Bolsonaro acionou o modo milícia para a campanha eleitoral. Vocifera como arruaceiro, bafeja ódio, insufla violência, prega a subversão da ordem constitucional vigente. É só o começo.
Vai piorar muito porque o baderneiro do Planalto sabe que tem apoio de parcela fiel da população e de setores da elite. É o suficiente para levá-lo ao segundo turno e o que precisa para tentar tumultuar as eleições. O método é convocar a turba e inflamá-la. Bastará alguém riscar o fósforo.
A cena repulsiva na Associação Comercial do Rio de Janeiro é evidência de apodrecimento social. Vídeo não tem cheiro, mas se tivesse daria para sentir o odor de mofo na sala em que empresários aplaudiram Bolsonaro quando ele incentivou a desobediência ao STF. Alguém da plateia contestou a incitação ao crime? Ninguém. Ouviram-se aplausos de concordância com o estímulo à anarquia institucional.
Bolsonaro está ciente das pesquisas pré-eleitorais. Sabe que não tem maioria para um golpe. Mas golpes não precisam de maioria. Por isso são golpes. E ele tem sua choldra de bandoleiros incrustados no Congresso e nas instituições de controle a dar garantias para que continue a esbravejar pela ruptura.
O Brasil deu um salto de três décadas para trás no combate à fome. Neste momento, 33 milhões de pessoas não têm o que botar no prato. A pandemia já levou quase 700 mil brasileiros e continua a matar, a adoecer, a infligir dor e sofrimento. É isso que aprovam e aplaudem?
A ascensão de Bolsonaro abalou 30 anos de esforços para reerguer o país com o mínimo de coesão democrática e solidariedade social. Ele soube aproveitar-se da incompletude da obra para tentar destruí-la de vez.
Em sua figura grotesca de desordeiro e predador da democracia, Bolsonaro converteu-se numa arma de destruição em massa. Morre gente, morre o país. Bolsonaro vai passar. Mas deixará a mancha da desonra entre nós cada vez que nos fizermos a pergunta: como não fomos capazes de detê-lo?
Bolsonaro alarga o conceito de raça, ao abrigar sob a marquise do racismo os negros, a misoginia contra a mulher, a lgbtfobia contra a autonomia das sexualidades, o estigma social contra os pobres e imigrantes e a discriminação contra manifestações que confrontam o fundamentalismo católico ou evangélico. Embora seja inaceitável, compreende-se que o pária abjeto tenha destruído os avanços institucionais do Estado, reconhecidos pelos governos progressistas. Hitler substituiu a luta de classes pela antissemita luta de raças e, ao escrever Mein Kampf, na prisão, delineou um movimento que assumiu a forma radical de uma cosmovisão alternativa ao social-bolchevismo.
O Mito bolsonarista equivale ao Führer hitlerista, sinônimo de “verdade” na interpretação de Hannah Arendt, em Origens do Totalitarismo. Em ambos os casos, a função e o encarregado se confundem. As duas personalidades são representativas de um irracionalismo de raiz. A potência na configuração dos respectivos líderes extraiu a aura carismática das entranhas de um mal-estar sociocultural.
No Brasil, ao mesclar o ressentimento imaginário da classe média por – aparentemente – descer na hierarquia social, em função das políticas de promoção social que possibilitaram a uma dependente de empregada doméstica estudar na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP), como no filme Que Horas Ela Volta, de Anna Muylaert. Situação agravada pela subjetivação das pesadas estruturas remanescentes da sociedade colonial-escravista na consciência dos setores privilegiados. Na Alemanha, ao mesclar o ressentimento após a Primeira Guerra dada a derrota seguida da paz humilhante com a tendência totalitária para uma sociedade holística. O Terceiro Reich não confirmou um destino. Aprofundou o antidemocratismo preexistente.
André Singer alerta para o cuidado com “analogias entre épocas”, pois “precisam ser tomadas cum grano salis”. Com a justa ressalva, comparou a mobilização comemorativa da Independência aquém-mar com a Marcha sobre Roma, organizada para pressionar com sucesso o rei Vittorio Emanuele a nomear Il Dulce primeiro-ministro da Itália. O enfoque, em tela, coteja a experiência do Nationalsozialische Deutsche. O fracasso do Sete de Setembro em Brasília reatualiza o putsch de Munique. Que as similitudes cessem por aí. Não raro, tragédias debutam com fiascos no teatro político.
Uma Weltanschauung pré-moderna
A concepção da extrema-direita, hoje como ontem, remete a uma Weltanschauung pré-moderna. Ver, a propósito, o excelente livro de Benjamin Teitelbaum, Guerra da Eternidade: o Retorno do Tradicionalismo e a Ascensão da Direita Populista (Unicamp). Quatro estágios associados à dominação de castas demarcariam os ciclos da humanidade: 1) Na idade grandiosa, prevaleceriam os arianos de espírito; 2) Na sequência, os guerreiros do movimento de restauração; 3) Abaixo, destes, os agentes de negócios qual os comerciantes e; 4) Na rapa do tacho, os corpos programados para o trabalho manual, cuja expressão política residiria nos sistemas da democracia liberal e do socialismo. Sistemas que acenam a uma sociabilidade pró-igualdade, formal e/ou material.
O Tradicionalismo é uma herança dos valores medievais da honra e da fidelidade presentes nas Cruzadas cristãs dos séculos XI a XIII, que saíam da Europa em direção à Terra Santa e à Jerusalém para conquistá-las, manu militari. O indisciplinado capitão burla as normas procedimentais para matricular a filha (sem concurso) no suposto farol do civismo, o Colégio Militar, “a certeza que podemos sonhar com dias melhores”. Enquanto o medíocre artista que teve rejeitada duas vezes a inscrição na Academia de Belas Artes, de Viena, tinha no Exército a “Escola da nação”. Alavanca para fazer da condenação do Tratado de Versalhes a antessala de uma doutrina de superioridade para instalar um “império expansionista”, com traços do medievo. O paralelo revela o semelhante desejo de disciplina, camaradagem de caserna e armas, e um patriotismo polissêmico que, se na América Latina neoliberal é entreguista, na Europa foi beligerante in extremis.
“Nesse combate, os mais fortes e os mais hábeis levam a melhor sobre os mais fracos e os mais ineptos. A luta é a mãe de todas as coisas. Não é em virtude dos princípios de humanidade que o homem pode viver ou manter-se acima do mundo animal, mas unicamente pela luta mais brutal”. O extrato de Mein Kampf que ecoa Nietzsche é citado por Louis Dumont, em O individualismo (Rocco). De maneira apaixonada, para ouvir o demagogo da Barra da Tijuca destilar rancores, o espetáculo da multitude de bandeiras e camisetas verde-amarelas reencena os desfiles nazistas que estetizavam os eventos políticos e fundiam as pessoas na multidão, com passos de ganso.
Já o slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” aponta para um nacionalismo com a inflexão do neoliberalismo, de fronteiras abertas ao livre comércio. E para um Estado antirrepublicano onde a soberania não decorre do povo, mas do viés fundamentalista de crenças confessionais. O pangermanismo racista, por sua vez, se exprimiu na consigna “nacional-socialista”, em que o último termo – então de múltiplos significados – indicava a “organização global das massas” sob a liderança da nação. Nada a ver com o socialismo marxista ou internacionalista, inclusive em contradição.
Os nomináveis porteiros do inferno
A própria “legalidade” está submetida ao mandamento da “luta mais brutal”. Não é um fim, senão um meio. Entre nós, vale lembrar as investidas que testam a Constituição: os ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF); o Orçamento secreto para a compra de votos no Congresso com recursos do Erário; o aparelhamento da Polícia Federal; os insultos às Universidades federais; a interferência no conteúdo das provas do ENEM; o frustrado golpe para derrotar a democracia representativa; a desqualificação das autoridades sanitárias no caos pandêmico e; o paralelismo ministerial que alguns reputaram “legítimo”, num atestado de ignorância ou má-fé sobre os deveres de transparência dos atos dos governantes numa República. Há um método na construção da desordem.
Alhures, vide o incêndio do Reichstag no mês seguinte à posse na Chancelaria, que permitiu impor a clandestinidade aos comunistas e socialistas, em 1933. E, ainda, a “Noite dos Cristais” antissemítica posterior ao Acordo de Paz entre Reino Unido, França, Itália e Alemanha, assinado por Neville Chamberlain, Édouard Daladier, Benito Mussolini e Adolf Hitler, em 1938. “Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”, o ditado ancestral traduz a estratégia do nazismo germânico. Ensaio e erro, alternados. “O problema de nosso tempo é que o futuro não é o que costumava ser”, lamenta Paul Valéry.
O genocídio está assentado na imunização de rebanho por meio da contaminação pelo coronavírus, e não pela vacinação. Obsessão que retardou os imunizantes. Ao invés de um inevitável desdobramento do bolsonarismo, pesou na criminosa decisão a personalidade de Bolsonaro que cultua a necropolítica desde os anos de chumbo do regime civil-militar. Não à toa, ao longo dos mandatos eletivos (profissão antes de vocação, na famiglia) homenageou covardes torturadores. O holocausto produzido em escala industrial nos campos de concentração, mais do que o desaguadouro do hitlerismo, foi obra da personalidade de Hitler que antecipara o morticínio macabro na sua autobiografia.
O antissemitismo de Hitler é racial. Fosse religioso, bastaria queimar as sinagogas e os centros de estudo e pesquisa da tribo de Judá. Terrores tidos por “mera tagarelice”. Racial, exigiu o extermínio dos seres com identidade judaica. O arco contemporâneo de inimigos, a saber, o marxismo, o capitalismo, as regras do jogo democrático e a mensagem pia para “repartir o pão” do cristianismo foram condensados no ódio ao judaísmo, para catalisar uma repulsa à Modernidade. A desvalia dos alemães retroalimentou a violência dirigida, com sarcasmo. Nas cerimônias do Yom Kippur, o Dia da Expiação entre os hebreus, o “bode expiatório” era apartado para transportar e distar os pecados. Agora os hebreus eram convertidos no animal que deveria aliviar a culpa dos demais.
Comunidade de raça e antipluralismo
Os bolsonaristas se consideram campeões do idealismo. Sem ironia, engolem em seco: a devastação da floresta amazônica; a invasão das terras indígenas; a disparada do preço da gasolina; a inflação; o desemprego; a precarização do trabalho; a fome; as fake news; a corrupção das “rachadinhas”; a incompetência; a prevaricação. Seu amor serviçal pelo clã familiar (a metonímica coletividade) imita o lema conferido às SS por Himmler: “Meine Ehre heisst Treue / Minha honra chama-se fidelidade”. A ex-ativista neofascista, Sara Winter, descreve o fanatismo da bolha: “Não tem mais como defender Bolsonaro. Mas se ele pedir para os bolsonaristas comerem merda, vão comer”.
Os nazistas também se julgavam idealistas puros, capazes dos maiores sacrifícios pela comunidade, diferente das elites econômicas – judeus e capitalistas, por definição, individualistas e materialistas à espera de recompensas pelos esforços despendidos. Na acepção dos arianos, os semitas se caracterizariam pelo “instinto de conservação do indivíduo” e o “egoísmo atomizado”. Contudo, seu gregarismo oportunista se dissolve longe das ameaças iminentes à sobrevivência individual. Pudera.
Os membros do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE, Tropa de Elite) têm uma tatuagem no braço direito com uma caveira rodeada de louros como símbolo e a máxima “Força e Honra”. Faltou a Inteligência, que lástima. São autores de chacinas planejadas para atacar a pobreza e a miséria pela via da eliminação física de favelados, com ações eugênicas de limpeza étnico-racial em áreas da periferia. Votaram em uníssono no candidato que, na campanha presidencial, se notabilizou pela alegoria da “arminha” com dedos da mão em riste, em cenas nauseantes da propaganda eleitoral que mirava na cabeça dos Direitos Humanos. A caveira que evoca uma ameaça de morte na Cidade Maravilhosa faz alusão à farda das SS (Schutzstaffel / Tropas de Proteção) do nazismo.
“O país só vai melhorar fazendo o que a ditadura não fez, matando uns 30 mil. Se vão morrer inocentes, tudo bem. Em toda guerra morrem inocentes”, disparou Bolsonaro (1999). Anos depois, no palanque, ressignificou a meta: “Vamos fuzilar toda a petralhada” (2018). Foi além. Acabou conduzindo a óbito mais de 600 mil vítimas. Se a polícia desvendar o nome dos mandantes dos tiros milicianos em Marielle e Anderson, quiçá se descubra sob o “segredo de Polichinelo” os podres poderes. O antipluralismo homicida é a contraface da comunidade de raça. Não há Dr. Jekyll no cotejo, só Mr. Hyde.
A primazia do combate sobre a ideia
São inúmeras as intersecções do bolsonarismo com o hitlerismo, tipo o primado do “combate” sobre a “ideia”. E o “lugar de fala” dos seguidores, superior ao dos intelectuais responsáveis por teorias de legitimação do racismo e da eugenia. Os preconceitos propagados estão isolados de qualquer reflexão teórica. O secretário de Cultura defenestrado do desgoverno brasileiro podia resenhar Joseph Goebbels, o que não podia era dar pistas sobre os mestres do esgoto ideológico. Daí o guru Olavo de Carvalho não ser tratado como o argumento de autoridade, que é. Arthur de Gobineau, autor do influente Essai sur l’Inégalité des Races Humaines (1855), não estava na ponta da língua de todos os que aderiram com entusiasmo à suástica. A publicidade sobre os mentores provocaria uma onda de resistência negativa à manipulação das mentes e corações.
Cá e lá, os movimentos recusam a centralidade da economia na relação com a vontade política e a tese de que, aquela, engloba a esfera do político. O vendaval bolsonarista – para triunfar – fez uma aliança de ocasião com o teto de gastos, as privatizações e a retirada perversa de direitos sociais e trabalhistas. Mas, ao abjurar o dogma da austeridade fiscal com o calote de precatórios para financiar o Auxílio Brasil, cortou as unhas dos Chicago Boys no Ministério da Economia. O mercado achou que o populismo direitista aceitaria ser colonizado pelas finanças. Ledo engano. Seu compromisso primordial é com “o poder pelo poder”. O resto é secundário. A crise do liberalismo, na origem do fenômeno nazi, mostrara que a economia não era uma categoria independente do mando.
A esquerda em geral e o Partido dos Trabalhadores (PT) em particular são acusados de desfraldarem os preceitos do igualitarismo jacobino, como judeus o foram historicamente. Subjaz à especulação a “guerra de todos contra todos”, de Thomas Hobbes, que contabiliza a sociedade como um somatório de individualidades belicosas garroteadas por intermédio de um contrato social de dominação e subordinação. Se avaliarmos a possibilidade de constituir sujeitos coletivos (as classes sociais, o povo) a partir da identidade de interesses, em prol do bem comum na sociedade e da felicidade pública, não há por que especular fundadores seculares para os ideais igualitaristas – que a teologia cristã atribui a Jesus. Nem por que sobrevalorizar o individualismo como cartógrafo do mundo.
Os empiristas anglo-saxões satirizam o construto de “sujeitos coletivos” e de “consciência coletiva”. Perguntam quem viu tais fantasmagorias na rua. Uma maneira de eclipsar o processo civilizatório na criação de espaços para a sociabilidade, sem riscos à integridade. O temor da coerção estatal e os hábitos adquiridos são reguladores de conduta. Muitos são os exemplos de comunidades culturais, alicerçadas na interatividade dialógica e em valores transversais. Para o bem, ilustra o Quilombo de Palmares. Para o mal, ilustra o assassinato em massa ocorrido na seita do reverendo Jim Jones, na Guiana.
Bolsonaro e Hitler, réus na história
Bolsonaro e Hitler habitam o memorial dos monstros – pelo genocídio; o holocausto; o anti-humanismo; a multiplicidade de racismos; o negacionismo; a fusão de milícias com o Estado; a destruição sócio-ambiental; a corrupção da democracia; o fundamentalismo totalitarista; o controle das escolhas privadas; o obscurantismo contra o conhecimento e a ciência; a censura ao pensamento, à cultura e às artes; a destruição da igualdade e das liberdades; o cometimento da justiça facciosa de toga; a barbarização da sociedade. Hora de retirar o espelho da maldade, pendurado no título do artigo.
Durante a Segunda Guerra, corria uma piada entre o povo alemão que – adaptada aos novos tempos sombrios – seria assim. Hitler, Goebbels e Goering juntos com Bolsonaro, Guedes, Damares e Moro, que chegou de gaiato no navio, estão num cruzeiro no oceano Atlântico. Numa tempestade, a embarcação de notáveis afunda. Quem se salva? A Alemanha e o Brasil. Nuvens plúmbeas cobrem o Palácio do Planalto.
Para o autor de ‘Repúblicas das milícias’, na cartilha de Bolsonaro, achacar alguém pelo preço do gás ou destruir uma floresta é a mesma coisa. Estamos próximos a uma República Federativa de Rio das Pedras
AO ASSUMIR EM 2018, o presidente Jair Bolsonaro não trouxe apenas a sua visão de mundo para o governo, mas um projeto de uma sociedade pautada a partir dos valores da milícia gestado há décadas em Rio das Pedras, favela na zona oeste do Rio, a poucos quilômetros do condomínio Vivendas da Barra.
É a defesa desse projeto que permite, por exemplo, que um certo Jair fique à vontade para conversar com um miliciano foragido como Adriano da Nóbrega, que já era um dos principais criminosos do Rio quando teve sua mãe contratada como assessora no gabinete de Flávio Bolsonaro, o 01, em 2016. Ou que o dinheiro das rachadinhas recolhido nos gabinetes da família financie construções da milícia.
Conversei com o jornalista e historiador Bruno Paes Manso no fim de julho para entender como essa lógica “milicianista” é reproduzida nacionalmente. Para Paes Manso, autor do livro “A república das milícias” e do ensaio “República Federativa de Rio das Pedras”, publicado em agosto na revista Serrote, editada pelo Instituto Moreira Salles, há semelhanças entre o modelo econômico dos paramilitares e as práticas do governo atual que enxergam qualquer lei ou limite – em especial a Constituição cidadã de 1988 – como inimigos. Em escala nacional isso significa poder destruir florestas, invadir terras indígenas, armar a população, passar por cima dos interesses das minorias e dos valores democráticos.
Apesar de a conversa ter acontecido antes dos planos bolsonaristas de tomada do STF no 7 de setembro ganharem manchetes, o historiador já indica que o golpe é o único caminho possível para um presidente que vê seu apoio derreter dia a dia e faz questão de viver em uma realidade paralela.
Paula Bianchi entrevista Bruno Paes Manso
Foto: Arquivo Pessoal/Bruno Paes Manso
Intercept – Você começa tanto o livro quanto o artigo falando da favela de Rio das Pedras, que acabou se tornando um personagem nacional com a ascensão do governo Bolsonaro. Qual é a especificidade desse lugar que te permite vislumbrar essa caminhada para uma “República de Rio das Pedras”?
Bruno Paes Manso – Rio das Pedras é um bairro na zona oeste do Rio que começa a crescer e a se fortalecer a partir dos anos 1970, e que tem um modelo de auto-organização que ganha forma nos anos 1980 e 1990. Era um lugar com pouco mais de 1 mil pessoas nos anos 1960 e que, em 50 anos, ganha dimensões de uma cidade média, com 40 mil, 50 mil habitantes. Essa auto-organização parte da associação de moradores já que o estado pouco trabalha para fazer a organização dos lotes, a colocação de água, luz, etc. Tudo é feito por intermédio da associação, que tem quase o papel de uma subprefeitura. É ela que estabelece e negocia os terrenos, cobra mensalidade. Também é uma comunidade com forte presença de imigrantes nordestinos, orgulhosos de estabelecer uma certa ordem no caos que era o Rio.
Ao mesmo tempo que havia essa negociação de lotes e de casas pela associação, esse dinheiro ficava na economia local, impulsionando o crescimento do bairro. Quando estive lá, foi uma das coisas que mais me chamou a atenção. Era loja de sushi, de hambúrguer artesanal, mas também de buchada de bode, loungerie, moda feminina de diversas idades, barbearia hipster, internet… Muitas vans nas ruas, um trânsito infernal. Me pareceu – e aqui é o paulistano falando – uma 25 de março de periferia. Um micro formigueiro com uma economia muito forte, bem diferente da imagem de favela que eu imaginava que pudesse encontrar.
A partir dos anos 1990, esse microcosmo é tomado pelos policiais que moravam lá, que matam dois presidentes das associações de moradores em sequência e assumem o poder. Eles passam a criar as leis, ditar o que pode e o que não pode, aplicar as ditas surras pedagógicas, para não deixar roubar, fumar maconha, e por aí vai. Há um momento no começo dos anos 2000 que esse modelo é visto como uma solução de autodefesa comunitária e ganha simpatia dos políticos da época. Naquele tempo, o tráfico era o grande vilão do Rio e apavorava a cidade com conflitos no meio da rua, no meio dos túneis, tiroteios com balas traçantes durante a noite. Rio das Pedras era de alguma forma até valorizada politicamente como um espaço que evitava esse domínio territorial do tráfico. Agora a República do Rio das Pedras é mais sobre como esse modelo veio a se tornar um modelo de gestão nacional.
O que seria o milicianismo?
O milicianismo surge dessa distopia que passamos a viver. Pego esse conceito de organização que surge em Rio das Pedras para pensar nacionalmente, pós-Nova República, como chegamos a essa situação durante o governo Bolsonaro. É a ideia de que você tem instituições democráticas frágeis, incapazes de lidar com o crime, e que para você levar a ordem para esses lugares, você tem que se impor pelo uso da violência. É um tipo de gestão que acredita no papel instrumental da violência, da ameaça, para fazer as pessoas obedecerem e respeitarem as leis. Que acredita que um estado democrático, que exerce o monopólio legítimo da força, o estado moderno, é incapaz de fazer esse trabalho. Pelo contrário, atrapalha a polícia.
De onde vem a ligação da família Bolsonaro com as milícias?
É interessante porque o Bolsonaro sempre fez apologia a essa violência paramilitar. Como quando falava dos grupos de extermínio na Bahia que, para ele, deveriam ser levados para o Rio de Janeiro para acabar com o crime. De alguma maneira, ele sempre representou esses grupos que usavam a violência para levar ordem nos territórios. Eles têm essa forma compartilhada de enxergar o mundo. Além dessa afinidade ideológica, os Bolsonaro têm uma ligação próxima com os grupos milicianos que parte de Fabrício Queiroz, que se tornou uma eminência parda da família. Ele começa a se aproximar deles quando Bolsonaro começa a levar os filhos para o parlamento.
O milicianismo surge dessa distopia que passamos a viver
Quando Flávio Bolsonaro vai disputar as eleições em 2003, aos 22 anos, um garotão de classe média, sem conhecimento nenhum da vida, que acaba eleito a partir do sobrenome do pai, é o Queiroz quem faz a mediação junto aos batalhões e aos grupos de PMs. Em 2006, o Fabrício se torna o principal nome do gabinete do Flávio e começa, como as investigações têm mostrado, a ajudar a organizar as rachadinhas que vão ser um dos modelos de enriquecimento da família na política.
De certa forma, Queiroz foi o primeiro miliciano dessa nova era, ao reunir a ideologia e a prática.
Exatamente. O Fabrício é uma figura muito importante e que tem uma história muito interessante. Ele se formou como PM trabalhando no 18º BPM, na região de Jacarepaguá. Era um batalhão muito conivente com esse grupo que começava a se formar e que hoje entendemos como milícia – inclusive, no livro conto algumas histórias de como um dos milicianos que entrevistei chegava a entrar para pegar armas do 18º BPM para ajudar os policiais a combaterem o tráfico. Queiroz fica lá até 2003 mais ou menos, quando conhece o capitão Adriano Magalhães da Nóbrega, então tenente, que também vai trabalhar no 18º BPM. Juntos eles matam uma pessoa na Cidade de Deus e passam a responder na justiça pelo crime. Eles alegam legítima defesa e conseguem ser inocentados desse caso, mas cria-se um vínculo de sangue entre os dois.
A partir de 2004, Adriano vai trabalhar no 16º BPM, da região de Parada de Lucas [bairro na zona norte do Rio próximo à divisa com a cidade de Duque de Caxias], e ele e o seu grupo passam a ser acusados de extorquir traficantes da região. É nesse momento que Queiroz começa a fazer o lobby do Adriano junto à família Bolsonaro. Adriano era acusado de ter matado uma testemunha que iria denunciá-lo, e o Jair Bolsonaro vai defendê-lo no Congresso, sempre muito atuante para tentar inocentá-lo. Ele ganha a medalha Tiradentes da Assembleia Legislativa do Rio, maior honraria do estado, por indicação do Flávio. Nesse período em que está sendo acusado pela morte, Adriano fica quase dois anos preso. Ele se aproxima do jogo do bicho para a construção do Escritório do Crime que vai ser um grupo de matadores 2.0. Os bicheiros passam a disputar o espólio dos antigos líderes do bicho e começam a travar disputas muito violentas. Eles contratam matadores especializados e é o Adriano que organiza isso.
Ao mesmo tempo, o Adriano vai se tornando ao longo dos dez anos seguintes um dos principais criminosos da história do Rio. Não só um organizador dessa pistolagem 2.0, que vai matar impunemente pagando propina para a polícia durante anos, como vai fazer sociedade na construção de prédios e grilagem na região de Muzema e Rio das Pedras, sociedade com o tráfico de drogas, e participação no jogo do bicho.
Ele se envolve nos principais negócios do crime no Rio. É uma das pessoas mais temidas, inclusive pela própria polícia. E, apesar de nessa década ele se tornar um dos maiores criminosos cariocas, a família dele é contratada para participar do esquema das rachadinhas no escritório do Flávio Bolsonaro. A ex-mulher dele é contratada em 2006 pelo Queiroz, só que a mãe dele é contratada em 2016, quando ele já era um dos maiores criminosos do Rio. A relação [com milícia] acontece mais dessa forma tortuosa, pela ligação do Queiroz com o Adriano e pela ligação do Adriano e da família do Adriano com as rachadinhas no escritório político da família Bolsonaro.
E o que acontece quando se reproduz essa lógica miliciana, que é violenta, que vai contra a legalidade, nacionalmente?
Essa é uma das discussões que faço no artigo da revista Serrote. Por que as pessoas passam a acreditar que isso pode ser um projeto para o Brasil e como isso passa a ser vendido como uma solução para o futuro do país, como muita gente comprando esse projeto, que é quase uma distopia. Um desmonte do que vinha sendo construído desde a Constituição de 1988. A gente passa por 30 anos de Nova República e, a partir de 2014, entra em um momento com denúncias permanentes dos desmandos que também aconteceram na televisão, com vazamento de informações, e todo esse trabalho da força-tarefa da Lava Jato com a imprensa.
Fica uma publicidade ostensiva desses esquemas que aconteciam para financiar eleições muito caras que ocorriam no Brasil que leva a um descrédito e a uma criminalização da política. As pessoas passam a ver a institucionalidade que vinha sendo construída até então como algo danoso, algo formado por ladrões e criminosos. Passam a ver a política como um problema. Só que quando você não acredita na política como uma maneira de mediar conflitos, levar ordem e garantir o contrato social, a solução é a guerra, é a polícia, é uma ordem violenta.
Uma figura e um grupo que dizem não acreditar no estado de direito, na Constituição
Nessa depressão coletiva que a gente passa a viver em 2018, com sucessivas crises políticas e econômicas e com a descrença geral na política, é que uma figura como essa, que se coloca como alguém capaz de restabelecer a ordem pelo uso da violência, passa a ganhar um certo crédito. É nesse sentido que o milicianismo ganha uma dimensão nacional. Uma figura e um grupo que dizem não acreditar no estado de direito, na Constituição, querem reinventar uma nova ordem a partir dos valores que eles representam. E pelo uso da violência armada, da adesão de grupos armados que compactuam com os mesmos valores. Ao mesmo tempo, desconstruindo tudo que vinha sendo formado pela recente democracia brasileira. E a gente passa a correr o risco de se transformar na República Federativa de Rio das Pedras.
Foto: Evaristo Sá/AFP via Getty Images
O próprio presidente Bolsonaro se coloca como se não fizesse parte do governo, quando diz, por exemplo, que ‘o crime de prevaricação se aplica a um servidor público, não a mim’. Com ele não se vê vendo como parte do estado, ele não veria problema em embarcar nessa cruzada miliciana contra a Constituição?
Não deixa de ser curioso que ele pregue o golpe o tempo todo como se já não estivesse no governo há quase 30 anos. Ou seja, ele não quer os limites da lei. Quer se livrar e ter liberdade para agir de acordo com a cabeça dele, os valores dele, e não com o contrato coletivo legitimado pela população que é a Constituição. Ele quer tomar suas decisões e impor suas vontades de acordo com as suas crenças, que é uma visão milicianista de autoridade e do estado de direito.
As nossas instituições, especialistas em notas de repúdios, estão conseguindo lidar com essa situação?
Acho que o presidente já cometeu crimes de responsabilidade suficientes para estar fora do governo. Nenhum governante antes cometeu essa quantidade de erros e de crimes de responsabilidade. Se você for comparar com as pedaladas da Dilma Rousseff é um absurdo. Mas eu compreendo esse debate em torno do desgaste e do trauma que é um processo de impeachment. O próprio impeachment da Dilma mostrou isso.
Bolsonaro quer tomar suas decisões e impor suas vontades de acordo com as suas crenças
Me parece que Bolsonaro está perdendo bastante força política e que a credibilidade dele está se esvaindo. Ele está ficando cada dia mais desacreditado a ponto de já falar sobre a possibilidade de não disputar a reeleição, o que não me parece ser uma coisa da boca para fora porque a surra que ele pode tomar nas próximas eleições é tamanha que eu não sei se ele vai ter coragem de passar por isso depois desses quatro anos. Já vem surgindo uma série de ações que mostram essa fragilidade.
Desde as urnas eletrônicas até outras questões que vão ficando pelo caminho. Ele tem conseguido muito pouco desse embate com as instituições. O que não significa que essa não seja a pretensão dele. É o caminho do golpe. A quantidade de crimes que ele já praticou, a quantidade de desmandos. A única saída que resta é ele reverter o quadro constitucional e governar pelas próprias leis. É a única saída para ele e a família não acabarem presos. Então, apesar de as instituições de alguma forma terem percebido todos os riscos que ele implica, inclusive o mercado, a pretensão dele, no que ele aposta, é o golpe, é a crise. A sublevação das polícias. É uma aposta na desordem para conseguir, a partir dessa sensação de selva e de medo, surgir como o único predador. É o único caminho que ele vislumbra.
Apesar desse derretimento e das ameaças constantes de virar a mesa, Bolsonaro segue mantendo um piso eleitoral bem alto, com cerca de 25%, 30% de apoio.
Essa é uma grande questão. Estamos vivendo numa pandemia, numa crise econômica e social imensa, transitando numa loja de porcelana. Por que as pessoas apoiam ele? O que elas enxergam nele, nesse projeto? De certa forma, é um projeto sedutor. Oferece uma saída simples, constrói bodes expiatórios, inimigos, para explicar a desordem, a pobreza. Supostamente a partir da guerra com esses inimigos, você vai resolver. Trabalhando com o ódio, o sentimento das pessoas, você consegue mobilizar essa adesão, como temos visto, com surpresa, pelas redes sociais, ainda que sem sermos capazes de entender direito o tamanho dessa adesão.
Para além desse piso eleitoral, Bolsonaro e essa lógica milicianista contam com o apoio de grupos grandes, como parte dos evangélicos. Qual o interesse deles em endossar esse projeto?
Os evangélicos são uma força impressionante que surge nas cidades brasileiras a partir dos anos 70, 80, quando aumenta muito a pobreza. Nessa época, inclusive, existia um discurso religioso muito forte mobilizado pela Igreja Católica, pela teologia da libertação, que pregava uma mobilização coletiva para pressionar o estado para ampliação dos direitos e para que o estado melhorasse as condições de vida e os direitos sociais das pessoas que viviam nas misérias das cidades. Esse é um discurso que vai formar o PT, vai ser muito influente na esquerda no começo dos anos 80. Com o passar do tempo, com o descrédito das instituições, quem vive nas periferias passa a duvidar da capacidade do estado de ajudá-los. Pelas próprias fragilidades do estado, limites fiscais para criar condições iguais para as pessoas viverem nas cidades.
Daí surgem os evangélicos com um discurso de empreendedorismo e vontade individual para sair da miséria sem esperar a ajuda de ninguém. Não apenas pela construção de uma auto imagem relacionada ao sagrado que te permite se enxergar como alguém protegido, abençoado, mas como uma força para lutar contra a miséria numa rede, numa espécie de maçonaria de pobre, em que se transformam essas igrejas. Não deixa de ser uma força liberal, anti-estado. Ao mesmo tempo, sempre trabalhando com essa questão do autocontrole individual. Festa, excessos, álcool, droga, sexo – tudo que vai contra esse ideal asceta que é necessário para que você fuja da miséria.
Essa visão moralista também faz parte desse discurso milicianista e dessa nova forma de enxergar o mundo. Você acaba, de alguma forma, permitindo que haja um diálogo com esse milicianismo que também é um discurso empreendedor, que também se pauta pelo consumo, pelo valor do mercado. Do que adianta você ter uma floresta amazônica se existem pepitas no solo que podem te deixar rico? Vamos devastar essa floresta. É você enriquecer pelo seu próprio esforço independente dos valores das minorias, dos valores democráticos. Um empreendedorismo meio selvagem. A teologia da prosperidade, que substitui a da libertação, dialoga justamente com essa ideia de que o consumo, a capacidade de enriquecer, revela uma conexão sua com o sagrado e suas virtudes. Como você é bem aceito por deus. Você acaba tendo esse diálogo e essa compatibilidade de visões de mundo a partir da valorização do empreendedorismo, do ascetismo, do consumo, a despeito das questões coletivas, acusadas de serem pautas de esquerda, do globalismo internacional, do comunismo, que querem frear essa capacidade individual das pessoas de enriquecer. Eles passam a achar que esse projeto milicianista contempla os interesses de todos.
Se para os evangélicos há esse diálogo ideológico, de visão de mundo, o que explica os militares seguirem nessa barca furada?
Você tem um grupo de militares que vem desde a época da ditadura que eram mais próximos da forma como o Sylvio Frota [general linha dura e ministro do Exército, demitido pelo presidente Ernesto Geisel, que tentou evitar que a reabertura democrática acontecesse] enxergava a ditadura militar. Esses militares são formados a partir de uma doutrina formada pelo exército francês nas guerras coloniais na Argélia e no Vietnã de que eles combatiam uma guerra de insurgência. E essa guerra de insurgência não implicava apenas a vitória em combate, já que esses grupos tinham uma ideologia muito forte. A batalha ideológica, cultural, era a principal guerra a ser vencida. Para esses militares, os esquerdistas vinham vencendo essa batalha cultural chegando no ápice em 2010 quando a Dilma, uma ex-guerrilheira, é eleita presidente e faz a Comissão da Verdade.
É isso que [coronel Brilhante] Ustra retrata no livro “A verdade sufocada”, que acaba sendo a bíblia do Bolsonaro. Eles começam com essa teoria conspiratória de que eles estavam perdendo essa batalha cultural e que precisavam retomar os valores tradicionais do Brasil dentro dessa guerra. Isso parecia uma coisa de uns malucos de pijama até 2018 quando eles se mostraram fortes e passaram a governar o Brasil, entrando num governo de um candidato improvável e o transformando num governo militar. E sempre com essa ideia de que havia uma batalha cultural a ser vencida. Do ponto de vista da ciência, das artes, da cultura. Tudo faz parte da luta que eles estão travando.
Temos então uma mistura entre esse grupo miliciano que, por si só, não tem ideologia além de se dar bem a qualquer custo, com uma ala altamente ideológica.
Há um grupo de 30% de brasileiros que compartilham valores reacionários ou tradicionais, seja lá qual o nome que você queira dar a isso, e que estão submetidos a uma lei em que eles não acreditam, que eles consideram que atrapalha o desenvolvimento nacional, que é feita por esquerdistas e comunistas com excesso de direitos e deveres e que eles querem desconstruir para construir uma nova ordem. Porque eles têm as armas e teriam essa capacidade de impor um novo projeto de desenvolvimento a partir dos valores da família, dos valores tradicionais. Isso seria o que eles gostariam de fazer, só que falta combinar com os 70% restantes da população. Por enquanto me parece que ainda temos força para barrar esse projeto.
Quais seriam os limites do presidente Bolsonaro, como eles esbarram nesse governo?
No caso do Bolsonaro, existem algumas especificidades como esse ódio presente o tempo inteiro
O tipo bolsonarista é uma figura muito pouco interessante, com a qual a gente tromba diversas vezes em diversos ambientes. Mas no caso do Bolsonaro existem algumas especificidades como esse ódio presente o tempo inteiro. A defesa explícita da tortura, que nem os militares fazem, o desejo de matar 30 mil pessoas, que a solução para o Brasil seria uma guerra. Uma pessoa não é má por si só. Acho que existe uma história a ser compreendida de onde que vem tanto ódio. E, por outro lado, existem essas obsessões relacionadas a questões sexuais. Ele expôs recentemente isso quando pegaram o Eduardo Pazzuelo negociando o preço de vacinas, e ele soltou do nada, “seria ruim se ele tivesse pelado dentro da piscina”.
Ele também tem essa visão erótica o tempo inteiro. Você vê que, de alguma forma, ele tem desejos que não conjugam com seus próprios valores, por outros homens, que precisaram ser escondidos de si mesmo. Ao mesmo tempo, esse autocontrole acabou tendo que extravasar o gozo por outros caminhos. E esse gozo é na guerra, no ódio, na luta contra algumas pessoas que ele escolhe como inimigos. Uma pessoa com problemas cognitivos, que precisou entrar numa realidade paralela à realidade existente. Os fatos para essa pessoa que luta contra a própria verdade de si próprio começam a ser desprezíveis. Ele começa a acreditar num outro tipo de verdade, que só ele enxerga. Acho que o mais interessante disso tudo é como essa figura cheia de ódio e cheia de recalques, que extravasa o gozo a partir do ódio, começa a ser vista como um salvador da pátria por muita gente. Essa é a grande questão. Porque tanta gente passa a acreditar nisso, que existe solução numa liderança como essa.
Tanto no livro quanto no artigo você fala em uma sociedade mal resolvida com a sua cultura. Que chaga é essa que temos que olhar e resolver como sociedade?
De alguma maneira, a gente vê isso no próprio movimento pentecostal, que convive mal com uma cultura que associa com o atraso e a incivilidade, que é a cultura negra, africana e indígena. O demônio é tudo aquilo que de alguma forma representa as religiões afro-brasileiras, associadas ao atraso, à inseguridade. E para a gente se tornar um país desenvolvido e mais parecido com Miami, com os EUA, a gente precisaria de alguma maneira podar e controlar esse nosso passado selvagem indígena e africano. Combater tudo o que é associado a esse estigma de outras culturas que fazem parte da nossa identidade. Somos um país muito mal resolvido com a nossa própria identidade. Que não se enxerga, não quer se enxergar. Não olha para a riqueza que essa mistura de culturas pode produzir como sociedade.
A gente prefere negar traços e características para chegar a um moderno idealizado. E esse discurso de negação da nossa própria identidade produz toda a violência que a gente está vendo. Qual seria a sociedade que surgiria de um país com essa riqueza cultural indígena, africana, europeia, asiática? Como a gente conseguiria contemplar essas diferenças num projeto de sociedade? Agora o milicianismo quer resolver isso a partir de uma idealização. Como a gente vira um Estados Unidos? Extirpando todos os traços e reprimindo qualquer possibilidade ou traço de comportamentos ligados a esse tipo de cultura. É uma questão que precisamos resolver.
O Brasil tem duas figuras públicas, bem conhecidas, encarceradas sob a acusação de que atentaram contra a Constituição, a democracia, a ordem política e as instituições: o deputado federal Daniel Silveira e o presidente do PTB, Roberto Jefferson.
Os dois pregaram golpes e desordem e fizeram ameaças a ministros do Supremo. Sara Winter, há muito tempo em liberdade, também já esteve presa pelos mesmos motivos.
Mas quem mais, que tenha feito as mesmas pregações, foi encarcerado preventivamente, antes de julgamento? Há algum anônimo preso em algum lugar como golpista? É quase certo que não.
Então, se temos apenas dois presos como inimigos declarados da democracia e defensores de insurreições contra o Supremo, é possível esperar que mais gente seja encarcerada depois das manifestações pró-golpe de 7 de setembro?
A pergunta não é uma indagação ao léu e foi acionada por recente artigo na Folha em que o ministro Ricardo Lewandowski lembra Bolsonaro, sem citá-lo, que uma tentativa de golpe armado “constitui crime inafiançável e imprescritível”.
Lewandowski observa que a advertência vale tanto para os personagens que ele define como o superior que dá ordens quanto para o inferior que obedece, ou seja, os comandados não podem aparecer dizendo depois que se submeteram às ordens dos comandantes.
O artigo repercutiu porque explicitou uma posição que precisava ser tornada pública. O Supremo está atento aos movimentos de Bolsonaro e não teme seus blefes.
Mas deixa em aberto, porque não aborda, a questão da subversão pela ameaça de golpe de qualquer um, seja um Daniel Silveira, um Roberto Jefferson ou um “inferior” desimportante, sem que isso configure uma tentativa real de levante armado.
Não é um dilema qualquer. As manifestações de 7 de setembro terão a peculiaridade da participação maciça de policiais militares da reserva e, dizem, até da ativa, alguns armados.
Pregações golpistas deverão ser exacerbadas, em falas, cartazes e atitudes. Esses exageros serão aceitos no 7 de setembro como parte das manifestações, e somente será contido o gesto em direção ao golpe assumido por Bolsonaro e por seus generais?
Se Roberto Jefferson e Daniel Silveira fossem soltos às vésperas das manifestações e aparecessem defendendo, em discursos ou em pregações no meio da Paulista, o que haviam dito em vídeos, aconteceria o quê?
Há muito tempo, antes mesmo da posse de Bolsonaro, pregadores de golpes vestidos de amarelo fazem discursos na internet, em palanques ambulantes e nas esquinas.
Na mesma Avenida Paulista, já se juntaram milhares deles. Em Porto Alegre, no Parcão, o reduto dos ricos e da direita militante, golpistas bacanas pregam o golpe ao lado de pastores evangélicos, aos gritos, sem medo de nada.
Golpistas ameaçam em vídeos, desfilam com cartazes e faixas, berram nas ruas. Eles não incorrem em crime por pensamento, mas por ação deliberada, em voz alta, contra as instituições e a democracia, como fizeram Silveira e Jefferson, e todos estão soltos. Nunca foram nem perturbados.
Há no Supremo um inquérito que trata desses pregadores, juntando na mesma investigação os donos e subalternos da fábrica de fake news do Planalto e os que promovem e patrocinam atos antidemocráticos.
Os atos nas ruas, como estão sendo prometidos, devem disseminar esses crimes, ou não serão eventos do mais extremado bolsonarismo, num momento complicado para o líder acossado.
A pergunta concreta é esta: será possível levar mais pregadores de golpes para a cadeia, dependendo do que disserem no 7 de setembro, ou será preciso esperar pelas denúncias e pelo andamento dos processos?
Se o 7 de setembro for a amplificação do que tivemos até aqui, agora com forte participação de militares, e se não acontecer nada com os pregadores do golpe, seremos induzidos a pensar que qualquer um pode imitar Silveira e Jefferson e ficar impune.
Ficariam impunes os que não têm a expressão política e o poder de Silveira e de Jefferson? Mas qual é o poder de um deputado insignificante como Daniel Silveira?
Dizer, como disse o ministro Luiz Fux, que “o exercício de nossa cidadania pressupõe respeito à integridade das instituições democráticas e de seus membros” é reforçar o alerta.
Mas o que acontecerá se o alerta não for levado a sério e tivermos no feriado da independência o maior, mais agressivo e mais barulhento show dos golpistas desde a posse de Bolsonaro?
Dados os últimos desdobramentos, dentre os quais a revelação de que organizadores do “levante” de 7 de setembro, tais como Zé Trovão, foram recebidos em gabinetes do 4o. andar do Palácio do Planalto nos dias 10 e 11 de agosto; o artigo do ministro do STF, Ricardo Lewandowski, lembrando que tentativa de golpe de estado é crime inafiançável e imprescritível; os abaixo assinados do PIB nacional contra a ruptura e declarações como a do general Santos Cruz de que Bolsonaro cometeu crime comum ao incentivar a população a comprar armas, é possível que o suposto golpe do Dia da Independência vire o Baile da Ilha Fiscal.
. Bolsonaro continua a incentivar a desordem. Será o responsável político por aquilo q possa acontecer. E, a partir dos eventos, com os pedidos de impeachment na gaveta, Vossa Excelência passa a ser corresponsável.
Fachin é o relator da ADPF com q Bolsonaro tenta extinguir o processo que o investiga. Por que Fachin? Já foi relator de ADPF idêntica. Acho q resultado será o mesmo. NÃO! Bolsonaro quer q tribunal o libere para pregar a extinção do tribunal! É o paradoxo do extremista doido.
10 dos 11 que rejeitaram a tese da inconstitucionalidade do inquérito das fake news seguem no STF. O único “sim”, Marco Aurélio, saiu. Foi substituído por Nunes Marques. Tvz placar continue 10 a 1. Outro tiro ñ'água do golpista. Vai trabalhar, Bolsonaro! Se bem q é melhor não...
Acho melhor “o golpista da porteira” alegar demência...
Não vai ter impeachment de ministros. Não vai ter extinção do inquérito 4.781. Bolsonaro está é se isolando. Já disse. Espero q ele não mude. Assim, a derrota é certa. Para o bem do Brasil.
Tenho uma tia que benze mau olhado. Vou encomendar uma reza braba pro ministro Alexandre de Moraes. Mau olhado de miliciano é coisa ruim...
O psicopata agora diz q deixou o pedido de impeachment de Roberto Barroso para a semana que vem. Assim, vai parcelando a ração de ódio para o gado. São os golpistas da porteira.
O suspense que aguarda os próximos espasmos institucionais exprime a fragilidade, tão negada, do sistema de defesa da legalidade democrática. Um desvairado lançou o país nas impropriedades que quis e disse à vontade idiotices até letais, sem reação de parte alguma dos chamados Poderes instituídos durante dois anos e sete meses — já quase três quartos do mandato presidencial. A esta altura, mesmo a reação incipiente é envolta em crise a se tornar ainda mais grave.
O agravamento é inevitável. E imprevisível no sentido e na dimensão. Bolsonaro o busca. Sozinho, o Judiciário pode ser heroico, não uma certeza. O Congresso está reduzido a um não-poder: os presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, mostram não estar à altura do momento, nem sequer dos cargos. A Procuradoria-Geral da República está contida pelo carreirismo de Augusto Aras.
Bolsonaro, por sua vez, foi forçado a uma reviravolta. Assumiu como agente de um plano cultivado no ressentimento de um segmento pretensioso e já velhusco do Exército. A profusão de militares, em estimados seis mil cargos civis, é devida ao plano mais que ao testa-de-ferro. O início do mandato foi de desenvolturas arrogantes, com medidas desafiadoras e provocações insolentes. Cada uma das decisões de governo, da proteção ao garimpo e ao desmatamento ilegal até os ataques à educação e à cultura, encontra conexão com alguma das questionadas teses de militares reformados e ativos.
Os surgimentos simultâneos da apropriação de dinheiro público por Flávio Bolsonaro com as rachadinhas, Fabrício Queiroz e ensombreadas referências no caso Marielle Franco, como as relações milicianas, tiveram dois efeitos imediatos. A revelada vulnerabilidade de Bolsonaro enfraqueceu-o, na política e na comunicação pública. E logo abriu uma rotina de desgastes que o tirou da arrogância para a exasperação. Seu interesse transitou, mais a cada dia, do plano original para o interesse pessoal e familiar.
Nesse crescendo, as mortes da pandemia passam de meio milhão, a CPI da Covid desnuda a corrupção do negocismo com vacinas, a percepção da responsabilidade cloroquínica de Bolsonaro difunde-se pelo país afora.
Negação das aparências, sua situação é problemática. Três necessidades desesperadas precisam combinar-se para dar-lhe a saída: impedir que a CPI avance muito mais, tendo fracassado a interferência de militares para fazê-lo; impedir que a tendência das pesquisas eleitorais se consolide; e impedir que os inquéritos prossigam, tanto os estagnados como os recentes, tanto os seus como os de filhos.
Não há caminhos legais para concretizar tal combinação. Mesmo Bolsonaro pode pressentir o futuro penoso que o espera se não ultrapassar o acúmulo de ameaças judiciais que o circunda, não só aqui. Resta-lhe o caminho ilegal: outra combinação, de ilegalidade e violência. Alternativa já iniciada, com a multiplicação da presença nas ruas para incitá-las contra as instituições, em especial contra o Judiciário.
Abrir tantos conflitos quanto possa, estimular a falsa representação das Forças Armadas pelos Pazuellos da reserva e da ativa. Agredir, incitar, exasperar. Gerar ímpetos de presumidas vinganças sociais, econômicas e políticas, motivações do ódio disseminado.
Bolsonaro precisa da deflagração de um estado tumultuoso, anti-instituições, contra a Constituição. Propagado por policiais militares, milicianos e pelos novos detentores de armas, se não também por setores do Exército. Quando fala em “sair das quatro linhas da Constituição”, não é mais a rendosa prática de arroubos da campanha e da primeira fase do mandato. É a desordem em marcha. Se chegar ao golpe, não faz diferença se pleno ou parcial, será porque teve permissão. A começar do consentimento da Câmara e do Senado para a criação do crime fartamente anunciado pelo próprio Bolsonaro.
Fique claro: foi do Supremo, por pressão da maioria dos seus ministros, e não de Luiz Fux, a forte nota de reação a Bolsonaro. Enquanto, quatro dias antes, o Tribunal Superior Eleitoral retomava as sessões com verdadeiras medidas de defesa da Constituição, Fux, no Supremo, fazia discurso reinaugural falando em diálogo e harmonia. Ao que Bolsonaro respondeu com agressões redobradas.
Fique claro: sem desmerecer as atitudes dos ministros Luis Roberto Barroso e Alexandre de Moraes, ilustradas por texto admirável, a primeira reação efetiva a Bolsonaro foi do ministro Luis Felipe Salomão, corregedor-geral eleitoral: os 15 dias que deu a Bolsonaro para comprovar as acusações de fraude nas urnas eletrônicas. Bolsonaro teve que reconhecer as mentiras ditas desde a campanha.
Tenho a terrível sensação de que os 11 senadores da CPI da Covid não conhecem a lei que criou as CPIs. Ou, se a conhecem, a ignoram solenemente.
As Comissões Parlamentares de Inquérito foram criadas através da Lei 1.579, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente Getúlio Vargas a 18 de março de 1952.
O artigo 2o. afirma o seguinte:
“No exercício de suas atribuições, poderão as Comissões Parlamentares de Inquérito determinar diligências que reputarem necessárias e requerer a convocação de Ministros de Estado, tomar o depoimento de quaisquer autoridades federais, estaduais ou municipais, ouvir os indiciados, inquerir testemunhas sob compromisso, requisitar da administração pública direta, indireta ou fundacional informações e documentos e transportar-se aos lugares onde se fizer mister a sua presença”.
Está muito bem definido, portanto, que só podem ser convocadas quaisquer autoridades federais abaixo de Ministro de Estado e nenhuma acima. Ou seja, Presidente da República não pode.
Podem ser convocadas quaisquer autoridades estaduais, mas não o governador.
Quaisquer autoridades municipais, mas não o prefeito.
É espantoso que os próprios senadores que integram a CPI da Covid não conheçam as limitações impostas há 69 anos e tentem transgredir a lei e, portanto, a constituição.
Jamais deveriam ter convocado governadores, seja por que acordo fosse. É um acordo espúrio. Ilegal. Inconstitucional. Imposição dos três governistas que foi engolida pelos oito oposicionistas. Vá dormir com um barulho desse.
Se querem investigar governos estaduais podem chamar no máximo secretários de Estado, não o titular do mandato.
Mas o fizeram, ao arrepio da lei, forçando a iniciativa de 18 governadores de ingressar com ação no STF. Perda de tempo: o ministro do caso vai responder o óbvio: governadores não podem ser convocados por nenhuma CPI.
A decisão não corre o risco de ser diferente, mas, em razão disso, os governadores vão ficar com a pecha de fujões da CPI, de quem tem algo a esconder, de tentar se eximir de possíveis crimes.
Alguns deles provavelmente têm o que temer, mas a nódoa atingirá a todos, sem exceção, o que só interessa a Bolsonaro e a seus senadores amestrados para tumultuar e desviar atenção do verdadeiro responsável pelas consequências devastadoras da pandemia.
Falando em tumultuar, os senadores da oposição deveriam atentar para o artigo 4o. da Lei das CPIs que diz o seguinte:
“Constitui crime impedir ou tentar impedir, mediante violência, ameaça ou assuadas o regular funcionamento da CPI ou o livre exercício das atribuições de qualquer de seus membros”.
“Assuadas” é sinônimo de desordem, tumulto, confusão, vaias, apupos, arruaças, escarcéu, gritos.
Bolsonaro não tem feito outra coisa desde o início da CPI. E nenhum senador pôs a boca no trombone.
O tempo do racismo não é cronológico. O tempo do racismo é lógico e psicológico, ou seja, transfunde a cronologia histórica. É dessa maneira que o racismo se mantém na estrutura da sociedade
por Alexandre Filordi
Jornal GGN
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O tempo do racismo não é cronológico. O tempo do racismo é lógico e psicológico, ou seja, transfunde a cronologia histórica. É dessa maneira que o racismo se mantém na estrutura da sociedade. Entra ano e sai ano, no caso que aqui me interessa, os negros precisam provar que são humanos, gente com sangue, dor, padecimentos, sentimentos, inteligência, beleza. Eles precisam provar que não são menos e que as mesmas mazelas da finitude humana não lhes são diferentes das de ninguém.
Os jornais franceses denunciam, escandalizados, a cena dantesca em que dois pesquisadores do Inserm (Instituto Nacional da Saúde e da Pesquisa Médica, França) – homens brancos – invocam a possibilidade de testar vacinas contra o corona vírus no continente africano (Veja aqui: https://francais.rt.com/france/73573-covid-19-sequence-sur-test-vaccin-afrique-polemique). Educadores de Angola nos fazem chegar que tal cenário se encontra bem próximo a eles, fazendo da insinuação presunção consumada.
O lema do Inserm é: “A ciência para a saúde”. Faltou apenas deixar explícito: para a saúde dos colonialistas brancos. Daí o fato de se considerar os africanos como cobaias humanas. Se tudo der errado com o teste? A quem importa?
Albert Memmi dizia que o racismo é a melhor expressão do fato colonial e um dos traços mais significativos do colonialista. Claro está, saímos historicamente da colônia, mas a colônia não saiu da sociedade e de nós. Ela se mantém com sua lógica opressora de capturas emocionais, identitárias, maliciosas e valores biunívocos racistas. “Do ponto de vista do racismo, não existe exterior, não existem as pessoas de fora. Só existem pessoas que deveriam ser como nós, e cujo crime é não o serem”, argumentaram Deleuze e Guattari em Mil Platôs.
Quando um negro ou uma negra precisam provar que são humanos, homem e mulher, como no caso dos grevistas da área de limpeza de Memphis, em 1968, nos USA, carregando os dizeres: Eu sou um homem – reparem que o indivíduo branco não carrega o cartaz na fila dos manifestantes – , é porque estão se defrontando com os senhores colonialistas, com a violência e a animalidade neles presentes. Há de se ressalvar, contudo, que aqueles trabalhadores continuam sendo os mesmos negros e as mesmas negras do precariado de hoje. “Sinais que indicam esses retornos do colonialismo ou sua reprodução e sua repetição nas práticas contemporâneas”, nos termos de Mbembe em Crítica da razão negra.
Em 7 de abril, o New York Times, dentre vários outros jornais americanos, destacou a incidência alarmante de mortes por Cov-Sars-2 entre os africanos estadunidenses (Confira aqui: https://www.nytimes.com/2020/04/07/us/coronavirus-race.html). A denúncia vai ao coração da estrutura racista de nossa sociedade: os povos africanos colonizados mantêm a força de trabalho que não tem o privilégio do home office. Pior ainda, eles compõem o tecido social mais vulnerável; estão destituídos de uma rede eficiente de tratamento de saúde e de proteção à vida. O cenário não é diferente no Brasil. Essa mesma fatia do tecido social é dependente dos transportes públicos massificados. Eles também vivem em regiões segregadas racialmente nas cidades – vide o exemplo de nossas comunidades e periferias.
Tudo isso, contudo, não passa da sombra desumana do racismo social e de classe revitalizados e em evidência com a pandemia vigente.
No Brasil, já tivemos casos em que os senhores da casa-grande obrigaram seus trabalhadores a frequentar seus casarões, ainda que eles estivessem contaminados pelo coronavírus. Houve inclusive casos de morte (Veja aqui: https://exame.abril.com.br/brasil/1a-vitima-do-coronavirus-no-rio-era-domestica-e-foi-contaminada-no-leblon/). Alguns mencionam que a quarentena vai quebrar o Brasil. Não será, porém, por que eles continuarão protegidos, fora dos circuitos de convivência massificada?
Além disso, não podemos desprezar que os EUA possuem a maior população carcerária do planeta e o Brasil a terceira. Em ambos os casos, a maioria dos presos é composta por negros e que, mui breve, morrerão sem misericórdia. Trata-se de um retrato três por quatro da nova segregação social, assim como também é o caso de toda extensão social do precariado moderno, que se vê obrigado a aceitar condições desumanas para tentar sobreviver. Mas são vidas que não importam ao sistema econômico racista; são homens e mulheres pobres, reduzidos às “formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte – a necropolítica”, nos termos de Mbembe.
A pandemia está aí, dando contornos hiperbólicos ao incansável racismo. Este se atualiza na captura dos corpos que padecem com as emboscadas dos capitães-do-mato contemporâneo, os representantes de uma sociedade que não expurgou de seus navios negreiros o seu modo de atuar, de explorar e de continuar a segregar.
Aimé Césaire dizia que o negro nunca existiu. O que existia era o humano. O negro só passou a existir como anteparo da estrutura opressora do colonizador e do colonialista brancos. Desgraçadamente, ainda nos circunscrevemos aí e toda denúncia é pouca. Seja como for, Césaire, em O discurso sobre o colonialismo continua correto: “Chegou a hora do bárbaro. Do bárbaro moderno. A hora estadunidense. Violência, desmesura, desperdício, mercantilismo, exagero, gregarismo, a estupidez, a vulgaridade, a desordem”.