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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

27
Abr23

#ToComMST vai aos trends após CPI que tenta criminalizar trabalhadores Sem Terra

Talis Andrade

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“Mata, mata os baiano!”: notas sobre o regime escravocrata no Rio Grande do Sul

 

247 - Após o anúncio da criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar as atividades do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), as redes sociais foram tomadas por manifestações virtuais de apoio ao movimento nesta quinta-feira (27), identificadas com a hashtag #ToComMST.

Apesar das tentativas da direita de demonizar e criminalizar o MST, alegando que o movimento comete invasões rurais ilegais sem propósito, os internautas ressaltaram a importância dos avanços promovidos pelo mesmo, como a democratização da produção e distribuição de alimentos, a luta pela Reforma Agrária e o desenvolvimento de Cooperativas e agroindústrias no país, entre outros.

Valmir Assunção
@DepValmir
 Defender o é lutar contra a fome, contra as desigualdades sociais e visualizar o trabalho cooperativo. Apoiar o MST é apoiar mais de 160 Cooperativas, 120 agroindústrias, 1900 associações e principalmente às mais 450 mil famílias assentadas. #TôComMST
Imagem
 
por Pedro Marchioro
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Entre 2013 e 2016, fui membro do Núcleo de Estudos do Polo Naval, grupo interdisciplinar que buscava abarcar as várias dimensões do fenômeno do Polo Naval de Rio Grande, cidade ao sul do Estado. Era quase impossível não estudar o quadro digno de filme: uma cidade tranquila que dispunha de um ritmo modesto em sua dinâmica comercial, com menos de 100 mil habitantes voltados a uma cultura semi-comunitária; economia apoiada nos serviços, no pequeno comércio, na pesca, o fator que a predispunha diretamente ao mundo era o antigo porto (desde finais do século XIX) e a Universidade de Rio Grande ainda recente em seu território.

 Como descrevi no livro Das migrações: processos culturais e construção da identidade no sul do Rio Grande do Sul, meu problema era um conflito pitoresco que se desenrolava entre os habitantes locais “gaúchos” e os “baianos”. À primeira impressão, um conflito entre aspas, sempre contado em tom de piada, como algo não sério, um resmungo dos gaúchos quase folclóricos, aquela figura que eles mesmos descrevem como bairrista, rude e grosseiro, incomodados com o jeito extrovertido dos “baianos”. O “baiano” era um mal-estar trazido com o polo, o movimento desestabilizante do cotidiano, os novos transeuntes, vizinhos, personagens do transporte público; eram as novas referências no real, as oscilações nos preços dos produtos básicos, a nova riqueza que a cidade prometia, a disputa por postos de trabalho com melhores condições. Em suma, como é frequente em contextos de mudança social, de entrada de novos atores (migrantes) em cena, a realidade escapava do controle dos nativos e os obrigava se movimentar, reajustar-se e isso causava reação e incômodo.

 O Rio Grande do Sul é (ou era) o estado com maior população proporcional de adeptos declarados das religiões afro no país, quase cinco vezes o número de praticantes na Bahia (IBGE, 2010). Essa é uma interpretação corrente na opinião pública, do “Rio Grande do Sul como o Estado dos extremos religiosos. Estão em território gaúcho o município mais católico, o mais evangélico, o mais umbandista, o mais islâmico e o mais mórmon do país”1. Pude perceber já nos primeiros dias de minha estada em Pelotas os sons, as cores e cheiros dessas manifestações. Em uma casa azul na esquina de uma rua de fluxo constante, ocorriam cerimonias umbandistas. Geralmente terças e quintas feiras, ouvíamos o batuque forte que alcançava as ruas, assim como os cheiros de velas, incensos e de gente reunida. Na calçada frente da casa, esbarrávamos com gente pintada, com saias coloridas, chapéus, braceletes e tornozeleiras instrumentais. Era um ambiente sedutor porque alegre, vibrante e sensual nas danças de mulheres lindas, homens fortes e drags ou homens com roupas e acessórios “de mulher” e assim por diante. Nessas noites, dormíamos embalados pelos tambores e cantos das vinhanças. Era um pequeno carnaval. E este terreiro em especial, que depois vim a frequentar, ficava exatamente na frente de uma grande igreja católica, na esquina contrária. Depois, frequentando a igreja, descobri que era tocada pela esposa do pai de santo do terreiro ao lado. Eis a manifestação concreta do sincretismo. 

Em período coincidente com o aumento do neopentecostalismo, dos casos de intolerância religiosa, e porque não da ascensão da extrema direita nacional com repercussões significativas no Rio Grande do Sul, também as instituições afros recuaram (ou se extinguiram). A Casa Azul, como chamávamos aquele terreiro, deixou de funcionar ali e, ao que fui informado, funcionava agora em Três Vendas ou Navegantes, bairros mais distantes do centro. Em 2005 e 2016, últimos anos em que vivi em Pelotas, já não se ouviam tambores pela noite, tampouco quaisquer elementos afros podiam ser vistos facilmente como antes. 

 Com a operação Lava Jato e a desnutrição do Polo, Rio Grande voltou à sua fisionomia anterior, apenas com esqueletos e ruínas do antigo “sonho do Eldorado”. Havia um sentimento de saudosista e mesmo de arrependimento dos bons tempos em que o problema era “os baianos”, aqueles que, de uma forma ou de outra, chegaram e foram embora junto com bonança. “Eles não eram tudo aquilo que falavam… Eu tinha muitos amigos baianos, cariocas, cearenses. Não tinha esse preconceito”, passei a ouvir junto a trabalhadores do polo ou dos serviços. Tudo parecia ter sido um mal entendido, uma briga de crianças que no fundo se gostavam. Essa era a impressão que pairava no deserto do pós-Polo naval. Mas, alguns anos depois o fantasma do “baiano” reapareceria e, acompanhando a tendência nacional, em piores condições.

 O ano é 2023, marca a derrota de Bolsonaro e início do terceiro mandato de Lula. As instituições engatinham ao retorno de suas funções normais após a destruição deliberada do estado social iniciada com o golpe de estado de 2016. Todos órgãos, sobretudo os da mão esquerda do Estado, para usar um conceito de Bourdieu, ou seja, as instituições destinadas ao cuidado, educação, saúde, proteção e seguridade social -, foram imediatamente atacadas. Tiveram suas razões invertidas: o Ibama desmatava e motivava o garimpo ilegal, a Funai e o Incra desmatava e dava o passe livre para o extermínio de indígenas, o Ministério da Educação negava a educação, desprezava a pesquisa, a pós-graduação, sabotava o ENEM, dava tiros no aeroporto, trocava emendas parlamentares por barras de ouro, forjava diplomas. A Fundação Zumbi dos Palmares foi chefiada por um racista puro sangue; o Ministério do Trabalho precarizava o trabalho, subsidiava o trabalho escravo.  

 O Ministério dos direitos humanos perseguia menores de idade vítimas de estupro que optavam pela interrupção da gravidez, censurava “desenhos gays”, definia cores adequadas a cada sexo, produzia informações falsas sobre povos indígenas – como vídeos em que pedia aos próprios indígenas que encenassem o enterro de crianças para depois apresentá-los como fato e evidência do infanticídio bárbaro e da necessidade de perda de guarda e adoção de suas crianças -, enfim, transformou-se em polícia do sexo, como sugere o próprio nome: Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. O Ministério da Saúde… Bem, esse foi o principal órgão publicitário da cloroquina, o responsável pelo título de “genocida” ao então presidente, por uma população desconfiada das vacinas, viciada e padecente dos efeitos colaterais do kit Covid, verdadeira panaceia desvairada: mistura de cloroquina, ivermectina, ozônio, contaminação de rebanho, religião e politica publica do mercado2. Por fim o Ministério da Justiça foi inicialmente ocupado por um dos principais personagens do golpe de 2016 e, em nosso caso em especial, que desmantelou as politicas industriais nacionais, as empresas de engenharia ligadas ao setor petroquímico e portanto ao Polo Naval3. E assim seguiu a descida ao inferno até a derrota daquela ingerência pelas forças populares.

 Nessa simples retomada da razão de ser das instituições em que ainda e nos encontramos  nesse primeiro ano de governo, descobrimos diariamente o lamaçal em que nos estávamos. O pouco que ainda restava de pé agonizava. Ao reanimar a fiscalização do trabalho veríamos em um prazo de três meses foram quase mil trabalhadores resgatados de cativeiros em situações degradantes análogas à escravidão, superando todos aos anos anteriores (no mesmo período) perdendo apenas para 2008. Os cativeiros eram propriedades diretas ou indiretas empresários diretamente ligados ao governo Bolsonaro. Os casos mais chocantes diziam respeito à situação degradante dos trabalhadores no Rio Grande do Sul. Quem eram? Os “baianos”, com aspas mais uma vez.  

 As denúncias de trabalho escravo em 2023 também se assemelham aos anos recordes de 2008, 2007, 2005 e 20034 nas regiões e segmentos do emprego forçado dessa mão de obra. Vê-se um padrão: estão vinculados a agropecuária, minério, aos setores sucroalcooleiros (cana de açúcar, etanol) e desmatamento. Em 2008, ano recorde de todo o histórico, a maioria dos casos denunciados estavam vinculados à pecuária (134). Em segundo lugar aparece o ramo de carvão (47). Já entre as libertações, o setor sucroalcooleiro liderou o ranking em 2008, com 2.553 trabalhadores que deixaram a condição análoga à escravidão, conforme registra a Comissão Pastoral da Terra5. Houve ainda sete casos compilados que uniram trabalho escravo e desmatamento – seis deles foram fiscalizados, com 83 trabalhadores libertados.  

 Até 2008, dentre os estados com maior concentração de flagrantes segundo a série histórica da CPT estão na região da Amazônia ligados ao desmatamento (Pará, Mato Grosso), Paraná, Santa Catarina, Maranhão, Goiás, Alagoas. Rio grande do sul não se destacava entre estes estados mas já estava ligado historicamente às atividades ligadas ao agronegócio desde as frutas – uvas, pêssegos, maçãs – até as vinícolas e arrozais historicamente presentes na região sul.

 Dos cerca de mil trabalhadores escravizados resgatados nos primeiros tres meses de 2023, 207 deles foram encontrados ainda em fevereiro, dia 22, por uma operação conjunta entre o Ministério do Trabalho e do Emprego, a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal (PRF) em Bento Gonçalves, na Serra do RS. Região celebre pelo passeio de trem com degustação de vinhos, pelas festas envolvendo os temas, ela representa o universo de reprodução dessa instituição histórica, para a maioria já superada, em condições atuais. Os trabalhadores, a maioria baianos mas contavam alguns gaúchos e argentinos, inclusive menores de idade, partilhavam de experiência próxima aquela dos escravos das plantations ou das charqueadas, o “inferno dos negros” para evocar o imaginário gaúcho6.  

 Os relatos se reforçam quanto à descrição do trato com os empregados das vinícolas: trabalhavam das 5h às 20 horas sem descanso, sem finais de semana. Eram obrigados a pousar no local mas deviam saldar suas dívidas por todos os acessórios utilizados (botas, roupa, lenços, panela). Comiam comida estragada, dormiam em alojamentos precários e insalubres, não dispunham de liberdade para ir embora, ou seja, eram obrigados a ficar sobre o risco de tortura: espancamentos, choques elétricos, spray de pimenta, ameaças de morte, tortura psicológica. Nas denúncias recebidas pelo Ministério Público do Trabalho, os trabalhadores gaúchos relataram que “apenas os baianos eram submetidos a torturas, choques e espancamentos”7. Um desses trabalhadores conseguiu fazer um vídeo mostrando marcas de tortura em si e nos colegas. O vídeo foi disparado nas redes sociais e resultou no fim de contrato de alguns clientes com a empresa beneficiaria do trabalho escravo. Eles foi trancado em uma sala e espancado por horas. Durante os golpes, os capangas gritavam: “mata, mata esse baiano! Vamos acabar com a raça dele. Ele tentou acabar com a nossa!”.

  Mas observemos a realidade social desse universo que consubstanciava de sentido - normal e positivo, aceitável e até defensável - esse tipo de prática. Alguns dias depois da publicização do resgate, no dia 27 de fevereiro, o Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves (CIC-BG), emitiu uma “Nota de Posicionamento8”. De início, faz uma rápida concordância com o apoio à fiscalização e punição “para com os responsáveis por tais práticas inaceitáveis”, para avançar em seguida em seu porém-todavia, e aqui estão os pontos de compreensão daquela realidade: “é fundamental resguardar a idoneidade9 do setor vinícola, importantíssima força econômica de toda microrregião.” As vinícolas são, “todas elas, sabidamente, empresas com fundamental participação na comunidade e reconhecidas pela preocupação com o bem-estar de seus colaboradores/cooperativados por oferecerem muito boas condições de trabalho, inclusive igualmente estendidas a seus funcionários terceirizados”.  

 Assim a nota finaliza com sua casuística real do trabalho escravo, “há muito tempo objeto de preocupação das empresas e do poder local”, qual seja: a submissão ao trabalho escravo pelo empregador é consequência da “falta de mão de obra e da necessidade de investir em projetos e iniciativas  (leia-se: por parte do poder público) que permitam minimizar este grande problema”. Pois “há uma larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade”. E a cereja do bolo, a solução apresentada:  “É tempo de trabalhar em projetos e iniciativas que permitam suprir de forma adequada a carência de mão de obra, oferecendo às empresas de toda microrregião condições de pleno desenvolvimento dentro de seus já conceituados modelos de trabalho ético, responsável e sustentável”.

  E essa é sua nota oficial de defesa e esclarecimento! O trabalho escravo é fruto da falta de mão de obra motivada pelo assistencialismo vicia os preguiçosos e parasitas do trabalho alheio, e que não deixa escolhas aos empregadores senão a de escravizar. Aparentemente não há aí nenhum sentido lógico. Como se segue da falta de mão de obra para a necessidade de escravização das poucas que sobrariam no mercado? Assim, a condenação maior é ao Estado (social, não-punitivo), que além de não ter projetos que supram essa carência de mão de obra, ainda erra em conceder benefícios e auxílios aos pobres. Resta, outrossim, uma defesa aberta, ainda que torta, do próprio direito de escravizar os pobres preguiçosos e parasitas em beneficio da sociedade.  

 Mas existe um fundo lógico que possibilita esses discursos. Entre o final dos anos 1980 e início dos 1990, no bojo do neoliberalismo, os projetos de “tolerância zero” que implica na criminalização da pobreza como “classe de parasitas que nos ameaça e vivem nas nossas costas”, como declarou uma autoridade dos Estados Unidos, “o Estado-providência deve ser arquivado a fim de salvar a sociedade da underclass, que já semeia a ruína social e a desolação moral das cidades […]”. E o alinhamento com o CIC de Bento Gonçalves é quase perfeito quando Lawrence Mead, um dos principais idealistas do Estado (social) mínimo descreveu em tom pseudocientífico, em colóquio na Inglaterra, que “o Estado deve evitar ajudar materialmente os pobres, deve todavia sustentá-los moralmente obrigando-os a trabalhar” (WACQUANT, 2001, p. 42-43).

 O presidente Clinton adotou como corretas, por exemplo, as análises segundo as quais “as uniões ilegitimas e as famílias monoparentais seriam a causa da pobreza e do crime”, e “a taxa das famílias monoparentais aumenta rapidamente; à medida que os orçamentos das ajudas crescem”. O mesmo palavrório que temos escutados no Brasil sobre o Bolsa Família e as mãe que teriam mais filhos só para se pendurar no auxílio. E é claro que os destinados a tais hostilidades eram pobres negros, sendo esta a raça, a substância e a pobreza e suas consequências (promiscuidade sexual, inclinação ao crime e à vadiagem) os predicados.  

 De forma mais espontânea, é Sandro Fantinel, um vereador de Caxias do Sul, cidade vizinha de Bento Gonçalves, então do partido Patriotas, que dá consistência e acabamento ao sentido daquele universo. Em sua fala, ao contrário do não estranhamento aparente da entidade representante dos acusados, o vereador estranha o oposto, estranha o espanto da sociedade com o que se passava nas vinícolas:  

Agricultores, produtores [rurais], empresas agrícolas que estão nesse momento me acompanhando, eu vou dar um conselho para vocês: não contratem mais aquela gente lá de cima. Todos os agricultores que têm argentinos trabalhando hoje só batem palma. São limpos, trabalhadores, corretos, cumprem o horário, mantêm a casa limpa e no dia de ir embora ainda agradecem ao patrão pelo serviço prestado e pelo dinheiro que receberam. Agora, com os baianos, que a única cultura que eles têm é viver na praia tocando tambor, era normal que se fosse ter esse tipo de problema. Deixem de lado aquele povo que é acostumado com Carnaval e festa para vocês não se incomodarem novamente. Que isso sirva de lição, Se estava tão ruim a escravidão, como alguns do grupo não quiseram ir embora?”10

Para concluir, e em auto-análise, entendo que um sentido evolucionista da história restava em nós, pesquisadores e sujeitos políticos, entre um pessimismo diário e um otimismo a longo prazo, e que foi arrebentado, destruído. As representações icônicas do Brasil colonial que guardávamos em casa ganharam novo sentido, aproximaram-se no tempo, no ontem, no logo ali. Debret e Rugendas estavam agora mais humanos, mais como nós.  

 O trecho da fala do vereador poderia ser transportado ao século XVII ou XVIII sem grandes modificações para o seu ajuste no caderno de caixa de um traficante de escravos ou senhor de fazendas. Mas a fala se produziu em 2023, e ganhou sentido em sua difusão, mesmo aos conscientes de seu deslocamento no tempo espaço. Mesmo estes, nós, acostumamo-nos com essas afirmações nos últimos anos no Brasil e no Mundo. A abundância de barbaridades nos embotou em alguma medida. A pergunta com que finalizo é de ordem tanto politica quanto científica: como foi possível esse reaparecimento de relações cujos sentidos, há alguns anos, parecia completamente absurdas e superadas? Um bug na realidade, a fratura no espaço-tempo em que fomos lançado ao passado pitoresco? Ou o presente velado que se desvelou.

Ps: Este artigo pode ser encontrado em versão expandida e detalhada na Revista Plurais, 2023, da UFPR.

 Ver link: https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2012/06/dados-do-ibge-colocam-municipios-do-estado-como-campeoes-em-credos-3806966.html#:~:text=Apesar%20de%20ser%20o%20segundo,vezes%20%20percentual%20da%20Bahia.  

 2  Sobre o tema, publiquei um artigo na imprensa detalhando os embates e as primeiras politicas de saúde em relação à pandemia da Covid-19. Ver: https://www.brasil247.com/blog/5-razoes-para-a-des-politizacao-do-virus-chines  

 3  Publiquei um artigo sobre a Lava Jato como projeto de destruição da industria nacional de ponta. Ver: https://www.brasil247.com/blog/para-uma-hermeneutica-da-tagarelice-a-lava-jato-a-odebrecht-e-o-bale-imperialista 

 4  Segundo relatórios da Comissão Pastoral da Terra elaborado desde 1985.

 5  Ver link: https://reporterbrasil.org.br/2009/05/denuncias-sobre-trabalho-escravo-atingem-recorde-em-2008/ 

 6  A lenda popular do negrinho pastoreio é síntese desse inferno e é muito replicada no folclore riograndense.

 7  https://www.sinprodf.org.br/vereador-gaucho-faz-discurso-xenofobo-e-e-expulso-de-seu-partido/ 

 8  http://www.cicbg.com.br/noticia/nota-de-posicionamento/1699 

 9  Itálicos são meus

 10 https://www.cartacapital.com.br/sociedade/policia-abre-inquerito-para-apurar-declaracoes-xenofobicas-de-vereador-no-rs/ 

08
Abr23

Uma epidemia de ódio no Brasil

Talis Andrade

Ataques violentos em escolas não são casos isolados: vivemos num Brasil que destila ódio – e ele tem um longo lastro, não começou em 2018. Precisamos de múltiplas ações para desmontar esse sentimento identitário.

 

por Ynaê Lopes dos Santos/ DW

O Brasil ficou chocado com o assassinato da professora Elisabete Tenreiro, de 71 anos, por um de seus alunos na cidade de São Paulo, e com o atentado contra a creche Cantinho do Bom Pastor, que deixou quatro crianças mortas e outras feridas em Blumenau.

E não era para menos: devemos ficar absolutamente consternados e arrasados, pois estamos diante de uma epidemia de ódio.

O desespero aumenta quando vemos que tais violências tiveram como palco um dos lugares de maior importância na construção de sociedades democráticas: a escola. O espaço que, em tese, deveria ser de segurança para professores, estudantes e funcionários, virou alvo preferido de ações extremistas que se alimentam de ódio, desenvolvendo uma competição doentia e criminosa que vem arregimentando muitos jovens brasileiros a serem mártires de uma seita difícil de ser adjetivada.

As autoridades já estão agindo, e desde o dia 3 de abril vimos uma mudança salutar na postura do jornalismo brasileiro em como tratar esse fenômeno de escalada do ódio, a partir da escuta atenta de especialistas. No mundo que celebra os "15 minutos de fama" – ou os atuais 20 segundos do TikTok –, a epidemia do ódio se constrói em rede, por meio do reconhecimento desses doentes-criminosos, que passam a ser tratados como mártires nessas seitas abjetas. Por isso é fundamental não alimentar essa perspectiva pérfida de sucesso.

Ódio não é novidade no Brasil

Mas, como sabemos, esses casos não são isolados. Nos últimos anos, a escalada do ódio ganhou proporções assustadoras, pautando inúmeras políticas públicas brasileiras, como a tragédia yanomami, ou o desdém de muitas autoridades políticas em relação aos 700 mil mortos na pandemia de coronavírus. Não nos esqueçamos das chacinas que continuam a ditar a vida de muitas pessoas (sobretudo pretas) que vivem nas periferias Brasil afora, no crescimento do feminicídio, nos assassinatos promovidos por brigas banais ou discordância política – como a morte recente do cinegrafista Thiago Leonel Fernandes da Motta, no Rio de Janeiro.

No entanto, é importante dizer isso – sobretudo em plena Sexta-feira da Paixão: o ódio como forma de fazer política e de atuar socialmente não é uma novidade no Brasil. Ainda que tenhamos vivido recentemente a era do "gabinete do ódio", é preciso reconhecer que tal gabinete encontrou ressonância em parcela da sociedade brasileira, alimentando e sendo alimentado pela besta-fera. Isso parece muito estranho em um país que foi forjado na ideia de ser uma nação pacífica, harmoniosa e multirracial – uma espécie de cadinho do mundo. E talvez parte do problema esteja exatamente nisso: a maneira como entendemos o Brasil e nos reconhecemos como brasileiros, nos impede (propositadamente) de uma percepção mais acurada do que também é o Brasil.

Vivemos num Brasil que destila ódio. E esse ódio tem um longo lastro.

Pode parecer um tanto apocalíptico dizer isso, mas a produção histórica está aí, para não nos deixar mentir.

Crise de identidade

Se recuperamos em parte os antecedentes dos dois últimos casos de ódio, veremos que o pressuposto da supremacia branca está presente em ambos. Há quem possa me chamar de identitarista. Embora ache que esse termo reduz o debate, não fugirei dessa alcunha, porque acredito que o que vivemos é também (ou acima de tudo) uma crise de identidade. Há uma espécie de silêncio tácito nessa cultura de ódio, que defende que todos os não brancos sejam entendidos como seres inferiores, e que justamente por isso são receptáculos do ódio e, portanto, passíveis de serem eliminados, independentemente da idade que tenham.

Digo e repito: nossa cultura do ódio não começou em 2018. Ali ela só passou a mostrar sua cara mais feia. Precisamos de múltiplas e combinadas ações para desmontar essa rede e esse sentimento identitário. Porque o ódio cria laços, constrói relações. Infelizmente as pessoas se reconhecem no ódio, e chegam a defender pertenças pátrias a partir desse sentimento. E esse reconhecimento que acompanha nossa história, agora é alimentada por redes que escapam aos órgãos de controle, aos olhares dos pais, e à própria ideia de civilidade.

Já sabemos que as democracias morrem... de morte morrida e de morte matada. Já estivemos por um fio em muitos momentos. E o que sempre nos salvou foi o exercício amplo e crítico da cidadania.

É profundamente sintomático que os últimos dois episódios de violência e ódio tenham ocorrido em escolas. Esse sintoma também é um sinal, um indicativo de que, mais do que nunca, precisamos olhar com mais cuidado e atenção para esses espaços. E aqui, o sujeito da frase é a primeira pessoa do plural: nós, sociedade, precisamos cuidar e ressignificar nossas escolas. Que possamos construir espaços escolares que sejam, efetivamente, lugares de celebração da diversidade, do respeito, do debate, da busca de conhecimento, da alegria, da saúde e da vida.

17
Mar23

Macron aumenta idade aposentadoria na França. De 62 para 64

Talis Andrade
www.brasil247.com - Protesto em Paris devido ao aumento da idade de aposentadoria
Protesto em Paris devido ao aumento da idade de aposentadoria (Foto: Reuters)

 

Mais de 300 manifestantes presos na França durante protestos contra reforma da previdência

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Idade mínima de 65 anos no Brasil. Mas é necessário ter o tempo mínimo de 15 anos de contribuição ao INSS. Para o civil, aposentadoria beneficia quem tem o pé na cova

A aposentadoria é um benefício pago pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) para todo trabalhador que contribua com a previdência.

A aposentadoria por idade é um dos 4 tipos hoje concedidas pelo INSS:

 

Quem pode se aposentar por idade?

 

No caso da aposentadoria por idade, no Brasil, é necessário que o segurado tenha realizado 15 anos de contribuição.

Além disso, é preciso a idade mínima de 65 anos, no caso dos homens, e a idade mínima de 62 anos para mulheres.

 

Mais um dia de protestos na França 

 

Milhares de manifestantes voltaram às ruas de Paris para protestar contra a reforma da previdência que o governo de Emmanuel Macron quer implementar sem passar pelo voto dos deputados da Assembleia Nacional francesa.

O governo Macron, por meio da primeira-ministra Elisabeth Borne, acionou um dispositivo especial para aumentar a idade mínima para aposentadoria de 62 para 64 anos.

Críticos da reforma afirmam que o projeto é "brutal", "desumano" e "degradante".

 No Brasil, nos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, o aumento do tempo de aposentadoria passou na santa paz, pela covardia dos sindicatos, e passividade dos trabalhadores, massacrados pela extrema direita, no Brasil que jamais realizou uma greve geral.
 
 
O possível voto de desconfiança
 
 

As forças de segurança francesas prenderam 310 manifestantes na quinta-feira (16) durante protestos que explodiram depois que o governo do presidente Emmanuel Macron decidiu adotar a impopular reforma da Previdência atropelando o voto dos deputados, anunciaram as autoridades.

Em Paris, a polícia usou gás lacrimogêneo e jatos d'água para dispersar os manifestantes reunidos na 'Place de la Concorde', próxima da Assembleia Nacional (câmara baixa), após a decisão do governo. Na manhã desta sexta-feira (17), quase 200 manifestantes bloquearam o anel viário de Paris por meia hora. 

Cinquenta e quatro policiais ficaram feridos em meio à violência. 

O governo está sob pressão e aguarda o resultado do voto de desconfiança anunciado contra o Executivo da primeira-ministra Élisabeth Borne. A votação deve acontecer no início da próxima semana e se a moção de censura for adotada, isto também derrubaria a reforma. 

O líder da França Insubmissa, Jean-Luc Melenchon, disse que o texto da reforma da previdência não tem legitimidade parlamentar. O projeto de lei foi aprovado "apenas pelo Senado, e não pela maioria do povo francês, nem pela Assembleia Nacional, nem pelos sindicatos, nem pelas associações de trabalhadores: é um texto que não tem legitimidade", disse ele.

Fabien Roussel, líder do Partido Comunista Francês, também rechaçou a reforma: "Este governo não é digno da nossa Quinta República, da democracia francesa".

Os sindicatos prometeram manter sua oposição às mudanças na previdência, com a Confédération Générale du Travail (CGT) dizendo que outro dia de greves e manifestações está sendo planejado para quinta-feira, 23 de março. 

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17
Set22

Suicídio pode estar ligado à questão socioeconômica e à identidade de gênero

Talis Andrade

OAB Pernambuco se engaja na campanha Setembro Amarelo - OAB-PE

 

A constatação é de um estudo da psicóloga Vera Paiva e revela que o suicídio nem sempre é motivado por doenças mentais e que pode estar atrelado a motivos sociais

 
 
Texto Jornal  USP
 

- - -

Neste mês comemora-se o Setembro Amarelo, uma campanha de conscientização da população acerca do suicídio, criada em 2014 pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) em parceria com o Conselho Federal de Medicina (CFM). De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o suicídio é a segunda causa de morte entre jovens entre 15 a 29 anos e 77% deles ocorre em países pobres.

O artigo Prevalência e determinantes sociais da ideação suicida entre estudantes brasileiros em escolas públicas do ensino médio busca sanar uma lacuna nas estatísticas de suicídio entre jovens brasileiros. Comumente associado a doenças mentais, o suicídio pode estar atrelado a motivos sociais, “à desigualdade econômica, um crescimento de desemprego, da flexibilidade de emprego, a falta e a destruição das políticas de proteção social”, como explica a professora do Instituto de Psicologia da USP e um dos autores do estudo, Vera Paiva. Ela também ressalta que esse problema “tem sido associado com desigualdade de gênero”. 

O estudo revela que a taxa de suicídio é maior entre meninos e que está diretamente ligada a fatores socioeconômicos, de bem-estar social e pertencimento, como a renda baixa, bullying e até ao estudo no período noturno. Ainda assim, jovens que estão diretamente expostos à LGBT+ fobia e que se assumem parte da comunidade LGBTQIA+ são o grupo mais afetado.

Mesmo que o número de suicídios não tenha aumentado consideravelmente na pandemia, o que aconteceu foi uma mudança nos grupos que o idealizam. “A gente não viu um aumento expressivo, a gente viu mudanças dos grupos que estão mais ou menos afetados”, explica a professora. 

 

O papel da escola

 

O projeto, financiado pela Fapesp e liderado pela professora e por Marcos Roberto Vieira Garcia, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), surgiu a partir de uma demanda das escolas e dos professores para que o assunto de saúde mental fosse abordado nas escolas.

 “A escola não tem condições plenas de resolver esse assunto, mas tem sim condições de evitar a discriminação, o bullying baseado em qualquer uma desses elementos e fazer o compartilhamento das situações de sofrimento”, ressalta Vera. “As professoras não são capacitadas para lidar com um evento de saúde mental ou lidar com famílias”, observa. 

A atuação das escolas na prevenção do suicídio e na diminuição do sofrimento psicossocial desses grupos mais afetados é muito importante, porém, deve ser direcionado. Abordar o assunto, promover um ambiente de segurança a esses grupos, pautar temas como a LGBT fobia e estar atento a sinais são medidas que podem ser tomadas por essas instituições. Uma das melhores formas de prevenção, segundo Vera Paiva, é o sentimento de pertencimento e poder conversar e se reunir com pessoas parecidas.  

 
 

Vera Paiva 

 

Sistema de saúde

 

A culpabilização dos pacientes e o encaminhamento destes não são o mais recomendado. O Sistema Único de Saúde, que oferece acompanhamento nesses casos, não dispõe de atenção individualizada, o que é imprescindível. “A maior parte do que é oferecido para eles é o atendimento em grupo, e na primeira chegada eles querem ser recebidos individualmente, querem ser escutados individualmente”, explica a pesquisadora. “É necessário mudar o modo como o serviço de saúde acolhe os jovens”, finaliza Vera. 

22
Dez21

Mãe presa pelo furto da água para filha de 5 anos

Talis Andrade

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A punição pelo furto da água

Por Paula Fonseca e Isabela Araújo /Justificando

  

         Nos últimos dias, a prisão de uma mulher de 34 anos, mãe de uma criança de 5, ganhou particular atenção da mídia. Isso porque ela estava sendo mantida em privação de liberdade, desde julho, acusada de furtar água da Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa). Segundo a denúncia, o casal – a mulher e seu companheiro – violou o lacre da Companhia pública para ter acesso à água em tempos de pandemia. No entanto, somente ela foi presa, sob a justificativa de um suposto comportamento violento e desacato durante a abordagem policial. Além disso, foi alegado que a mulher era reincidente, ainda que tivesse cumprido integralmente sua pena em 2011 e que há 08 anos estivesse sem cometer outros crimes.

Esse caso se torna bastante ilustrativo da realidade do não acesso ao saneamento básico por grupos em situações de vulnerabilidades e a desigualdade de acesso a bens que são considerados públicos e comuns, livres de apropriação. A solução punitiva para o roubo da água se torna ainda mais preocupante por dois motivos: se o problema é a falta de acesso a bens públicos, a solução deveria vir pela assistência e garantia de direitos, para tornar possível uma vida digna e saudável. Por outro lado, parece contraditório – para dizer o mínimo – que a pena pelo furto de água da concessionária seja a privação de liberdade, visto que é bastante questionável o acesso a alguns serviços de saneamento nas unidades prisionais brasileiras, tais como como água, esgotamento sanitário e gestão adequada de resíduos sólidos.

 

1 a cada 7 mulheres não tinham acesso à água em 2016, e o mesmo acontecia com 1 a cada 6 homens

A nós, que temos água disponível em nossas torneiras, que consumimos diária e irrestritamente água potável, que temos em nossas casas e bairros um sistema de esgoto que permite seu tratamento (ou pelo menos sua coleta), parece distante uma realidade que para cozinhar para seu filho e fazer a higiene diária, seja necessário furtar a água tratada. Mas fato é que cerca de 35 milhões de brasileiros/as vivem nessa situação. Para se ter uma ideia, 1 a cada 7 mulheres não tinham acesso à água em 2016, e o mesmo acontecia com 1 a cada 6 homens. Olhando para essa realidade, nos parece importante questionar: como se dá esse acesso nas prisões brasileiras? Qual a disponibilidade e qualidade desses serviços para a população que está sob custódia do Estado? É esse o tema que será abordado essa semana em nossa coluna.

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Os direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário: de onde vem as garantias?

A água potável e segura e o esgotamento sanitário são reconhecidos como direitos humanos essenciais ao pleno gozo da vida e de outros direitos desde 2010 durante a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) através da Resolução A/RES/64/292. O documento resultante ainda demonstra como o acesso limitado ou escasso à água está mais vulnerável a riscos e doenças. Só no Brasil, cerca de 15.000 pessoas morrem por ano por enfermidades que são consequências do saneamento básico precário, sendo que 84% destas pessoas são crianças.

Assim, a tentativa de garantir a água potável e saneamento adequado e seguro se tornam peças fundamentais para reduzir a desigualdade social. Em relatório mais recente, a ONU enfatiza a necessidade de que o acesso a esses direitos sejam aplicados a esferas da vida além do domicílio, com ênfase em espaços públicos, tais como: escolas, prisões, hospitais, ruas e praças. Diferentes públicos são afetados nesses espaços, incluindo crianças e adolescentes, pessoas privadas de liberdade, enfermos, pessoas em situação de rua e trabalhadores informais.

Para se falar de acesso pleno aos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário (DHAES) é necessário que sejam contemplados cinco elementos normativos: i) disponibilidade, ou seja, que existam soluções em quantidade adequada de acordo com a demanda local; ii) acessibilidade física, de forma que as soluções estejam acessíveis para todos os públicos de forma contínua considerando sua segurança; iii) acessibilidade financeira, de maneira que a cobrança pelo acesso não limite o uso de pessoas por suas condições socioeconômicas; iv) qualidade e segurança, de modo que não haja prejuízos à saúde do usuário, e; v) dignidade, aceitabilidade e privacidade, para garantir o atendimento da demanda de todos os usuários sem constrangimento.5 Além dos conteúdos normativos dos DHAES, os princípios fundamentais dos direitos humanos – igualdade e não discriminação; participação e inclusão; responsabilidade e prestação de contas; alcance progressivo e uso máximo de recursos disponíveis – também devem ser rigorosamente observados.

Todos esses documentos e discussões que são realizadas e divulgadas pelas assembleias da ONU são importantes para fomentar o compromisso dos países com o problema do inacesso à água e ao saneamento básico, criando uma pressão internacional para pensar soluções para o problema que se apresenta. Contudo, estes documentos e as assinaturas dos países com os compromissos neles estipulados não possuem caráter de lei, para isso é preciso ser incorporado na legislação nacional. Ou seja, apesar de o Brasil entender a água como direito humano, não há leis que assegurem esse direito.  Neste sentido, esforços nacionais estão sendo empreendidos desde 2018 como a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 6/21 que busca incluir a água potável na Constituição como um dos direitos fundamentais. A PEC já foi aprovada pelo Senado e no momento está em tramitação na Câmara dos Deputados. Se tornando um dos direitos resguardados pela Constituição, se torna dever do Estado garantir o acesso a ela, a qualquer cidadão, sem exclusão.

Esse movimento também é visto quando olhamos para a situação das pessoas privadas de liberdade, é também pela ONU que se inicia a discussão sobre o acesso à água e saneamento básico dentro dos cárceres. Já em 1995, no Primeiro Congresso das Nações Unidas sobre a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes, realizado em Genebra, foram definidas as “Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos”. Esse documento também não tem um caráter legislativo, mas busca um consenso sobre os princípios, elementos e práticas aceitáveis e essenciais para o tratamento das pessoas presas e gestão prisional. Importa dizer que diversos são os países signatários deste documento da ONU, entre eles o Brasil.

Em 2015, em Assembleia Geral, essas regras passaram por atualização, foram rebatizadas como “Regras Mínimas Padrão das Nações Unidas para o Tratamento de Prisioneiros”, e apelidadas por “Nelson Mandela Rules”, através da Resolução RES/70/175. Alguns componentes normativos do DHAES estão presentes nessas regras, como por exemplo:

Regra 15: As instalações sanitárias devem ser adequadas para permitir que cada prisioneiro atenda às necessidades da natureza quando necessário e de maneira limpa e decente.  

Regra 16: As instalações de banho e ducha devem ser suficientes para que todos os reclusos possam, quando desejem […], tomar banho ou ducha a uma temperatura adequada ao clima […].    

Regra 22.2:  A água potável deve estar disponível para todo prisioneiro sempre que ele ou ela precise disso.

  Assim, mesmo não estando na instância legislativa, como signatário das Regras Mínimas, o Brasil deveria empreender esforços para assegurar o acesso, disponibilidade e qualidade da água e saneamento nas unidades prisionais nacionais. Se o documento busca fomentar esforços para solucionar os desafios e as dificuldades que perpassam o sistema prisional, será que ele tem norteado a oferta de água e saneamento nos cárceres brasileiros?

 

 O retrato do acesso à água e esgotamento sanitário em prisões

Apesar do Brasil ser signatário de acordos e diretrizes internacionais do tratamento dos presos desde 1995, a CPI do Sistema Carcerário de 2009 apresentou diversas violações quanto ao direito ao acesso à água e ao esgotamento sanitário. De forma geral, a CPI apurou que em grande parte dos estabelecimentos inspecionados, o Estado não disponibilizava água com qualidade para o uso e consumo. Diversos eram os relatos de que a água utilizada vinha de canos direto para a utilização, sem assegurar que ela estivesse limpa. A disponibilidade da água para o banho tinha tempo e hora marcada. O vaso sanitário também era uma questão: após a sua utilização não havia água para descarga ou para higienizar as mãos dos presos, causando proliferação de moscas, baratas, outros insetos e animais.

Em casos específicos, parte da população prisional era cobrada por funcionários da instituição de forma indevida para conseguirem consumir água potável. O armazenamento da água em garrafas também não era raro nas unidades, assim como o controle da quantidade disponível por pessoa, que depois de consumir a cota estipulada pela instituição, não poderia usufruir de mais nenhuma quantia. Anos mais tarde, em 2017, outra CPI foi realizada, porém, dessa vez, a questão do saneamento básico e disponibilidade da água não ganhou uma grande relevância. Apesar disso, os estudos empíricos preenchem essa lacuna.

Por exemplo, as condições de saúde em presídios do estado do Rio de Janeiro em 2013 não eram das mais satisfatórias, como destaca pesquisa de Minayo e Ribeiro. A insalubridade do ambiente penal chamava bastante atenção, devido ao precário abastecimento ou mesmo pela falta de água, além da proliferação de insetos, o que pode ser justificado pela rotina de se servirem as refeições dentro das celas. As pesquisadoras identificaram que  as doenças infecciosas mais comuns entre os presos e presas foram dengue e tuberculose, e que as doenças de pele, particularmente temidas pelas mulheres, apresentaram prevalência mais elevada em comparação à população brasileira de forma geral. Vale ressaltar que todas elas estão diretamente conectadas ao não acesso à água de qualidade e limpa e a não disponibilidade do esgotamento sanitário no cárcere.

Você pode estar se perguntando como se dá essa relação. Por exemplo, como a CPI de 2009 já alertava e 3 anos depois o Conselho Nacional de Justiça (CNJ)reafirmou, a intermitência no abastecimento de água nas prisões de todo o Brasil, faz com que detentos era armazenassem água em baldes e garrafas, por vezes oferecidos pela própria administração prisional. Hábito esse que se não manejado de forma correta, pode favorecer a proliferação de doenças;

Uma situação de negligência das necessidades especificamente das mulheres, por exemplo, foi constatada pelo CNJ, cuja falta de assistência material na Penitenciária Feminina de Santana, na capital de São Paulo, obrigava detentas a improvisar miolo de pão como absorvente íntimo. Essa situação exemplifica o fato de que as mulheres sofrem, desproporcionalmente em relação aos homens, os impactos da falta ou precariedade das soluções de saneamento. Além disso, as desigualdades de gênero são exacerbadas quando elas são somadas a outras formas de discriminação e desvantagens, como é o caso de mulheres e meninas que vivem na pobreza; com deficiência ou incontinência; habitam áreas remotas; não possuem segurança com relação à posse de sua terra; presas ou em situação de rua.

Diante das denúncias acerca da insalubridade da água fornecida aos presos do estado do Rio de Janeiro, o Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (NUDEDH), em parceria com o Núcleo de Prática Jurídica (NPJ) da Escola de Direito Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas (FGV DIREITO RIO), buscaram elaborar um parecer jurídico, com análise acerca do acesso à água potável nos presídios do estado. Durante a pesquisa, o NUDEDH enviou ofícios à administração de 52 unidades penais questionando sobre a quantidade e frequência de limpeza de reservatórios e caixas d’água, quantidade e localização de bebedouros, e regime de fornecimento da água aos presos. Apenas 30 unidades responderam aos ofícios encaminhados, fazendo com que a ausência e/ou o conflito informações disponibilizadas pelas unidades impedisse a apresentação de um posicionamento conclusivo acerca da insalubridade da água nos presídios do estado.

A ausência dessas informações reflete a negligência com que o direito humano à água é tratado nas instituições penais, assim como o saneamento de forma geral (água, esgoto, resíduos e drenagem). O relatório enviado pelo Depen aos responsáveis pela gestão das prisões brasileiras, cujas informações consolidadas e atualizadas originam periodicamente o Infopen, que tem o objetivo de realizar um diagnóstico da realidade prisional brasileira, não faz menção a nenhum dos quatro componentes do saneamento. A existência de banheiros apenas é mencionada para que o gestor preencha o número de sanitários nos módulos de saúde e de oficinas, quando da presença desses módulos na unidade prisional.  

         Todo esse cenário já é preocupante por si só, pois é impossível pensar uma existência digna e saudável sem a garantia ao acesso ilimitado de água limpa, potável, de qualidade para o consumo e higiene pessoal e do ambiente. Mas tudo se torna ainda mais alarmante quando trazemos essa realidade para os anos de 2020 e 2021, em que seguimos vivenciando a pandemia de COVID-19. Em nossa coluna, falamos à exaustão sobre os efeitos da chegada do coronavírus na prisão, levando em consideração que as principais formas de combate a ele se relacionavam com o acesso irrestrito à água tratada. A preocupação era latente assim que foi decretada a pandemia: a junção do vírus com a superlotação das nossas prisões,  que resulta em ambientes insalubres, adicionado à ausência de saneamento básico e o não acesso a água, deixava as projeções assustadoras.

             Acontece que diante de uma crise sanitária, se em algum momento foi esperado que as medidas de higiene fossem analisadas com mais cautela, a realidade se mostrou diferente. O Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo enviou um relatório à Comissão Interamericana de Direitos Humanos denunciando as condições sanitárias em que vivem os presos paulistas. O documento aponta que cerca de 70% das unidades do estado fazem racionamento de água, 69% das pessoas não possuem acesso a itens de higiene quando precisam e a mesma porcentagem de prisões estão superlotadas. Essa realidade diante de uma pandemia! 

A Rede de Justiça Criminal buscou, também neste contexto, empreender ações para conter a proliferação do coronavírus nas unidades prisionais brasileiras. Uma de suas propostas foi a elaboração de um site para denunciar a situação dos cárceres neste momento. Diante das denúncias apresentadas, está a falta de acesso e racionamento da água e a ausência de descarga nos banheiros.

         Buscamos com esse texto, lembrar nossas/os leitoras/os sobre a importância e indispensabilidade da água para a existência humana, muito mais que para a existência, mas para uma vida sadia e segura. Como um bem público e comum ela jamais pode ser, ao mesmo tempo, tida como direito incontestável de parte da população e um privilégio inestimável e, por vezes, inalcançável para outros. Falar sobre direitos das pessoas em situação de prisão é falar não apenas daqueles que são resguardados pela Constituição e legislação do país. Mas também, e principalmente, aqueles que são tão básicos e fundamentais que nos parecem óbvios. Mas lembremos, o óbvio precisa ser dito e, neste caso, defendido.

 

09
Dez21

"O Brasil segue sendo um dos países com maior desigualdade social e de renda no mundo"

Talis Andrade

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Manuela d'Ávila no Twitter

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Manuela
Agora sim uma escultura que representa o que o povo brasileiro está passando: fome e desemprego! A "vaca magra" é da artista Márcia Pinheiro e foi instalada em frente à Bolsa de Valores.Image
Para o ministro da saúde, a liberdade vale mais que a vida. Será? Confiram um trecho da minha entrevista para o MyNews. A íntegra você confere no vídeo da jornalista Myrian Clark:

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"Em 2022 nós precisamos de unidade, humildade e pé no chão. Humildade porque vai ser uma batalha difícil e existe uma máquina poderosa que joga sujo. Unidade porque se diante disso não tivermos unidade quando teremos? E muito pé no chão e conexão com o nosso povo".

"Eles vão ampliando e naturalizando a violência e fazem isso porque sabem que vozes como a da Daiana, da Karen, da Bruna, da Laura e do Matheus, aqui em Porto Alegre, são o caminho do futuro".

"Eles buscam argumentos para legitimar uma política centrada no extermínio da população brasileira. Mais de 600 mil famílias não vão passar o Natal com seus amores porque esses amores morreram durante uma pandemia que vitimou o nosso país de Norte a Sul."

"O que me espanta é essa naturalidade com que as instituições veem parlamentares sendo ameaçados, sempre pela extrema direita, e são sempre as mulheres e homens de esquerda os ameaçados, e continuam agindo como se nada tivesse acontecido."Image

Já é natal no posto de saúde de Santa Teresa, Rio de Janeiro  Que acharam dessa árvore feita com os vidros vazios das vacinas contra a covid-19?  #vacinajáwww.brasil247.com - { imgCaption }}

Ao escolher não cobrar comprovante de vacinação de estrangeiros que entram no Brasil, Bolsonaro decide colocar nosso país no centro do negacionismo mundial e põe em risco a vida dos brasileiros expostos a novas variantes. Genocida.
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O Brasil segue sendo um dos países com maior desigualdade social e de renda no mundo, é o que indica o estudo do Laboratório das Desigualdades Mundiais.

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