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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

09
Nov23

Confiança, autenticidade e infraestrutura digital: peças-chave para a compreensão das fake news

Talis Andrade

Segundo dados da Pesquisa TIC Domicílios 2022, quase metade dos brasileiros não verifica se uma informação encontrada na internet é verdadeira. Créditos: PickPik/Creative Commons

 

Dairan Paul, objETHOS

Neste comentário, exploro três explicações para o consumo das fake news: os pressupostos de confiança, a lógica da autenticidade/performatividade e a infraestrutura digital que moldam as redes sociais. Recorro principalmente a três pesquisadores para formular meu raciocínio: Alexandre Meyer Luz (Filosofia/UFSC), Igor Sacramento (Comunicação/UFRJ) e Letícia Cesarino (Antropologia/UFSC).

Meyer é crítico à linha mais tradicional da Epistemologia devido à sua idealização sobre tomadas de decisões dos sujeitos. Para o consumo de fake news, esta é uma perspectiva interessante. Porque nos lembra que nem todos aqueles que acreditam nas notícias falaciosas o fazem pela falta de um “arsenal crítico” para discernir a qualidade de uma informação.

Há mais nuances. Em entrevista para o Núcleo de Apoio à Divulgação Científica da UFSC, Meyer comenta que nem todas as pessoas têm tempo (ou mesmo vontade) de ser um Sherlock Holmes que investiga a origem de toda história que recebe. Segundo dados da TIC Domicílios 2022, quase metade dos brasileiros não verifica se uma informação encontrada na internet é verdadeira. O número dos que checam é ainda menor entre usuários cujo acesso à rede se dá apenas por celular. Já as principais fontes de informação são WhatsApp e YouTube – emissoras de TV aberta e sites de jornais estão atrás, indica o Digital News Report 2023.

Em outras palavras nem todos querem ser jornalistas. É claro que o letramento midiático é uma saída para isto – preferencialmente, que seja ensinado desde as bases escolares. O que Meyer quer dizer é que há mais ingredientes para explicar por que concedemos maior ou menor crédito a determinados informantes.

O desejo de pertencimento a um grupo social pode ser um deles. E a confiança também. Uma delas é aquela construída ao longo de uma trajetória de vida com parentes próximos (pais) ou figuras de autoridade (amigos de infância, políticos).

“Alguém compraria a história da ‘mamadeira de piroca’ olhando apenas para a informação?”, questiona Meyer. “Pessoas compram porque estão em contextos de confiança previamente concedidos. Você tem um caldo de fake news que ataca em blocos: a preocupação com o comunismo, o risco para a sexualidade das crianças, etc. Elas dependem dessas relações para se espalhar”.

Informantes também podem ser avaliados negativamente, isto é, vistos como menos confiáveis, por mecanismos sociais (racismo, machismo e LGBTfobia). É o fenômeno que Meyer denomina de “injustiça epistêmica”, a partir da filósofa Miranda Fricker.

Dois exemplos ilustram o conceito. Em junho de 2023, na Bahia, uma paciente teria dito que “odiava ser atendida por um médico homossexual”. No Rio de Janeiro, em 2016, teve repercussão nacional o caso de um paciente que recusou atendimento por um médico negro.

Injustiças epistêmicas, portanto, são situações pelas quais passam grupos que são vistos, injustamente, como menos capazes de fornecer informação de boa qualidade. Pretas, mulheres e LGBTs tendem a ser os principais vitimizados, afirma Meyer.

 

Quanto mais “autêntico”, mais confiável?

Além dos pressupostos de confiança que atribuem maior ou menor credibilidade a um informante, outros dois fatores contribuem para o consumo de fake news: a associação da autenticidade à verdade e a infraestrutura digital que incentiva a circulação das mentiras.

No que tange ao primeiro ponto, Igor Sacramento, professor de Comunicação (UFRJ/Fiocruz), realizou pesquisas junto a pessoas que evitavam tomar vacinas contra a febre amarela, em um período anterior à pandemia de Covid. Seus achados destacam dois valores cruciais para a atribuição de mais confiança a determinadas fontes de informação: intimidade e autenticidade.

Áudios de Whatsapp circularam à época das mentiras sobre como a vacina afetava o cotidiano das famílias, simulando revelações de sofrimento – uma performance de verdade, portanto, o que, paradoxalmente, é lido como “autêntico” por quem a consome. Por isso, a verdade não é mais uma evidência, mas uma experiência, um testemunho, mesmo que encenados.

“No Brasil, temos desafios tão grandes, como a alfabetização, que não tem como culpar o consumo de fake news sem considerar o enorme contingente de pessoas analfabetas”, afirmou Sacramento, em entrevista para o objETHOS. “E também pessoas que precisam acreditar – porque as fake news têm uma dimensão de levar tanto pavor como conforto, constituindo grupos ou comunidades em torno de teorias conspiratórias, por exemplo. Elas podem produzir um conjunto de explicações para aquilo que não é explicado, como ‘quando vamos sair da quarentena’ ou ‘quando a Covid vai acabar’. Uma postura negacionista de que é só uma gripezinha também produz certo conforto para a total incerteza sobre a vacina”.

Finalizo meu comentário recorrendo ao último fator que considero relevante para entendermos o consumo de fake news: a estrutura que permite a circulação e o disparo em massa deste tipo de conteúdo. Em O mundo do avesso: verdade e política na era digital, a antropóloga Letícia Cesarino reúne um farto arcabouço teórico para propor novas explicações sobre o tema a partir da teoria da cibernética. Sem receio, Cesarino afirma “a atual infraestrutura das novas mídias possui um viés político, e esse viés é favorável à direita iliberal, aos conspiracionismos e às demais forças antiestruturais que ressoam em seu entorno” (p. 87-88).

Em suma, uma das chaves explicativas para o consumo de fake news seria o colapso de contexto, propriedade transversal à infraestrutura técnica das novas mídias que incide sobre a experiência dos indivíduos, “desestruturando” a “metacomunicação” das sociedades. Inclui-se, aí, um impacto na episteme social de modo que “verdades são performativamente reveladas a posteriori (…) e verdade passa a ser ‘o que quer que venda’ (…) – para cada nicho de mercado, uma verdade” (p. 112).

Entendo, portanto, que há uma convergência de fatores que explicam por que pessoas consomem e acreditam em notícias falsas. Os argumentos elencados aqui vão na contramão de uma leitura que associaria a mera ignorância àqueles que “caem” nas fake news. Há uma estrutura própria favorável à circulação deste conteúdo; há pressupostos de confiança que subvertem a valoração do que viria a ser um “bom informante”; e há atributos como intimidade e autenticidade responsáveis por deslocar a epistemologia de seu lugar de evidência para o de testemunho – uma “eu-pistemologia”.

25
Nov22

Jornalismo, uma profissão que expulsa mulheres

Talis Andrade

jornalistas juniao.jpeg

Em curso um possível processo de "desfeminilização" no jornalismo, mesmo com maioria feminina.

 

por Dairan Paul /objETHOS

Escrevi, em meu último comentário para o objETHOS, sobre o custo emocional de ser jornalista. O argumento central do texto relacionava as condições precárias da profissão às rotinas e valores que orientam o jornalismo. Parte disso envolvia um imaginário de sacerdócio e missão inerente à figura do repórter, disponível a trabalhar 24 horas em nome de sua “causa”.

Neste texto, desdobro uma nova discussão para aprofundar os aspectos de gênero que sustentam a cultura “heroica” do jornalismo. São valores que acabam condicionando o acesso, permanência e ascensão de mulheres jornalistas em suas carreiras.

Em “News stories about fallen journalists”, Raymond McCaffrey, professor de ética na Universidade de Maryland, argumenta que a figura do jornalista como “herói” é um mito histórico. Advém de uma cultura das redações que recompensa comportamentos de risco, masculinos, em detrimento daqueles que expressam emoções – caso de coberturas duras, como guerras e acontecimentos traumáticos. “Na superfície, esse ethos não se relaciona diretamente aos princípios do jornalismo, como verdade, equilíbrio, independência e imparcialidade”, explica o pesquisador. No entanto, normas profissionais podem derivar de mitos que reforçam qualidades ausentes dos códigos profissionais, como a coragem e a propensão a tomar riscos. Assemelha-se ao discurso religioso do jornalista-sacerdote, acrescido de valores masculinistas que exaltam uma ideia de “força” e “poder”.

Tal conjunto de valores é apenas um dos fatores que explicam os entraves à permanência de mulheres no jornalismo. Indo mais além, recorro à diferença entre dois importantes conceitos, feminilização e feminização.

Neste artigo, Andressa Kikuti, Jacques Mick e Paula Melani da Rocha explicam que o aumento numérico da mão de obra feminina denomina-se feminilização. Feminização, por outro lado, refere-se às mudanças nas condições de trabalho por conta da inserção de mulheres no campo profissional. São as alterações que efetivamente põe em xeque as relações de poder sob domínio dos homens, impactando, por exemplo, as tomadas de decisão e cargos de chefia das redações.

Estes dois conceitos ajudam a explicar uma situação que, à primeira vista, poderia soar contraditória: como mulheres não recebem tratamento igualitário nas redações se o jornalismo brasileiro é uma profissão exercida majoritariamente por elas?

Ainda que os dados do Perfil do Jornalista Brasileiro 2021 apontem uma leve redução de 6% no número de profissionais mulheres (de 64% em 2012 para 58% no estudo mais recente), o jornalismo continua sendo uma profissão bastante feminina. Ser maioria, entretanto, não implica mudanças automáticas na cultura machista das redações ou mesmo na ascensão de carreira das profissionais. Em outras palavras, o processo de feminilização não leva necessariamente à feminização.

É por isso que Kikuti, Mick e Rocha, ao analisarem as duas pesquisas (de 2021 e 2012), identificam uma possível “desfeminilização” no jornalismo – mesmo com uma maioria numérica na profissão. Percebem, quando se debruçam sobre os dados da survey nacional realizada no ano passado, que há uma queda no número de mulheres ainda atuantes na mídia, principalmente em cargos de editoras e repórteres. É o contrário dos homens, que permanecem atuando no jornalismo e, de quebra, detêm faixas de renda mais elevadas, superando dez salários mínimos. Daí a conclusão: o aumento de mulheres não implica automaticamente em maior equidade na divisão sexual do trabalho. Kikuti, Mick e Rocha afirmam que “a mídia brasileira mandou parte das mulheres para casa” – ao menos no jornalismo mainstream, nos quais cargos de chefia ainda são exceções para elas.

Essa percepção também é ratificada em outro estudo que investigou mudanças na carreira de 517 jornalistas brasileiros, cinco anos após participarem do Perfil de 2012. Camilla Tavares, Cintia Xavier e Felipe Pontes identificam que mulheres estão entre a maioria a deixar a profissão para exercer outras atividades, como assessoria de imprensa ou docência. O alto número de mulheres que não trabalham mais com jornalismo e estão desempregadas, 60%, é um possível indício das dificuldades estruturais de gênero no mercado de trabalho, afirmam as autoras.

O dilema entre vida social e profissional também contribui para a expulsão de mulheres no jornalismo brasileiro. Conforme atesta Felipe Pontes, “o jornalismo é uma profissão que tende a privilegiar os solteiros. E esse filtro dos que permanecem no jornalismo é mais estreito para as mulheres”. Isso porque o salário baixo reduz as expectativas de que constituam famílias; quando conseguem, isso se torna um problema, já que “[elas] tendem a não ver espaço nas hierarquias mais bem remuneradas do jornalismo – simbólica e materialmente dominada por homens”.

Diante desse quadro, afirmar que o jornalismo expulsa mulheres não parece soar tão exagerado. Embora não seja exclusividade da profissão, mas parte de um problema estrutural, busquei ressaltar neste texto alguns aspectos do jornalismo que contribuem para um entendimento masculinizado da profissão. Essa compreensão se dá a partir de valores que, por sua vez, representam horizontes desejáveis a determinados padrões de conduta para um jornalismo de “excelência” – como a coragem heroica e propensa a tomar riscos. E, a partir dessa qualidade estipulada, tomam-se decisões organizacionais que, eventualmente, barram a entrada e permanência daqueles(as) que não estão “aptos” ao ethos das redações.

15
Jul22

O custo emocional de ser jornalista

Talis Andrade

“Sorrowing old man” retrata sujeito triste e solitário. Vincent Van Gogh.

por Dairan Paul /objETHOS

Você já deve ter ouvido falar por aí que amar o próprio trabalho é uma verdadeira armadilha. Imortalizada pelo pensador chinês Confúcio, a máxima “escolhe um trabalho de que gostes, e não terás que trabalhar nem um dia na tua vida” pode muito bem ser utilizada para naturalizar situações de violência, como a exploração de direitos, abusos morais e baixa oferta de salários. Seria utopia, portanto, esperar satisfação pessoal a partir de um emprego? Não exatamente. Mas é preciso pensar menos no trabalho como fonte de autorrealização, e mais em condições laborais justas e dignas para todos. É o que propõe a socióloga Erin Cech no livro “The trouble with passion”, lançado em 2021.

No entanto, como não se embebedar de uma “paixão insaciável” feito o jornalismo, nomeado por Gabriel García Márquez como “a melhor profissão do mundo”? Estamos falando, afinal, de uma profissão que se constrói por meio de valores morais nobres e confere a si mesma uma função social de importância inquestionável. Cabe ao jornalismo vigiar os demais poderes, fiscalizar a tudo e a todos, revelar o que se quer esconder, contribuir para a democracia… ufa. É nesse discurso pouco humilde que a profissão desenvolve um imaginário popular fortemente romântico, por vezes potencializado por representações cinematográficas. Basta lembrar do clássico jornalista super herói, sempre disposto a dar tudo de si em nome da verdade, porque envolto na missão de informar seu público a qualquer custo. Meio Clark Kent, sabe?

Exageros à parte, o jornalismo realmente exerce papel fundamental nas sociedades. E jornalistas sabem disso. Recentemente, no primeiro ano de covid, embora muitos profissionais se sentissem exaustos, boa parte relatou continuar seu trabalho porque percebia nele a prestação de um serviço essencial aos cidadãos. Os dados são do relatório coordenado pelo Centro de Pesquisa Comunicação & Trabalho (CPCT), ligado à USP. Há uma ligação direta aqui: uma parcela de jornalistas se sente realizada quando exerce os valores que idealiza sobre o jornalismo.

Esses valores, por outro lado, nem sempre são atingíveis com tamanha facilidade. Investigar, denunciar e fiscalizar requer, em boa parte das vezes, uma infraestrutura adequada. Além de caras, reportagens do tipo esbarram no problema das redações cada vez mais enxutas.

Quem consegue praticar esse tipo de jornalismo, então? No Brasil, boa parte dos jornalistas sequer trabalha com jornalismo nos moldes tradicionais. Mais de um terço atua fora da mídia em funções como assessoria de imprensa e produção de conteúdo para mídia digital, afirma o Perfil do Jornalista Brasileiro 2021.

Os pesquisadores Jacques Mick e Sabina Estayno avaliam que há um fenômeno de “dualização estrutural” sobre as carreiras dos jornalistas brasileiros. Há dois grupos: uma minoria bastante homogênea, com menos de 2 mil profissionais (os dados são baseados no registro de 145 mil jornalistas, de 2012). Essa elite possui remuneração elevada, mais autonomia, permanecem por mais tempo na profissão e gozam de maior visibilidade na TV, rádio, jornal e internet. Na outra ponta, o grupo majoritário dos jornalistas brasileiros trabalha em equipes pequenas e economicamente instáveis, possuem pouca autonomia e estão submetidos a condições adversas de trabalho (jornada extensa, vínculo empregatício frágil). Uma realidade bem distante do sonho romântico de ser jornalista…

A análise de Mick e Estayno revela o pano de fundo estrutural que dificulta a ascensão da maioria a postos de trabalho dignos, colocando em xeque, ou ao menos dificultando, a autorrealização dos jornalistas. É possível amar seu trabalho sem uma contrapartida financeira? Vimos que parte dessa satisfação se dá na convergência do trabalho com os valores que profissionais idealizam, como a “missão” de servir ao público e contribuir para uma informação de qualidade. É questionável, no entanto, até que ponto esse mesmo ethos não contribui para manter altos índices de produtividade nas redações.

 

Valores sacrossantos para poucos, penitência para muitos

 

Seria necessário, antes disso, traçar uma diferença entre valor e cultura profissional. Não quer dizer que redações devam abdicar de informar seus leitores com relativa agilidade sobre acontecimentos urgentes. Mas não há um impeditivo para pensarmos relações de trabalho mais saudáveis, que tirem o lugar sacrossanto outorgado ao jornalismo, como se o trabalhador fosse um sacerdócio a serviço de sua causa (nos anos 1990, aliás, Jorge Claudio Ribeiro já estabelecia comparações entre a “quase-fé” das redações, semelhantes a um “corpo sacerdotal”, como se o jornalista, de fato, vendesse sua força de trabalho em nome de uma religião).

O problema não está no valor público intrínseco ao jornalismo, mas em sua cultura profissional que estimula determinados comportamentos – como o excesso de velocidade, a concorrência pelo furo, as jornadas de trabalho extensas. Tal provocação já havia sido feita pela pesquisadora Janara Nicoletti, que observou como a idealização (reforçada, inclusive, por manuais de redação) facilita a precariedade da profissão, especialmente no mito romantizado do profissional disponível 24 horas por dia. “A lógica empresarial exige maior produtividade em cada vez menos tempo, impondo ainda maior pressão ao profissional que tem em seu ethos o dever de informar o cidadão – agora em tempo real. De alguma forma, se usa o próprio profissionalismo como uma estratégia de dominação empresarial” (p. 74).

Quem sofre na pele o resultado de toda essa mitologia são os próprios jornalistas, claro. Cada vez mais adoecidos, se sentem frustrados não apenas porque seus trabalhos não os compensam financeiramente, mas também não provêm um sentido para o jornalismo que acreditam.

Para se ter uma ideia, 36,1% dos jornalistas brasileiros não conseguem pagar suas contas com o salário que recebem, estão devendo, precisam de trabalho extra ou ajuda de terceiros. Os demais resultados do Perfil do Jornalista Brasileiro 2021 não são mais animadores: 66,2% afirmam sentir estresse no ofício e 20,1% já foram diagnosticados com algum transtorno mental relacionado ao trabalho. Um número elevado de jornalistas, 68,6%, recebeu indicação para tomar antidepressivos.

São dados que demonstram como o quadro de saúde mental dos profissionais se articula às rotinas de produção do jornalismo. Isso fica mais evidente em outras questões presentes na survey do Perfil: 67% concordam que o número de pessoas na equipe é insuficiente para a realização de tarefas, o que deve gerar sobrecarga de trabalho. Isso porque a maioria da categoria (56%) é formada por pequenas equipes de até 10 jornalistas, bem longe da mitologia das grandes redações. E 15,3% sequer têm colegas, ou mesmo trabalham sozinhos. Para completar, boa parte dos jornalistas (45,2%) não estão satisfeitos com a sua remuneração.

Diante desses indicativos, não surpreende que praticamente a maioria dos jornalistas (44,2%) não se sentem reconhecidos pelos esforços no trabalho. Estão insatisfeitos com a função que realizam (34,5%) ou não enxergam possibilidades de promoção (28%). As condições de trabalho, portanto, têm implicações na subjetividade dos trabalhadores: eles não conseguem separar a vida familiar do trabalho (46,5%), não conseguem priorizar a vida pessoal (34,9%) e não têm tempo para cuidar de si mesmos (35,4%). É notório também que 7 em cada 10 jornalistas assinalam sentir cansaço extremo ou tristeza.

O Perfil dos Jornalistas reserva, ao final, uma seção de depoimentos dos jornalistas. São relatos que explicitam a dualidade do jornalismo como uma fonte de prazer, mas também de desgaste, colocando novamente em xeque o amor pela profissão. Aliás, esse é um sentimento citado com alguma recorrência pelos participantes:

“É uma área que requer muita paixão para seguir e não abandonar”.

“Só tendo muito amor pelo jornalismo para seguir, mas isso impõe sofrimento”.

“A redação me adoeceu, e apesar de gostar do jornalismo estou cada vez mais querendo me distanciar dele”.

 

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“Condições de trabalho, falta de investimento em infraestrutura e na saúde mental dos jornalistas, romantização do sofrimento excessivo, tudo isso contribui para o desgaste cotidiano da nossa profissão”.

Infraestruturas inadequadas, salários abaixo do esperado, insatisfação pessoal, implicações no quadro de saúde dos trabalhadores… o combo de variáveis que acomete a maioria dos jornalistas brasileiros, acrescido ainda de um contexto de violência particular ao nosso país, parece, por vezes, colocar em dúvida se realmente vale a pena seguir na profissão.

Mesmo com esse quadro desanimador, uma parcela de profissionais (aquela que ainda não decidiu trabalhar fora da mídia…) parece seguir em frente, entre outros motivos, porque vê um forte sentido social no valor do jornalismo, especialmente em sua função pública de bem informar a sociedade. É como uma compensação moral – o trabalho, mesmo que realizado em meio ao caos, ainda seria nobre por excelência, remetendo ao velho romantismo da profissão. O problema é que o amor pelo jornalismo tem prazo de validade: quando as contas não fecham, não há paixão que resista.

Referências

LIMA, S.; MICK, J.; NICOLETTI, J (Coord.). Perfil do jornalista brasileiro 2021: características sociodemográficas, políticas, de saúde e do trabalho. Florianópolis: Quorum Comunicações, 2022. Disponível em: https://perfildojornalista.paginas.ufsc.br/files/2022/06/RelatorioPesquisaPerfilJornalistas2022x2.pdf

MICK, Jacques; ESTAYNO, Sabina. Jornalistas na crise: as carreiras interrompidas na mídia e a estrutura dual da profissão (2012-2017). In: PEREIRA, F.; ROCHA, P.; GROHMANN, R.; LIMA, S. (Orgs.). Novos olhares sobre o trabalho no jornalismo brasileiro. Florianópolis: Insular, 2020.

NICOLETTI, Janara. Precarização e qualidade no jornalismo: condições de trabalho e seus impactos na notícia. Florianópolis: Insular, 2020.

RIBEIRO, Jorge Claudio. Sempre alerta: condições e contradições do trabalho jornalístico. São Paulo: Brasiliense, 1994.

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