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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

27
Jan23

Razões jurídicas para responsabilização penal pelo genocídio yanomami

Talis Andrade
 
 
 
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Por Lenio Luiz Streck

Dias atrás escrevi artigo sobre razões jurídicas (teoria do delito) para responsabilização dos autores dos atos golpistas do dia 8 de janeiro.

Dias depois Juarez Tavares me instigou a escrever sobre o "caso yanomami", a partir de um comentário do jornalista Demétrio Magnoli na Globo News.

Juarez se diz chocado — corretamente — com o que disse Demétrio, para quem o caso dos yanomamis não caracterizaria crime de genocídio por ausência da intenção de extermínio do grupo étnico. Veja-se o grau de responsabilidade de um comentarista político. Lembremos dos estragos causados pelos comentaristas (juristas e jornalistas) acerca do sentido do artigo 142 da CF. Deu no que deu. Sobre isso, escrevi aqui tratando da Hermenêutica de Curupira.

Todos conhecemos a lei do genocídio (Lei 2.889/56, com suas alterações) e o Estatuto de Roma, que empregam a expressão "intenção" em sentido genérico. As palavras possuem sentido de acordo com o contexto. Disputar uma cadeira na Câmara não quer dizer "disputar um pedaço de um móvel do parlamento"! A polifonia das palavras a gente aprende quando, saindo para a rua pela primeira vez, ouvimos alguém dizendo "mamãe, mamãe"... Damo-nos conta, então, de que a nossa mãe não é a única. E que manga pode ser fruta, peça de roupa e goleiro do Botafogo.

E aqui entra a ciência penal, da qual Juarez é expert, seguramente o maior dos experts que conhecemos.

Essa expressão — intenção — tem que ser adequada aos conceitos de dolo do Código Penal, que servem de holding para todas as leis especiais. Isso é velho. O dolo direto pode comportar duas espécies: dolo direto de primeiro grau, quando o sujeito atua e dirige sua vontade no sentido do alcançar um objetivo final, e dolo direto de segundo grau, quando o agente atua e dirige sua vontade para realizar um fato que constitui uma circunstância necessária à produção do objetivo final.

Depois, porém, da introdução da teoria da imputação objetiva no direito penal, alimentada pelo fundamento do aumento do risco, como proposto por Roxin, alterou-se um pouco a definição do dolo direto de segundo grau, para comportar a atuação do agente, que dirige sua vontade para realizar um fato que encerra uma condição de risco que irá conduzir, com certeza, ao alcance do resultado final.

Assim, com Juarez, é possível dizer, contrariando Demétrio, que a atuação do governo, sob o comando de Bolsonaro, com suas ações, embora não se dirigisse à matança direta dos indígenas, materializou-se na realização de condições de risco que, certamente, conduziriam ao resultado de extermínio do grupo étnico. E foi o que aconteceu.

Onde se enquadra, então, a intenção de que trata a lei do genocídio? No assim denominado dolo direto de segundo grau. Isto é, Bolsonaro — e seus coautores — ao permitirem o garimpo, ao deixar de mandar socorro, ao incentivar a invasão e degradação das condições ambientais, dirigiram sua vontade no sentido de realizar condições de risco que certamente levariam o grupo à extinção.

Por isso Demétrio não tem razão. Juarez Tavares é quem tem razão. O enquadramento é bem possível. E nem se trata de invocar dolo eventual. O que houve foi uma ação ilegal consciente e com consciência de que certamente produziria um resultado como a morte e doenças de uma etnia. O resto todos sabem.

 
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16
Out21

Falsificações de um opinioso profissional

Talis Andrade

 

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Demétrio Magnoli, colunista da Folha de S. Paulo, usa argumentos falaciosos para justificar fim da política de cotas raciais, afirma coletivo História a Contrapelo

 

por Rodrigo Nagem /coletivo História a Contrapelo /Ponte

As forças contrárias às políticas de ações afirmativas na mídia hegemônica, derrotadas após a decisão favorável do STF em 2012, começam a reerguer suas armas contra a Lei de Cotas, cuja revisão está prevista para 2022. Dando largada à discussão sob um governo que já se manifestou desfavorável à continuidade dessas políticas, articulistas têm mobilizado determinadas leituras sobre o passado com a intenção de sustentar posições que minimizem ou anulem a necessidade das ações afirmativas. Um exemplo desse posicionamento pode ser encontrado em texto recente de Demétrio Magnoli, notório autor anti-cotas, na Folha de São Paulo. No artigo em questão, Magnoli afirma que “militantes identitários” rasgam a historiografia ao conceituar a escravidão como um sistema de dominação racial, e não como um sistema econômico. O autor, entretanto, não poderia estar mais equivocado. 

Em primeiro lugar, porque é precisamente ele quem está rasgando a historiografia, que é praticamente unânime em afirmar que uma das principais especificidades históricas da escravidão moderna foi, justamente, engendrar um sistema de dominação racial. Ao contrário das antigas formas de escravidão, que justificavam a si mesmas em bases morais ou consuetudinárias, a escravidão moderna assentou no componente racial a fonte da sua legitimação. Isso não quer dizer que o africano era escravizado porque era negro, mas “ser negro” tornou-se o motivo pelo qual a sua escravização passou a ser justificada. Enquanto processo econômico, portanto, as relações escravistas da modernidade produziram a ideia mesma de raça, em função da qual passou a se legitimar a exploração e a opressão contra os africanos escravizados.

Igualmente, a escravidão moderna produziu uma associação entre cor de pele e cativeiro que, no Brasil, deu vazão a toda uma cadeia de relações sociais, correlações linguísticas e normas privadas de conduta que edificaram o mundo dentro do qual surgimos como Estado-nação no século XIX. Nas palavras de Stuart Schwartz, em sua obra Segredos Internos: “O Brasil-colônia foi uma sociedade escravista não meramente devido ao óbvio fato de sua força de trabalho ser predominantemente cativa, mas principalmente devido às distinções jurídicas entre escravos e livres, aos princípios hierárquicos baseados na escravidão e na raça, às atitudes senhoriais dos proprietários e à deferência dos socialmente inferiores. Através da difusão desses ideais, o escravismo criou os fatos fundamentais da vida brasileira”.

Esses ideais, inclusive, perpetuaram formas de exclusão mesmo após o fim oficial do cativeiro, em 1888, a partir de políticas sistemáticas de branqueamento, como aponta Jerry Dávila em seu livro Diploma de Brancura. O fato de Magnoli ignorar esses elementos ilustra a dimensão da eficácia com que nossa sociedade ignora as perversidades da escravidão, que caracterizaram séculos da nossa história, e os efeitos da franca e aberta política de branqueamento implementada, não por acaso, logo após a promulgação do fim do regime escravista.

Em segundo lugar, o autor se equivoca porque somos rigorosamente nós, historiadoras e historiadores, quem procuramos caracterizar a escravidão moderna como um sistema econômico, cuja lógica interna determinou e, ao mesmo tempo, foi determinada por uma dinâmica racialista de dominação social. Com isso, procuramos defender a análise histórica contra os ataques de ideólogos como Narloch, que nega o próprio caráter estrutural das relações escravistas, reduzindo-as a uma contingência “de época” na qual as exceções ganham o mesmo peso explicativo das regras, bem como de “opiniosos profissionais” como Magnoli, que reconhece esse caráter estrutural, porém o desvincula do seu polo complementar – a dominação racial – e, assim, alcança a proeza de criar uma escravidão sem racismo. Magnoli até admite que os casos de libertos que se tornaram senhores de escravos eram radicalmente minoritários, mas mobiliza esses exemplos para negar o fato de que a dominação racial constituía um elo essencial nas relações escravistas modernas, limitando-as tão somente à sua dimensão econômica. 

Mais do que perder de vista a particularidade histórica, Magnoli aqui falsifica diretamente a História, como já apontado pelas historiadoras Hebe Mattos e Ynaê Lopes dos Santos. Parece ficar claro, então, o porquê de o autor recorrer a uma noção tão estapafúrdia como a de “militantes identitários”: incapaz de sustentar uma análise competente, apela para a desqualificação dos seus interlocutores, valendo-se de uma expressão que, a rigor, nada significa. Tais dispositivos sofistas, como o desmerecimento de pesquisadores, o uso inapropriado e oportunista do debate historiográfico e a falsificação ou mesmo ocultamento dos fatos, empregados a torto e a direito por colunistas como Magnoli e Narloch, estão a serviço de uma agenda pautada pela manutenção do status quo, que se vê ameaçado por ações e políticas voltadas à mitigação da desigualdade racial e social neste país. 

Ajude a Ponte!

Nas mãos desses colunistas, o debate histórico e a investigação do passado convertem-se em artifícios esvaziados, cuja função passa a ser dar estofo à defesa da desigualdade e manutenção de privilégios. Neste sentido, torna-se ainda mais imperativa a defesa da pesquisa histórica séria, já tão vilipendiada e deturpada por autores como Magnoli e outros, dado que a História nunca trata somente do passado, mas refere-se também aos embates do presente, visando o futuro. Buscar a compreensão mais ampla possível do que se passou, relacionando as temporalidades passadas ao presente, é uma das funções centrais do trabalho de historiadores. Se não o fizermos, cairemos nas ilusões das leituras ideológicas sobre o passado.

09
Fev21

Todos vão pulando do barco de Moro

Talis Andrade

por Fernando Brito

- - -

 

Embora pareça ter ainda os três luíses do STF – Luiz Fux, Luiz Fachin e Luiz Barroso – a situação de Sergio Moro vai se deteriorando a olhos vistos.

Hoje foi a vez de mais um saltar da canoa adernada: Demétrio Magnoli, ex-morista ferrenho e sempre antipetista feroz.

O colunista de O Globo e comentarista da Globonews chama o ex-juiz de Curitiba, a quem já entoou os maiores louvores, de “um nada jurídico” e de ter “mão de gato” ao sentenciar Lula:

“É dever do STF anular as sentenças condenatórias do líder petista tingidas pela mão de gato de Moro”.

Magnoli desmonta a petição em que Rosângela Moro, atuando como advogada do marido, requer que os diálogos entre Moro e os procuradores sejam postos numa gaveta trancada, dizendo que ‘a verdade factual expressa nas trocas de mensagens seria suficiente para condená-los por subversão do processo legal, se não tivesse vindo à luz pelo túnel da ilegalidade” mas que, mesmo assim, não a desqualifica para evidenciar que há “acertos entre o juiz e os procuradores para plantar notícias na imprensa e financiar a divulgação de propostas legislativas, além da ambição de reformar o sistema político-partidário”.

Há bons argumentos e texto duro – “a gangue manipulava suas prerrogativas de agentes da lei para deflagrar um projeto de poder centrado na figura de Moro” – mas o mais significativo é ter sido escrito por quem foi e onde foi.

Deixa mais evidente que nem mesmo lá se consegue segurar – apesar dos esforços de Merval Pereira em dizer que fazer justiça nesta caso implicaria uma anistia à corrupção – o imperativo moral que representa declarar-se o óbvio: Sérgio Moro foi um juiz parcial e, por isso, violou as normas do processo legal.

E fora dele, qualquer punição, a qualquer pessoa tem um nome ao qual a democracia é absolutamente alérgica: arbítrio.

 

19
Ago20

I don't trust Fux

Talis Andrade

 

por Pedro Benedito Maciel Neto

- - -

O ministro Fux deve ser eleito Presidente do STF, observando o sistema de rodízio, o que é uma catástrofe institucional, pois, como escreveu Luis Nassif, “Fux não pode ser presidente do STF”, pois “Sem as prerrogativas da presidência, Fux se valeu várias vezes de manobras regimentais para impor teses absurdas, mostrando total falta de limites para o uso de suas atribuições”.

Uma das indecências de Fux, em quem o pessoal da Lava-Jato confia, foi (a) manter parada por anos a votação do auxílio moradia para magistrados que já dispunham de casa própria, cerca de 4,5 bilhões de reais foram drenados dos cofres públicos porque Fux agiu corporativamente e, após conceder liminar autorizando o pagamento, “sentou” no processo; (b) ele mantém parado há quase uma década votações sobre crimes da ditadura. 

Fux politiza toda a fundamentação suas decisões, há, por exemplo, uma decisão sua trancou toda a pauta de votações do Congresso, para impedir mudanças na legislação de royaltiesque poderia prejudicar o Rio de Janeiro.

Mas não é só isso.

Para o ministro do STF Luiz Fux a existência de consórcio entre juiz e ministério público, desde a denúncia até a condenação, mesmo que prejudicial à defesa e aos direitos dos acusados não deve ser objeto de atenção ou preocupação da sociedade e dos órgãos de controle do ministério público e do Poder Judiciário. 

Alguém que pensa assim não pode ser Presidente do STF, pois já temos um imbecil na Presidência da República, um Congresso dócil ao mercado e às barbaridades do Executivo, o STF seria a última trincheira de defesa da institucionalidade e com Fux a boiada vai passar a vontade. 

Pelo que assistimos Fux dará contornos de legalidade à atuação potencialmente criminosa da Lava-Jato e do então juiz e Sergio Moro na operação Lava Jato e vai ignorar os crimes por eles cometidos.

Sim há crimes a serem investigados. Ilegalidades de contorno criminal relacionados com a forma como o Moro conduziu  e interferiu nas investigações da operação para depois julgar e prejudicar o processo democrático impedindo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva de participar das eleições presidenciais, ganhando como prêmio o ministério da Justiça.

Mas não é só.

O pessoal da Lava-Jato criou, com dinheiro público, uma organização política, que Demétrio Magnoli chamou de Partido da Lava-Jato, para, empunhando a bandeira da moralidade pública e do combate à corrupção, praticarem sem nenhum constrangimento o crime de abuso de autoridade, o qual se configura, por exemplo, quando testemunhas são conduzidas coercitivamente, como no caso do Lula, sem o convite, sem intimação e não se negam a depor. 

É possível ainda afirmar que os jovens procuradores de Curitiba, com apoio e inspirados por Sergio Moro, vêm praticando o crime de improbidade administrativa, aquele que funcionário público e o agente político, como eram os casos do Moro de Dallagnol, não pode do seu ato de ofício auferir vantagens. Ora, Moro, com o processo contra o Lula, eivado de nulidades, o afastou das eleições. E Bolsonaro eleito, escolhe Moro como ministro da Justiça e promete a ele um cargo para o Supremo Tribunal Federal. Evidente a vantagem e o interesse de Moro lançar-se à Presidência e Procuradores da República lançarem-se candidatos ao Senado “um em cada estado”, como disse Deltan numa das revelações da Vaza-Jato.

A juíza federal Raquel Braga, da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), afirma que há outro crime, ainda, para ser investigado, que a prevaricação e afirma: “No caso João Santana, Moro retarda a denúncia do Ministério Público, deixando as peças sob o seu controle, sem enviar para o Supremo Tribunal Federal”.

E, por fim, também a ser investigada é a formação de quadrilha, com a constituição de uma instituição que inicialmente tinha capa de viés pedagógico, mas no fim almejava auferir lucros. “Portanto, a cada vazamento, essa questão de palestras, de pagamentos se torna mais grave”, alerta a Juíza Raquel Braga.

Caberia aos conselhos punir dos danadinhos delinquentes, mas é do Supremo Tribunal Federal a missão de promover um acertamento institucional definitivo, pois vivemos em pleno século XXI uma espécie de tenentismo? São os jovens promotores e juízes "de baixa patente" os novos tenentes. Como os rebeldes do inicio do século XX, os jovens promotores e juízes, descontentes com a situação política do país ou a serviço de interesses ainda em processo de aclaramento, passaram a buscar reformar instituições e estruturas a seu modo. 

Há coincidências a ser consideradas: os jovens promotores e juízes do inicio do século XXI, querem reformas, assim como os jovens militares do inicio do século XX, mas ambos possuem uma espécie de povofobia; querem reformas a fórceps, sem participação popular, sem consulta popular, relativizando a democracia, criminalizando a Política e os políticos, relativizando e desrespeitando direitos e liberdades, com viés extremamente autoritário.

Não me servem as reformas, sem democracia e participação popular nenhuma reforma é válida. Os jovens promotores e juízes de hoje buscam afirmar suas convicções através da judicialização da política, da politização do judiciário, da criminalização da política e dos políticos, tudo com diligente apoio de parte da mídia que transforma fatos e atos processuais ou pré-processuais em espetáculos de destruição de reputações e das instituições. 

Essas são as reflexões de hoje.

29 de Janeiro de 2020 - O CORRESPONDENTE

29
Jul20

Moro pede ''teste moral'' para o Brasil! Só que ele mesmo é reprovado!

Talis Andrade

Por Lenio Luiz Streck

- - -

De fato, Sergio Moro não se ajuda. O réu não se ajuda, como disse um dia o juiz Amilton de Carvalho a um acusado que insistia em se "enterrar" no depoimento.

Por exemplo, agora Moro diz que a emenda constitucional que pretende dar um drible da vaca no resultado das ADCs sobre presunção da inocência é um "teste moral" para o Brasil. Algo como "quem é contra a PEC 199 é imoral".

Pegou pesado. Merece resposta. Teste moral? Sim, sim, Moro falando em teste moral? O que é um teste moral? O que é moral?

Bom, se tivesse feito já algum "teste moral", Moro teria chumbado, se lembrarmos do vazamento ilícito (logo, imoral) das conversas gravadas já fora do tempo permitido (portanto, um ato, além de ilegal, imoral) de Lula e Dilma, do ilícito (e, assim, imoral) vazamento da delação premiada (cadê?) de Palocci dias antes do segundo turno das eleições presidenciais. Isso para dizer o menos. Teste moral? Como assim? Falando em corda em casa de enforcado?

Se tivesse feito já algum teste moral, Moro teria chumbado, a continuar quando aconselhou o MP a buscar mais provas em processos da "lava jato", tendo depois explicado que (i) não era lícita a prova do Intercept e (ii) se fosse, essa conversa era "normal" entre juiz e MP. Como diria o filosofo Chavo Del Ocho, dá zero pra ele. Tem coisas bizarras de Moro. Por exemplo, ele pediu desculpas ao MBL por frase que ele disse não ter dito!

O que seria moral ou ético para o ex-juiz e ex-ministro do governo Bolsonaro? Antes de tudo, vamos lembrar o que disse sua "conge" (sic) Rosangela: "Moro e Bolsonaro são uma coisa só". Depois saiu falando mal do Presidente que o nomeou Ministro logo após a eleição de 2018, apesar — seria isso ético e/ou moral? — de todos saberem (inclusive foi dito pelo vice Mourão) de que Moro aceitara ser ministro ainda antes da eleição. Bem ético, não? Moralmente aceitável? Teste moral? O que é isto — a ética e a moral?

Talvez "o teste moral" de que fala Moro no twitter seja algo como a anedota em que dois sujeitos têm uma loja que vendem ovos de marreco. Vendem fiado. Uma velhinha de 95 anos, semicega, chega ao meio dia para pagar seu débito. Só está na loja um dos sócios. Ela tira do bolso um maço de notas e entrega, dizendo: pronto, eis o que eu devia. Vira-se e vai embora.

O sócio pega o dinheiro e conta. Constata que ela pagou o dobro. Eis então o dilema ético-moral que se instala na consciência do sócio. É absolutamente "dramático". Afinal, ele reparte ou não reparte a grana com o seu sócio?

Essa — a ética da anedota — é uma forma de ética-cínica, — a transversal, a do ricochete. A ética "todos na sala são mentirosos, menos eu que estou dizendo a frase...".

De todo modo, fazendo uma caridade epistêmica, vou ajudar o ex-juiz e ex-ministro com o conceito. Depois de ler a explicação abaixo, vamos ver se ele repetiria o post no twitter. Eis a lição:

"Um professor perguntou ao seu mestre:

— Mestre, o que é ética? E como posso explicar aos meus colegas professores, aos meus alunos e seus pais de maneira simples para que todos entendam?

O mestre respondeu:

— Ética é fazer ao outro só aquilo que se quer que seja feito a si mesmo.

O professor fez outra pergunta:

— E o que é moral?

O mestre respondeu:

— Moral é não fazer nada escondido. Se precisar fazer escondido, então é imoral.

E completou:

— Não pode haver nada pior do que um bom conselho... — e, após uma longa pausa — ... seguido de um mau exemplo."

Pronto. Está na internet. Ao alcance de todos. Foi feita para gente como Sérgio Moro. Para que não precise escrever uma carta de 30 laudas pedindo sinceras desculpas ao STF.

Em verdade, o fato — e eu teimosamente insisto que fatos existem — é que o histórico da atuação de Moro não lhe dá cacife para inflar o peito e dizer "a PEC da presunção será um teste de moral para o país". Vamos lá?

• Para quem apoiou a PEC que fala da prova ilícita de boa-fé,

• para quem não se importou com a condição dos presídios,

• para quem chamou o motim dos policiais do Ceará de greve e ainda por cima os apoiou,

• para quem fez conjuminância com MP em processos da lava jato,

• para quem "fundou" o "partido do lavajatismo" — como denuncia Demétrio Magnoli,

• para quem ficou mais de ano no governo, concordou com tudo e saiu "atirando" contra seus amigos, até mesmo a sua afilhada de casamento,

• para quem ficou sentando e não se levantou quando o ministro Weintraub chamou os onze ministros de vagabundos e dizer que deviam ser presos,

• para quem assistiu calado o ministro do meio ambiente falar que deviam aproveitar pandemia para "passar a boiada",

• para quem pediu desculpas por ato ilícito ao STF depois de vazar conversa de Lula e Dilma (não seria um ato explicitamente imoral?),

• para quem agiu parcialmente todo o tempo em que foi juiz (ver esta decisão do STF: HC 95518, Relator(a): EROS GRAU, Relator(a) p/ Acórdão: GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 28/05/2013), vir, agora, falar em "teste moral", parece que estamos ignorando mais de dois mil anos de filosofia acerca dos conceitos de ética e moral. Total inversão de valores...

E lá vem a velhinha pagar a sua conta...!

Sigo. Para dizer que tem uma outra metáfora que ajudará explicar o twitter de Moro. Dizem que Moro foi para a Amazônia ao tempo de ministro da Justiça e foi ferroado pela vespa mais feroz, a vespa cabocla (polistes canadensis). Impressionado, capturou três exemplares e os colocou em uma caixinha, para mostrá-los a Bolsonaro e os demais ministros.

Como um nomóteta de vespas, chamou a primeira de "Moral", a segunda de "Direito" e a terceira de "Política". Weintraub — sempre esperto — sabendo da história e da intenção, resolveu fazer uma brincadeira e soltou os insetos, fechando novamente a caixa. Reunido o ministério, Moro conta a história do bicho mais feroz e da dor mais terrível que sofreu. Fez mistério e começou a abrir a caixa. E estava vazia.

Então sentenciou: "—Viram? Elas são tão terríveis que se devoraram entre si". Foi um teste moral para as vespas. A perícia mostrou que a vespa chamada Moral comeu as outras duas. Só não explicaram quem comeu a vespa Moral-que-comeu-as-outras-duas-vespas.

Pois é. Não é fácil fazer teste moral. Talvez tenhamos que recorrer a Aristófanes, quem, aliás, escreveu As Vespas! Tem a ver com Moro? Leiam. Há um vídeo de Direito & Literatura, em que abordamos o livro. E a coluna Embargos Culturais, do nosso querido e talentoso Arnaldo Godoy (ver aqui).

Spoiler de As Vespas (não as capturadas por Moro, e sim, as de Aristofanes): Na visão de Aristófanes, certamente o que movia o juiz Filoclêon não era o amor à justiça. Preso na sua casa, Filoclêon exige que possa sair: "Que é que vocês estão querendo fazer? Vocês não vão mesmo me deixar julgar? Dracontidas vai ser absolvido!"

Fica claro que, mesmo sem ouvir as partes, Filoclêon já pensara em condenar o réu. Filoclêon tinha ganas de condenar, sempre. Sempre. Claro, os seus adversários. E diz logo em seguida: "O deus de Delfos me respondeu um dia que eu morreria no momento em que um acusado escapasse de minhas mãos."

Pronto! Vespas possuem ferrões. E apetite. Muito cuidado! A Vespa Moral pode comer a vespa Direito.

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