o senhor lembra desse momento da história brasileira, do qual participou?

Jair Krischke — O AI-5 produziu um retrocesso brutal na sociedade brasileira, porque se estabeleceu um autoritarismo muito maior do que o do golpe de 64. Esse é um militarismo que vigorou de 1968 a 1978, por dez anos, mas com tal violência que isso ficou inculcado nos brasileiros. Se observarmos, sociologicamente, não nos livramos ainda desse autoritarismo, pois ele conseguiu ingressar na epiderme do brasileiro.

 

IHU On-Line — Que comportamentos e ações indicam isso?

Jair Krischke — As violações aos direitos humanos. Quem viola os direitos humanos no Brasil? O Estado brasileiro, e isso tem a ver com esse autoritarismo: se “a autoridade decidiu, está decidido”, mesmo se for uma ilegalidade e mesmo que sejam atos nada republicanos. Lamentavelmente, muitas pessoas, por ignorância, entendem que é assim mesmo. Conversando com um rapaz de aproximadamente 23 anos que foi barbaramente agredido pela polícia, disse a ele que a agressão era um absurdo, e ele me perguntou se a polícia não poderia bater nele. Isso acontece porque o autoritarismo acabou indo para o DNA das pessoas e se acha que a tal autoridade “pode tudo”. Isso atingiu profundamente o povo brasileiro e ainda não conseguimos nos livrar dessa aceitação do autoritarismo.

 

IHU On-Line — Que questões centrais precisam ser tratadas no país para repensarmos o papel autoritário do Estado brasileiro, 50 anos depois do AI-5?

Jair Krischke — Em primeiríssimo lugar, a plenitude do exercício da cidadania. Isto é, o Estado brasileiro precisa entender que o cidadão tem direito a ter direitos e o Estado tem que ser o primeiro a garantir esse direito. O Estado tem que ser o garantidor de direitos e nós precisamos avançar quanto a isso; é um exercício da cidadania. Se formos ao Uruguai, veremos que o povo uruguaio tem uma consciência muitíssimo maior do que a nossa em termos de cidadania, em não admitir que seus direitos sejam desrespeitados. Isso é sensível a qualquer pessoa. Qualquer pessoa do povo tem muito claro que, como cidadão, tem direitos.

Isso é interessante porque, no Brasil, costuma-se dizer que os defensores dos direitos humanos “são só defensores de bandidos”; nos acusam de mil coisas. No Uruguai, na Argentina, no Chile ou no pequeno Paraguai, quem lida com direitos humanos é respeitado, até o Estado respeita. No Brasil isso não ocorre e é assim por consequência da ditadura, porque quem enfrentava os milicos como exercício da cidadania, quem cobrava do Estado, éramos nós. Por isso, passamos a ser os inconvenientes para a ditadura. E essa ditadura acabou criando uma guerra psicológica, induzindo as pessoas a fazerem a leitura de que quem os denunciava era amigo de bandido, porque quem lutou contra a ditadura era chamado de terrorista. Veja, chamar alguém de terrorista tem como implicação que a pessoa tenha praticado um ato terrorista, logo, não era verdade.

As pessoas que foram vítimas da ditadura nunca mais esquecem: o sono não é tranquilo, volta e meia todo aquele terror do qual você foi vítima te assalta de novo. As pessoas que foram vítimas dessa truculência nunca mais puderam dormir tranquilas, e nós vamos carregando essa cruz.

 

IHU On-Line — O senhor também tem esse tipo de sentimentos ao lembrar do passado?

Jair Krischke — Tenho companheiros que trabalham comigo, especialmente aqueles que foram presos mais jovens, que não se livram disso. Tenho colegas que até hoje fazem tratamento psiquiátrico por terem a síndrome do pânico e não conseguirem sair de casa. Por exemplo, tenho uma amiga que ainda está trabalhando, mas tem dias que seu marido vai levá-la para o trabalho e, quando vai se aproximando do local do trabalho, ela começa a tremer, suar e tem que voltar para casa. Isso fica!

Como todos os dias eu fazia o exercício de dizer para mim mesmo “hoje não vou ficar aloprado”, isso me defendeu, claro que me defendeu muito; eu procurei criar um antídoto. Mas, é evidente, há situações que lembram claramente, por exemplo, quando a sua vida era posta em risco. Essas coisas são muito gozadas porque, de repente, lá adiante, é que isso vai aparecer: andamos pela vida bastante tempo e de repente aquelas coisas do passado começam a te fustigar. Digo isso por companheiros meus que, 30 anos depois, começaram a sentir problemas. Isso o doutor Freud deve explicar.

 

01
Dez21

Polêmica no STF: No princípio, por princípio, era o in dubio pro reo!, por Lenio Streck

Talis Andrade

O papel da doutrina é construir condições epistemológicas para que se alcance uma resposta adequada à Constituição. É o que busco nestas mal traçadas

 

Por Lenio Luiz Streck

Está na pauta do Supremo Tribunal Federal um novo debate. Em processos criminais, o empate favorece ou não o réu?

O papel da doutrina é construir condições epistemológicas para que se alcance uma resposta adequada à Constituição. É o que busco nestas mal traçadas.

Revolvamos o chão linguístico, portanto.

No princípio, era o mito. Quem explicava o mundo era a mitologia. Entre tantos ensinamentos (vejam por que a psicanálise usa tanto a mitologia), temos o primeiro julgamento criminal da história. Dele podemos tirar vários pontos que iluminam o Direito até hoje.

Vejamos Ésquilo e a trilogia Orestéia — peça Eumênidas. Orestes mata a mãe e o amante dela. Que por sua vez mataram o pai de Orestes. Ele se vingou. As Eríneas, deusas da raiva (que hoje moram nas redes sociais), queriam o rim e o fígado de Orestes.

A Deusa Palas Atena, atendendo à intermediação dos deuses Apolo e Hermes, concede a Orestes o direito a um julgamento. Um júri. Com jurados imparciais. A imparcialidade é exigência até na mitologia.

O resultado deu empate. E a Juíza-Deusa Paula Atena proferiu o primeiro in dubio pro reo da história. E absolveu Orestes.

O que tiramos disso? O (i) papel do Direito — interrompe-se a vingança e se impõe o império do direito; (ii) autonomia do Direito — o ódio (chamemos de moral) é contido pelo processo judicial e (iii) o valor da imparcialidade. Eis a importância do procedimento como condição de possibilidade. O direito como “assim não!”

Vem o logos e supera a physis. Vem o logos e supera o mito. O verbo como princípio. E no princípio, era o verbo. Passamos a explicar o mundo pela palavra, pela filosofia (no Brasil, paradoxalmente, criamos mitos para “explicar” o logos; por isso temos tanta mitologia: livre convencimento, verdade real, in dubio pro societatepas de nullité e tantos outros, tanta ficções que, por convenção, instrumentalizam aquilo que é tudo, menos instrumento).

E chegamos a 2021, quando o presidente do Supremo Tribunal, decidindo questão de ordem, estabelece que o empate em um julgamento não beneficia o réu.

Divirjo. Os gregos já sabiam que o Estado é o grandão, o forte; sabiam que, na dúvida, a razão deveria estar com o débil. Muito melhor do que Hobbes, os gregos sabiam que o direito não é aquilo que o Leviatã põe; é aquilo que o controla. Orestes estava lascado; cometeu o pior dos crimes; mas — e aqui está o busílis — o julgamento o salvou. E, como os jurados não formaram maioria, o empate foi utilizado em favor do débil.

Essa é a tese civilizacional (são cinco grandes fases da autonomização do Direito em face da moral, que explico em vários textos).

De há muito advirto para a inadequação da “tese” in dubio pro societate. Não é que ela não tem guarida na CF: ela não tem é guarida na civilização ocidental, e quem diz isso é a primeira juíza, Palas Atena. O que poderia ser menos pró-sociedade do que a fragilização da autonomia do direito?

Por isso, sustentado no grande legado da modernidade — a epistemologia — é possível afirmar que, na disputa entre Estado e cidadão der empate, a vitória tem de ser dada ao mais fraco. Como princípio. Como padrão estabelecido na comunidade. Como critério de legitimidade de uma República.

O Direito que não protege o mais frágil em face do mais forte, sendo apenas um instrumento da vontade deste último, é qualquer coisa. Menos Direito.

in dubio pro reo não é questão “excepcionalíssima”. Excepcional é um sistema jurídico que sacraliza esse tipo de tese antijurídica como se jurídica fosse.

Para registro: desde 1841 (Lei n. 261) e do Código Criminal do Império o Brasil respeita o in dubio pro reo em matéria criminal, de onde é estranho que ainda se fale na sua antítese, o in dubio pro societate. Ferrajoli, por exemplo, diz que o in dubio pro reo é o condutor do direito processual penal moderno.

21
Abr21

Plenário do STF decidirá se juiz que grampeia advogado é suspeito

Talis Andrade

stf – Página: 2 – Angelo Rigon

  • POR LENIO STRECK e MARCO AURÉLIO DE CARVALHO

     

    Não queremos simplificar o problema fazendo uma espécie de legal design ao resumir um complexo problema em uma frase. Não. Apenas chamamos a atenção, no título, para o que de fato está em jogo no dia 22 na Suprema Corte.

    O juízo da 13ª. Vara então comandada por Moro já foi considerado incompetente por 8×3. Causa finita. Resta, agora, confirmar o que nem poderia ir a julgamento.

    Explicaremos. O STF decidirá dia 22 se confirma a suspeição de Moro, já julgada pela segunda turma da Corte. A questão é: por que julgar de novo algo que já foi decidido pelo juízo natural?

    A boa doutrina processual penal (e não a do processo civil) assenta que a suspeição é uma circunstância personalíssima, intransferível. Sendo bem simples, a suspeição é como peste: onde o juiz suspeito meteu a mão ou respirou, contaminou. Digamos assim: a suspeição, de tão nefasta, “não tem preço”. Ela é mais grave que tudo, porque mexe com o “sagrado do direito” à imparcialidade. Juiz suspeito é, assim, um jus-herege.

    Esta condição de suspeição, uma vez reconhecida, invalida todo e qualquer ato, e todo e qualquer processo, em que estiverem, de um lado, o juiz suspeito, e de outro, o “réu-alvo”. A dizer ainda mais claramente : de um juiz suspeito, nada se aproveita.   

    Parece simples, pois não? Afinal, tanto já se escreveu sobre esse tema. Todavia, nem sempre as coisas fáceis são assim entendidas. O que no direito pode ser fácil, com a sua instrumentalização pela política pode “complicar”. E sabemos que não deveria ser assim.

    O processo avançado de politização do judiciário e de judicialização da política nos trouxe para os dias de hoje. Com o enorme desafio de resgatar e recredibilizar as instituições.

    Desde o início, a competente defesa técnica de Lula sustentou que o juízo de Curitiba era incompetente para julgar casos que teriam supostamente acontecido em São Paulo ou em Brasília. Ocorre que Moro, porque sempre foi parcial e suspeito, manipulou a competência, criando uma pan-competência. Algo como “usou gasolina Petrobras, traz pra mim o processo” (aliás, essa brincadeira é de autoria da Força Tarefa do MP). Moro manipulou o caso Janene (isso está na página 228 do livro da Juíza Fabiana), caso esse, aliás, equivocadamente esgrimido pelo Min. Marco Aurélio no julgamento do dia 15. Veja-se que a correta visão de fatos ajuda a entender o direito. Se começa mal, termina mal.  

    O caso nos parece, desse modo, um easy case. Porque, se nos permitem simplificar, resolúvel por subsunção. Na verdade, foi o próprio Ministro Fachin quem classificou o caso como simples, subsuntivo, quando decidiu pela incompetência de forma monocrática, tudo na conformidade do RISTF. Não havendo controvérsias, o ministro pode e deve decidir monocraticamente. A história, entretanto, fez o registro de constrangedoras contradições. 

    Mas isso passou. Agora o julgamento do dia 22 diz respeito a uma afetação do Plenário do STF de uma decisão já julgada pela segunda turma, o que parece ainda mais grave. Aqui é necessário um registro que estava passando despercebido, lembrado pelo Ministro Gilmar Mendes em entrevista ao jornal Estado de São Paulo neste fim de semana. 

    Ocorre é que a afetação da suspeição ao plenário havia sido proposta por ele, Ministro Gilmar, já em 2018, mas foi negada por 3×2. Fato relevantíssimo. Portanto, ao ser negada, firmou-se o juízo natural: a segunda turma. E sobre isso, com sabemos, nenhuma dúvida poderia ser suscitada.

    Observe-se: o Min. Gilmar foi contra a afetação à época. Já o Ministro Fachin podia inclusive ter levado a questão ao pleno por sua conta. Ora, Gilmar dera a chance para a afetação. Propusera levar ao Plenário antes do julgamento. Como questão primeira. Agora, a segunda turma já julgou. Mais uma razão – ou a principal – de se poder dizer que a suspeição é causa finita. 

    Resta agora, estando a causa julgada, estender os efeitos da suspeição de Moro. Isto porque o caso do triplex é o paciente zero da pandemia suspeitosa; basta seguir o rastro do vírus.

    Sustentados na boa doutrina processual penal, nem é necessário discutir a teoria do juiz aparente. Moro foi incompetente – e assim permaneceu durante anos – porque era suspeito. Consequência: não há como aproveitar provas produzidas sob a presidência de um juiz que reúne as duas mais graves máculas processuais num só corpo: a incompetência e a suspeição.

    Mais um detalhe que também está passando despercebido: se a denúncia  contra Lula foi elaborada pela Força Tarefa do MPF de Curitiba, foi feita em foro incompetente. Assim, o próprio MPF de Curitiba não tinha atribuição legal para analisar o inquérito ou oferecer denúncia. E muito menos agora teria atribuição para aproveitar provas nas quais atuou quando não tinha atribuição legal. Isto tem nome: Promotor Natural. Ou não vale mais?

    Por isso não há que se falar em aproveitamento de provas. Parece intrigante se falar em (in)competência relativa em razão do lugar. Dizer que a incompetência, por ser nulidade relativa, teria que provar o prejuízo é como uma ordália invertida. Qualquer pessoa condenada por juízo incompetente sofre prejuízo “ontológico”. Afinal, é ou não verdadeiro que ser julgado pelo juízo natural e por um juiz imparcial são as coisas mais importantes do Direito? 

    O que se quer dizer, temendo pela redundância, é que, estando a suspeição já julgada no juízo natural, não tem sentido o STF dizer que “sim, houve suspeição, porém ela fica ‘prejudicada’ pela incompetência do juízo”. Suspeição de juiz e incompetência de juízo são coisas diferentes. Uma pode decorrer de outra. Mas não se pode querer sustentar que a incompetência precede ou prejudica o vício da suspeição. Não se pode misturar alhos com bugalhos.

    Veja-se: estando a suspeição já declarada, teríamos a mais arrebatada ficção jurídica já feita: um juiz suspeito que grampeou advogados do réu (para citar apenas esse ato) é declarado suspeito-parcial pelo juízo natural, mas seus atos valem porque sua suspeição foi considerada prejudicada. Ela existe, mas não existe.

    Ao fim e ao cabo, o que fica para a história do direito e será material para os arqueólogos e suas escovas é bem mais simples: pela primeira vez, por razões político-ideológicas, um juiz atuou em processos para os quais não era competente, manteve preso um réu por exatos 580 dias, afastou-o da corrida presidencial , e ainda por cima, foi ser ministro do governo que ajudou a eleger. 

    Moro conseguiu um feito único: ser, ao mesmo tempo, incompetente e suspeito. 

    Como já tivemos a oportunidade de denunciar, os processos conduzidos pelo Moro começaram pelo fim. Moro atirou a flecha e depois pintou o alvo. É o Target Effect 

    Por isso, por fim, pedimos escusas pelo título forte. Porque é disso que se trata. Um Estado que pratica o rule of law, que é mais do que o mero Estado de Direito formal, não pode admitir que o juiz de uma causa, para alcançar o fim almejado, grampeie os telefones dos advogados do réu e cometa tantas outras ilegalidades. 

    Atitudes como as tomadas por esse juiz dão razão à bizarra exigência do velho CPP, que, para que se declare a suspeição de um juiz é necessário que ele seja inimigo capital do réu. Sem dúvida. Porque, cá entre nos, só um inimigo capital manda interceptar, ilicitamente, os telefones dos advogados de seu adversário e vaza, seletivamente, áudios de conversas. 

    Com a devida vênia, não achamos, assim, que o título deste texto esteja exagerado.

Charges | Humor Político – Rir pra não chorar | Rir pra não chorar, Humor  político, Memes engraçados

30
Mar21

Nota de repúdio a artigo do general reformado Sérgio Etchegoyen

Talis Andrade

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  • POR GRUPO PRERRÔ

     

    O Grupo Prerrogativas, composto por juristas e advogados, expressa veemente reprovação ao artigo publicado pelo general reformado Sérgio Etchegoyen, em 25/3, no site do Clube Militar, em que o ex-ministro do governo Temer critica o Supremo Tribunal Federal, fomentando inconformismo com o regular exercício das funções judiciais constitucionalmente asseguradas ao STF. Não é admissível num regime democrático a tentativa de converter matérias analisadas tecnicamente pelo Poder Judiciário em pretextos para a anômala intromissão de militares em assuntos que não pertencem à sua competência institucional. A carência de conhecimento jurídico e o afã de reaparecer na cena pública, para fugir do ostracismo em que o fracasso do governo Temer o lançou, levaram o general Etchegoyen a cometer diversos equívocos e a produzir um gesto de insensatez ao publicar esse artigo.

    As decisões do STF que proclamam a incompetência do foro de Curitiba e a parcialidade do ex-juiz Sérgio Moro, ao contrário do que presume o general, não “aprofundam a insegurança jurídica”. Na verdade, essas decisões restauram a segurança jurídica, ao fazer predominar os predicados do juiz natural e da imparcialidade judicial. Longe de fazer retroceder a luta contra a corrupção, as decisões do STF promovem o seu aperfeiçoamento, refreando a imprópria politização da justiça criminal.

    Como exaustivamente exposto no âmbito do Supremo Tribunal Federal, o caso Lula revelou a produção de provas contestáveis pela acusação, em clara articulação com o juiz da causa, com o propósito de sacramentar uma sentença que já se conformara antes mesmo de iniciado o processo formal. Dentre os resultados de tal procedimento espúrio, o acusado ficou impossibilitado de se submeter ao escrutínio democrático e viu-se privado da liberdade por 580 dias. Enquanto isso, sua pena rendeu ao julgador da causa a nomeação para o ministério de seu principal adversário eleitoral.

    O direito a um julgamento justo é pressuposto basilar da democracia, estrutura política em que forma e conteúdo se articulam continuamente. Se os procedimentos não devem servir de impedimento para que sejam alcançados os propósitos republicanos, tampouco essas finalidades podem servir de obstáculo ao cumprimento da liturgia elementar do exercício do direito de defesa. A pretensão reiterada de alguns integrantes e ex-integrantes das instituições militares, no sentido de interferir em decisões judiciais e constranger autoridades civis, subverte os mandamentos constitucionais e deve ser objeto de reprovação pública.

    Causa-nos perplexidade e espanto a oudadia que o general reformado demonstra ao defender o indefensável.

    Parece ignorar o quanto as colaborações internacionais clandestinas, celebradas por integrantes da Força tarefa de Curitiba com outros países, prejudicaram setores estratégicos da nossa indústria nacional, gerando, segundo dados do Dieese, em um rastro de destruição encomendada, a perda de mais de 04 milhões de postos de trabalho e de mais de R$ 172,2 bilhões de reais em investimentos e distribuição de riquezas ( considerados apenas os anos de 2014 a 2017).

    E isto, de fato, “não foi uma miragem”. Assim como também não o foi o vergonhoso tweet de um outro general com o objetivo de interferir diretamente nos destinos de um hc impetrado pela defesa técnica do ex-presidente Lula.

    “Nunca antes na história deste país”, ignora o general, houve um atentando tão claro a princípios fundantes do nosso Estade de Direito e da nossa jovem Democracia.

    As mensagens publicizadas pela Operação Spoofing revelaram ao Brasil e ao mundo o que sempre soubemos e denunciamos.

    Com um projeto político, e com claros objetivos eleitorais, um juiz inquisidor coordenou o trabalho de integrantes do Ministério Público em um processo que começou pelo fim. A pretexto de se combater a corrupção, o que é meritório, este juiz corrompeu pilares importantes do nosso sistema de justiça.

    Reacreditá-lo, pois, é a melhor resposta e a única saída.

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