Pandemia, segregação racial e as vidas que não importam
29 de Março, 1968, Memphis – USA
O tempo do racismo não é cronológico. O tempo do racismo é lógico e psicológico, ou seja, transfunde a cronologia histórica. É dessa maneira que o racismo se mantém na estrutura da sociedade
por Alexandre Filordi
Jornal GGN
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O tempo do racismo não é cronológico. O tempo do racismo é lógico e psicológico, ou seja, transfunde a cronologia histórica. É dessa maneira que o racismo se mantém na estrutura da sociedade. Entra ano e sai ano, no caso que aqui me interessa, os negros precisam provar que são humanos, gente com sangue, dor, padecimentos, sentimentos, inteligência, beleza. Eles precisam provar que não são menos e que as mesmas mazelas da finitude humana não lhes são diferentes das de ninguém.
Os jornais franceses denunciam, escandalizados, a cena dantesca em que dois pesquisadores do Inserm (Instituto Nacional da Saúde e da Pesquisa Médica, França) – homens brancos – invocam a possibilidade de testar vacinas contra o corona vírus no continente africano (Veja aqui: https://francais.rt.com/france/73573-covid-19-sequence-sur-test-vaccin-afrique-polemique). Educadores de Angola nos fazem chegar que tal cenário se encontra bem próximo a eles, fazendo da insinuação presunção consumada.
O lema do Inserm é: “A ciência para a saúde”. Faltou apenas deixar explícito: para a saúde dos colonialistas brancos. Daí o fato de se considerar os africanos como cobaias humanas. Se tudo der errado com o teste? A quem importa?
Albert Memmi dizia que o racismo é a melhor expressão do fato colonial e um dos traços mais significativos do colonialista. Claro está, saímos historicamente da colônia, mas a colônia não saiu da sociedade e de nós. Ela se mantém com sua lógica opressora de capturas emocionais, identitárias, maliciosas e valores biunívocos racistas. “Do ponto de vista do racismo, não existe exterior, não existem as pessoas de fora. Só existem pessoas que deveriam ser como nós, e cujo crime é não o serem”, argumentaram Deleuze e Guattari em Mil Platôs.
Quando um negro ou uma negra precisam provar que são humanos, homem e mulher, como no caso dos grevistas da área de limpeza de Memphis, em 1968, nos USA, carregando os dizeres: Eu sou um homem – reparem que o indivíduo branco não carrega o cartaz na fila dos manifestantes – , é porque estão se defrontando com os senhores colonialistas, com a violência e a animalidade neles presentes. Há de se ressalvar, contudo, que aqueles trabalhadores continuam sendo os mesmos negros e as mesmas negras do precariado de hoje. “Sinais que indicam esses retornos do colonialismo ou sua reprodução e sua repetição nas práticas contemporâneas”, nos termos de Mbembe em Crítica da razão negra.
Em 7 de abril, o New York Times, dentre vários outros jornais americanos, destacou a incidência alarmante de mortes por Cov-Sars-2 entre os africanos estadunidenses (Confira aqui: https://www.nytimes.com/2020/04/07/us/coronavirus-race.html). A denúncia vai ao coração da estrutura racista de nossa sociedade: os povos africanos colonizados mantêm a força de trabalho que não tem o privilégio do home office. Pior ainda, eles compõem o tecido social mais vulnerável; estão destituídos de uma rede eficiente de tratamento de saúde e de proteção à vida. O cenário não é diferente no Brasil. Essa mesma fatia do tecido social é dependente dos transportes públicos massificados. Eles também vivem em regiões segregadas racialmente nas cidades – vide o exemplo de nossas comunidades e periferias.
Tudo isso, contudo, não passa da sombra desumana do racismo social e de classe revitalizados e em evidência com a pandemia vigente.
No Brasil, já tivemos casos em que os senhores da casa-grande obrigaram seus trabalhadores a frequentar seus casarões, ainda que eles estivessem contaminados pelo coronavírus. Houve inclusive casos de morte (Veja aqui: https://exame.abril.com.br/brasil/1a-vitima-do-coronavirus-no-rio-era-domestica-e-foi-contaminada-no-leblon/). Alguns mencionam que a quarentena vai quebrar o Brasil. Não será, porém, por que eles continuarão protegidos, fora dos circuitos de convivência massificada?
Além disso, não podemos desprezar que os EUA possuem a maior população carcerária do planeta e o Brasil a terceira. Em ambos os casos, a maioria dos presos é composta por negros e que, mui breve, morrerão sem misericórdia. Trata-se de um retrato três por quatro da nova segregação social, assim como também é o caso de toda extensão social do precariado moderno, que se vê obrigado a aceitar condições desumanas para tentar sobreviver. Mas são vidas que não importam ao sistema econômico racista; são homens e mulheres pobres, reduzidos às “formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte – a necropolítica”, nos termos de Mbembe.
A pandemia está aí, dando contornos hiperbólicos ao incansável racismo. Este se atualiza na captura dos corpos que padecem com as emboscadas dos capitães-do-mato contemporâneo, os representantes de uma sociedade que não expurgou de seus navios negreiros o seu modo de atuar, de explorar e de continuar a segregar.
Aimé Césaire dizia que o negro nunca existiu. O que existia era o humano. O negro só passou a existir como anteparo da estrutura opressora do colonizador e do colonialista brancos. Desgraçadamente, ainda nos circunscrevemos aí e toda denúncia é pouca. Seja como for, Césaire, em O discurso sobre o colonialismo continua correto: “Chegou a hora do bárbaro. Do bárbaro moderno. A hora estadunidense. Violência, desmesura, desperdício, mercantilismo, exagero, gregarismo, a estupidez, a vulgaridade, a desordem”.