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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

26
Jun22

Um estupro a cada dez minutos: “Precisamos discutir saúde sexual desde a infância”, defende ativista

Talis Andrade

No Brasil, uma menina ou uma mulher foi estuprada a cada dez minutos em 2021. Uma campanha lançada pela Plan International Brasil tenta conscientizar sobre a importância da denúncia da violência e do tratamento adequado da vítima © Arquivo pessoal

Os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública são alarmantes: a cada dez minutos uma menina ou uma mulher foi estuprada no Brasil em 2021. Apesar da recorrência do crime, o silenciamento das vítimas ainda é a regra, resultado de uma cultura machista e patriarcal, explica a gerente de projetos da ONG Plan International Brasil, Elaine Amazonas. Para quebrar este ciclo, a educação sexual e reprodutiva de crianças e adolescentes tem papel fundamental, defende a ativista.

Toda mulher brasileira já sentiu ou sente medo de ser estuprada em algum momento de seu cotidiano. A violência sexual é tão normalizada que parte dos abusos levam tempo para serem entendidos como tal ou são silenciados pelo medo do discurso que culpabiliza a vítima. "Ela não poderia estar andando na rua à noite", ou "ela não poderia estar com a roupa curta" fazem parte das frases que muitas vezes reforçam esse discurso.

É este ciclo que precisa ser quebrado e, para isso, é preciso ampliar a educação sobre saúde sexual para crianças, aponta Elaine Amazonas. "Nós precisamos discutir saúde sexual e reprodutiva desde a infância. A escola é fundamental nesse processo. As nossas crianças precisam estar prontas para se defender e encontrar os canais de denúncia em caso de abuso", defende.  

A ativista explica que o ensino de saúde sexual deve ajudar as crianças e adolescentes a compreenderem o que é consentimento e conhecer o seu próprio corpo. "As crianças precisam saber aonde pode ser tocado o seu corpo, que isso precisa ser feito com permissão e os professores são fundamentais nesse processo. Falar sobre educação sexual e reprodutiva não é incentivar crianças e adolescentes a terem relações sexuais. Pelo contrário, é para que eles conheçam seu corpo, saibam o que acontece na sua vida e possam tomar decisões mais assertivas que vão evitar abusos e exploração sexual, e também vai evitar uma gravidez precoce", diz.

O tema, no entanto, tem sido cada vez mais silenciado no país, o que só aumenta a vulnerabilidade de crianças e adolescentes. "O Brasil passa hoje por um momento extremamente delicado no que tange as discussões de gênero e de educação reprodutiva", lamenta.

 

Vídeo-choque

 

Para sair desse silêncio que protege agressores, a ONG lançou no dia nacional de Enfrentamento ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, 18 de maio, um vídeo-choque sobre estupros de jovens.

A campanha de pouco mais de um minuto mostra uma adolescente andando na rua e sendo perseguida e atacada por um homem, encenando um estupro como os tantos que acontecem a cada dez minutos no país. 

Elaine Amazonas lembra que, ao lado do Ministério Público da Bahia e do Unicef, a ONG trabalha em um projeto de conscientização de profissionais de saúde e professores sobre o tema. Esses profissionais devem soar o alarme dos órgãos competentes quando perceberem sinais de abusos em crianças e adolescentes.

Além disso, qualquer pessoa pode fazer uma denúncia anônima pelo Disque100, em um Conselho Tutelar, nas delegacias de proteção à criança e ao adolescente, nos CRAS (Centros de Referências de Assistência Social) ou mesmo nos ministérios públicos. 

"Hoje no Brasil talvez não nos faltem canais de denúncia. Mas falta a compreensão de que crianças e adolescentes devem ser protegidos. Não existe isso de 'a menina quis', 'a menina estava se oferecendo'. A vítima nunca é a culpada, ela precisa de acolhimento e do encaminhamento necessário", finaliza a ativista.

 

04
Fev22

Política hoje mexe mais com as paixões que com argumentos, analisa pesquisadora

Talis Andrade

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A revolução causada pelas redes sociais na comunicação do mundo provocou alterações importantes no discurso político. Hoje, a política impulsionada pelo mundo digital mexe muito mais com as paixões do que com argumentos lógicos, analisa Camila Moreira César, professora da Universidade Sorbonne Nouvelle e pesquisadora de comunicação e democracia.

Nas últimas duas décadas, a forma como os políticos falam publicamente e o modo de falar sobre política mudou profundamente com a redução da importância de meios de comunicação tradicionais e de espaços institucionalmente legítimos, explica a pesquisadora.

Se antes o espaço de fala da política tinha solenidade e acontecia em uma entrevista na televisão ou em uma fala diante de um partido ou de um sindicato em cima do púlpito e com momento para começo e fim, as redes sociais e a possibilidade de transmitir toda e qualquer mensagem quebrou os códigos preexistentes.

Nas arenas digitais, “há uma dessacralização da política, um alargamento das formas de produzir, de falar, de se apropriar desta política, tanto para os atores institucionais, partidos, candidatos ou pessoas que estão em mandato, quanto para os eleitores, que agora têm em seus celulares um jeito muito simples de participar e de agir nessas disputas discursivas, ainda que de maneira passiva”.

Política da identificação

A mudança no meio provoca alterações no conteúdo. Com o acesso à cena pública fácil e horizontal, já que todos em alguma medida podem ter, os políticos falarão com o público de igual para igual, buscando criar uma identificação. “Isso faz parte do que muitos pesquisadores têm chamado de populismo 2.0, esse ponto de criar uma identificação, uma proximidade que antes era inexistente”, comenta Moreira César.

Essa identificação é criada com um discurso que busca formas específicas de falar simples, mas também em imagens feitas para serem replicadas, como a difusão de cenas da vida privada que anteriormente não seriam vistas no espaço público, como um almoço com farofa espalhada pelo chão ou uma dança sobre uma lancha no meio do mar.Image

Para aproveitar as plataformas digitais, que reúnem as pessoas por preferências e selecionam o conteúdo a ser mostrado por algoritmos, a política tornou-se o lugar preferencial das paixões. “Essa política é muito mais lacradora porque ela está mais apaixonada, ela mexe muito mais com os sentimentos, com as paixões das pessoas em detrimento do que antes era um espaço mais para os argumentos”, afirma a professora.

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Sem constrangimentos

Tentando potencializar a circulação das informações, o discurso político digital vai focar em seus seguidores já convertidos – que também serão aqueles que vão curtir e espalhar as informações. E essa fala direta para convertidos cria uma liberação da palavra que ultrapassa, por vezes, o bom senso público.

“Estamos em uma fase de polarização importante e o funcionamento destas plataformas permite este retorno a círculos mais privados de discussão, que nos deixam mais à vontade para falar coisas que antes não se falavam. E isso cria uma forma de encorajamento nas pessoas para falar coisas que antes eram constrangedoras de se dizer em público.”

O fenômeno ganhou força não só no Brasil, mas em toda América Latina, como mostra o livro recém-publicado “Discours Politiques et Médiatiques en Amérique Latine”, organizado por Camila Moreira César, Henry Hernandez-Bayter e Ailin Nacucchio. A publicação reúne pesquisas de diferentes países da região apresentadas durante um colóquio sobre discurso político realizado em 2019.DISCOURS POLITIQUES ET MÉDIATIQUES EN AMÉRIQUE LATINE - DU XXIE SIECLE,  Henry Hernandez-Bayter, Camila Moreira Cesar, Ailin Nacucchio - livre,  ebook, epub

Ainda que a forma como o discurso político mudou seja parecida, os conteúdos que vão ser usados neste discurso têm grande diferença. Se no Brasil o combate em relação a questões de gênero tornou-se central entre grupos religiosos e conservadores, o tema não mobiliza, por exemplo, na Argentina, país com leis mais progressistas em relação ao aborto, cita a pesquisadora.

Apesar desta revolução das redes sociais e da entrada de novas plataformas como o TikTok, para as eleições de 2022, Camila Moreira César aposta que os termos serão mais moderados do que aqueles da última disputa presidencial brasileira. “Não acho que as coisas serão tão acaloradas como em 2018, acho que a crise que tivemos, que a gestão catastrófica da pandemia são pontos que vão pesar”, considera.

20
Nov21

Supremacia branca tentou reduzir espaços de mobilidade social de negros, aponta historiadora

Talis Andrade

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A escravidão não foi o único mecanismo de subordinação de negros e seus descendentes na sociedade colonial e imperial brasileira. Mesmo aqueles que conquistaram sua liberdade ou os filhos de pais brancos e mão negras estavam submetidos a uma série de formas de discriminação que limitavam seus direitos e sua possibilidade de mobilidade social. É isso que conta a historiadora Mariana Dantas, professora da Universidade de Ohio nesta entrevista à RFI.

A pesquisadora tem se dedicado recentemente a estudar a possibilidade de mobilidade social no Brasil colonial para as mulheres negras livres e seus filhos. A partir de inventários e registros cartoriais, Dantas encontrou na Minas Gerais setecentista diversos casos de escravas africanas que conseguiram comprar sua alforria através do comércio de rua e mesmo acumular posses. No entanto, essas mulheres, ainda que poucas, tinham outras barreiras em sua trajetória para garantir uma vida fora da miséria para seus filhos.

"O que eu mostro na minha pesquisa é que na medida que essas gerações encontravam espaços para negociar uma ascensão social, o estado e a sociedade colonial e imperial usavam instrumentos de supremacia branca para tentar reduzir a possibilidade de mobilidade social", explica. 

Um dos exemplos que Mariana Dantas traz em seus trabalhos é a criação de milícias (forças policiais) divididas pela cor de seus oficiais. “As milícias foram diferenciadas entre milícia branca, parda e preta. Então um filho de uma africana, que fosse pardo, se ele ia servir na milícia, o que era obrigatório, ele vai ser colocado na milícia parda. Então existe um jeito dessa sociedade continuar a manifestar diferença racial que cria limitações a uma verdadeira mobilidade social e política onde raça não seja mais um fator”, diz a professora.

A historiadora cita ainda outro caso que mostra barreiras impostas nos estudos que vão além das limitações econômicas. Um filho de português com uma ex-escravizada que tem acesso ao ensino superior no início do século 18 e vai para Coimbra estudar na conhecida universidade portuguesa. No entanto, ao final do curso ele não tem direito ao diploma por não poder apresentar um documento que prove sua “pureza de sangue”.

“A gente vê os diferentes mecanismos usados pela sociedade branca para manter seus privilégios. São realmente mecanismos de supremacia branca”, analisa.

A historiadora Mariana Dantas, professora da Universidade de Ohio
A historiadora Mariana Dantas, professora da Universidade de Ohio © Acervo pessoal

Direitos como privilégios

Ao se debruçar sobre a trajetória de negras que deixaram a escravidão, a pesquisadora destaca que essas mulheres estavam sob dupla submissão, por sua cor de pele e por seu gênero. Assim, a elas eram rejeitados direitos que para mulheres brancas eram concedidos como privilégios. Por exemplo, no momento da morte dos maridos, as mulheres brancas podiam recorrer à Justiça para terem o direito à tutoria dos filhos de até 25 anos e, assim, o controle de sua herança. Às negras libertas, o pedido não era concedido.

“A gente começa assim a entender como que o jeito que essa sociedade funciona ajuda a reproduzir a desigualdade social mesmo quando estamos falando de pessoas que saíram da escravidão para a liberdade”, sublinha.

Para a pesquisadora, esses são dados que colocam por terra a ideia de democracia racial, já descartada pela historiografia mas que teima a reaparecer em discursos políticos atuais. 

"Muita gente tende a pensar indivíduos bem-sucedidos como evidência de que talvez o Brasil não tenha tanto um problema racial como tem os Estados Unidos. A minha perspectiva é de olhar a formação de famílias. E a análise de gerações mostra os mecanismos que fazem com que o sucesso de um indivíduo não se traduza em uma verdadeira mobilidade e na aquisição de direitos sociais e políticos."

No seu trabalho mais recente, Mariana Dantas mostra como o comércio de rua foi usado em Minas Gerais durante o século 18 para que escravizadas pudessem comprar sua liberdade e garantir propriedades para seus descendentes. Apesar de conseguirem acumular recursos com esse trabalho, vital para as vilas mineiras da época, a atividade não lhes garantia poder diante da sociedade.

“Principalmente as africanas livres estavam em uma economia informal, elas não estavam participando das atividades econômicas consideradas pela Coroa [portuguesa] como do interesse imperial, mas elas participavam de atividades econômicas que eram essenciais, traziam comida para as vilas, teciam. Eram atividades essenciais à vida diária mas que, por não serem consideradas de interesse imperial, mesmo quando elas puderem adquirir poder econômico, ele não se traduz em poder político", explica.

Dantas faz uma ponta entre essa dinâmica colonial e o lugar da economia informal no Brasil de hoje.

"A gente sabe que grande percentagem da população brasileira depende da economia informal, mas se ela não é vista como essencial, necessária para o bem-estar do país, essas atividades não se traduzem em direitos sociais e em direitos políticos. Foi algo que vimos com ainda mais saliência no período da pandemia. Eles não tinham o direito de ficar em casa. A gente vê muito explicitamente como para certa população direitos são apenas para quem tem privilégios", reflete.

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Os dados revelam que 1% da população recebe, em média, 34,9 vezes mais do que a metade mais pobre.
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MST Oficial
Sobre os rendimentos dos trabalhadores, levantamento do Pnad/IBGE sobre o 1º semestre de 2020, mostra que a média salarial das mulheres negras era de R$ 1.573 enquanto das não negras era de R$ 2.660. #20NForaBolsonaroRacista
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15
Out21

A volta do manto tupinambá: como indígenas da Bahia retomaram peça sagrada que só era vista na Europa

Talis Andrade

Manto tupinambá do século 16, em exposição no Museu Real de Arte e História da Bélgica, em Bruxelas

Manto tupinambá do século 16, em exposição no Museu Real de Arte e História da Bélgica, em Bruxelas © Museu Real de Arte e História da
Bélgica


por Cristiane Capuchinho /RFI

Quando viram pela primeira vez um manto tupinambá, por trás de uma vitrine da exposição que comemorava os 500 anos do Brasil, Dona Nivalda e Seu Aloísio choraram. “Toda história do nosso povo está aqui”, disse a líder indígena na ocasião. O manto de penas vermelhas do século 17 exposto era um dos raros exemplares desse objeto histórico e ritual tão importante para comunidades da costa brasileira, todos conservados em museus da Europa.

Naquele ano de 2000, os Tupinambás de Olivença, apesar de viverem no sul da Bahia desde tempos imemoriais, não eram reconhecidos como indígenas pelo Estado brasileiro. A comunidade, de cerca de 5 mil pessoas, só foi reconhecida oficialmente pela Funai em 2001.

O episódio da visita à peça marca a intensificação de um ciclo de luta pelo território e de valorização da cultura tradicional, que culmina agora na confecção de um manto de 1,2 metro e mais de 3 mil penas pela artista e liderança indígena Glicéria Tupinambá.

Nivalda e Aloísio já não estão nesta terra, mas o manto voltou para a aldeia da Serra do Padeiro.

 

'Tudo a seu tempo’

O percurso foi longo para reunir os saberes necessários para a confecção da peça sem nunca ter visto um manto presencialmente, conta Glicéria. A primeira tentativa de fazer um manto foi em 2006. A ideia era recriar a peça a partir de uma foto para a principal festa da comunidade, comemorada em janeiro.

“Painho [o pajé da comunidade] me explicou como era a paleta, como era o algodão, como era isso e aquilo. Mas eu ainda não sabia quais eram as medidas, como era a malha. Sabia que dava para fazer uma capa, com o ponto que tínhamos na aldeia”, explica a artista.

A peça realizada foi usada em rituais da comunidade. “Na festa, eu pedi para o Encantado [entidade tupinambá] me guiar para conseguir resgatar cada vez mais a nossa cultura, e ele me disse: ‘Calma, tudo a seu tempo’. Na hora eu não entendi”, conta a líder indígena. “Agora eu sei que o manto não é só fazer o manto, aplicar as penas, é fazer todo um percurso”, explica Glicéria.

Esse primeiro exemplar foi cedido para a exposição "Os Primeiros Brasileiros" e passou a integrar o acervo de etnologia do Museu Nacional. A indumentária poderia ter uma vez mais desaparecido, queimada no incêndio que destruiu o prédio do museu em 2018. O manto se salvou, estava naquele momento exposto em Brasília. "Para você ver como o manto é poderoso."

Primeiro manto confeccionado por Glicéria Tupinambá em 2006. Peça foi doada para o Museu Nacional e se salvou do incêndio de 2018.
Primeiro manto confeccionado por Glicéria Tupinambá em 2006. Peça foi doada para o Museu Nacional e se salvou do incêndio de 2018. © Museu Nacional

 

Joias das coleções europeias

Nessa trajetória de 15 anos, o encontro da artista com um manto tupinambá do século 16 foi fundamental. Em 2018, Glicéria foi convidada para dar uma palestra em Paris. Durante a viagem, ela pôde visitar um manto guardado a sete chaves na reserva técnica do museu do Quai Branly.

“O manto estava me esperando, e eu vou lá para ver as penas, fazer a análise da malha, entender o manto. Vi as posições e o caimento das penas, o ponto da malha, que era como o de jereré [instrumento de pesca tradicional] que fazemos aqui. A gente ficou quase uma hora com o manto e eu tentei memorizar tudo o que ele tinha ali”, relembra.

A majestosa peça plumária é considerada uma joia nas coleções europeias etnográficas. O objeto visto por Glicéria não está em exposição. A peça de 1555, a mais velha da coleção etnográfica do museu francês, é considerada frágil demais.

Como este, há cerca de uma dezena de mantos tupinambás dos séculos 16 e 17 conservados em museus na Europa – na Bélgica, Itália, Suíça e Dinamarca. São remanescentes de uma intensa interação cultural e comercial entre europeus e indígenas durante o período da colonização, explica a pesquisadora de antropologia histórica Mariana Françozo, professora da Universidade de Leiden, na Holanda.

“Já a partir do século 16, a gente vê nas fontes escritas, mas também nas pinturas feitas por europeus, um interesse muito grande em tudo aquilo que as Américas tinham e os europeus não conheciam. Essa curiosidade vem obviamente ligada a interesses comerciais e com base em uma relação não igualitária”, sublinha.

Françozo estudou a coleção formada por Maurício de Nassau, que governou a colônia holandesa em Pernambuco, e diz que os mantos eram muito valorizados como símbolos do Novo Mundo e entraram em uso na Europa.

“No caso da Holanda, temos registros de pelo menos duas vezes em que mantos de penas vindos do Brasil – se eram tupinambás, não sabemos –, que foram usados em festas da nobreza”, detalha a antropóloga.

Adriaen Hanneman
Portrait of Mary Stuart with a ServantImage
 
 

Assim como os mantos, há milhares de artefatos indígenas brasileiros dentro dos acervos de museus pelo mundo, especialmente na Europa, sem que haja uma catalogação devida. Muitas dessas peças são artefatos únicos, que mesmo as comunidades que as produziram não têm mais.

“Temos atualmente uma aliança entre povos indígenas e pesquisadores para tentar descobrir quantos são, o que é que está e onde está. E, a grande questão, é o que fazer com essas peças, a quem elas pertencem”, assinala Françozo.

O resgate deste conhecimento sobre essas peças tem sido objeto de estudos recentes, mas ainda há muito o que fazer na área.

A antropóloga Nathalie Le Bouler Pavelic, que pesquisa os Tupinambás de Olivença, destaca que nos museus esses artefatos muitas vezes ainda são vistos como vestígios do passado, sem relação com um povo que ainda existe.

“Não é porque é um artefato nos museus que não é uma peça do cotidiano dos povos e que tenha uma importância muito grande para eles em alguma área, ou religiosa ou do dia a dia. Daí a importância dos museus de trabalharem junto com os povos indígenas e saber como é que aquilo vive atualmente dentro das aldeias”, defende.

A retomada da tecnologia

A visita ao manto do século 16 serviu de base para que Glicéria confeccionasse uma nova peça. Um manto vivo, nas palavras da líder indígena, tecido com algodão encerado pela cera das abelhas tiúba e penas de aves da comunidade, entre elas o gavião, o canário-da-mata e o tururim.

“A gente lutou pela revitalização do meio ambiente, da mata, pela volta dos animais. A gente tem uma recuperação muito forte do nosso território. E o manto só passa a existir porque existe um equilíbrio na natureza do território da Serra do Padeiro”, afirma.

“Faltava o manto, e ele chega neste momento, quando o Brasil está em uma crise daquelas terríveis, onde tudo é contra os povos indígenas, tudo é contra a demarcação das terras indígenas. Ele vem quando é preciso ele existir.”

O manto ritual está na aldeia e foi vestido pelo cacique Babau durante a cerimônia em que recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade do Estado da Bahia em junho deste ano.

Cacique Babau vestido com manto tupinambá na aldeia da Serra do Padeiro, no sul da Bahia
Cacique Babau vestido com manto tupinambá na aldeia da Serra do Padeiro, no sul da Bahia © Glicéria Tupinambá

 

Pergunto à líder indígena se ela gostaria de reaver as peças que estão nos museus europeus. Ela rejeita a proposta e diz que receber o manto de volta seria perdoar os crimes cometidos contra seu povo.

“Para nós de Serra do Padeiro, o manto lá é como uma condenação para os europeus, a pena deles é cuidar dos vestígios do povo tupinambá. Mas queremos que eles abram espaço para receber os povos indígenas, para que possamos também ter contato com as pegadas do nosso povo”, conclui.

Com a retomada da técnica de produção, Glicéria teceu um segundo manto, atualmente em exposição. O manto ritual pode ser visitado na Funarte Brasília, na mostra “Essa é a grande volta do manto tupinambá”, ao lado de obras de Edimilson de Almeida Pereira, Fernanda Liberti e Gustavo Caboco.

Serviço:

Kwá yapé turusú yuriri assojaba tupinambá | Essa é a grande volta do manto tupinambá

Em Brasília, até 17 de outubro

Galeria Fayga Ostrower - Funarte Brasília

Em Porto Seguro, de 28 de outubro a 27 de novembro

Casa da Lenha

 


22
Mai21

'Salles deveria pedir exoneração, mas Brasil precisa é mudar política ambiental'

Talis Andrade

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O ministro brasileiro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, foi alvo de uma operação da Polícia Federal nesta semana. Ele é suspeito de ter atuado para facilitar a exportação de madeira ilegal para os Estados Unidos e Europa. O presidente do Ibama, Eduardo Bim, foi afastado devido à investigação. Na avaliação de Mariana Vale, professora da UFRJ e membro do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU), as acusações são graves e deveriam levar à exoneração do ministro. Ela argumenta, contudo, que o mais importante é que o Brasil mude sua política ambiental.

Em maio de 2020, o ministro Ricardo Salles defendeu durante uma reunião ministerial que o governo aproveitasse o momento da pandemia para, nas palavras dele, "ir passando a boiada  e mudando todo o regramento ambiental".

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O dito foi feito, de acordo com pesquisadores brasileiros. No artigo científico "A pandemia de Covid-19 como uma oportunidade para enfraquecer a proteção ambiental no Brasil" (em tradução livre), publicado em março, Mariana Vale, Erika Berenguer, da Universidade de Oxford, e outros quatro colegas fazem um levantamento das alterações de normas e regras que enfraqueceram as regras de conservação no país.

O grupo analisou o período do governo Bolsonaro até agosto de 2020 e encontrou que quase metade  (49%) dos atos legislativos que fragilizaram a proteção ambiental no país foram tomados nos primeiros sete meses da pandemia.

"A comunidade científica vinha sentindo que havia uma aceleração nessas medidas que diminuem a proteção e a gente resolveu fazer essa quantificação. O que a gente observou foi um aumento exponencial no número de ações que enfraquecem a proteção ambiental no Brasil nesse período", explica Vale. A professora diz que o estudo mostrou mudanças de naturezas muito distintas, de uma parte alterações de normas e de interpretação de normas, e de outro, desmonte da estrutura dos órgãos de proteção ambiental.

Em relação às normas, a pesquisadora elenca a redução da toxicidade de pesticidas, o que amplia o uso de agrotóxicos em diferentes tipos de cultura, afetando a alimentação, e interpretações criativas da legislação como a que tornou 110 mil quilômetros quadrados de mangues da Mata Atlântica suscetíveis a desmatamento. "[A regra dos manguezais] terminou sendo revista pelo Supremo Tribunal Federal e caiu", conta.

Também foi o STF quem derrubou nesta semana, em caráter liminar, um despacho realizado em fevereiro de 2020 por Bim, que facilitava a exportação de madeira ilegal e era contrário ao parecer dos servidores do Ibama. Esse despacho está no centro da investigação da Polícia Federal.

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Desmonte da estrutura de fiscalização

O desmantelamento da estrutura da fiscalização ambiental, com redução de recursos para fiscalização e a substituição sistemática do corpo técnico do Ibama, órgão responsável pela fiscalização, e do ICMBio, responsável pelas Unidades de Conservação no Brasil, por policiais e bombeiros, é algo que preocupa especialmente os pesquisadores.

Eles apontam que, apesar do aumento no desmatamento nesse período, o número de multas na região amazônica em agosto de 2020 é 72% menor que aquele aferido em março e, quando comparadas às multas ambientais de todo o Brasil, a queda é de 74%.

"A queda [de multas] aconteceu no mesmo momento em que foi colocado em vigor uma espécie de 'Lei da Mordaça'", explica Vale. "Os funcionários do Ibama já não podem se comunicar com a sociedade e trazer informações sem passarem pelo crivo de seus superiores. Então há um filtro, de modo que nós não temos conhecimento do que está acontecendo ali no terreno."

A situação está, segundo a pesquisadora, intimamente ligada à troca do corpo técnico por indicações políticas em diversos postos-chaves de conservação.

"A gente vive muitos casos de unidades de conservação que ficaram meses sem chefia, muitas estão simplesmente acéfalas. Então se você não tem chefia e, muitas vezes, o corpo técnico foi removido dessas unidades, elas ficam essencialmente à mercê de atividades ilegais. Isso é muito grave e aconteceu em várias unidades, inclusive com a Unidade de Conservação de Poço das Antas, que protege o mico-dourado, e o Parque Nacional da Tijuca, ou seja, áreas icônicas que ficaram simplesmente à deriva", denuncia.

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Um ministro contra seu ministério

No estudo, foram analisadas apenas as alterações até agosto de 2020, no entanto, o ritmo de enfraquecimento da política ambiental não se alterou, na avaliação de Vale.

"Segue [havendo] uma avalanche de alterações e ações que enfraquecem a proteção ambiental. Podemos mencionar bem recentemente a revisão da legislação que essencialmente enfraquece o licenciamento ambiental ou em abril a notícia-crime contra o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, acusado de fazer parte de uma organização criminosa em conjunto com madeireiros", cita.

Em final de abril, o delegado da Polícia Federal Alexandre Saraiva enviou uma notícia-crime ao STF apontando que o ministro agiu para dificultar a ação de órgãos ambientais e favorecer madeireiros. O delegado era superintendente da PF no Amazonas e foi afastado do cargo após uma grande apreensão de madeira ilegal.

O último desdobramento do caso foi a operação da Polícia Federal que investiga as ações de Salles e servidores do Ibama para benefício de madeireiros. A investigação nasceu de uma grande apreensão de madeira sem documentação adequada nos Estados Unidos, de acordo com artigo de Jorge Pontes, ex-delegado da Polícia Federal, seriam 8.600 cargas apreendidas sob suspeição de serem fruto de desmatamento ilegal.

Para Vale, "são acusações gravíssimas que se, se mostrarem verdadeiras, evidenciam não só um desmonte da proteção ambiental, mas atividades realmente criminosas . É o que tem se chamado de anti-ministro. Parece que estamos vendo surpreendentemente um ministro que trabalha contra os objetivos da sua própria pasta".

Ela destaca que as consequências vão além dos pontos de enfraquecimento das regras. "Também uma consequência difusa, existe a sensação de impunidade em relação aos crimes ambientais e a consequência disso é um aumento dos crimes, e vemos claramente um aumento enorme do desmatamento da Amazônia. No último ano tivemos um aumento de 30 % no desmatamento, a maior taxa de crescimento da última década."

Em relação à possibilidade de saída do ministro da pasta devido às acusações, Vale considera necessária, mas não suficiente. "Tem que ser uma mudança que não seja como as que a gente observou no Ministério da Saúde. Não adianta mudar o ministro e não mudar a política. Frente às acusações que ele tem, eu acho que ele deveria pedir exoneração até que tudo se esclarecesse. Mas o que a gente precisa é não só de uma substituição de ministro, mas sobretudo uma mudança na política ambiental do atual governo", finaliza.

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