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Trata-se de um desastre marcado por um duplo paroxismo – pandemia e pandemônio. Excedemo-nos nessas duas dimensões
“O nome do destruidor é Destruidor, é o nome do destruidor”
(Arnaldo Antunes, A face do destruidor).
por Renato Lessa
O que designamos como “bolsonarismo” é um fenômeno sem conceito. A obsessão de atribuir-lhe um – fascismo, populismo, autoritarismo, necropolítica, o que seja – decorre da perturbação que sentimos diante de objetos sem forma, dotados de concentração incomum de negatividade, expressões de um insuportável “absolutismo do real”. A propensão humana à fabricação conceitual é, na verdade, um recurso de auto-proteção propiciador de um sentimento de familiaridade diante do inaudito. Sensação que resulta da posse de um nome para cada coisa, por mais assustadora que seja.
Questão arcaica, já inscrita no diálogo platônico Fédon e retomada na contemporaneidade pelo filósofo alemão Hans Blumenberg (1920-1996), quando lidou com os temas da “não-conceitualidade”, dos regimes metafóricos e do próprio “absolutismo do real”.[i] No mais, a lógica da auto-proteção, por meio da atribuição conceitual, segue o modelo do preenchimento de uma expectativa: o conceito, aplicado à coisa, é indutor de previsibilidade. Somos preenchidos pelo sentimento de “saber do que se trata”: o valor psicológico do conceito por vezes excede seu suposto alcance cognitivo. Na relação entre preenchimento e expectativa, cabe à última a configuração do primeiro.
De todo modo, movido pela sensação da inutilidade do conceito, penso na possibilidade – e no imperativo – de uma fenomenologia da destruição, sustentada na seguinte intuição: o “bolsonarismo” não possui uma história intelectual e nem sequer uma história política que o elucide. Deve, a meu juízo, ser mostrado por meio de uma história natural, ou de uma história de seus efeitos de destruição. O objeto – ou o nome – em questão não é aqui declinado como “conceito”: tem mais a ver com a etiqueta posta na gaveta para indicar que ali abrigamos uma coleção de registros de coisas extremas e abjetas. Um tipo de coleção que, em condições normais, revelaria seu coletor como sujeito passível de cuidados especiais. Para isto servem os nomes: conceitos não precedidos e comandados por intuições não passam de delírios positivitas; intuições sem nomes para as coisas são como mapas genéricos de cidades, desprovidos de roteiros.
Nos tempos que correm, o negócio é não ligar muito para isso e seguir máxima da grande antropóloga britânica Mary Douglas (1921-2007): “por a imundície sob foco”.[ii] Algo que, como bem advertia, afetará nossos modos usuais de cognição, habitualmente concentrados na busca de uma elucidação das coisas, através da detecção de causas e de precisa determinação conceitual. No diálogo platônico Fédon, Sócrates “viu” no conceito de Sol o que não podia ver na própria coisa, sob pena de queimar as retinas. Temo que, para proceder ao ajuste do olho, tenhamos que queimar as nossas.
Fazer do país um exemplo
No estado atual das coisas, o interesse cognitivo pelo Brasil, por parte da comunidade científica internacional, parece ser diretamente proporcional ao sucesso da projeção do país como pária planetário. Um interesse, por certo, movido por difundida abjeção e espanto, diante do fator de risco sanitário global implicado: o termo “Brasil”, em desastrosa ressignificação, vale como convite à profilaxia. Cuius culpa? Mérito exclusivo de um consulado que, embora avesso à própria ideia de globalização, globalizou o Brasil como pária. Uma projeção decorrente do mais extremo processo de “desfiguração da democracia”[iii] em curso no planeta. Um processo cujos sinais são detectáveis em escala igualmente global, mas que nas plagas brasileiras incide com maior radicalidade. Nobre feito da colusão dirigida pelo amigo-da-morte”, expressão que vale como substrato real da marca fantasia “Chefe de Estado”.
Feitas as contas, trata-se de um desastre marcado por um duplo paroxismo – pandemia e pandemônio. Excedemo-nos nessas duas dimensões, algo digno de grandes hospedeiros de desgraças. Não é para qualquer um. O país, com mais de noventa variações virais, tornou-se laboratório privilegiado para a pesquisa a respeito da pandemia. Qualifica-se, ainda, como excelente oportunidade para estudos de caso a respeito de processos de desconstrução civilizatória. De todo o modo, trata-se de ocupar a vanguarda e ter muito a ensinar ao mundo: seguimos o mote do país notável, no declive dos infinitos negativos. A seguir assim, há que temer o futuro no qual supostamente seríamos, segundo Stefan Zweig, “o país”. Pelo mundo afora, contudo, persistem fragmentos de difusa simpatia.
Em chave menor e pessoal, é o que pude constatar no gesto do Monsieur Mayer, veterano farmacêutico parisiense da Avenue de Saxe, não distante do Institute Pasteur. Ao inocular-me com a primeira dose da vacina anti-covid 19, disse-me: “c’est pour l’amitié franco-brésilienne”. Inoculado, saí tocado pelo gesto discreto e desprovido de solenidade, e pensei: M. Mayer deve ser da cepa dos franceses que se comportaram bem durante a ocupação alemã (1940-1944). Sem heroísmo armado, mas de algum modo observantes de regra tão básica quanto obsoleta: alucinar em cada indivíduo a humanidade inteira; tratar cada um como fim, nunca como meio.
M. Mayer nada sabe sobre este inoculado, a não ser a distinção da declinação polida “M. Lessa”. Bastaram o minuto efêmero e o espaço exíguo do cubículo – além do líquido e da agulha – para que uma curiosa mescla de impessoalidade e ânimo solidário compusesse o instante. M. Mayer é parte da miríade de operadores de solidariedade em ação pelo mundo. Tal como os que no Brasil persistem no combate à doença e às emanações sulfurosas do amigo-da-morte, assim como no cuidado do imenso contingente de vitimados.
Dimensão tácita
A não solenidade de atos praticados por operadores de solidariedade traz consigo uma intrigante questão: a ausência da declinação impostada do que seria o fundamento do ato solidário faz com que este tome a forma de um gesto automático e irrefletido. O contrário seria um tanto absurdo e ridículo: supor que qualquer ato ou gesto ordinário deva ser precedido de extenso e ruidoso exórdio, como justificativa e condição de inteligibilidade. Em outros termos, a boutade do M. Mayer, há pouco referida, – “c’est pour l’amitié franco-brésilienne” – vale pelo que vale: tão somente uma fórmula polida, que envolve a implicação particular de algo não-declarado, dotado de caráter geral e de incidência menos específica: vacinar a todos, não importa a quem. Foi essa, creio, a pequena e silenciosa metafísica a sustentar o ato solidário do farmacêutico kantiano – sans le savoir – da Avenue de Saxe.
O que parece subjazer a gestos e ações simples e comuns de solidariedade e cuidado é algo aparentado ao que o filósofo-químico húngaro Michael Polanyi (1891-1976) denominou como “conhecimento tácito”.[iv] Polanyi, por certo, falava de algo inerente a cada um dos humanos, a respeito da prática de um “conhecimento pessoal”: cada um sabe mais do que é capaz de dizer e é detentor e praticante de conhecimentos que sustentam uma capacidade determinada para agir. Algo, portanto, que não transparece nas palavras, mas emerge na própria ação, uma faculdade não fundada no saber dizer, mas no saber fazer.
A intuição de Polanyi, embora incida de modo específico sobre o processo de conhecimento, pode ser estendida para outros aspectos da experiência humana. Assim como há “conhecimento tácito”, é possível imaginar a presença de dimensões tácitas nas quais sentimentos morais e crenças de reciprocidade estão fixadas. Claro está que não se trata de supô-las naturais e inatas, já que resultam acumulações culturais fixadas – sabe-se lá como – ao longo do tempo, tanto em escalas individuais quanto intersubjetivas e compartilhadas. Falo de um complexo invisível de expectativas de comportamento e de crenças de reciprocidade e pertencimento que, embora presentes, não exigem enunciação explícita quando produzem seus efeitos.
Claro está também que tal esfera subjacente e tácita não é abrigo exclusivo para crenças e sentimentos de empatia. A empatia não se mede segundo marcadores excludentes de ausência ou presença, mas pela observação de seu alcance e de sua incidência: quando e onde está, com quais implicações, para quem se dirige, a quem é negada. A esfera tácita à qual me refiro está presente de modo mais difuso, na variedade de nossos juízos e ações dotadas de implicações práticas e morais. Cumpre a função de marcador primário do que nos parece aceitável ou não. Sua consistência transparece na fixação de limites do razoável e expectável: é o que se dá a ver em sentenças tão simples quanto quotidianas tais como “isto passou dos limites” ou “não é possível que isto tenha acontecido”.
Parece razoável supor que tais sentenças decorram de um sentimento de que algo já posto e estabelecido de modo tácito foi agredido por algum tipo de ação ou ato declaratório. A generalização de uma linguagem política na qual tudo pode ser dito, associada a exortações escatológicas e eliminacionistas, supõe a rarefação – ou mesmo desfiguração – de uma dimensão tácita.
A declaração de uma lídima representante da nova turma de ocupação do Palácio da Alvorada, em janeiro de 2019, dá bem o tom: “nós não conhecemos limites”. Temos aqui a límpida vocalização do desejo de furar uma dimensão tácita, cuja consistência mínima decorre do próprio princípio da existência de limites. Talvez tenha sido este o ato declaratório mais radical proferido pelos elementos da nova ordem, já que enuncia o princípio transcendental – ou a metafísica – dos atos singulares de destruição que se sucederam na ordem do tempo. Não ter limite é tomar-se a si como limite; é estabelecê-lo em cada ação, para ultrapassá-lo na seguinte. Puro situacionismo: em tal paraíso libertário, cada ato fixa seu próprio limite, para logo a seguir ser superado. O efeito final possível é o da radical reconfiguração da dimensão tácita a partir da naturalização da anti-regra de que “não há limites”. (Continua)
Comenta Antonio Uchoa Neto:
República dos assassinos. O esquadrão da morte no poder. Às favas com os escrúpulos, juiz ladrão, com o supremo, com tudo. Nunca vi tanta desgraça junta.
Darcy Ribeiro, junto ao túmulo de Glauber Rocha: "O Glauber morreu de Brasil!" O Brasil é a doença que está nos matando, a todos. Os que não estão morrendo, figurativa ou literalmente, ou não se dão conta dessa doença, não são brasileiros.
São os assassinos, são as autoridades que cometem genocídio por omissão, ou homicídio através de sicários.
Gente para quem a morte dos outros é fonte de prosperidade.
Matar indiscriminadamente, ou matar alvos certos, para essa gente dá no mesmo.
Bandido bom é bandido morto. Batalhadores (cf. Jessé Souza) bons são batalhadores mortos. Matar, matar, matar. Como eu não morri, tanto se me dá.
Perceber ódio, visceral ou não, nos olhos de vizinhos - gente que mora a poucos metros de nós - diante de certas notícias, é estarrecedor e deprimente.
E é essa gente, que nos cerca, que são os verdadeiros fâmulos da morte, ainda que os escandalize apontar-lhes essa pecha.
Meu cunhado relativizou a morte de Marielle Franco, ocorrida no dia do meu aniversário, fazendo eco a algumas fake news divulgadas logo depois - fotos, inclusive - que mostrariam a vereadora convivendo com traficantes. E era um homem bom, divertido, bom pai e bom marido, adorava cachorros. A cara dele, com o desmascaramento dessas mentiras, e o surgimento da verdade sobre os Bolsonaro, depois? Dir-se ia, 'não tem preço'. Mas tem, na verdade. Perder um pouco de fé, na humanidade.
Essa gente que comemora mortes, de quem quer que seja, deixa pelo caminho um pouco de sua humanidade; depois retornam desse pesadelo, mas retornam diferentes. Sempre com uma ponta de desconfiança do nosso renovado acolhimento. Creio que acalentam uma última esperança de poder dizer: 'tá vendo, eu tava certo!'
Ficam à espera de uma prova contra o Lula. De uma prova de que a esquerda matou Marielle. De uma prova que Adélio era um agente do PSOL. De uma prova de que Sérgio Moro não foi parcial. De uma prova que o Brasil está sob iminente ameaça dos comunistas.
Não sei. De uma prova de que o mundo é, de fato, como eles acham que é.
Em resumo: uma república dos assassinos, de esquadrões da morte, escrúpulos mandados às favas, de juízes ladrões, com o supremo, com tudo.
Contanto que fiquem sob a guarda de um ser benevolente, déspota ou não, tudo estará bem.
Não querem ser livres, nem autônomos, querem estar sob a proteção de algo, querem estar a salvo de pobres, pedintes, desvalidos, favelados, todos esses seres repugnantes que nos incomodam à mesa, nas ruas, no trabalho, nos aeroportos e nas universidade.
Na vida.