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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

01
Abr23

Gilmar reconhece suspeição de juíza do "caso Cancellier" e abre divergência

Talis Andrade

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por Rafa Santos

 

A imparcialidade do juiz é pressuposto da existência do processo penal democrático. Por isso, embora o magistrado deva apontar de forma circunstancial a existência de indicadores de materialidade, autoria e tipicidade do crime imputado ao réu ao afastar pedidos da defesa ou acatar solicitações do Ministério Público, a ele não é permitida a antecipação de juízos categóricos a respeito da acusação.

Esse foi o entendimento do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, ao abrir divergência no julgamento de agravo regimental interposto contra a decisão que negou seguimento a recurso extraordinário contra a rejeição de uma exceção de suspeição ajuizada pelo professor Eduardo Lobo contra a juíza federal substituta Janaina Cassol Machado, da 1ª Vara Federal de Florianópolis.

O pedido de suspeição versa sobre ação penal que apura supostos crimes na administração da Universidade Federal de Santa Catarina e que levou ao afastamento e à prisão preventiva de Luís Carlos Cancellier de Olivo, reitor da UFSC, no dia 14 de setembro de 2017. Ele foi solto um dia depois, mas continuou afastado do cargo e proibido de frequentar a universidade, e cometeu suicídio 19 dias depois. 

O julgamento sobre a suspeição da magistrada que conduz a ação penal ocorre no Plenário Virtual do Supremo. O relator da matéria, ministro Edson Fachin, votou pelo não provimento do pedido e foi acompanhado pelo ministro André Mendonça. 

Fachin votou por indeferir a solicitação com o argumento de que a exceção de suspeição pedida pelo autor do recurso implicaria na violação da Súmula 279 do STF, que veta o reexame de fatos e provas constantes dos autos pela corte.

Sem reexame

Ao abrir a divergência, Gilmar Mendes argumentou que a análise do pedido poderia ser feita sem o reexame de nenhuma prova, restringindo-se apenas à possibilidade de violação dos artigos 252 a 254 do Código de Processo Penal, que tratam das hipóteses de suspeição dos juízes criminais.

O decano do STF analisou cada um dos sete pontos apontados pelo autor do recurso para justificar a suspeição da juíza Janaina Cassol Machado e afastou seis deles. Contudo, em relação à alegação de fundamentação abusiva, ele deu razão ao professor. 

Gilmar entendeu que, em sua decisão de receber a denúncia, documento com mais de 300 páginas, a magistrada cometeu excessos de linguagem e fez afirmações categóricas e imperativas em concordância com a tese do MP. Desse modo, a julgadora antecipou o desfecho da ação penal e se tornou suspeita. 

"Como se constata dos termos utilizados pela magistrada, embora em alguns momentos a decisão adote o tom condicional, parte significativa da motivação assume de modo categórico a existência da organização criminosa, de diversas condutas já declaradas ilícitas e a responsabilidade penal de diversos acusados, antecipando a condenação, com o transbordamento dos limites da decisão interlocutória de admissão da acusação", registrou Gilmar em seu voto. 

O ministro lembrou que tanto a acusação quanto a defesa precisam ter a possibilidade, em abstrato, de provar suas hipóteses sobre a imputação de um crime e que isso foi vedado por manifestação parcial da juíza quanto ao mérito no caso concreto. 

Gilmar também sustentou que a antecipação de culpa nesse caso se relaciona com o suicídio do reitor Luiz Carlos Cancellier.

"Se Cancellier não teve direito à devida investigação, munida das garantias constitucionais, a partir da presunção de inocência e do devido processo legal, neste momento cabe garantir a todos os demais acusados que somente possam ter a culpa atribuída ao final do processo, depois de efetivado o contraditório e a ampla defesa sob mediação de julgador imparcial."

Clique aqui para ler o voto de Gilmar Mendes
Clique
aqui para ler o voto de Edson Fachin

 

 

 

23
Jan23

Da lava jato à Presunção de Inocência: a minha procuração invisível!

Talis Andrade
 
 
O Livro das Suspeições: o que Fazer Quando Sabemos que Moro era Parcial e  Suspeito? | Amazon.com.br
 
 

 

Por Lenio Luiz Streck

 

1. Acepipes epistêmicos sobre os anos ius plúmbeos recentes

Evandro Lins e Silva falava de um "mandato popular invisível" — como uma "procuração invisível" para defender ideias. Fernando Fernandes me lembrou disso há alguns dias.

Aqui me permito fazer o mesmo — em 2.589 palavras. Reserve 12 minutos para a leitura. Passados os anos ius plúmbeos do império da lava jato e dos anos de suspensão da presunção de inocência, penso que devemos fazer um rescaldo, uma espécie de memória do que ocorreu. E verificar se fazemos (ou fizemos), com H.G. Gadamer, uma boa wirkungsgechichtliches Bewußtsein — isto é, uma análise acerca da força dos efeitos que a história tem sobre nós.

A história ensina. Ou não. Ensina mostrando, mais do que dizendo, wittgensteinianamente. O dia 8 de janeiro é um cutuco da história.

 

2. O ovo da serpente e o feitiço do autoritarismo: ele sempre está à socapa

Será que aprendemos com a história? Sentimos a força dos seus efeitos? Talvez. O ovo da serpente nunca é percebido suficientemente.

Contar a história faz parte da própria historicidade, corretamente compreendida. Conto, logo existo. É o que estou fazendo aqui. Com a "procuração" (invisível) a la Evandro Lins e Silva. E com a responsabilidade epistêmica de um jurista comprometido com o debate público, com a democracia, e com respostas corretas (que podem ser demonstradas).

Antes da lava jato houve o mensalão. Foi quando escrevi que "o direito, a partir de então, seria AM-DM (Antes e Depois do Mensalão). O texto é de 2012 (ver aqui). Uma pena que não errei. Avisei de há muito.

O fato é que o projeto de poder da lava jato encantou (até no sentido de "enfeitiçou") a comunidade jurídica, midiática e política. O ovo da serpente foi também um encantador de serpentes. Como na Itália com a Mãos Limpas. O velho e atávico udenismo (às vezes veste toga) sempre está no cio. Fórmula agora aperfeiçoada: amaldiçoar os políticos e no seu lugar colocar outsiders. Bem se viu (e se vê) o que fazem outsiders. Basta olhar pela janela. Eis aí o 8J.

O pesquisador Fábio de Sá e Silva sublinha, em bela entrevista à Folha: "Existe uma linha de continuidade entre Lava Jato e ataques golpistas". E eu digo: bingo, Fábio.

 

3. Destruíram a política. Com isso, de baciada, quase destruíram o país (eis o 8 J como prova).

Explico e demonstro. Com a criminalização da política, a fragilização das instituições é (i)mediata. A sede insana de autocratismo. Não é por nada que, dia sim e outro também, o artigo 142 era invocado para justificar intervenção militar e quejandices mil. O direito contra o direito. Uma hermenêutica às raias da delinquência de Hermes. O então presidente da República, militares, gentes do direito, ex-frequentadores de bingos, radialistas, pastores (tem um monte deles presos) — todos transformados em vivandeiras. Gozavam, ao bulir com os granadeiros...!

Poucos se deram conta do(s) ovo(s) da(s) serpente(s). De 2014 em diante (tudo já estava se desenhando em 2013).

Pergunto: quantos integrantes da comunidade jurídica perceberam que o lavajatismo incubava o autoritarismo e o próprio bolsonarismo que, paradoxalmente, já existia (dormitava) mesmo sem Bolsonaro? Muito poucos. Um pouco de poucos.

Muita gente progressista achou que a lava jato era a redenção... Mal sabiam que ali estava o ovo da crotalus terificus (cascavel). Por falar em nomes científicos, parabéns à OAB da Bahia. Lá propõem — e isso vai para ser apreciado na OAB nacional — que advogado que apoia golpe e golpismo "ganha" o certificado de inidôneo. Muito bom. Advogado que quer extinguir a democracia é um caracidio da espécie hoplas malabaricus (mais conhecido como traíra).

 

4. Do Fusca à Kombi, da Kombi ao ônibus e do ônibus à frota

No princípio eram os resistentes. Que só possuíam o verbo. No princípio mal enchiam uma Kombi (há poucos dias ainda conversava sobre isso com o nosso capitão do time do Prerrô, o querido Marcelo Nobre; ele tem isso muito claro!). E sofremos muito. Lembro de meu debate com Moro em 2015. Tempos difíceis. Recordo de um texto que escrevi, em 2015, mostrando o panorama: diagnosticava então, que o direito seria, inexoravelmente, ALV-DLV (Antes da Lava Jato e Depois da Lava Jato). Avisei de novo.

Em linguagem bélica, digamos que o lavajatismo foi uma blitzkrieg ou a guerra dos seis dias. À sorrelfa. Demorou para que os resistentes nos reorganizássemos. Juntar os cacos. Os tiros vinham de todos os lados.

Mas não bastava combater os desmandos (hoje plenamente demonstrados) da lava jato, a ponto de até o juiz Bretas, hoje, se autodeclarar incompetente.

A luta era desigual. Tudo era possível — e com o auxílio da grande mídia. Mas a lava jato tinha seu super trunfo. E qual era?

Respondo: algo que o próprio governo petista ajudou a construir: a delação premiada, premiadíssima. Uma autêntica pedra filosofal para obter condenações, pela qual os próprios acusadores escolhiam os advogados dos delatores (isso ainda está pendente de um encontro com a história; a ave de Minerva ainda há de levantar voo).

 

5. O fim da presunção da inocência como vitamina para a lava jato

Em 2016 a tempestade ficou mais que perfeita. Falo do turning point do STF na presunção da inocência (HC 126.292). Naquela tarde, sem aviso, o ministro Teori tirou da manga esse HC. E o STF, por maioria, disse ser inconstitucional aquilo que ele mesmo havia decidido (2009) e que, por isso mesmo, havia sido transformado em lei em 2011.

O canto das sereias da "voz das ruas" fez com que se dissesse que a CF diz o que ela nunca disse. Fez com que se contrariasse dispositivo legal que repete exatamente o que diz a CF. Contrariando todo o espírito, toda a lógica estruturante da Carta, em sua densidade principiológica. Como o mundo é esférico e não quadrado, ele dá voltas, muita gente — agora enrolada — que antes esbravejava contra, ainda agradecerá a todos os que lutaram pela presunção da inocência.

Sigo. Hoje é possível afirmar que o giro jurisprudencial do STF em 2016 foi o combustível que faltava à lava jato. Além de ser o triunfo do que pregavam Moro e o MPF, facilitava prisões. A imprensa vibrava. O gozo indizível de ver o moralismo triunfar.

Repórteres, jornalistas e jornaleiros sabiam antes que os acusados das operações madrugadoras. Era a nova era da comunicação direta juiz-procuradores-imprensa. Rejeitaram a mediação até nisso.

E o interessante é que quase 70% da comunidade jurídica (os números são sujeitos a uma auditoria, mas que não seja a das Lojas Americanas — mas é por esse entorno) era contra a presunção da inocência... e coincidentemente a favor da lava jato. Um espelhava o outro.

 

6. Para além da lava jato, surge uma nova frente de batalha: as ADCs 43, 44 e 54

Então, ao lado do enfrentamento do lavajatismo alimentado por um lawfare sem precedentes, tínhamos que enfrentar o novo posicionamento do STF que, naquele momento, parecia render-se aos encantos da lava jato.

E entramos também de cabeça nessa nova frente. Fui um dos subscritores da ADC 44 (Kakay fizera minutos antes o protocolo da ADC 43 — os argumentos não eram exatamente iguais, frise-se, embora buscássemos a mesma coisa; a diferença era que a ADC 44, da OAB, não aceitava a "hipótese STJ", espécie de "terceira via").

Perdemos a liminar e aí começou a luta. Três longos anos. Longos, mesmo. De um lado, a poderosa lava jato e a mídia; de outro, a busca por pautar as ADCs. Até pautar era difícil. Pouca gente sabe, mas chegamos a ingressar com uma ADPF para demonstrar que a falta de pautamento das ADCs já era, em si, uma violação de preceito fundamental. O STF, porém, a fulminou. Para ver como foi difícil esse conjunto de batalhas.

 

7. A condução coercitiva, os processos e a condenação: o fator Lula

A luta foi crescendo. Com o passar do tempo já enchíamos um ônibus, por assim dizer. Aí entra o "fator Lula". Explico: quando ingressamos com as ADCs, Lula não era nem indiciado. E, no meio do caminho, Lula foi indiciado, conduzido à força ilegalmente [1], denunciado e julgado. E preso. Por quase dois anos.

Foram muitas frentes de lutas. Ainda por cima surgiu a guerra contra as Dez Medidas propostas por Moro e o MPF, que queriam introduzir — pasmem e se apavorem — prova ilícita de "boa-fé" e quase-acabar com o HC, entre outras barbaridades. Isso não é ficção. Existiu. Para verem que tempos vivenciamos.

Sim, veja-se a ousadia do lavajatismo. A sorte nossa é que o projeto das Dez Medidas funcionou como o dilema do trapezista morto: ao se achar tão bom e tão magnifico, pensou que poderia voar.

Sigo. Se de um lado fazíamos a peregrinação cotidiana pela presunção da inocência, de outro, sem procuração de Lula (porque ele tinha seus competentes advogados), lutávamos republicanamente por apontar aquilo que representava o começo do fim do devido processo legal em um Estado Democrático de Direito: um ministério público não-isento em conjuminação com o juiz pan(in)competente. Para piorar, no meio disso, até mesmo uma juíza tentou retirar as prerrogativas de ex-presidente de Lula, para cujos advogados fiz parecer pro bono mostrando os equívocos da decisão.

Decisões injustas. Porque na democracia o critério público, publicamente verificável, de "justiça" é o direito. Não a opinião pessoal do juiz, da juíza, sua ou minha. Juiz decidindo por convicção, mesmo sem provas. Inventaram novos métodos. Faltou só usar o pintinho envenenado da Tribo dos Azende.

O corolário de tudo foi a decisão do TRF-4, que explicitou a parcialidade e falta de isenção do MP. Disse a decisão (aqui): "Não é razoável exigir-se isenção dos procuradores da República, que promovem a ação penal".

O que mais precisa(va) ser dito?

 

8. O Grupo Prerrogativas e a busca dos fundamentos dos fundamentos: o dever de fazer constrangimentos epistêmicos

E aqui tenho de falar do Grupo Prerrogativas que se jogou de cabeça nessa "Operação Devido Processo Legal" (chamemo-la assim). Capitaneados por Marco Aurelio de Carvalho, não imaginávamos o nosso papel. Nem seu alcance, tamanho e dimensão política.

Tentando explicar a complexidade desse nosso modus operandi: fizemos aquilo que venho chamando de há muito de "constrangimento epistemológico", uma derivação daquilo que o grande Bernd Rüthers denunciou da doutrina alemã quando da ascensão do nazismo. Por isso ele escreveu o premiadíssimo livro Die unbegrenzte Auslegung (Uma Interpretação Ilimitada ou, assim prefiro, uma Interpretação Não Constrangida).

Sendo mais claro, fizemos por aqui, em terrae brasilis, o que a doutrina e a comunidade jurídica alemã não haviam feito naqueles anos plúmbeos da ascensão nazista. Denunciamos, nos processos da lava jato, o que Meier-Hayoz, endossado por Rüthers, chamou de — tenho adoração por esse conceito — "carência fundamental de fundamentos" (grundsätzliche Grundsatzlosigkeit). Isto é: o fundamento era o não fundamento — a simples vontade de poder.

No caso das ADCs, fomos vencedores por atuação direta, três anos depois de perdermos a liminar. A luta terminou no segundo semestre de 2019, culminando com a libertação de Lula. Isso gerou o livro O Dia em que a Constituição foi Julgada, coordenado por mim e Juliano Breda em edição da RT. Nesse livro aparecem todos os protagonistas, como Defensoria e tantas entidades valorosas. Está tudo ali, tim tim por tim tim.

Quanto à lava jato, tudo acabou com apertada maioria do STF julgando Moro incompetente e parcial. Nesse trabalho de convencimento, já aos poucos foi crescendo o número de juristas que se deram conta daquilo que o ovo da crotalus terrificus havia gestado, auxiliado que fomos nessa tarefa com o surgimento da Vaza Jato – cujos dados escabrosos nem foram necessários para a declaração da parcialidade de Moro, embora em termos de opinião pública tais revelações tenham sido de extrema importância. Inegável esse fato.

Escrevemos, o Grupo Prerrô — dois livros sobre a parcialidade de Moro: O Livro das Suspeições abriu a trilogia, com o subtítulo O que fazer quando sabemos que sabemos que Moro era parcial e suspeito?, organizado por Carol Proner, Lenio Streck, Marco Aurelio de Carvalho e Fabiano da Silva Santos. O segundo foi O Livro das Parcialidades. Completando a trilogia, em breve lançaremos O Livro dos Julgamentos. E falta talvez um quarto livro: que deveria ser escrito por Rochinha e Manoel Caetano. Seria ótimo!

Em termos de artigos, contabilizei incontáveis textos solo (são incontáveis mesmo) e mais outros tantos em coautoria com Marco Aurelio e Fabiano. Incluo aqui artigos publicados nesta ConJur, nos grandes jornais do país, mais periódicos e capítulos de livro. Foram mais de 200 escritos.

E também centenas de entrevistas em rádio, TV e sites como DCM, 247, TVT, Fórum, My News, Pannunzio (TV Democracia) e ICL que fizeram uma muralha de resistência contra as investidas neo-udeno-lavajatistas como a de um famoso jornalista que, dia sim e outro também, tocava terror na população, dizendo que, vencêssemos a batalha da presunção da inocência, 170 mil corruptos, estupradores, proxenetas e quejandos seriam imediatamente liberados (e isso me deu muito trabalho respondendo a esse jornalista). Tudo sempre devidamente respondido nos grandes veículos (Folha, O Globo e Estadão). Era bateu, levou. Cumprindo assim um dever republicano de participação no debate público, na esfera pública, desmistificando lendas urbanas e mentiras — informações falsas.

 
O Livro das Parcialidades - Editora Telha
 

9. De como nós, advogados, fôssemos médicos... haveria passeatas contra antibióticos ou "como garantias passaram a ser 'filigranas'"

E as garantias processuais-constitucionais passaram a ser chamadas de "filigranas". Assim começa essa nova fase (filigrana foi a palavra usada por Dallagnol quando um colega seu perguntou sobre se o que estavam fazendo não feria a CF; ao que respondeu: isso é filigrana). Agora o termo "filigrana" passou a ser usado contra a anulação dos processos de Lula.

Isto é, para quem pensou que a nossa "Operação Devido Processo Legal" havia terminado e os guerreiros pudessem descansar, iniciou a campanha política pela qual se desqualificava, cotidianamente, a decisão do STF que anulara as sentenças de Lula e considerara Moro suspeito-parcial.

Muita gente da mídia (coincidentemente os mesmos que amaldiçoaram a presunção da inocência) chamou as decisões do STF de "filigraneiras". Isto é: anularam por anular. STF "usou de formulismo", diziam.

E lá fomos nós novamente. Só nessa nova fase foram mais 60 artigos e mais de uma centena de lives e entrevistas em grandes e pequenos veículos. Somados com os 200 dos quais falei acima, calculemos tudo o que foi feito (falei disso também no Programa WW, CNN, dia 5/1/2023acesse aqui a entrevista).

Somando tudo — rádio, TV, mídia alternativa, textos escritos — foram mais de 700 inserções. Isso de minha parte, na modalidade solo e em coautoria (Marco e Fabiano). Agora imaginem se adicionarmos o que fizeram os demais membros do Prerrô (Pedro Serrano, Carol Proner, Kakay, Mauro Menezes, Fernando Fernandes, Cattoni e tantos outros — impossível citar a todos; a listagem aqui é exemplificativa).

Numa palavra final: como Evandro Lins e Silva, de posse de "procuração invisível", achei que "meus constituintes" mereciam uma accountabillity, a devida prestação de contas deste incomensurável "mandato sem papel e sem assinatura" que nos foi conferido — a mim e aos meus parceiros que primeiro enchiam uma kombi e que, ao final, enchemos muitos e muitos ônibus.

E, é claro, sempre haverá quem queira, mesmo chegando atrasado, sentar-se à janela e pegar ar fresco. Mas isso faz parte da própria democracia. É do jogo. Até porque não se deve ter compromisso com os erros do passado — por omissão ou comissão.

Pensamos que terminara? Chegou o dia 8 de janeiro.

E lá vamos nós de novo! Cá estamos!

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[1] Sugiro a leitura de dois textos: Lenio critica condução coercitiva e Crítica aos HC 126.292, de Marcelo Cattoni, Diogo Bacha, Alexandre Bahia e Flávio Pedro

26
Mar22

O abuso de poder de Deltan Dallagnol

Talis Andrade

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Por Kenarik Boujikian /ConJur

O Superior Tribunal de Justiça, por sua 4ª Turma, em decisão datada desta terça-feira (23/2), julgou o Recurso Especial 1.842.613 proposto pelo ex-presidente Lula e condenou Deltan Dallagnol, ex-procurador da República, coordenador à época dos fatos da chamada operação "lava jato" no âmbito do Ministério Público Federal, ao pagamento de indenização, por ter acarretado danos morais.

O fato indicado no pedido diz respeito aos atos praticados pelo ex-procurador durante uma entrevista coletiva transmitida ao vivo, convocada para ser realizada em um hotel, em setembro de 2016, durante a qual  houve a exibição de um Power Point, que ficou amplamente conhecido da população através da imprensa nacional e internacional.

Na entrevista, na qual estavam presentes outros procuradores e policiais federais, Deltan apresentou conteúdo ofensivo contra o presidente Lula, seja por meio das mensagens contidas nos círculos do programa de computador, que convergiam por setas para a figura central de Lula, seja pelo que verbalizou, naquela oportunidade.

Este é um dos capítulos que mostram como o lawfere foi exercitado aqui no Brasil e o quanto é danoso para o sistema democrático, quando os agentes de Estado distorcem suas funções. Igualmente, nos mostra como é essencial repudiar e impedir os julgamentos midiáticos.

Papa Francisco apontou estes males, em algumas oportunidades. Pude ouvir diretamente dele, no Congresso da Cúpula Pan-Americana de Juízes sobre Direitos Sociais e Doutrina Franciscana, convocado pelo Vaticano, realizado no dia 4/6/2019 e que tinha juízes de vários países como público:

"Aproveito esta oportunidade de me encontrar convosco para vos manifestar a minha preocupação por uma nova forma de intervenção exógena nos cenários políticos dos países, através do uso indevido de procedimentos legais e tipificações judiciais. Além de pôr em grave perigo a democracia dos países, geralmente o lawfare é utilizado para minar os processos políticos emergentes e tende para a violação sistemática dos direitos sociais. Para garantir a qualidade institucional dos Estados, é fundamental relevar e neutralizar este tipo de práticas que derivam da atividade jurídica imprópria, em combinação com operações multimidiáticas paralelas. Não me detenho a propósito deste ponto, mas todos nós conhecemos o juízo mediático prévio"  (negrito meu.

Ressalto que a lide foi bem delimitada pelo ministro relator, que indicou que o ponto era exclusivamente identificar se na entrevista, na qual  houve a apresentação do power point,  houve abuso no poder de narrar a denúncia, se ele agiu com excesso ou dentro da normalidade; se Deltan extrapolou e se esta conduta causou dano moral, ao ferir os direitos da personalidade e direitos fundamentais.

A decisão do STJ foi que o Deltan extrapolou todos os limites com afirmativas ofensivas, inclusive usando de situações incongruentes com a própria denúncia que apresentara, cujo resultado, como sublinhado pelo ministro, é indiferente para a ação que julgavam.

Um exemplo claro que permitiu esta conclusão foi a expressão usada: comandante máximo da organização,  general da organização, sendo que sequer constava da denúncia o crime de organização criminosa, que era objeto de um outro processo.

Sobre este aspecto, lembre-se que em outro julgamento (Reclamação 2.548) , o ministro Teori Zavaski, alertara da espetacularização da entrevista, com elementos que não constam da denúncia.

Em verdade, o denunciado foi apresentado como condenado fosse, com adjetivações negativas, agressivas e incompatíveis com a dignidade da pessoa humana, sem respeito ao devido processo legal, ao princípio da presunção de inocência, para apenas causar constrangimento ao denunciado e para desconstruir a sua pessoa.

Esta desconstrução encontra-se na lógica da criação da figura do inimigo, utilizada como elemento do lawfere.

Interessante a lição de Luis Manuel Fonseca Pires, que nos atenta para a constituição deste sujeito:

"A mobilização de afetos políticos para a construção social de apoio ao regime autoritário não ocorre aleatoriamente. É preciso um elemento aglutinador. Uma força gravitacional que desperte e movimente a adesão, pode ser uma imagem, uma ideia, sujeito ou grupo, um ponto de fuga para o qual convergem todos que se animam dos mesmos sentimentos que emergem com tal força avassaladora capaz de produzir o consentimento ao regime autoritário." ("Estados de Exceção", editora ContraCorrente, pg 127).

Entendo que a apresentação do Power Point e da entrevista está neste contexto da dinâmica de produção do próprio inimigo.

Não à toa, que durante o julgamento foi lembrada a decisão do CNMP, que em razão do julgamento de Deltan (após mais de 40 adiamentos), recomendou aos membros do Ministério Público o dever de se  abster de usar de divulgação para fins de político partidários.

Anote-se, como ficou claro no julgamento, que não se trata, absolutamente do dever de transparência e informação. Nada do que foi feito guarda a mínima relação com estes deveres dos procuradores da república, o que houve foi um excesso abusivo com o uso da mídia.

Um dos elementos utilizados pelo lawfare, como dito por papa Francisco, é a mídia, é a grande imprensa e sabemos, como ensinou Perseu Abramo no brilhante "Padrões de Manipulação na Grande Imprensa", os manejos possíveis da informação, sem falar em seu total desvirtuamento e a sua aquiescência aos desmandos praticados por agentes públicos.

A questão fundamental é que o processo penal do espetáculo, cuja entrevista e Power Point é um grande exemplo, mina o indivíduo denunciado ou acusado, mas não só a pessoa diretamente vinculada, senão todo o sistema democrático.

O essencial do julgamento é que se procura reconstruir o próprio sistema democrático, tão devastado e oportuniza que o Poder Judiciário cumpra seu papel de garantidor de direitos, reconhecendo a inadmissibilidade do abuso do direito por parte dos agentes que têm funções essenciais ao sistema de justiça, pois uma sociedade civilizada não aceita que um promotor descumpra o dever ético de não prejudicar os cidadãos e atue de forma arbitrária.

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15
Fev22

Com ministro Schietti e promotor Zílio, digo: Precisamos falar sobre o MP

Talis Andrade

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Por Lenio Luiz Streck

 

1. Min. Schietti pede que MP pare de ser "despachante" e promotor Zílio denuncia punitivismo medieval que matou seu irmão

Falarei, hoje, de questões institucionais. Do MP. De Castor a Dallagnoll (e a famosa fundação abortada pelo STF), passando pela investigação do TCU sobre as diárias, até a procuradora-que-virou-comentarista política em rede de TV negacionista.

O que está acontecendo com o Ministério Público? Em São Paulo, o MP é condenado por ação temerária em improbidade (pior: parece que perdeu o prazo do recurso). Bom, cada advogado por certo tem história(s) para contar — por exemplo, sobre denúncias criminais irresponsáveis (lembremos do caso Michel Temer). E o caso Beto Richa e Ricardo Coutinho.

Mas alguém poderia objetar, dizendo: são casos isolados. OK, deixemos de lado, então, esses casos. Fiquemos no plano do simbólico.

Para tal, peguemos o recente julgamento relatado pelo Ministro Rogério Schietti, ex-integrante do MP. Em um Habeas Corpus, na corte, Schietti fez um apelo ao Ministério Público de São Paulo para que seus membros deixem de atuar como meros "despachantes criminais", ocupados em simplesmente pleitear o emprego do rigor penal. Grave, pois não?

E, em contundente e emocionante artigo, o promotor do Paraná, Jacson Zílio, denuncia a morte de seu irmão, em episódio parecido com o do reitor Cancellier. Zílio diz que "o poder punitivo medieval parece sobreviver na atitude de promotores vingativos e de juízes açodados ou dóceis". O texto do promotor Zílio é autoexplicativo. Só isso já demandaria uma reunião nacional do MP.

Volto ao caso denunciado por Schietti, em que o órgão ministerial apelou de uma sentença que havia desclassificado a conduta de um homem flagrado com 1,54 grama de cocaína e R$ 64 no bolso. Nem ele e nem eu digo que não se deve punir. O furo é bem mais embaixo.

Há milhares desse tipo de caso. Em um deles, vindo de MG, houve recurso por causa de um projetil usado como pingente, questão que chegou ao STF. Na ocasião, escrevi "Na ânsia de condenar, MPF usa inversão do ônus da prova" (ver aqui). Veja-se também o HC 197.164 —STF. Sem esquecer do caso de Janaina, mulher pobre, em situação de rua, com filhos. Por isso um membro do Ministério Público entendeu que ela deveria ser esterilizada, em uma espécie de eugenia tupiniquim.

E o que dizer do assustador manifesto contra a bandidolatria (sic), não contestado pelas cúpulas da Instituição? E como esquecer que o MP embarcou — e protagonizou, escandalosamente — (n)o famoso pacote das dez medidas que propunha — pasmem — prova ilícita de boa fé e fragilizava o habeas corpus? E o que dizer de Janot-enquanto-houver-bambu-vai flecha?

Além disso, a PGR Raquel Dodge não defendeu o STF quando este sofreu ataques, fazendo com que a Corte lançasse mão do Regimento Interno. E, agora, o PGR Augusto Aras perde a oportunidade de defender a Instituição STF dos ataques do presidente da República. Atenção: além de tudo, o MP, pela Constituição, é o guardião do Estado Democrático de Direito.

Pequenas coisas...grandes consequências. Por exemplo, houve alguma reação institucional do MP nacional quando um procurador da república sustentou prisão preventiva com a pérola passarinho na gaiola canta melhor? Na verdade, o agente recebeu aplausos... Qual é o limite da independência funcional?

Como podem ver, sou testemunha da história. Escrevi sobre tudo isso ao longo dos últimos trinta anos.

 

2. E o ministro tocou na ferida...

Qual é, efetivamente, o papel do Ministério Público na nossa democracia? Essa é a ferida narcísica da Instituição. Mas parece que ninguém — ou muito poucos — querem falar disso.

Fui membro por quase três décadas. Tentei várias vezes discutir algumas questões: uma, o próprio papel da instituição, que, para mim, deveria agir como uma magistratura, de forma isenta, sem ser perseguidor implacável, ignorando nulidades e outras garantias a favor da defesa (fui candidato a PGJ — minha tese principal era essa!). Mais contemporaneamente, isso fez com que eu capitaneasse o projeto Anastasia-Streck, que pretende introduzir no CPP, mutatis mutandis, o artigo 54 do Estatuto de Roma (ou o artigo 160 do CPP alemão — ou a doutrina Brady, se quiserem). Gestão da prova — eis o ponto.

A segunda questão diz respeito ao MP de segundo grau. Nisso reside o apelo e a crítica do ministro Schietti, que bem conhece o assunto, bastando ler livros e artigos do ministro sobre isso (ler aqui). Para registro, já em 2003 Schietti, no seu livro Garantias processuais nos recursos criminais, abordava essa relevante questão, chamando-a de "objetividade da atuação do MP". Para tanto, cita o art. 358 do Código de Processo da Itália (1988), que impõe ao Ministério Público, na fase das investigações preliminares ao juízo, o dever de desenvolver também o esclarecimento de fatos e circunstâncias "a favore della persona sottoposta alle indagine". Vale dizer, atua, desde aquela fase, com o propósito de obter justiça e não apenas de recolher dados instrutórios contrários aos interesses do imputado. Isso se repete no art. 53º do Código de Processo Penal de Portugal (alterado pela lei 59/98).

E Schietti é definitivo ao lembrar o art. 7º do Estatuto Orgánico del Ministero Fiscal de Espanha, que reza que "por el principio de imparcialidad el Ministerio Fiscal actuará con plena objectividad e independencia en defesa de los intereses que le estén encomendados".

Poderia parar por aqui. O "precisamos falar sobre o MP" já teria material suficiente. Mas seguirei, por zelo republicano.

Uma rápida busca nos acórdãos dos tribunais da República mostra que o parecer do MP de segundo grau é referido, via de regra, brevemente como "o MP opinou pelo provimento do apelo do MP" ou "Opinou desfavoravelmente ao apelo da defesa". Sequer, na grande maioria, fica-se sabendo o nome do procurador. Mais: o que disse, afinal, o membro do MP de segundo grau no seu parecer? O acórdão — documento oficial que retrata a história do julgamento — não menciona. Rarissimamente menciona (há uma pesquisa em andamento; os dados estão sendo compilados — meu registro, aqui, é decorrente de amostragem; interessante é que, em dois estados, na amostragem, viu-se 100% de pareceres contra o apelo do réu; evidentemente que os dados devem ser checados e analisados).

Ora, um agente do MP tem as mesmas garantias da magistratura. É uma espécie de magistrado. Mas indago: Seu papel é — e aí entra a crítica de Schietti — o de ser despachante (sic) do que disse o MP de primeiro grau? Ou de fazer recursos para o STJ e STF como se fosse um "promotor público"?

Meu levantamento mostra que urge que o MP converse, institucionalmente, com o PJ para que as manifestações de segundo grau sejam melhor explicitados nos acórdãos — até para que se tenha uma accountabillity.

Abrindo acórdãos do TJ-MG, por exemplo, o que mais se vê é "Instada a se manifestar, a douta Procuradoria de Justiça opinou pela denegação da ordem". Na Justiça Militar de MG: "O e. Procurador de Justiça ofertou o seu parecer às fls. 64/64v, pugnando pelo não provimento do presente recurso". Quem ler o acordão, perguntará: "E...?"

Veja-se que até nos concursos públicos para o MP se constata aquilo que Schietti critica, valendo lembrar o caso de Minas Gerais em que o concurso claramente incentivava a desobediência à jurisprudência garantista do STF e STJ (ver aqui).1

Vejam: estou falando do Ministério Púbico, instituição que detém parcela da soberania do Estado; seus membros possuem as mesmíssimas garantias da magistratura. Isso consta na CF por alguma razão, pois não?

Observe-se: os PGJs e o PGR têm a palavra final sobre ações penais. Parcela de soberania estatal! Por isso, o MP deveria agir como uma magistratura, sem fazer agir estratégico e agindo com imparcialidade. O ministro Schietti, que já esteve lá, sabe que o MP não vem agindo como uma magistratura. Já mostrei isso acima. O promotor Zílio Jacson vai na mesma linha.

Portanto, imitando aqui Lionel Schriver em seu best seller (Precisamos Falar sobre Kevin), precisamos falar sobre o Ministério Público. Como Procurador de Justiça que fui por décadas, os processos recebiam, de mim, um minucioso exame — chamava a isso de "espiolhamento processual" — buscando fazer com que a verdade processual viesse à tona, seja de que lado fosse. Esse é o ponto: seja de que lado fosse.

O que desejo registrar é que dificilmente um parecer de minha lavra não trazia questões preliminares — grande parte deles, por necessidade do due process of law, favoráveis à defesa, composta de réus pobres e muitas vezes defendidos precariamente nos confins do Direito. Vejam que, no primeiro grau, nem havia defensor público quando fui promotor. Eram professores estaduais, com formação jurídica, que faziam esse papel dativo. E, como procurador, a Defensoria, nos primeiros anos, ainda engatinhava. Imaginem como chegavam os processos no segundo grau...

Sem querer fazer autobiografia, lembro que, agindo como um magistrado, dificilmente algum processo escapava ileso do meu espiolhamento processual. Estatísticas internas de meu gabinete davam conta de que entre 70 e 80% dos processos sofriam alteração no órgão fracionário do Tribunal, exatamente na linha sustentada por mim. Das mínimas questões como ilicitude da prova até o esgrimir de novas teses constitucionais, fazendo o que denominei, desde os primórdios da Constituição, de "superação da baixa constitucionalidade imperante na dogmática penal e processual penal".

Para além disso, em termos de inovações, fui o primeiro a aplicar isonomicamente a lei da sonegação de tributos para casos de furto sem prejuízo (já tratei disso em coluna). Fui também o primeiro a aplicar o favor legis da lei da sonegação para o estelionato (íntegra aqui). Também fui o primeiro a defender a tese da aplicação da reincidência em sua relação com o princípio da secularização, a partir de Ferrajoli.

Nulidades arguidas a favor da defesa podem ser vistas, entre centenas de processos, como o de n. apelacao-crime-acr-70045600350 (ver aqui). Ou aqui. Ou a tese sobre o concurso do roubo aplicado ao furto (ler aqui). Fomos derrotados, depois, no STJ, face a recursos manejados pelo Ministério Público.

Aliás, essa é outra questão sobre a qual deveríamos falar: se um Procurador sustenta a absolvição de um réu no segundo grau e obtém êxito, pode o MP recorrer dele mesmo?

Há casos emblemáticos em que antecipei uma discussão que somente foi enfrentada pelo legislador anos depois. Explico. Antes mesmo de ser aprovada a Lei 10.792!03, que tornou obrigatória a presença de advogado no interrogatório, levantei, com o apoio da 5ª. Câmara Criminal do TJ-RS, a tese da aplicação constitucional do princípio acusatório pela qual eram nulos os interrogatórios sem a presença de advogado. Fiz, no mínimo, mais de 150 pareceres (ver nesse sentido, meu Verdade e Consenso, 6ª ed).

De novo, não se trata de autobiografia, mas, sim, de trazer elementos objetivos para demonstrar qual, na minha concepção — e com certeza, de muitos membros do MP e, como se sabe, do ministro Schietti — deve(ria) ser o papel do Ministério Público. Isso sem contar as teses hermenêuticas stricto sensu, registradas em dezenas de livros e textos que escrevi nestas décadas.

A questão do reconhecimento de pessoas e as exigências formais para a elaboração de laudos era outro ponto da filtragem processual que eu fazia. De mais a mais, quantos processos "salvei" mostrando que o in dubio pro societate é(ra) uma falácia? E quantas vítimas consegui resgatar face ao uso de um adágio igualmente falacioso, o famoso pas de nullité sans grief (não há nulidade sem prejuízo)?

 

3. As seis hipóteses e o cumprimento da Constituição

Não fazia atuação ignorando o papel da lei. Habeas corpus concedidos de forma inadequada ou irresponsável recebiam a agudeza de minha pena. Saídas temporárias automatizadas, contra legem, entravam no meu radar de espiolhamento. Para qualquer lado, portanto. Porque a lei não tem lado! Fazia uma cruzada contra o solipsismo judicial. Sou insuspeito nisso, bastando ver os critérios que defendo para não se deixe de cumprir a lei, havendo apenas seis hipóteses excludentes (ver Dicionário de Hermenêutica, Verdade e Consenso, entre outros).

É claro que cometi equívocos, mormente nas vezes em que fiz uma espécie de ultra constitucionalismo, com o uso da proibição de proteção deficiente. Mas, no fundo, era uma reação a algumas posturas ultraliberais. Mas o equilíbrio foi se forjando nesses anos todos. A dor ensina a gemer.

Eram as demandas de um sistema jurídico por vezes perverso que me obrigavam a criar e a pleitear teses garantidoras como a nulidade pela não aplicação do artigo 212 do CPP. Teses como essas partiram da procuradoria de justiça de segundo grau de minha titularidade (como foi o caso, também, do então procurador Juarez Tavares, por exemplo) — hoje, depois de mais de uma década, parece que finalmente a dicção do artigo vai vingar, segundo se vê no STF.

 

4. Numa palavra e como retranca: "não se quer, assim, que não se puna"

Invocando outra vez o Ministro Schietti: não se quer, assim, que não se puna. Porém, deve haver provas concretas e lesividade em uma conduta. E deve ser seguido o devido processo legal. A presunção é de inocência e não de culpa. Lembremos a denúncia de Zílio Jacson. E o caso Cancellier.

Assim, apenas mostrei pequenos detalhes de minha atuação como procurador de justiça tendo como norte aquilo que recitei na minha prova de tribuna, em 1985, no concurso para ingresso no MP, usando as palavras do príncipe do MP, Alfredo Valadão: "O MP é fiscal da lei, vindas as ilegalidades de onde vierem, inclusive de si próprio".

É isso: vindas as ilegalidades de onde vierem. Este texto vai em homenagem ao ministro Schietti e aos membros do Ministério Público que escapam desse modelo punitivista do velho promotor público denunciado pelo ministro do STJ. O MPD — Ministério Público Democrático tem feito manifestações de resistência — o que é louvável. Vai em homenagem ao Jacson Zílio e o Coletivo Transforma MP. Também aos componentes da 5ª. Câmara Criminal do TJ-RS (por todos, Amilton Bueno de Carvalho, Aramis Nassif e Luis Gonzaga).

 

5. O que é independência funcional?

Despiciendo dizer que a presente abordagem não generaliza a atuação de membros — stricto sensu — do MP. Falo, sim, da questão maior: institucional.

Explico: há que se saber o que significa "independência funcional". Não de um membro e, sim, da Instituição. Querem ver? Qual foi (ou é) o papel INSTITUCIONAL do MP na pandemia? No início tínhamos agentes propondo ações para que municípios adotassem — pasmem — o tratamento precoce e fazendo TAC’s sobre isso. E outros agentes propondo ações de improbidade porque os prefeitos adotaram tratamento precoce. Agora vemos "recomendação" do MP-DF (18/1/2022) chamando a vacina para crianças de "vacina experimental" (sic). Afinal, o que é isto a independência funcional? Qual é o MP? O que recomenda vacinar? O que recomenda fazer tratamento experimental? Cada membro pode escolher?Humor Político on Twitter: "Governo genocida https://t.co/5eqvP80ZVd  https://t.co/WnUkRmCOG5" / Twitter

 

E o CNMP? Bom, o caso Dallagnol é simbólico. Precisamos falar também sobre o CNMP.

Numa palavra final, nada fiz de extraordinário nesses anos de membro do Ministério Público. Porém, lutei o bom combate para que os ditames constitucionais que regem a Instituição fossem cumpridos. Como continuo fazendo. Não é aceitável que o TRF4 diga, em um julgamento recente, que "não se deve exigir isenção do MP". Inaceitável! Quem quer ser processado por um órgão parcial? Não isento?

Esse pequeno testemunho não tem maiores pretensões. Pretende apenas provocar algumas reflexões. Não quis tratar de outros ramos (meio ambiente, MP do Trabalho, por exemplo, em que tais questões não se apresentam). Há avanços institucionais evidentes.

Mas na área criminal ainda precisamos falar sobre o Ministério Público. Muito.

 

1 E o que dizer do recurso do MPF de um caso de absolvição de réus que pescaram um dourado de 7 quilos? E o que dizer de um recurso em um caso em que o sujeito tentou suicídio e foi denunciado por porte ilegal de arma? Alguém dirá: e da defesa, não vai falar? Ora, a defesa privada é autoexplicativa e se for defeituosa, ou se anula o processo (e o MP tem o dever de pleitear isso) ou o próprio MP, como fiscal da lei, levanta as questões processuais favoráveis ao réu. E se for defesa feita pela Defensoria, existem as corregedorias. (Continua)

 

24
Jan22

Grupo contratou Moro lucra com empresas que Lava Jato quebrou

Talis Andrade

 

 

 

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Reinaldo Azevedo no Twitter
 
Reinaldo Azevedo
A parceria entre a Alvarez & Marsal e Moro, pelo visto, continua. A empresa divulga comunicado p/ tentar evidenciar q contratação de Moro é legal. É um ponto de vista óbvio. Diria o q? Ainda q assim fosse, seria moral? Grupo q contratou Moro lucra — e muito — com empresas q a lava Jato quebrou. A A&M reitera, a exemplo do q fez em 12/20, razões da contratação de Moro: atuação na LJ e no governo. Só q o contratado está na raiz de uma das fonte de lucro da A&M. E não era um privado, mas um juiz. A&M diz: “administrador judicial é nomeado pelo juiz de recuperação judicial”. Ninguém está negando. Mas isso complica a situação em vez de resolver. Ao entrar na A&M, Moro sabia a lista de clientes da empresa. Tanto q se comprometeu a ñ trabalhar em casos da LJ. Isso elimina o conflito de interesses??? Não! Isso prova o conflito!

Ah, que coisa mais fofa!!!! Ao Estadão, Moro diz que vai revelar… Entendi!
Alvarez & Marsal emite nota dizendo que Moro não atuou em processos ligados à operação Lava Jato. A empresa diz que o contrato de Moro está sob cláusula de sigilo e que detalhes como salários não podem ser informados.Image
 
A tropa de choque de Moro, à moda Carlucho, o q ñ surpreende, mobiliza milicianos contra mim. NÃO RENDO VOTO! Tentem ganhar os pobres! Uma ideia: “Nosso líder quer excludente de ilicitude”. Mataria especialmente pretos e pobres. Quem sabe estes escolham tiro na própria cabeçaEXCLUDENTES DE ILICITUDE - Charges
 
Minha escolha é clara: democracia, estado de direito e devido processo legal. Eu não tenho interesse em poderes influentes.Charges: Ilicitude da saidinha!
31
Dez21

#MoroNaCadeia vai parar nos TT’s após confissão de que a Lava Jato combateu o PT

Talis Andrade

 

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“São declarações vergonhosas e verdadeiramente reveladoras de uma parcialidade criminosa, que já foi reconhecida até pelo STF”, disse Marco Aurélio de Carvalho, do Prerrogativas

 
- - -

Após a declaração do ex-juiz e presidenciável Sergio Moro (Podemos), nesta quarta (29), admitindo que a Lava Jato “combateu o PT”, explicitando a atuação política dele e da operação, a hashtag #MoroNaCadeia foi parar entre os assuntos mais comentados do Twitter na manhã desta quinta-feira.

Internautas reagiram indignados à confissão do ex-juiz (veja abaixo).  

O advogado Marco Aurélio de Carvalho, especializado em Direito Público e integrante do Grupo Prerrogativas afirmou:

“São declarações vergonhosas e verdadeiramente reveladoras de uma parcialidade criminosa, que já foi reconhecida até pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e que trouxe o país à triste realidade dos dias de hoje, deixando um rastro absolutamente significativo de destruição e miséria”, afirma.

Chegou a hora de Moro prestar contas à Justiça”, destaca. “A gente deseja para ele tudo aquilo que ele negou aos réus que julgou: respeito ao devido processo legal, à presunção de inocência, às regras do jogo democrático. Mas ele precisa responder por cada um dos atos delituosos que praticou a pretexto de combater a corrupção. É um juiz que sujou as mãos de sangue e que sujou a toga que ostentava sobre os ombros”, diz.

Marco Aurélio reafirma que o ex-juiz precisa ser urgentemente responsabilizado pelos crimes que cometeu, pois “corrompeu nosso sistema de Justiça a afetou de forma decisiva a credibilidade do nosso ordenamento jurídico”.

“Sem a proteção da toga, o Moro corre agora um sério risco de responder civil e criminalmente pelos delitos que cometeu na condução da chamada Lava Jato”, acrescenta.

 

Gleisi

A presidenta nacional do PT, Gleisi Hoffmann, usou as redes sociais para criticar Sergio Moro:

“Moro escancara sua parcialidade e confessa que Lava Jato foi pra combater o PT. O projeto político sempre esteve claro, a toga só foi um trampolim”, escreveu a presidenta do PT no Twitter.

“Ajudou a eleger um traste e a destruir o país e agora se apresenta como a solução. Juiz corrupto e cara de pau!”, completou Gleisi Hoffmann.

 

A confissão de combatente

Durante entrevista à rádio Capital FM, do Mato Grosso, Moro afirmou que não poderia seguir apoiando o governo Bolsonaro e disse a seguinte frase: “Tudo isso por medo do quê? Do PT? Não. Tem gente que combateu o PT na história de uma maneira muito mais efetiva, muito mais eficaz: a Lava Jato”.

A declaração escancara a já explícita atuação política de Moro e dos procuradores que participaram da operação, um caso flagrante de lawfare (guerra jurídica).

[Foi realmente um combate antipetista, eficaz, tanto que prendeu Lula, impossibilitado de ser eleito presidente em 2018. Um golpe eleitoral que elegeu Bolsonaro. Na luta partidária, antipetista, a Lava Jato levou vantagem em tudo. O juiz Sergio Moro era o capo dos delegados da Polícia Federal, dos procuradores do MPF, da maioria dos desembargadores do TRF4, e dos ministos Luízes "In Fux We Trust", "1Barroso Vale 100 PGR" e "Aha Uhu Fachin É Nosso". Uma luta que contou com agentes dos serviços de espionagem dos Estados Unidos. Uma guerra que teve dinheiro de sobra. A "vítima" Petrobras (assim chamada, classificada realisticamente por Deltan Dallagnol) depositou mais 2 bilhões e 500 milhões em uma conta gráfica para o Deltan gastar ao deus-dará. Foi uma guerra muito eficaz: Lula ficou 580 dias preso injustamento. Sentenciado sem prova, por safada convicção de um juiz - que o STF - julgou incompetente, suspeito e parcial. Que no Congresso foi chamado de ladrão]

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18
Dez21

Peça 4 – o caso Cancellier

Talis Andrade

 

XADREZ DO CASO CANCELLIER E DA MARCHA NÃO INTERROMPIDA PARA A DITADURA

por Luis Nassif

Os estudiosos do nazi-fascismo, do Estado Novo e outras manifestações autoritárias, são unânimes em descrever dois processos paralelos que levam à perda dos direitos e ao fim das democracias.

O primeiro, a Suprema Corte abrindo espaço para o arbítrio. O segundo, sem os freios do Supremo,  o fortalecimento das corporações públicas, especialmente aquelas ligadas a controles e à repressão, disseminando o arbítrio por todos os poros do Estado e do país.

Ambos os fenômenos estão intrinsecamente ligados.

O massacre de Cancellier se deveu à desmoralização do devido processo legal, do “garantismo” alvo de campanhas de Barroso. Condenaram antes de analisar os fatos, inventaram crimes, inventaram provas e levaram o caso inicialmente ao tribunal da mídia, que aceitou passivamente, sem ouvir os réus, para não ser acusada de “bandidolatria”. Transformaram fatos corriqueiros em versões  criminosas.

Primeiro, vamos apresentar os atores finais desta trama macabra, as autoridades diretamente envolvidas com a morte de Cancellier.

Corregedor Rodolfo Hickel – com histórico de violência e de desequilíbrio, foi indicado corregedor da UFSC por uma reitora que saía, visando atazanar o sucessor. Produziu um relatório repleto de inverdades que serviu de ponto de partida para a prisão de Cancellier.

Delegada Erika Marena – atuante na Lava Jato, apresentada como heroína em série da Netflix, chegou a Santa Catarina sem holofotes. Criou o escândalo da UFSC para uma operação com 120 policiais de todo o país.

Procurador André Bertuol – do Ministério Público Federal. Endossou todas as arbitrariedades e prosseguiu na perseguição a Cancellier mesmo depois de morto, processando o filho.

Juíza Janaina Cassol – juíza substituta que endossou todas as arbitrariedades da PF e do MPF.

Procurador Marcos Aydos – denunciou professores da UFSC pelo simples fato de, na cerimônia em homenagem a Cancellier, não terem impedido faixas de protesto contra a delegada Erika (Continua)

12
Dez21

Vozes Negras: O avesso do avesso

Talis Andrade

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por Eduardo Pereira da Silva

“É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afetos que nos mantêm vivos.”

O avesso da pele. Jeferson Tenório. Companhia das Letras

 

Nos últimos dois anos, o Prêmio Jabuti na categoria romance literário foi atribuído a duas obras escritas por negros e cujas histórias têm a negritude como eixo central.Resenha Torto Arado de Itamar Vieira Junior - Deviante

Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior (Editora Todavia), premiado pelo Jabuti em 2020, nos revela a trajetória de duas irmãs, no interior da Bahia, provavelmente na década de 50. Bibiana e Belonísia tiveram suas vidas marcadas por um acidente de infância, numa comunidade rural formada por trabalhadores negros de uma fazenda pertencente a brancos. A relação dos trabalhadores com os proprietários da fazenda revela um prolongamento da escravidão existente ali cerca de 60 anos antes.O avesso da pele – Vencedor Jabuti 2021 | Amazon.com.br

Em O avesso da pele, de Jeferson Tenório (Companhia das Letras), premiado em 2021, somos levados ao sul e ao sudeste do Brasil contemporâneo, onde Pedro, estudante de arquitetura, busca reconstruir os passos de seu pai, Henrique, um professor negro morto em uma terrível abordagem policial. 

 

É possível traçar um diálogo entre as duas obras que denunciam o racismo e mostram como em diferentes contextos sociais e regiões do país ele ainda atravessa a vida dos negros, afetando suas relações familiares, sua forma de ser e de se apresentar no mundo.

 

Mas enquanto Torto Arado constrói sua história sem deixar de lado uma certa poesia, trazida pela narrativa de uma das irmãs, O avesso da pele faz uma denúncia brutal do racismo na atuação de nossas forças de segurança pública, particularmente ao tratar das abordagens policiais como fato central de sua história.

 

O perfilamento racial (termo adaptado da expressão racial profiling, utilizada nos Estados Unidos da América) é a prática utilizada por forças de segurança pública consistente em abordagens preferenciais sobre determinados grupos raciais ou étnicos.

 

No Brasil, são bastante comuns as denúncias de que abordagens policiais são feitas preferencialmente em pessoas “de cor”, frequentemente com o uso de agressão injustificada.

 

Diversos são os casos de erros na execução de abordagens policiais de pessoas negras que terminam em tragédia, como o de Rodrigo Alexandre da Silva Serrano, morto aos 26 anos, em 2018, no Rio de Janeiro, por um policial militar que acreditava que o guarda-chuva que ele portava era um fuzil. Ou o caso de Roberto, Carlos Eduardo, Cleiton, Wilton e Wesley, mortos por policiais com 111 tiros também no Rio de Janeiro em 2015.

 

Em 2013, a imprensa brasileira noticiava que o comando da Polícia Militar em Campinas (SP) deixou vazar uma mensagem enviada à equipe policial de um bairro da cidade, determinando a abordagem focada em “indivíduos da cor parda e negra“, num perfeito exemplo de perfilamento racial.

 

Flagrantes feitos por policiais militares em abordagens, sem prévia investigação, acabam sendo a porta de entrada de parte da população no sistema carcerário.

 

Assim, a preferência da abordagem policial a pessoas negras está relacionada, certamente, à sobrerrepresentação da população negra em nosso sistema carcerário, ajudando a manter o estereótipo do “negro bandido” com reflexos direto na vida e relações sociais das pessoas negras.

 

Além da prática do perfilamento racial, a população brasileira ainda convive com a prática de ilegalidades diversas nas abordagens policiais. A corrupção e abuso de membros das forças de segurança são fatos conhecidos e registrados no Brasil e no exterior. As execuções extrajudiciais são um fato notório da história do país.

 

Chacinas internacionalmente conhecidas como a Chacina da Candelária (Rio de Janeiro, 1993, 8 mortos), a Chacina de Vigário Geral (Rio de Janeiro, 1993, 21 vítimas), o Massacre do Carandiru (São Paulo, 1991, 111 mortos), e o Massacre de Eldorado dos Carajás (Pará, 1996, 19 mortos) tiveram a participação de membros ou ex-membros das forças de segurança do país. Muitas delas não resultaram em punição adequada de seus autores.

 

Das 10 atuais condenações do Brasil perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, metade diz respeito à atuação de forças de segurança do país (Caso Escher, Caso Garibaldi, Caso Gomes Lund, Caso Favela Nova Brasília, Caso Herzog).

 

É importante, portanto, trazermos à tona os dados colhidos pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em seu Anuário 2021. O número de mortes decorrentes de intervenção policial atingiu seu ápice em 2020: 6.416 mortes (a série de dados começa em 2013), dos quais 78,3% são negros e 20,9% são brancos, uma proporção de negros mortos em confrontos com a polícia maior do que a proporção de negros na população em geral.

 

O Anuário 2021 revela, também, que 62,7% dos policiais mortos em confronto são negros, embora eles componham apenas 42% do efetivo das forças policiais. 34,5% dos policiais mortos em confronto são brancos, sendo branco 56,8% do efetivo policial.

 

E a fiscalização do Ministério Público e do Judiciário sobre a atividade policial parece ser pouco efetiva. Raros são os casos de policiais processados por abusos, e mais raras, ainda, as condenações. Por outro lado, são bastante numerosas as condenações decorrentes de flagrantes feitos por policiais em abordagens e em buscas domiciliares sem mandado, sem que haja qualquer prova além do depoimento dos agentes de segurança.

 

Os familiares das vítimas desses abusos ainda precisam lutar contra a associação de sua imagem ao crime, ou contra a desumanização que faz com que não as reconheçamos como portadoras de nenhum direito, nem mesmo o de ser julgado nos termos da Lei (devido processo legal).

 

Mesmo diante do histórico de ilegalidades amplamente documentadas na atuação de nossas forças policiais, ainda impera, em parte da sociedade e do sistema judicial, a crença de que a ação policial se presume legítima, sendo suas vítimas “bandidos”, a priori, despidos de direitos já garantidos pela Lei. Aqueles que assim pensam não percebem que tais pessoas são geralmente negras, usam vestimentas típicas de estratos mais pobres da sociedade e preenchem determinados estereótipos.

 

O avesso da pele honra e humaniza as vítimas negras de abusos policiais. Ao lado de Torto Arado, a obra de Jeferson Tenório nos mostra que a luta contra o racismo nasce no instante em que nascemos.

 

Importantes membros da sociedade civil organizada têm tentado levar às cortes superiores de nosso país a preocupação com os abusos policiais que têm a população negra como alvo preferencial.

 

Quase 30 anos após a entrada em vigor de nossa atual Constituição Federal, o Supremo Tribunal Federal fixou a tese de que “a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados” (RE 603616/RO).

 

A decisão representa uma clara tentativa de reprimir práticas constantemente denunciadas de policiais que, no curso de buscas domiciliares, “plantam” drogas, armas ou mesmo cédulas falsas, forjando flagrantes.

 

Ainda em decisão inédita, o Supremo Tribunal Federal concedeu liminar na ADPF 635 para restringir as operações policiais em favelas do Rio de Janeiro a hipóteses excepcionais, devidamente justificadas por escrito, limitando, ainda, o uso de helicópteros em tais operações, de forma a preservar a vida e segurança dos moradores destas localidades. A decisão parece ter sido uma resposta a diversas operações policiais em áreas pobres que resultam em mortes e lesões evitáveis, inclusive de crianças.

 

O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, reconheceu em decisões recentes a ilegalidade do reconhecimento fotográfico sem as cautelas previstas na legislação processual, ante a demonstração de inúmeros equívocos de identificação, sobretudo de pessoas negras, nos inquéritos policiais (RHC 598.886 e HC 598.886).

 

O mesmo Superior Tribunal de Justiça passou a exigir, ainda, filmagem e autorização escrita nas buscas domiciliares feitas sem mandado judicial (HC 598.051). Tal decisão, porém, foi reformada por decisão monocrática no Supremo Tribunal Federal, no RE 1.342.077/SP.

 

As recentes decisões de nossos tribunais superiores analisando as condutas policiais decorrem de insistente esforço da sociedade civil em colocar freios aos abusos das forças de segurança, pouco combatidos pelas instâncias inferiores do Judiciário, pelo Ministério Público e pelas próprias polícias. 

 

No século XXI, três décadas após a promulgação da Constituição Federal de 1988, reconhecer o direito básico de toda pessoa ao devido processo legal e a não ser sumariamente executado, ainda, é um desafio para a sociedade e o sistema de Justiça.

 

Qualquer avanço civilizatório pretendido no país deverá passar pelo enfrentamento das execuções judiciais e do racismo nas forças de segurança pública.

 

Torto Arado e O avesso da pele descortinam essa face sombria do país, que muitos ainda relutam em enxergar. 

23
Nov21

Moro, a fraude

Talis Andrade

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por Cristina Serra

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Eis que Sérgio Moro reaparece, com o messianismo e o discurso justiceiro de sempre, transbordantes no seu retorno aos holofotes. Moro exercitou as cordas vocais e estudou pausas teatrais, tentando dar alguma credibilidade ao estilo “corvo” moralista, atualizado para o século 21, só que sem a capacidade retórica do modelo original, o udenista Carlos Lacerda.

O erro de Moro é achar que o Brasil ainda está em 2018 e que vai votar em 2022 movido pelo ódio, por ele estimulado quando conduziu a Lava Jato. No processo que levou à condenação do ex-presidente Lula, o então juiz rasgou o devido processo legal e a Constituição. Isso não é versão nem narrativa. É o entendimento consagrado pelo STF, que o considerou um juiz suspeito. 

Este é o fato mais importante da biografia do agora candidato e não pode ser naturalizado como página virada. Isso revela a essência de Moro. Ele grampeou advogados de Lula (tendo acesso, portanto, às estratégias de defesa do réu); determinou condução coercitiva espetacularizada; divulgou áudio ilegal e seletivo envolvendo a presidente Dilma, vazou delações. 

O vale-tudo processual deu caráter de justiçamento à Lava Jato, feriu o Judiciário, a democracia e o país. Tudo com a complacência da mídia, a mesma que agora parece ver no ex-juiz o nome que procura para a terceira via como quem busca o Santo Graal.

Moro nunca demonstrou o menor constrangimento em servir a um presidente adepto da tortura e com notórias conexões criminosas. Tentou dar a policiais esdrúxula licença para matar sob forte emoção. Como quem fareja carniça, quando deixou o governo, foi ganhar dinheiro no processo de recuperação de uma das empresas que ajudou a esfolar.

Agora, Moro se apresenta como democrata. É uma fraude. Ele e Bolsonaro se igualam na mesma inclinação totalitária. As semelhanças, aliás, foram ressaltadas por pessoa insuspeita. Foi a senhora Moro quem disse, quando este ainda era ministro, que via o marido e o presidente como “uma coisa só”. 

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22
Ago21

STJ expressa preocupação com o pedido de impeachment contra Alexandre de Moraes

Talis Andrade

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                NOTA OFICIAL

O Superior Tribunal de Justiça vem a público expressar sua preocupação com o pedido de impeachment apresentado contra o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, no pleno exercício de suas atribuições constitucionais.

Nos termos do art. 2º da nossa Constituição Federal, os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário são independentes e harmônicos entre si.

O Poder Judiciário tem como função preponderante a jurisdicional, diretamente vinculada ao fortalecimento da democracia e do Estado de Direito. A convivência entre os Poderes exige aproximação e cooperação, atuando cada um nos limites de sua competência, obedecidos os preceitos estabelecidos em nossa Carta Magna.

O Brasil constitui-se em um Estado de Direito, cujas decisões judiciais podem ser questionadas por meio de recursos próprios, observado o devido processo legal.

O Tribunal da Cidadania reafirma a importância do Poder Judiciário para a segurança jurídica e desenvolvimento do País, garantindo a democracia e a cidadania.

Brasília, 21 de agosto de 2021.

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