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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

30
Dez23

Pausas de calcificação

Talis Andrade
 
por Gustavo Krause
 

Não adianta resistir ao lugar comum: a semana de transição anual se impõe com a sensação de que o relógio/calendário para. De fato, “A vida necessita de pausas”, título do poema de Drummond, poeta apaixonado, para quem a pausa era “Dítono da vertente ...de toda minha loucura de amar/ Cada vez se torna mais difícil o pausar...na vida acelerada de minha saudade”.

Para nós, pessoas comuns, pausa é uma parada nas tarefas da sociedade do cansaço; um “fazer nada” ou um “ócio criativo” à Domenico de Masi; um intervalo para reflexão interior e, serenamente, encarar as dobras do tempo.

Desta forma, pouparei o leitor de uma espécie de contabilidade existencial que agrupa exaustivamente os fatos ocorridos em colunas de créditos e débitos; de valores e desvalores. A partir de uma escolha arbitrária e, confessadamente, limitada, me ocuparei de três registros.

O Primeiro trata do assustador 08/1 marcado, para sempre, pela violenta afronta à democracia com palavras envenenadas e gestos de efetiva agressão à Lei, às Instituições e aos símbolos nacionais. Prevaleceu a ordem democrática.

No entanto, a explosão do ódio não foi o começo e não será o fim das ameaças à democracia no Brasil e no mundo.

Seguem expostos “fios desencapados” às faíscas da intolerância, ao ambiente da antipolítica onde predomina a expansão dos extremos, alimentados pelo fenômeno persistente e crescente da polarização.

A rigor, a polarização não é intrinsecamente má desde que se manifeste no espectro do pluralismo o que move a sociedade democrática, respeitadas as divergências na busca da construção de consensos sociais.

E quando a polarização soa as trombetas do conflito e propõe o extermínio do outro divergente? Aí transmite a grave patologia da “calcificação” do tecido social, estrangulando o centro político e colocando em risco a estabilidade democrática.

Deve-se esta expressão – calcificação – aos autores do livro Biografia do Abismo: Como a polarização divide famílias, desafia empresas e compromete o Brasil (dezembro/2023), de autoria do cientista político Felipe Nunes e o jornalista Thomas Traumann.

A obra nasce histórica, não somente pela consistência do diagnóstico, fundamentado em dados de pesquisas, mas também, porque, propõe o remédio para “doença da democracia, mais democracia” numa sociedade de cidadãos. Devo acrescentar outro atributo de todo bom livro: inquieta o leitor, logo não é aconselhável para quem pretende desfrutar a leveza da pausa.

O segundo registro refere-se ao paroxismo da estupidez humana: a guerra no Oriente Médio e a continuidade de idêntico filme de terror que é a guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Em fevereiro completa dois anos.

No limite da minha ignorância diante da tragédia, faço apenas um comentário para revalorizar a democracia. Democracia e Paz caminham juntas e são valores convergentes. A História ensina: em todos os confrontos bélicos, uma das partes, ou as duas eram e são governadas por autocratas, ditadores, tiranos. Jamais ocorreu guerra entre estados democráticos. A Paz é o espaço da democracia.

Como terceiro registro, a realização da COP28 merece uma atenção especial.

No berço da civilização dos combustíveis fósseis, os Emirados Árabes, duas centenas de países concordaram, passados trinta e um anos da Eco-92 e oito do Acordo de Paris com o começo do fim da era do Petróleo.

A ministra Marina Silva fez um comentário certeiro e realista: “O mundo resolveu ouvir a ciência. Só que uma coisa é estabelecer este tipo de consenso e outra coisa é a gente viabilizar o consenso. O balanço geral da COP28 é que ainda estamos insuficientes”.

Na mesma linha, Al Gore, ex-vice-presidente do EUA menciona que o reconhecimento da crise climática “como uma crise dos combustíveis fósseis é um marco importante”.

Convém ressaltar que a humanidade se defronta com um desafio bem maior do que operar a complexa transição energética que é mudar radicalmente um padrão civilizatório com todas as implicações que uma transformação desta ordem envolve.

Nada menos do que 2.456 lobistas defendiam os interesses econômicos dos produtores de petróleo que evitaram, na declaração final da COP, expressão equivalente a eliminação gradual (phase out, em inglês), substituída pelo compromisso de fazer “uma transição dos combustíveis fósseis nos sistemas energéticos, de forma justa, ordenada e equitativa, de modo a atingir emissões líquidas zero até 2050, de acordo com a ciência”.

Com razão, dirão os críticos dos acordos internacionais que há uma distância nem sempre percorrida entre falar, escrever e fazer, especialmente no cumprimento de obrigações financeiras. O remédio é manter a mobilização o trabalho contínuo e articulado com a COP29 no Azerbaijão e a COP30 no Pará.

Para o Brasil, soluções econômicas baseadas na natureza são uma oportunidade estratégica para o nosso protagonismo ambiental e desenvolvimento sustentável como nação benfeitora e beneficiária do patrimônio natural.

PS. Ao leitor(a), desejo, agora e sempre, Saúde e Paz. Pausa: até o primeiro domingo de fevereiro.

11
Dez23

A Guerra e a Terra

Talis Andrade

 Nossas instituições não salvarão as democracias, temos que salvá-las nós mesmos; ou seremos democracias multirraciais no século XXI ou não seremos democracias

 

por Gustavo Krause

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A guerra, retumbante fracasso da Política, é uma severa agressão ao Planeta em contraste com as sábias palavras de Francisco na Encíclica Laudato si, Louvado sejas, cujo subtítulo: sobre o Cuidado da Casa Comum (2015) exaltam os cuidados com a Terra.

O Professor Clovis Cavalcanti, economista ecológico avant la lettre, recomendou uma leitura reflexiva e me disse, feliz, que tínhamos um Papa que compreendera a dimensão do cântico de São Francisco de Assis ao pregar: “a nossa casa comum se pode comparar ora a uma Irmã, com que partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços”.

Que me perdoem os cientistas, dedicados pesquisadores, notáveis filósofos, pensadores e os bem-intencionados líderes empresariais e políticos, mas o texto papal é insuperável. Revoluciona a base conceitual dos padrões civilizatórios contemporâneos e propõe uma relação fraterna entre o Homem e a Natureza de modo a assegurar equilíbrio e integridade planetária para as novas gerações.

O gatilho da releitura foi um cotidiano repleto de violências da guerra que nos chegam todos os dias, ao vivo e em cores, exemplos do extremo desamor humanitário. A destruição em larga escala do meio ambiente se soma também, às pequenas e grandiosas maldades, criminosas, que vão do corte da árvore, à poluição do ar, à contaminação da água e ao envenenamento da terra como se o papel da natureza se limitasse a alimentar um sistema de produção capaz de atender o consumo desenfreado e a ambição incontida.

Ao lado estrondoso da guerra, também, nos chegam eventos em proporções nunca vistas de enchentes, incêndios, vendavais, calor intenso e frio paralisante, ameaçando o ritmo da natureza e, por consequência, colocando em risco a biodiversidade, a cadeia produtiva e a segurança alimentar.

Ora, não foi por falta de aviso das instituições internacionais e de vozes esclarecidas que o abuso da natureza por uma equivocada dominação humana e o uso desenfreado dos recursos naturais, afetaria o clima, acelerando mudanças e provocando graves emergências climáticas. Tudo com base científica, ignorada pelo obscuro, delinquente negacionismo e desmedida ganância do enriquecimento.

É inegável que as inovações tecnológicas e os avanços da ciência ajudam, a mitigar os impactos, mas estão longe de ser um Deus ex-machina. O verdadeiro poder está na consciência das pessoas; é um impulso de dentro para fora que enxergue uma relação amorável com cada pedaço e cada ser do universo.

Neste desafio de profunda transformação cultural, há uma componente vital: a ética do bem comum. Inviável trilhar este caminho sem a companhia de um regime político que assegure a força da alteridade, da solidariedade, do diálogo e dos consensos. Este regime político é a democracia.

A guerra e a autocracia são inimigas do futuro da Terra.

Neste sentido, o argumento democrático vem sofrendo ameaças em decorrência do avanço da polarização política, do discurso antistabilshment, apropriado pelo populismo extremista. É uma doença que tem sérios sintomas endêmicos. Os aliados da antidemocracia, revela recente e farta literatura política, promovem a erosão das instituições e destroem o regime com os próprios mecanismos que dão sustentação às democracias liberais. Sem tanques, a arma é a cooptação e desmoralização dos mecanismos da representação popular até o capítulo final da captura do poder. A Hungria é um caso exemplar.

A propósito, os autores, Levitsky e Ziblatt, de Como as democracias morrem, (Zahar, 2018) lançaram uma obra atualíssima Como salvar a democracia (publicada no Brasil no dia 17 do corrente mês pela Editora Zahar), com um prefácio comparativo das situações entre o Brasil e os EUA, enfatizando ao longo da obra o fenômeno trumpismo/republicanos e um olhar comparativo da ascensão dos extremismos mundo afora.

De outra parte examinam com acurácia algumas circunstâncias a serem enfrentadas: a banalização do autoritarismo, a semilealdade, atributo dos personagens aproveitadores de qualquer espaço de poder, a tirania das minorias (a reversão da “tirania da maioria”).

E ao constatar a perda de prestígio da democracia, os autores defendem estretégias capazes de lutar contra o perigo autoritário, entre elas, coalizões centristas, democracia militante e defensiva, reformismo institucional, reafirmando que “a cura de todos os males da democracia é mais democracia”.

Sem meias palavras, os autores concluem com firmeza: nossas instituições não salvarão as democracias, temos que salvá-las nós mesmos; ou seremos democracias multirraciais no século XXI ou não seremos democracias.

05
Out23

Sem incluir cor nem gênero nas decisões não há democracia

Talis Andrade

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EM MANIFESTAÇÃO NA AVENIDA PAULISTA, SÃO PAULO, EM FEVEREIRO DE 2022, MOVIMENTOS SOCIAIS PROTESTARAM CONTRA O ASSASSINATO DO IMIGRANTE CONGOLÊS MOÏSE KABAGAMBE, DE 24 ANOS, QUE TRABALHAVA NO RIO DE JANEIRO

Luiz Inácio Lula da Silva vai mesmo perder a oportunidade de fazer um gesto decisivo contra o racismo no primeiro ano de seu terceiro mandato como presidente do Brasil? Parece que sim. Lula vai mesmo perder a oportunidade de fazer um movimento de real impacto a favor da igualdade de gênero e de raça num momento em que retomar o caminho dos direitos é tão emergencial? Parece que sim. Lula poderia já no primeiro ano de governo assegurar a presença no Supremo Tribunal Federal de duas pessoas negras, preferencialmente duas mulheres negras – ou de uma mulher negra e uma pessoa indígena –, o que seria um gesto histórico que faria enorme diferença também na qualidade das decisões da Corte. É imperdoável que não o faça.

Ao que tudo indica – em especial o próprio presidente – Lula vai cometer a irresponsabilidade de colocar o segundo homem branco no Supremo Tribunal Federal em apenas um ano. Mas não é Lula que perde uma oportunidade, é o Brasil que, em vez de se refundar, como prometido, mais uma vez reforça sua fundação sobre os corpos de negras e negros, empilha tijolos nas ruínas de um país em que cresce o número de estupros e feminicídios.

É importante lembrar. Na segunda-feira (25/9), acuado pelas pressões da sociedade para indicar uma mulher ou uma pessoa negra – preferencialmente uma mulher negra – para substituir a ministra do STF Rosa Weber, que se aposentará em 2 de outubro, quando completa 75 anos, o presidente fez duas afirmações que poderiam ter saído da boca do ex-presidente Jair Bolsonaro ou de qualquer outro extremista de direita:

“O critério não será mais esse [referindo-se a cor e gênero]. Eu estou muito tranquilo, por isso estou dizendo que vou escolher uma pessoa que possa atender aos interesses e expectativas do Brasil. Uma pessoa que possa servir ao Brasil. Uma pessoa que tenha respeito com a sociedade brasileira. Uma pessoa que tenha respeito mas não medo da imprensa. Uma pessoa que vote adequadamente sem ficar votando pela imprensa”, declarou. Em seguida, acrescentou: “Não precisa perguntar essa questão de gênero ou de cor, eu já passei por tudo isso. No momento certo, vocês vão saber quem eu vou indicar”.

O comentário de Lula é perigoso de várias maneiras diferentes. Para começar, muito pouco (ou talvez nada) seja mais importante para “atender aos interesses e expectativas do Brasil” do que enfrentar a brutal, vergonhosa, desigualdade de raça e de gênero no país. E isso só se faz com divisão de poder, isso só se faz indicando mulheres e pessoas negras para cargos estratégicos, isso só se faz dando paridade a mulheres e pessoas negras – gênero e cor da maioria da população, mas nem de longe com a mesma representatividade e acesso dos homens brancos, que dominam as posições de poder e a tomada de decisões.

Lembro de uma conversa com um brilhante advogado negro, num café após horas de discussão num instituto cultural em São Paulo para debater como ampliar o acesso das pessoas negras. Quando tudo acabou, ele concluiu que a longa reunião poderia ter sido reduzida a uma frase/uma ação: “É óbvio que só se combate o racismo dividindo poder, colocando negras e negros nos cargos de poder, em todas as esferas do país”.

EM AGOSTO, A LÍDER QUILOMBOLA MÃE BERNADETE FOI ASSASSINADA EM SUA CASA, COM 22 TIROS, O QUE GEROU REAÇÃO NO PAÍS (À ESQ.). GENIVALDO SANTOS, NEGRO, FOI MORTO EM MAIO DE 2022 POR AGENTES DA POLÍCIA RODOVIÁRIA FEDERAL – ELES O ASFIXIARAM DENTRO DA VIATURA (À DIR.). FOTOS: CRIS FAGA/NURPHOTO/NURPHOTO VIA AFP E REPRODUÇÃO

 

Sim, é óbvio. Mas ao indicar Cristiano Zanin, homem e branco, para substituir Ricardo Lewandowski, Lula traiu seu compromisso não apenas com as minorias, mas também com todos os setores da sociedade brasileira comprometidos com um país mais justo e menos desigual. Sem contar a mistura flagrante do público com privado ao indicar seu advogado pessoal. Essa segunda indicação seria – e ainda pode ser – a chance de não errar de novo e, ao mesmo tempo, respeitar os compromissos éticos que o elegeram. Ainda há tempo para Lula fazer o que o momento histórico exige de um presidente democrata.

A imagem simbólica volta como um bumerangue a cada vez que o governo dela se afasta. Em 1 de janeiro, Lula subiu a rampa de braço com o cacique Raoni Metuktire e acompanhado de representantes de minorias para sinalizar que o Brasil retomava o rumo do respeito aos direitos humanos, o Brasil se refundava. Se Lula deixar o país com um Supremo mais masculino e tão branco quanto no dia da posse, a imagem-símbolo de seu terceiro mandato, numa vitória só possível com o apoio de amplas camadas da sociedade que queriam – e querem – derrotar o fascismo, se tornará apenas marketing político – algo inaceitável no momento grave, de enorme atraso humanitário, vivido pelo Brasil.

Em seus primeiros dois mandatos, Lula fez ações importantes para diminuir a desigualdade racial e de gênero. Criou os ministérios das Mulheres e da Igualdade Racial – e agora recriou-os, com o acréscimo inédito do Ministério dos Povos Indígenas, com uma mulher indígena, Sonia Guajajara, à frente. Também escolheu uma mulher – Dilma Rousseff – como sua sucessora. Nas gestões do PT se consolidaram o Estatuto da Igualdade Racial e as cotas raciais nas universidades. Foi Lula quem indicou a terceira pessoa negra – Joaquim Barbosa – ao Supremo Tribunal Federal, após 66 anos de total branquitude. Tudo isso foi decisivo para parte da sociedade brasileira apoiá-lo na eleição para um terceiro mandato – e sinalizava uma retomada do processo de escuta, reconhecimento e acolhimento das pressões dos movimentos negros, feministas, de direitos humanos e socioambientais, brutalmente atacados durante o governo fascista de Bolsonaro. Que Lula recue tanto antes do final do primeiro ano do atual governo tem preocupado muita gente.

Em 19 de setembro, Lula fez da desigualdade o tema de seu discurso na abertura da 78ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Mas não há combate à desigualdade sem enfrentar as questões de gênero, raça e classe. Não há como fazer isso sem aumentar a presença negra no STF – hoje inexistente, apesar de os negros serem maioria da população brasileira –, e sem a presença feminina, que com a aposentadoria de Rosa Weber será reduzida a uma mulher (Cármen Lúcia) para dez homens.

Em toda a história do Supremo só houve três mulheres, todas brancas, e três negros, todos homens, o que mostra como a lógica do patriarcado persiste, tanto quanto o racismo estrutural do Brasil. Isso sem contar a necessidade nunca contemplada de incluir indígenas e pessoas LGBTQIAPN+. Nenhuma Corte, num país como o Brasil, é capaz de julgar com competência sem representar a população em sua composição. A representatividade das identidades e das experiências melhora radicalmente a qualidade da Justiça.

 

LULA NA CERIMÔNIA DE POSSE DE CRISTIANO ZANIN, SEU ADVOGADO, QUE INDICOU PARA O CARGO DE MINISTRO DO STF; ROSA WEBER, A ÚLTIMA PRESIDENTA DO SUPREMO, AGORA SE APOSENTA, AOS COMPLETAR 75 ANOS. FOTO: SERGIO LIMA/AFP

 

Hoje, a composição do STF é insustentável, exatamente porque tem uma cor só – branca – e majoritariamente um gênero – masculino. Se Lula está tentando manter contentes os parlamentares e senadores do Congresso mais predatório e moralmente conservador desde a redemocratização, é lamentável, porque combater o racismo e a desigualdade de gênero são princípios de base – e princípios não são negociáveis. Se ele de fato acredita no que disse, acabamos de descobrir que aquele que fez avanços significativos nos dois primeiros mandatos, ao voltar ao poder, 12 anos depois, passou a defender que questões de raça e de gênero são menores. E isso num país em que 83% das vítimas de mortes em intervenções policiais são pessoas negras; num país onde, nos últimos sete anos, pelo menos 616 crianças e adolescentes, a maioria deles negros, foram baleados somente na região metropolitana do Rio de Janeiro, 48% deles em ações policiais. E isso no país em que as estimativas mostram que 822 mil pessoas são estupradas a cada ano, mais de 80% delas mulheres.

SUMAÚMA sustenta desde o primeiro dia o que está explícito em nosso manifesto: a democracia tem que ser para todas, todos, todes – ou não é. Só entendemos e somos capazes de enfrentar o colapso climático se enfrentarmos as questões de gênero, raça, classe e espécie – elas determinam a destruição da Amazônia e dos demais biomas, a corrosão da vida na casa-planeta.

Cada evento extremo nos mostra quais são o gênero, a cor e a classe social dos mais afetados, dos que perdem casas e territórios – vidas. Nossa cobertura a partir da Amazônia e de seus povos aponta qual é o gênero de quem faz a resistência à destruição da natureza, qual é a cor das pessoas que morrem por proteger a vida na linha de frente. Essa compreensão determina nosso jornalismo – como está explícito em todas as reportagens e artigos desta newsletter.

Na afirmação de Lula, só tem um acerto: “cor e gênero não são mais critérios [de escolha]”. São imperativos. Para defender o contrário, não precisamos de Lula – temos Bolsonaro e os golpistas de 8 de janeiro.


Checagem: Clara Glock e Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquiria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Julieta Sueldo Boedo
Tradução para o inglês: Sarah J. Johnson
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Montagem da página: Érica Saboya
 
04
Out23

Cinco anos depois, governo publica sentença que condenou o Brasil pela morte de Vladimir Herzog

Talis Andrade

Mártir da Democracia Vladimir Herzog 

 

Por Redação Rede Brasil Atual

Ninja

Cinco anos e meio depois, o governo divulgou a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos que condenou o Estado brasileiro pela morte do jornalista Vladimir Herzog, ocorrida em 1975. A Portaria 609, publicada no Diário Oficial da União, traz a íntegra da sentença, que era uma das determinações do tribunal. A portaria é assinada pelo ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio de Almeida.

Na época diretor de Jornalismo da TV Cultura, em São Paulo, Vlado, como era conhecido, apresentou-se ao DOI-Codi para prestar depoimento na manhã de 25 de outubro de 1975. Saiu de lá sem vida, após ser torturado. A ditadura tentou impor a versão de suicídio, sem sucesso. O assassinato do jornalista causou forte reação na sociedade, mesmo sob ditadura. A missa na Catedral da Sé, na região central, recebeu uma multidão, ainda que as forças da repressão tentassem bloquear o acesso.

 

Governos anteriores ignoraram sentença

O caso chegou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 2009, por meio do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil), da Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos (FidDH), do Centro Santos Dias (da Arquidiocese de São Paulo) e do Grupo Tortura Nunca Mais, de São Paulo. A Comissão concluiu que o Estado brasileiro era responsável e estabeleceu algumas recomendações, até que o caso seguiu para julgamento na Corte, concluído em julho de 2018.

Os governos Temer e Bolsonaro ignoraram a sentença. O ex-presidente, derrotado no ano passado, é inclusive defensor do regime instalado em 1964, responsável por diversas violações de direitos humanos, entre as quais se inclui o assassinato de Vlado. Assim, foi preciso a posse de um governo mais identificado com a questão dos direitos humanos para que o caso Herzog recebesse atenção.

 

Dia da Democracia

O Instituto Vladimir Herzog (IVH), por sinal, está em campanha para tornar o 25 de outubro o Dia Nacional da Democracia. A petição pode ser assinada aqui. Entre as milhares de pessoas que assinaram até agora estão: Clarice, Ivo e André Herzog (viúva e filhos de Vlado), Ailton Krenak, Andrea Beltrão, Caetano Veloso, Chico Buarque, Christian Dunker, Conceição Evaristo, Eduardo Moreira, Fernando Morais, Jamil Chade, Juca Kfouri, Laerte Coutinho, Luciano Huck, Malu Mader, Muniz Sodré, Maria Adelaide Amaral, Paulo Betti, Raí Oliveira, Sebastião Salgado, Sergio Gomes e Walter Casagrande Jr.

Apesar da determinação, as investigações sobre a morte não avançaram. O Ministério Público Federal (MPF) chegou a denunciar seis agentes do Estado pelo crime. Mas a ação continua esbarrando na Justiça, sempre com a alegação da Lei de Anistia. A decisão da Corte, porém, considera que, conforme o Direito Internacional, o crime é imprescritível.

29
Set23

De como os chefes militares, em 11/11/22, vitaminaram o 8 de Janeiro

Talis Andrade

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Por Lenio Luiz Streck

Vamos lidar com dados objetivos. Fatos. Desde 2020 venho denunciando as hermenêuticas criminosas acerca do artigo 142 da Constituição. E alertei para o perigo de muita gente acreditar que as Forças Armadas eram o poder moderador. Publiquei na Folha, Zero Hora, O Globo apontando para esse risco.

Não tenho dúvida de que a crença nessa torta leitura do artigo 142 incentivou a tentativa de putsch de 8 de janeiro.

Mas teve mais. Em 11 de novembro de 2022, no auge dos acampamentos à frente dos quartéis e ao histerismo de radialistas espalhados pelo Brasil pregando que os militares assumissem o poder, os comandantes militares publicaram uma nota, espécie de "manifesto" interpretando (na verdade, distorcendo) a Lei de Defesa do Estado Democrático.

Escrevi de imediato aqui na ConJur (ler aqui) que os comandantes estavam absolutamente equivocados — a palavra "equivocados" é generosidade. Porque a questão foi — e é — muito mais grave. Pois fatos posteriores deram uma tinta mais forte ao episódio de 11/11/2022. Por exemplo, a reunião no mesmo mês delatada pelo tenente-coronel Mauro Cid, dando conta de que o golpe foi, mesmo, discutido entre Bolsonaro e os três comandantes.

Disse eu, em 16/11/2022, que os militares fizeram uma leitura seletiva da nova Lei 14.197/2021, que diz que

"não constitui crime [...] a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais, por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais".

Pela hermenêutica verde-oliva, eles, os militares, eram os defensores dos manifestantes que faziam manifestações pacíficas (sic). Diziam, no manifesto, que os protegeriam, desde que não fizessem arruaça. O que seria isto — "arruaça"?

Qual é a parte que ficou de fora da hermenêutica curupira? Simples. O dispositivo da nova lei não foi feito para servir de haraquiri. Por isso foi posto, no final do artigo — eu ajudei a elaborar —, que as manifestações pacíficas seriam toleradas sempre que fossem com "propósitos sociais".

Ora, não consta a ninguém — que seja minimamente racional — que movimentos que clamem pelo fim da democracia, com a intervenção dos militares, sejam considerados com "propósitos sociais". E não consta, em nenhuma hermenêutica, que "manifestação crítica aos poderes" possa significar "acabar com esses Poderes". Ora, essas movimentações pretendem sabotar a democracia. E vamos parar de brincar de democracia.

A e(c)lipse verde-oliva

Mas havia ainda uma outra coisa, digamos assim, "elipsada" (algo que fica escondido na linguagem) na nota. Qual é?

Simples. A nota abria a porta para que o Congresso fosse para cima do Supremo. Esse é o busílis. O não dito. O silêncio eloquente. O "elipsamento". Ou e(c)lipsamento.

Leiamos essa parte da nota:

"Como forma essencial para o restabelecimento e a manutenção da paz social, cabe às autoridades da República, instituídas pelo Povo, o exercício do poder que 'Dele' emana, a imediata atenção a todas as demandas legais e legítimas da população, bem como a estrita observância das atribuições e dos limites de suas competências, nos termos da Constituição Federal e da legislação."

O "Dele" é bem significativo. A nota faz um apelo ao Legislativo, o que de novo pode ser lido como um pedido para impedir as seguidas interferências — na concepção dos militares — do Judiciário em outros Poderes:

"Da mesma forma, reiteramos a crença na importância da independência dos Poderes, em particular do Legislativo, Casa do Povo, destinatário natural dos anseios e pleitos da população, em nome da qual legisla e atua, sempre na busca de corrigir possíveis arbitrariedades ou descaminhos autocráticos que possam colocar em risco o bem maior de nossa sociedade, qual seja, a sua Liberdade."

Portanto, há dois aspectos a serem ressaltados: o primeiro diz respeito à torta hermenêutica que os militares fizeram da Lei de Defesa do Estado Democrático, equiparando manifestações (golpistas) que pedem intervenção deles — militares — a "manifestações democráticas". Ora, não é disso que trata a lei.

O segundo aspecto que exsurge da nota foi um "recado" (elíptico) ao Legislativo e reforçou, como efeito colateral, manifestações contra o TSE e STF, o que se pode ver inclusive nos eventos de Nova York e a cotidiana catilinária contra os ministros da Suprema Corte. Rádios e TVs Brasil afora estavam em campanha, por assim dizer.

Esperava-se o firme posicionamento da Procuradoria Geral da República. Aliás, do MP como um todo. Afinal, na Constituição consta, com todas as letras, que o Ministério Público é o guardião e fiscal do regime democrático. E não consta que regime democrático seja algo que conviva com a sua antítese: o golpismo contra a democracia. Mas o MP nada fez.

Quando os militares se transformam em "deuses intérpretes" da Constituição, há que se perguntar onde foi que erramos. Fracassamos mesmo?

Em uma democracia, quem tem armas não decide e quem decide não tem armas. Caso contrário, se quem tem armas decidir, já não há nem mais quem decida.

Esse meu alerta — acompanhado também do que disse o coronel da reserva Marcelo Pimentel (que chegou a ser punido por isso) — não provocou maiores reações. Nem, é claro, do Ministério Público.

A coroação do cinismo veio com o inquérito feito pelo Exército encerrado em março de 2023, redundando na seguinte manchete da Folha de S.Paulo:

"Inquérito militar livra tropas e aponta erro do governo Lula no ataque de 8/1" (ler aqui).

A culpa foi da vítima — o novo governo. O que diz disso o ministro da Defesa?

Sigo. Neste momento, com a delação do Cid, tudo fica mais claro. O manifesto foi, na verdade, um sinal para os golpistas. Foram incentivados. O inquérito confirma a tese inicial dos militares.

Os comandantes devem ser chamados às barras da justiça. Bom um deles, segundo Cid, até aderiu ao golpe. Os demais, ao não denunciarem, prevaricaram. Simples assim.

A inversão do sentido do parágrafo único que tratava da não criminalização de manifestações de cunho social beira deu gás para os golpistas. Vejo, agora, que o jornalista Cezar Feitosa, da Folha, escreveu dez meses depois e também descobriu o problema da nota (manifesto) dos comandantes. Que bom. Alvíssaras! Talvez pudesse ter dado um google e verificado que, no calor dos acontecimentos, algumas pessoas, como este escriba, já haviam "sacado" o busílis da coisa.

Enfim, esperamos que os alertas feitos, somados agora com a reportagem do jornalista Cezar Feitosa, sirvam para mexer com esse fenômeno que ficou eclipsado. E que agora exsurge à luz dos novos fatos.

O manifesto de 11 de novembro. Ali havia muito mais do que parecia. Poucos viram. Como dizia a mãe do meu querido amigo Vicente de Paulo Barreto, nem tudo que parece, é. Mas se é, parece. Sábia senhora.

Post scriptum 1: Projeto Voz Humana — Para que que possamos dizer "Nunca Mais"

Fernando Fernandes capitaneia o projeto Voz Humana, que pode ser visto no link anexado. Vem a calhar com o que escrevi acima. Excelente projeto. Merece ser visto e incentivado. Para que aprendamos. E possamos dizer "nunca mais". Cumprimentos Fernando e ao Instituto IDD8, sob a presidência do Florestam Fernandes Jr. Este escriba ocupa a vice-presidência.

Post scriptum 2: O "fator puf" — e os bolinhos de chuva, vai um aí?

Leio que a PGR fará curso de democracia para os golpistas de 8 de janeiro. Bingo. Que meigo. Fofo. Sugiro que todos sentem em um puf confortável para não machucar as espaldas. Os ministrantes ganharão bom cachê. Fico imaginando o conteúdo: caros golpistas: democracia quer dizer demo-cracia. Repitam comigo: demo – povo; cracia – força. "- Apresento-vos a Constituição..." E os golpistas sairão renovados. Novos democratas. Haverá rezas, ao que fiquei sabendo. Todos se darão as mãos. Esse Brasil...

11
Set23

O homem que compreendeu a democracia

Talis Andrade

 

 

por Gustavo Krause

Em 1835, o aristocrata francês Alexis de Tocqueville publicou o Livro I de A Democracia na América, subdividido em duas partes. O livro II somente apareceu em 1840. Quase dois séculos depois, de "ondas" democráticas e "ondas" de regressão, o regime permanece sob graves ameaças autoritárias.

No entanto, a obra é atualíssima. Nasce de um improvável autor, o nobre que rejeitou o título nobiliárquico de Visconde. Parte expressiva da família foi dizimada pela afiada guilhotina do terror jacobino. Sofreu na pele e no coração as dores do despotismo monárquico e dos descaminhos do ideal revolucionário de julho de 1789.

Tocqueville tinha suficientes razões para ser um radical e vingativo conservador. Porém, o jovem membro da magistratura francesa, aos 25 anos, de mente privilegiada, atendeu sua vocação política e exerceu um profícuo ativismo como Deputado (de 1839 até 1850). Ao mesmo tempo, tornou-se um fecundo pensador que legou à posteridade duas obras-primas: O Antigo Regime e a Revolução e A Democracia na América.

A decisão de viajar aos Estados Unidos, de maio de 1831 a fevereiro de 1832, para estudar o sistema prisional, o levou a observar com aguda percepção, a realidade de uma democracia que passou a ser um elemento fundamental para seu pensamento e ação ao longo da vida. Impressionante a profundidade com que tratou o tema. Tão profundamente que não faltaram cientistas sociais, a exemplo de Raymond Aron, que o considerassem o grande sociólogo da democracia.

Na excelente biografia O Homem que compreendeu a Democracia: Alexis de Tocqueville (Rio de Janeiro: Record, 2023), o autor, Olivier Zunz dá sugestivo título ao primeiro capítulo "Aprendendo a Duvidar", um ponto de partida do método epistemológico de Tocqueville que abraçou e sentiu o peso das contradições do novo regime, mantendo, porém, uma fidelidade inabalável a convicções básicas e inamovíveis.

De fato, ele chegava às conclusões pela persistência das dúvidas. Nada mais democrático do que duvidar; amar a incerteza; superar dogmas; assumir contradições. Ele mesmo não fazia ideia de como sua obra seria recebida, afinal de contas, o autor carregava uma pesada herança aristocrática. Era dono de um talento especial: capaz de pensar antes de saber o que quer que fosse.

O que dava e dá vitalidade às ideias de Tocqueville: a aguçada observação que o levou a identificar nas democracias a permanente contradição, mais precisamente, a tensão entre liberdade e igualdade. Encarava a igualdade como instrumento da liberdade e, reconhecendo a necessidade de reparar as injustiças sociais, enxergava a igualdade, não como um meio de nivelar, mas de elevar.

De outra parte, confessou "um sentimento profundamente enraizado no coração: o amor pela liberdade". Conciliar estes valores representava uma tarefa vital para a estabilidade da democracia. Assim como, colocar limites e freios sobre o poder da maioria.

De todas as ameaças, a tirania da maioria, nova espécie de despotismo, mereceu especial atenção de Tocqueville. Não admitia o dogma político de que a maioria tem sempre razão. A vontade da maioria é origem do poder, mas não legitima tudo fazer: acima da onipotência da maioria existe o recurso da soberania do gênero humano. Cabe, afirmou James Madison, "numa República não apenas defender a sociedade contra opressão dos seus governantes, mas guardar uma parte da sociedade contra a injustiça da outra".

Com o olhar penetrante no tecido social da democracia americana, Tocqueville alcança a raiz e o suporte do sistema político: o poder e o espírito comunal. Com admirável lucidez, argumenta: "É na comuna que reside a força dos povos livres. As instituições comunais são para a liberdade aquilo que as escolas primárias são para a ciência; pois a colocam ao alcance do povo, fazendo-o gozar do seu uso pacífico e habituar-se a servir-se delas. Sem instituições comunais, pode uma nação dar-se um governo livre, mas não tem o espírito da liberdade".

Assim, o poder descentralizado emerge de baixo para cima: primeiro a comuna, despois o município (ou condado), em seguida, o estado e, por fim, a argamassa de um pacto político que dá vida à União.

Por fim, a obra de Tocqueville não só revela o confessado amor à liberdade, como também, disse ele: "Exprimi uma ideia obsessiva que se apodera da minha mente: a irresistível marcha da democracia".

Certamente, se vivo estivesse e assistisse aos episódios do Capitólio e de 08 de janeiro, certamente concluiria: nenhuma democracia no mundo está segura.

06
Set23

A democracia em tempos periculosos

Talis Andrade
31
Jul23

Por que apostar na política da impureza

Vida-mercadoria alastrou a sensação de impotência, reduzindo democracia a uma zona cinzenta

Talis Andrade
Imagem: Julio deDiego

 

Por Amador Fernandez-Savater e Ernesto Garcia Lopez, no CTXT | Tradução: Rôney Rodrigues

Has cerrado la puerta de nuevo
para huir de la oscuridad
pero en tu armario espera la noche.
Gloria Anzaldúa

O fato fundamental para entender nosso tempo, a partir do qual necessariamente temos que começar a pensar qualquer coisa politicamente, é a coincidência entre a vida e o mercado. O que significa isto?

Muito simples: a vida, tal como surge espontaneamente, tal como é vivida diariamente, tal como é imediatamente percebida e desejada, é experimentada como mercado.

O mercado, em sua aliança (ou melhor, liga) com a tecnologia, aparece hoje como a principal força configuradora da experiência. Nos locomovemos de Uber, viajamos com o Airbnb, flertamos no Tinder, provemos nossa alimentação na Mercadona [rede espanhola de supermercados], nos informamos graças ao Google, buscamos entretenimento na Netflix.

E cada um de nós reproduz o mercado simplesmente vivendo, tomando a si mesmo como um capital a ser gerido: capital humano, capital-imagem, capital-saúde, capital-afeto, capital-capacidades, capital-erótico, capital-projeto, capital-contato.

O que essa adequação à vida-mercado significa politicamente? Que a ideologia está nas coisas, está no ar. É inerente à própria vida, ao próprio fato de viver. A noção de “luta ideológica” deve então ser completamente redefinida.

Não se trata de ideias: as pessoas de esquerda se diferenciam das pessoas de direita em suas construções mentais, mas suas vidas são atravessadas pela mesma realidade de mercado. Hoje, as vidas, como alguém disse, são todas de direita.

Não se trata de crítica: enquanto a realidade material tornou-se um mercado, a crítica tornou-se puramente ideal. Uma opinião sobre o mundo, uma preferência, uma avaliação subjetiva. Facilmente descartáveis pelos realistas de mercado como “utopias” ou “quimeras” apartadas da realidade.

Não se trata de comunicação: a vida-mercado é o meio de comunicação mais poderoso. Ela é emitida constantemente, de qualquer lugar e de qualquer um dos nossos menores gestos. A presidente [da Comunidade de Madrid] Ayuso sabe disso perfeitamente: enquanto os outros candidatos bombardeavam nossas caixas de correio com cartas e programas, ela se limitava a imprimir a palavra “liberdade” nas fotos em que veste agasalho. A própria realidade (em cada bar e varanda) era a sua melhor publicidade.

Pode-se argumentar que a liberdade da vida-mercado é cada vez mais cara e não está ao alcance de todos. Certamente, mas desejá-la é grátis e hoje domina o imaginário das expectativas de vida. É a promessa de felicidade mais forte e mais fecunda.

 

Zona cinzenta e políticas de contenção

 

Essa vida-mercado produz uma sombra, um avesso feito de desconfortos tanto “objetivos” (precariedade e desigualdade) quanto “subjetivos” (sofrimento psíquico).

Durante os últimos quinze anos as desigualdades e as brechas sociais vem, cada vez mais, aumentando. Corpos e territórios vulneráveis mantidos ao longo do tempo, cercados por uma incerteza crescente: a Grande Recessão, a pandemia, a crise de preços como resultado da guerra na Ucrânia, as ameaças climáticas…

Os dados são reveladores. A Espanha é uma fábrica de desigualdade em momentos de dificuldade econômica e, paradoxalmente, em períodos de prosperidade, mostra-se incapaz de reverter essa tendência com a mesma intensidade. Soma-se a isso o fato de que o fantástico elevador social (chamado por alguns de “represa da meritocracia”), tão típico dos Estados de bem-estar social europeus, há muito tempo mostra sinais óbvios de fraqueza.

São muita as razões que explicam essa sombra na Espanha, mas se tivéssemos que resumir de uma forma um tanto grosseira, diríamos que a própria estrutura produtiva do país, um mercado de trabalho repleto de precariedade e baixos salários, um sistema fiscal pouco progressivo e esburacado na tributação da riqueza, um sistema de proteção social anacrônico, um conflito habitacional endêmico que sufoca grande parte da população que vive de aluguel ou tem hipotecas, bem como um corte generalizado na educação e saúde públicas, têm vindo a cristalizar em alguns segmentos sociais um sentimento da vida eternamente em crise. Uma “somateca” (como diria Paul B. Preciado) caracterizada pelo contínuo sufocamento existencial. E como qualquer experiência objetiva, tem seu correlato subjetivo no aumento dos mal-estares psíquicos. Basta conhecer os dados da saúde mental para perceber a magnitude do problema.

Poderíamos chamar essa sombra da vida-mercado de zona cinzenta. Uma experiência do mundo cheia de medo, desconfiança e inquietação, que vai além do relato, além do efeito hipnótico atribuível ao aparato ideológico dos meios de comunicação.

O que a esquerda pode fazer? No melhor dos casos, quando não se limita a gerir a vida-mercado, a esquerda que trabalha nas instituições, no governo, na sempre difícil gestão da esfera pública, procura coibir os excessos neoliberais, redistribuir riquezas e “conter” as infinitas e dolorosas feridas que se abrem no corpo social. Conter, ou seja, desacelerar os impactos e externalidades mais agressivos da agenda neoliberal por meio da implantação de políticas públicas neokeynesianas (“bens pequenos”, chama Santiago Alba Rico).

Nos últimos anos esta “contenção” tomou forma através do chamado “Escudo Social”. Há a Regulação Temporária de Emprego (ERTE), o Rendimento Vital Mínimo (IMV), a subida do SMI [salário mínimo espanhol], o reajuste das pensões, controle do preço do gás, o combate à pobreza energética, o controle dos preços dos aluguéis, as medidas fiscais temporárias em matéria de tributação da riqueza (como os impostos sobre os lucros extraordinários das empresas de energia, bancos e grandes fortunas), a extensão de subsídios ao consumo e à produção, a defesa dos direitos das mulheres e das pessoas LGTBQ+, etc.

Não é pouca coisa, claro. Não escapa a ninguém que o Estado, como dispositivo de gestão, é uma ferramenta de primeira ordem e, justamente por isso, as direitas luta com afinco por ele. Assistimos à mobilização do maior pacote de gastos sociais desde a consolidação da democracia. Uma “contenção” que permitiu, entre outros méritos, não lançar boa parte da população espanhola ao abismo (como aconteceu em 2010-2014).

Não é que dizer que antes das próximas eleições de 23 de junho, o 23J [o texto foi escrito antes desta data], salvar este “poder de contenção” é uma obrigação ética e cívica, e os que subscrevem este artigo não hesitará em apoiar as candidaturas progressistas que o façam.

Mas há vida além do 23J. Precisamos ampliar nosso olhar porque o dilema é muito mais profundo. Está no fato de que a contenção acaba por não conter, não modifica as estruturas latentes da desigualdade. Não reverte a insatisfação subjetiva de amplos setores da população, seus desconfortos psíquicos, a extensão da medo, a guerra dos penúltimos contra os últimos, a sensação de uma permanente “vida na precariedade”.

A contenção não acaba com a reconexão com a política, a democracia e as instituições, aquelas geografias sociais mais atingidas pelas crises (basta dar uma olhada nos dados de participação eleitoral nos bairros com maior pobreza para perceber). A contenção não é capaz, por si só, de retomar a iniciativa na produção do mundo, hoje nas mãos da vida-mercado.

 

Direitizaçãodesafeto e deserção

 

A esquerda, na medida em que se apresenta como uma mera barragem de contenção, está, portanto, fadada à decepção, à decepcionar. É hoje, fundamentalmente, uma experiência de impotência. Tsipras decepciona, Boric decepciona, a Nova Política em Espanha decepciona… A moderação, como gestão do quadro autorizado do possível, desilude e costuma ser derrotada eleitoralmente.

A decepção é a principal característica da zona cinzenta. Decepção diante da democracia, da política e da esquerda. Decepção diante de retóricas e gestos que não se traduzem em fatos e políticas efetivas. Decepção diante da superioridade moral (diante do sexismo, racismo ou classismo) que finalmente se revela como hipocrisia de classe média. Decepção com a falta de audácia ou coragem política.

Podemos discernir pelo menos três tendências nesta zona cinzenta de decepção: direitização, a desafetos e deserção.

A direitização é a decepção elaborada como ressentimento vitimista. É o mal-estar que busca culpados na lógica do bode expiatório: as trans, ecologistas, feministas, migrantes, etc.

A promessa do paraíso na terra por meio do consumo da vida-mercado quebrou consideravelmente desde 2008: crise econômica, pandemia, guerra, emergência climática. A decepção diante da promessa quebrada (sustentada pelos governos de esquerda e direita) se converte em ressentimento e agressão redirecionada contra os “inimigos internos” culpados pela situação. O mal-estar é delegado a fortes poderes que prometem a restauração das ilusões quebradas, o retorno à normalidade.

O desafeto é a decepção elaborada como abstenção passiva. A decepção é o gesto de quem não consegue fazer algo criativo com o seu mal-estar, mas não o entrega aos poderes fortes que prometem restaurar a ordem. E que simplesmente se distancia: retira-se, sai, desfilia-se.

São, por exemplo, os milhões de pessoas que, eleição após eleição, face a todos os apelos à participação e responsabilidade, não votam e assim manifestam o seu radical descompromisso com um sistema político-eleitoral em que não sentem que qualquer diferença significativa está em jogo para suas vidas. Um verdadeiro buraco negro no ideal de democracia do cidadão do qual quase nunca se fala, a não ser para detratá-lo.

A deserção é a decepção elaborada como um gesto ativo. São todas as formas de habitar criativamente ou politizar os mal-estares, de converter a interrupção da vida-mercado em grau de maior autonomia.

O fenômeno da Grande Demissão, os movimentos de decrescimento, os novos comunalismos, o desengajamento (mais ou menos coletivo, mais ou menos político) dos desejos e das expectativas que nos mantêm presos a um sistema gerador de ansiedade e precariedade, etc.

A zona cinzenta, em qualquer uma de suas três expressões, é um objeto voador não identificado para os radares à esquerda. A direitização é julgada moralmente, independentemente de ser um fenômeno dos corpos; o desafeto é considerado como deficit de participação, responsabilidade ou envolvimento; e a deserção não pode ser lida ou compreendida na grade da mobilização clássica.

 

Uma política de impureza

 

A vida coincide com o mercado. A esquerda recua para políticas de contenção vindas de cima que mal conseguem conter os efeitos mais devastadores: a precariedade e o sofrimento psíquico. Abre-se uma zona cinzenta, um avesso da política, um espaço ambivalente de desilusão face às promessas da democracia. Neste magma pulsam pulsos de direitização, desafeto e deserção.

A zona cinzenta pode ser julgada simplesmente como uma ameaça à democracia, ou interpretada como contendo indicações úteis sobre o que não está funcionando, sobre seus limites, sobre seus tetos de vidro. Chamamos essa segunda opção de “política da impureza” e envolve colocar as mãos na lama da zona cinzenta, em busca de pistas e forças de transformação social. Disputar o mal-estar social.

Uma política de impureza passaria pelo desafio de inventar pautas e estratégias para além dos circuitos fechados de contenção e comunicação.

A contenção limita-se a remendar sem propor outra lógica, outro fazer, outro horizonte. Mas a vida-mercado finalmente atravessa todas as paradas e limites, explodindo todos os remendos. A política de contenção nem sequer é reformista, porque o reformismo em seu sentido sólido é o projeto de substituir, ao longo do tempo, um sistema por outro, um modelo por outro.

A comunicação se limita a falar a linguagem da vida-mercado, da sedução e do marketing. A divisão entre um emissor que propõe e um receptor que “identifica” ou “adere”, entre os sujeitos de enunciação e objetos do enunciado. A comunicação não é o campo neutro da batalha, mas a própria linguagem do inimigo.

Você pode experimentar outras políticas e outras linguagens, outros fazeres e outros dizeres? Sem dúvida não sem colocar as mãos na lama impura da zona cinzenta, onde mora a decepção com relação à democracia e à política, em meio a vidas dilaceradas pela precariedade e o sofrimento psíquico. Não tanto “abordar”, “seduzir” ou “convencer”, mas “estar impregnado de”, “dialogar com”, “pensar junto com”, em pé de igualdade.

Estamos envolvidos nesse círculo diabólico: a vida-mercado produz um mal-estar que a onda reacionária canaliza… para consolidar a própria vida-mercado! Somente interrogando a zona cinzenta da democracia podemos encontrar pistas para escapar dessa armadilha. A saída do inferno é onde as chamas são mais altas.

17
Jul23

Depende, comparado a quê? É relativo

Talis Andrade

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por Gustavo Krause

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No início da década de setenta, fui aluno de um talentoso e irônico professor argentino no curso de especialização tributária promovido pela OEA. Na conversa boa e instrutiva dos intervalos e encontros extracurriculares, ele sempre transmitia sabedoria e bom-humor.

Entre vários, ficou gravado o seguinte conselho: “Diante de uma pergunta complexa, empulhativa, embaraçosa, responda em ordem crescente e quando chegar a ‘relativo’, fique certo de que a busca pela verdade é um belo exemplo de curiosidade sem resposta”.

Na sequência, o Professor acrescentava: “quando a resposta for ’é relativo’, fique certo de que dificilmente se saberá qual o ‘relativismo utilizado’”.

Se ouviu falar na Teoria da Relatividade, é bom tirar o cavalo da chuva. Trata-se de um conceito revolucionário da Física que um génio da humanidade – Albert Einstein (1879-1955) subiu nos ombros de outro gênio – Isaac Newton (1643-1727) e unificou a ideia de espaço-tempo (A propósito, “As eras são todas iguais, mas o gênio está sempre acima da era em que vive”); se ouviu falar em relativismos é uma referência que teve em Franz Boas (1858-1942) o fundador da antropologia cultural e mestre de Gilberto de Freyre (1900-1987).

Difícil acreditar em tamanha sofisticação: o entrevistador estava, apenas, empenhado em cumprir a missão jornalística de apurar grave contradição do Presidente e o Presidente, por sua vez, na ausência de argumento convincente saiu-se com o, chamemos… “relativismo popular”.

Não saiu, foi encurralado e manchou o argumento que lhe garantiu a vitória eleitoral: a defesa de uma democracia ameaçada.

Democracia é um substantivo que dispensa adjetivos muito embora os vários institutos de pesquisas mundiais avaliem formações ou deformações do regime, adicionando qualificativos como democracia imperfeita, semidemocracia, até chegar ao oxímoro “democracia iliberal”.

Com efeito, esta tentativa de hibridismo “democracia iliberal” tão exaltado por Viktor Orban e adotado pelos critérios e pontuações das plataformas de classificação (DI, V-Dem, Freedom House etc…) legitimam a erosão das instituições que sustentam os pilares da liberdade individual e a limitação do poder político, elementos constitutivos da democracia liberal.

Na dinâmica da sociedade humana, o mais remoto conflito é o da felicidade dos afetos com a força negativa da opressão. Um liberta, o outro domina, escraviza. Daí a necessidade existencial de assegurar a fruição de liberdade pela ausência de constrangimentos, ampliada pela capacidade de participar das decisões que dizem respeito ao destino de cada indivíduo e ao da comunidade que constituem.

Historicamente, os raios da ação do homem livre, a exemplo da liberdade de consciência, crença e de autorrealização, foram ampliando um estatuto de cidadania universalmente aceito, mas nem sempre respeitado, ou o que é mais grave, violados, com frequência, exatamente, por “um relativismo” que abala os alicerces da notável construção do espaço de convivência chamado Democracia.

Nesta matéria, convém reler alguns trechos do notável Noberto Bobbio (1909-2004) que viveu intensamente o século XX e nos repassa a luz de sua experiência de vida. Talvez sirvam de lição aos relativistas.

“Aprendi a respeitar as ideias alheias, a deter-me diante do segredo de cada consciência, a compreender antes de discutir, a discutir antes de condenar”

“A atitude do bom democrata é a de não se iludir sobre o melhor e não se resignar com o pior”.

“A democracia é um conjunto de regras que estabelece quem está autorizado a tomar decisões coletivas e com quais procedimentos”.

“Direitos do homem, Democracia e Paz são três momentos necessários do mesmo momento histórico: sem direitos do homem conhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia não existem condições mínima para a solução pacíficas dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade de cidadãos e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos direitos fundamentais; haverá paz estável, uma paz que não tenha a guerra como alternativa quando existirem cidadãos não mais deste ou daquele estado, mas do mundo”.

10
Jul23

Inelegibilidade de Bolsonaro: necessária e urgente releitura do abuso de poder

Talis Andrade

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Por André Garcia Xerez Silva

Na ação de investigação judicial eleitoral movida pelo Partido Democrático Trabalhista contra Jair Messias Bolsonaro, o Tribunal Superior Eleitoral, em 30 de junho de 2023, concluiu o julgamento que decidiu, por maioria, condenar o ex-presidente "pela prática de abuso de poder político e pelo uso indevido de meios de comunicação nas Eleições 2022 e declarar sua inelegibilidade por 8 (oito) anos seguintes ao pleito de 2022" [1]. A síntese da causa de pedir foi a realização de reunião no Palácio da Alvorada com embaixadores estrangeiros no dia 18 de julho de 2022, oportunidade na qual o investigado proferiu discurso que, na ótica do TSE, pretendia deslegitimar o processo eleitoral por meio da veiculação de desinformações.

Esses fatos e seu respectivo enquadramento jurídico precisam ficar muito claros para que se compreenda a dimensão do que foi considerado abuso de poder pela maior instituição da Justiça Eleitoral do país e que resultou na inédita decretação de inelegibilidade do antigo ocupante do mais importante cargo da República. Embora sejam corriqueiras as acusações de utilização da máquina pública em benefício de candidatos no âmbito municipal, estadual e mesmo federal, há um elemento na condenação de Bolsonaro que ultrapassa o patrimonialismo típico do desvio de finalidade que apropria indevidamente a estrutura estatal em prol de campanhas políticas.

Tradicionalmente, as espécies de abuso de poder imputadas a Bolsonaro se fundamentam na premissa da garantia à paridade de armas, segundo a qual deve ser assegurada a todos os candidatos uma disputa eleitoral com igualdade de oportunidades por meio da conquista legítima da preferência do eleitorado, a fim de mitigar as assimetrias decorrentes do uso indevido do poder econômico, político e dos meios de comunicação. Esse paradigma, que se preocupava antes em fiscalizar a instrumentalidade do processo eleitoral com o adequado uso dos recursos materiais e financeiros pelos candidatos, não parece ser mais o horizonte interpretativo suficiente para conferir a legitimidade da disputa política hodierna.

O elemento inovador que o julgamento de Bolsonaro suscita é o olhar da Justiça Eleitoral dirigido para a substância, para o conteúdo da plataforma eleitoral sustentada pelo candidato, que sobeja como fundamento decisivo para a caracterização do ato ilícito. Os rótulos das categorias de abuso de poder empregados pelo Tribunal Superior Eleitoral, na realidade, apenas expressam a exteriorização no mundo empírico quanto à utilização da estrutura do Palácio da Alvorada (abuso de poder político), da TV Brasil e da divulgação em redes sociais (uso indevido dos meios de comunicação social), mas cujo verdadeiro abuso se assenta mais em função do conteúdo de seu pronunciamento e menos no modo pelo qual ele foi transmitido.

Não que antes não se examinasse o teor das mensagens propagadas pelos candidatos para aferir a desvirtuação da máquina administrativa ou dos meios de comunicação social, sob a ótica da promoção pessoal, visando a auferir dividendos eleitorais, que, de maneira mais ou menos implícita, dissimulava a condição de candidato no exercício da função de gestor. Essa deformação passou a adquirir outra conotação quando o TSE decidiu, em 7 de dezembro de 2021, que "ataques ao sistema eletrônico de votação e à democracia, disseminando fatos inverídicos e gerando incertezas acerca da lisura do pleito, em benefício de candidato, podem configurar abuso de poder político ou de autoridade — quando utilizada essa prerrogativa para tal propósito — e/ou uso indevido dos meios de comunicação quando redes sociais são usadas para esse fim" [2], no caso que levou à cassação do deputado paranaense Fernando Francischini.

A teleologia dessa perspectiva do abuso de poder não se explica pela ruptura do princípio da impessoalidade na administração pública mediante o aparelhamento de sua estrutura para confundir o eleitorado entre o que seriam as ações do candidato e as ações do agente estatal. Aqui, não há elementos próprios da propaganda eleitoral no sentido de enaltecer as qualidades pessoais do candidato para incutir no eleitorado a ideia de que ele é o mais apto a exercer a função pública, tampouco pedido de voto ou apoio em seu favor. O benefício eleitoral, nesse contexto, advém da adesão angariada entre os cidadãos adeptos de teorias conspiracionistas, em princípio, contra o sistema eletrônico de votação, mas também da canalização de ideais contrárias à democracia. Não se alude à quebra de paridade de armas na acepção de que um candidato ostenta uma posição privilegiada no pleito decorrente da utilização abusiva de recursos públicos ou privados em detrimento de outras candidaturas, mas consiste, sobretudo, na ilegitimidade da preferência eleitoral inspirada por impulsos antidemocráticos.

Essa tênue distinção entre os dois paradigmas de abuso de poder acima expostos, inclusive, não escapou à sagacidade da defesa do investigado, Jair Messias Bolsonaro, que logo se ocupou de arguir a incompetência da Justiça Eleitoral, uma vez que a reunião com os embaixadores, em que foi questionada a confiabilidade das urnas eletrônicas, estaria despida de caráter eleitoral, por se tratar de típico ato de governo; tese que foi, contudo, refutada pelo Plenário da Corte. O precedente do final de 2021, que pavimentou o caminho para o julgamento de Bolsonaro, gerou desdobramentos que atestam a existência concreta de uma nova dimensão do abuso sobre o qual a Justiça Eleitoral agora é instada a enfrentar.

Em 16 de março de 2023, o Tribunal Regional Eleitoral do Ceará, por maioria, condenou à inelegibilidade o deputado estadual, Delegado Cavalcante, então candidato a deputado federal, em virtude de discurso proferido em comício realizado em 7 de setembro de 2022 com o seguinte teor: "O presidente Bolsonaro é o mais querido, é o que a população está querendo. E não vamos aceitar que as urnas dê a vitória para quem não presta. E digo mais: se a gente não ganhar... se a gente não ganhar — eu vou repetir — se a gente não ganhar nas urnas, se eles roubarem nas urnas, nós vamos ganhar na bala. Na bala. Nós vamos ganhar na bala. Não tem nem por onde. Nós vamos ganhar na bala" [3]. O voto divergente que prevaleceu demonstrou a similaridade com o "Caso Francischini" e reputou presente o abuso de poder político, em função do suporte da estrutura político-partidária para o comício, além da condição de deputado estadual, e o uso indevido dos meios de comunicação, pois o candidato publicou sua fala em perfil de rede social.

Os julgamentos de Francischini e Cavalcante expõem como desinformação, incitação à violência e ameaça às instituições democráticas estão entrelaçadas enquanto formas de discurso destinadas à captura da preferência eleitoral e que, por isso, deslegitimam os mandatos eventualmente conquistados sob essa plataforma política, além de impor a decretação à inelegibilidade como medida de proteção do Estado Democrático de Direito em face daqueles que contra ele atentaram. A evolução da divulgação de informações inverídicas sobre urnas eletrônicas e o sistema eletrônico de votação até a pregação do recurso à insurreição armada contra o Estado de Direito não é uma mera contingência dessa expressão do abuso.

Trata-se de realidade presente a ascensão do populismo de caráter antidemocrático, que, segundo explica Jan Werner Müller [4], não representa uma face legítima da moderna política democrática, tampouco uma patologia decorrente de cidadãos irracionais. Esse fenômeno é a sombra permanente da política representativa, tendo em vista que os populistas não se opõem aos princípios dessa representatividade, mas apregoam a narrativa de que somente eles podem ser considerados os representantes legítimos do povo, isto é, são antipluralistas. Apenas eles representam o povo e todos os outros competidores políticos são ilegítimos. O povo, para eles, é uma entidade moral homogênea cuja vontade não erra. Por isso, argumenta Müller que populistas devem ser criticados não apenas como antiliberais, mas, sobretudo, como um real perigo para a democracia, de modo que sua participação no debate político seria condicionada a que se mantenham na legalidade e não incitem a violência.

Esse viés autoritário do populismo aposta em uma razão binária beligerante que reproduz uma lógica de ódios e afetos para legitimar todos aqueles que integrem a comunidade moral que detém o monopólio da condição de "povo" e, por conseguinte, deslegitimar os excluídos. Essa plataforma política que aposta na divisão no lugar do consenso e explora o preconceito em vez de combatê-lo, agrava a intolerância, que é crescente no Brasil e no mundo. No campo político, a intolerância consiste na tentativa de apagar ou não admitir pontos de vista diferentes daqueles do próprio indivíduo, enquanto a intolerância na esfera social se caracteriza pela falta de habilidade ou disposição em respeitar as diferenças de toda ordem entre as pessoas, que, conforme Lilia Schwarcz, se expressa na forma de "racismo, misoginia, antissemitismo, homofobia, pragmatismo religioso ou político, horror aos estrangeiros (...)" [5].

Contra essa ameaça à democracia ainda não há resposta institucional pronta e acabada. Muito se mencionou no debate público recente o paradoxo da tolerância de Karl Popper, abordado em sua obra A Sociedade Aberta e seus Inimigos, para propor uma explicação sobre limites da convivência com a intolerância no regime democrático. Não se atentou, contudo, que antecede o paradoxo da tolerância a referência de Popper ao paradoxo da liberdade formulado por Platão, que critica uma versão demasiadamente ingênua do liberalismo, da democracia, e do princípio majoritário, que propõe implicitamente a indagação: "E se for vontade do povo, não que ele próprio governe, e sim um tirano em seu lugar?" [6]. Nesse caso, o homem livre, no exercício de sua liberdade, desafia a própria liberdade e clama por um tirano.

Para se evadir dessa contradição, Karl Popper oferece uma compreensão do problema que não se baseia nas qualidades intrínsecas das virtudes do princípio majoritário, mas nos vícios da tirania e na adoção de mecanismos que lhe evitem e resistam. Segundo o filósofo, deve ser classificado como democracia o governo do qual se livra sem derramamento de sangue, por meio de eleições gerais e instituições sociais que assegurem a retirada pacífica dos governantes e que não sejam facilmente destruídas pelos detentores do poder, ao passo que tirania, ou ditadura, representam o contrário, isto é, os governados não conseguem expurgar os governantes a não ser por meio de revoluções vitoriosas. Daí por que Popper afirma que o princípio de uma política democrática deve ser agora uma proposta de criar, desenvolver e proteger as instituições políticas, para evitar a tirania, pois o princípio democrático significa aceitar que uma política má na democracia, desde que persista a possibilidade de mudança pacífica do governo, é preferível à subjugação por uma tirania, por mais sábia ou benévola que seja. A teoria da democracia não se baseia, assim, no princípio absoluto do governo da maioria, mas na existência de métodos igualitários para o controle democrático. O sufrágio e o governo representativo, mais do que fins em si mesmos, devem ser considerados, na realidade, eficazes instrumentos de salvaguarda institucional contra a tirania, passíveis de constante aperfeiçoamento.

Essa é a perspectiva que o conceito guarda-chuva do "abuso de poder" no Direito Eleitoral necessita incorporar. Até então, a ênfase no aspecto político, econômico ou no uso de meios de comunicação social restringe as ferramentas de proteção do regime democrático e nem sempre se mostra suficiente a coibir adequadamente discursos antidemocráticos patrocinados pelos candidatos. Na esteira dos precedentes que vem se formando sobre a matéria, o abuso de poder consistente em ataques ao sistema eletrônico de votação e à democracia depende da utilização da prerrogativa do poder político e/ou de sua veiculação nos meios de comunicação social, incluída a internet. Nos casos Francischini e Cavalcante, o exercício da função parlamentar foi considerado como elemento para caracterizar o abuso de poder como político ou de autoridade e a divulgação em suas redes sociais de suas falas foi enquadrada como uso indevido dos meios de comunicação.

Essas condicionantes excluem da incidência do campo do abuso de poder o candidato que não exerce mandato ou é agente público, em sentido estrito ou amplo, como também não alcança pronunciamentos que não sejam veiculados nos meios de comunicação social, como falas em reuniões particulares, visitas a eleitores e comunidades, entrevistas concedidas a rádios e televisões sobre os quais não detém gerência, discursos em comícios e espaços públicos ou qualquer modalidade de propagação de ideias antidemocráticas que se opere na clandestinidade. Se um candidato, nessa simples condição, atenta contra a democracia por meio da realização de discursos políticos incompatíveis com o Estado Democrático de Direito sem que isso seja veiculado em suas redes sociais ou algum veículo oficial de comunicação da campanha, uma visão estreita do abuso de poder o eximiria de vir a ser responsabilizado com a perda do mandato ou com a decretação de inelegibilidade.

Essa lacuna da doutrina do abuso de poder há de ser preenchida com a devida extensão que as ameaças à democracia exigem para que o ato ilícito contemple toda e qualquer manifestação de candidatos que pretendam captar a preferência eleitoral com base em plataformas políticas autoritárias, que incitem o ódio e a intolerância, com manifesto conteúdo desinformativo [7]. O julgamento de Bolsonaro é o convite urgente para que as instituições se aperfeiçoem e incrementem a sua grade de proteção e defesa da democracia pela Justiça Eleitoral.

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[1] TSE. Aije n. 0600814-85.2022.6.06.0000. Rel. min. Benedito Gonçalves. Julgado em 30/06/2023.

[2] TSE. Recurso Ordinário Eleitoral nº 0603975-98.2018.6.16.0000. Rel. min. Luís Felipe Salomão. Julgado em 07/12/2021.

[3] TRE/CE. AIJE n. 0602936-06.2022.6.06.0000. Rel. Designado juiz George Marlmeinstein Lima. Julgado em 16/03/2023.

[4] MÜLLER, Jan-Werner. What is populism? Philadelphia, PA: University of Pennsylvania Press, 2016, p. 101.

[5] SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 214.

[6] POPPER, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Universidade de São Paulo, 1987, p. 138.

[7] Essa proposta é defendida na obra A tolerância no processo eleitoral: contornos jurídicos e perspectivas, resultado da tese de doutorado defendida por este autor no Programa de Pós Graduação da Universidade de São Paulo, publicada pela editora Lumen Juris.

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