O vírus não é o causador único dessa imensa desgraça coletiva
por Janio de Freitas
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Jair Bolsonaro quer mais cortes em gastos sociais previstos no Orçamento para este ano. As mutilações já feitas foram brutais, mas Bolsonaro quer mais alguns bilhões para o que se mostra no governo como o segundo gasto na ordem de nobreza: a compra de parlamentares com a liberação de bilhões para suas propostas de obras, que são catapultas eleitorais. O único gasto mais nobre no Planalto é o dos militares, cujo montante inicial perdeu apenas 3%.
As reduções são o oposto do requerido pelo forte agravamento das condições de sobrevida da maioria dos brasileiros. A retenção por mais de três meses do também mutilado auxílio emergencial anulou o alívio trazido pelas parcelas do ano passado, concedidas pelo Congresso.
A fome aumenta, e se espraia mais. Qualquer oferta de alimento atrai filas enormes, e as coletas de doações recebem ainda quantidade ínfima para a necessidade crescente. A maioria não tem disponibilidades para ser solidária.
Aos que a têm, o que falta, historicamente, é o próprio sentido de solidariedade, até de humanidade mesmo. Fosse diferente, já veríamos, há tempos, forte movimento de socorro aos que têm fome.
Na chegada de Bolsonaro ao poder, considerava-se, com provável otimismo, haver em torno de 24 milhões de brasileiros vivendo com menos de R$ 246 por mês: R$ 8 por dia. Passados dois anos, a FGV e dados do IBGE indicam o aumento desse contingente para 35 milhões de pessoas.
Não só os já habitantes da pobreza descem à miséria mais miserável. O título de reportagem de Fernando Canzian para a Folha sintetiza o que se passa nos intermediários: “Fenômeno dos anos Lula, classe C afunda e cai na miséria”. Eloquência justificada por mais de 30 milhões que “estão despencando diretamente da classe C para a miséria”.
A pandemia não é causa única da derrocada social. Desde seu primeiro momento, o governo investiu contra os programas sociais, sem exceção, e os manteve na precariedade quando o vírus se anunciou, se propagou e se impôs.
Nem a mínima atenção foi dada à necessidade de se buscarem modos de atenuar os efeitos socioeconômicos da pandemia. E, em paralelo, fosse preparada a defesa da população com a compra de vacinas, campanhas instrutivas, orientação para as alternativas empresariais e gerais.
Nada disso, era só uma “gripezinha”, a cloroquina a eliminaria. A vaguidão de Paulo Guedes, com os pés no ministério e a cabeça na Bolsa, e o desvario de Bolsonaro associaram-se ao vírus.
Passamos de 400 mil mortes. Esse morticínio atordoa, as crianças e famílias que caem no desamparo, se desorganizam, também perdem a vida por outra que começa e só podem temer.
O vírus não é o causador único dessa imensa desgraça coletiva. Tanto que maio e junho são esperados por cientistas como ainda mais calamitosos no Brasil. E explicam: por decorrência da baixa vacinação até aqui, da falta de vacinas porque o governo chegou tarde, desacreditado e arrogantemente suspeito ao balcão mundial dos imunizantes.
Logo, os passos degradantes na escala socioeconômica, mais do que continuar, vão se acelerar em número e em desumanidade. Nenhuma resposta lúcida pode ser esperada do governo que pretende até cortar mais gastos sociais.
Se a sociedade, por sua vez, é inerte por preguiça moral maciça ou indolência cultural incapacitante, a alienação é a mesma e mesma a consequência. Então, lamento, o que há a dizer é isto: a perspectiva de futuro próximo é péssima —talvez seja o que nossa paralisia mereça.
O que estava ruim piorou: o encontro de um governo inapto e irresponsável com um vírus altamente contagioso e devastador resultou numa explosão de demandas sociais que não têm no aparato público estrutura e financiamento adequados para atender a elas
por Equipe do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) / Le Monde
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O primeiro ano do governo Bolsonaro foi de múltiplas privações para a sociedade brasileira. As reformas trabalhista e previdenciária e as medidas de austeridade resultaram, entre outras mazelas, na queda do PIB per capita em dólar em 2019 (–3,2%) e na continuidade da trajetória de precarização do trabalho, uma vez que a maior parte dos trabalhadores e das trabalhadoras se encontrava na informalidade (38 milhões de pessoas), desempregada (12 milhões de pessoas) ou subutilizada (28 milhões de pessoas).1 Mas o que estava ruim piorou: o encontro de um governo inapto e irresponsável com um vírus altamente contagioso e devastador resultou numa explosão de demandas sociais que não têm no aparato público estrutura e financiamento adequados para atender a elas.
O cenário pré-pandemia
Como era de esperar, o aumento da pobreza – e de sua face mais perversa, a fome – apareceu já no primeiro ano do governo Bolsonaro. Dados divulgados pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO)2revelam que, no período 2014-2016, a prevalência da insegurança alimentar severa ou grave era de 18,3% da população; nos anos 2018-2019, esse percentual elevou-se para 20,6%, o que representa um contingente de mais de 43 milhões de pessoas que não se alimentam adequadamente.
A recessão prolongada foi agravada por políticas governamentais de cortes orçamentários expressivos e medidas que acirraram as já abissais desigualdades. Menciona-se, por exemplo, a Emenda Constitucional n. 95/2016, conhecida como “Teto de Gastos”, que congelou as despesas públicas da União por vinte anos. Outra regra bastante restritiva é a que fixa anualmente limites para o déficit primário da União.
Um exemplo da atuação irresponsável do governo Bolsonaro desde antes da pandemia é a diminuição de um dos maiores programas de transferência de renda do mundo. Com efeito, apesar do empobrecimento crescente, em 2019, segundo o IBGE,3 13,5% dos domicílios recebiam dinheiro do Programa Bolsa Família. Essa proporção era de 15,9% em 2012. Outro exemplo significativo foram os ataques às políticas socioambientais, que levaram até mesmo o setor empresarial brasileiro a enviar carta ao vice-presidente da República, atual presidente do Conselho Nacional da Amazônia, pedindo que o governo adotasse ações para superar a crise ambiental.
O subfinanciamento das políticas universais de saúde e educação
Recente análise realizada pelo Inesc e publicada no relatório “Brasil com Baixa Imunidade – Balanço do Orçamento Geral da União em 2019” revela que grande parte das políticas sociais e ambientais vem sofrendo cortes sistemáticos de recursos desde o início da austeridade, ampliada no último ano.
No caso da educação, o estudo mostrou que, em 2019, o que foi efetivamente pago é da ordem de R$ 20 bilhões a menos que em 2014, em termos reais. Isso acontece num país que apresenta indicadores educacionais sofríveis, haja vista os dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Educação) demonstrando que nada menos que 51% da população acima de 25 anos não completou a educação básica.
A área da saúde, por seu turno, vem sendo afetada por crônico subfinanciamento. O orçamento de 2019, de R$ 127,8 bilhões em termos reais, é semelhante ao de 2014, mas com 7 milhões a mais de pessoas para serem atendidas.
O acirramento do racismo e machismo estruturais
Os povos indígenas têm sido um dos principais alvos do governo Bolsonaro. Ainda segundo o estudo do Inesc, a Fundação Nacional do Índio (Funai) perdeu 27% dos recursos correntes entre 2012 e 2019. Também a Saúde Indígena sofreu cortes: foram menos 5% no valor autorizado e 16% nos valores pagos entre 2018 e 2019, além da fragilização da participação social.
Outra terrível expressão do racismo institucional é o massacre da juventude negra. Os dados mais recentes do Atlas da Violência (Ipea e Fórum Brasileiro de Segurança Pública) evidenciam que, em 2017, 36 mil jovens negros foram assassinados, um recorde nos últimos dez anos. Apesar dessas inaceitáveis desigualdades, em 2019 o governo Bolsonaro praticamente acabou com o Programa de Enfrentamento ao Racismo e Promoção da Igualdade Racial – política que já contou com recursos da ordem de R$ 80 milhões em 2014 e, no ano passado, gastou apenas R$ 15 milhões, cinco vezes menos.
Ignorando um aumento de 7,3% no número de casos de feminicídio em comparação com 2018, o governo Bolsonaro não gastou nenhum recurso em 2019 para a construção das Casas da Mulher Brasileira, que atendem mulheres em situação de violência – considerando que havia R$ 20 milhões disponíveis para essa atividade.
Crianças e adolescentes também não são poupados da sanha destruidora do governo Bolsonaro. Como mostrou o estudo do Inesc, em 2019 os gastos do Programa de Promoção, Proteção e Defesa dos Direitos Humanos da Criança e do Adolescente caíram 27% em termos reais em comparação com o ano anterior.
O desmonte da área ambiental
Na área ambiental, o desmonte da política foi ganhando contornos mais explícitos com o governo Bolsonaro. Foram dezenas de medidas, em sua maioria de cunho infralegal, por meio de portarias, decretos e instruções normativas, as quais resultaram na redução das ações de fiscalização do desmatamento na Amazônia, entre outras. Esse desmonte das estruturas institucionais foi acompanhado de mudanças no quadro de pessoal, com nomeações, em todos os escalões, de militares. A militarização da política ambiental, sobretudo da Amazônia, é um fenômeno que caracteriza o atual governo. (Continua)
II - Por que é possível falar em política genocida no Brasil de 2020?
O governo segue, em meio à pandemia, não apenas editando regras que concretamente pioram a vida das pessoas, impedindo-as, em alguns casos, de continuar vivendo, como também deliberadamente deixando de aplicar recursos de que dispõe, no combate à pandemia
por Valdete Souto Severo
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Desde que a COVID-19 chegou ao Brasil, em 26 de fevereiro de 2020, mais de 2 milhões de pessoas foram infectadas e mais de 80.000 pessoas morreram. A média, há cerca de duas semanas, tem sido de mais de 1.000 mortes por dia. De acordo com a UFPEL, a subnotificação e a ausência de testagem faz com que esse número, em realidade, seja pelo menos 7 vezes maior. Não se trata de algo que decorre apenas das características da doença. É o resultado de uma escolha política, que se revela não apenas pelo avanço de legislações que retiram direitos sociais, mas sobretudo pela deliberada atuação do governo em negar à população brasileira informações adequadas sobre a doença, equipamentos de proteção contra o contágio, medidas que viabilizem o isolamento ou o tratamento.
Ao contrário, a insistência em incentivar o uso de medicamento não recomendado pela OMS (cloroquina), as reiteradas manifestações minimizando a gravidade da doença e a postura de seguir participando de eventos, falando em público sem o uso de máscara ou do distanciamento adequado, são exemplos de condutas que incentivam o contágio, o adoecimento e a morte. Enquanto quem ocupa o cargo de Presidente adota essa postura, outros sujeitos que estão em posição de poder também atuam fortemente para aprovar regras que majoram jornada, reduzem salário, retiram direitos, atingem populações originárias, destroem o ambiente. Regras propostas pelo Executivo, chanceladas pelo Parlamento e ratificadas pela cúpula do Poder Judiciário.
E se ainda há dúvida sobre a possibilidade de qualificar a atual política como genocida, basta saber que o Ministério da Saúde, que não tem ministro e está sendo gerido por um militar, gastou menos de um terço dos R$ 39,3 bilhões liberados para o combate ao coronavírus por meio de medidas provisórias. O general Eduardo Pazuello admitiu isso em uma audiência pública da comissão mista criada para acompanhar as ações do governo federal no enfrentamento à COVID-19, no final de junho. Segundo ele, foram gastos R$ 10,9 bilhões (27,2% do valor disponibilizado). Em relação à MP 969/2020, por exemplo, que autoriza a liberação de R$ 10 bilhões para Estados e Municípios adotarem medidas de enfrentamento da pandemia, nenhum único real foi gasto. Segundo reportagem na página do Senado, perguntado sobre isso, o general afirma “O percentual de saldo que temos considero que está bom. É bom que tenha algum saldo para que a gente possa manobrar”2.
Eis porque é possível falar de uma política genocida no Brasil hoje. O governo segue, em meio à pandemia, não apenas editando regras que concretamente pioram a vida das pessoas, impedindo-as, em alguns casos, de continuar vivendo, como também deliberadamente deixando de aplicar recursos de que dispõe, no combate à pandemia.
Reconhecer o genocídio que está sendo praticado contra a população brasileira é o primeiro passo para combatê-lo. O passo seguinte é reconhecer que o que tínhamos já não era suficiente e, de algum modo, nos conduziu até aqui ou, ao menos, não foi suficientemente forte para evitar o desmanche. Mais do que reconhecer o caráter genocida da política que vem sendo aplicada no país, é preciso propor mudança.
Uma mudança profunda, estrutural, que inicie pela radicalização da efetividade dos direitos sociais, pela edição de leis que taxem as fortunas, dividam as terras e orientem a produção para necessidades reais, e não artificiais. Para então evoluir para uma alteração mais profunda, em que a lógica da distribuição de bens e riquezas não seja a da acumulação, mas a da divisão igualitária e fraterna.
Parece utópico, mas é real, urgente e necessário, pois o que está em jogo é a possibilidade de seguir vivendo em sociedade.
Mulheres de mais de 50 organizações vão marchar unidas contra os ataques do governo Bolsonaro em todo país, neste 8 de março. Oito partidos progressistas e diversas organizações sindicais, populares, sociais e civis, estarão unidas para enfrentar o projeto ultraneoliberal em vigor no país. Para expressar essa unidade, elas lançaram uma convocatória unificada em defesa das vida das mulheres e dos direitos sociais e trabalhistas.
Mulheres do PT, PCdoB, PSOL, PSTU, PCR, PCB, PDT e PSB assinam o documento ao lado de companheiras de organizações como a CUT, CSP-Conluntas, Intersindical, MST, MTST, MNU, MMM, MML, UBM, UNE, UBES, UJS, UJR, DEFEMDE e ABLGT, entre outros movimentos, organizações como UJR, RUA, UP, Afronte!, ABL, ANPG, ANTRA, Artjovem LGBT.
Na abertura do diálogo em relação ao feminismo e religião, destaque para Católicas Pelo Direito de Decidir e Evangélicas Pela Igualdade de Gênero, que fazem parte da marcha unificada e estarão unidas contra a violência e os ataques do governo Bolsonaro.
Também estão presentes os coletivos Círculo Palmarino, Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro, Coletivo Juntas, Coletivo Negro Minervino Oliveira, Coletivo Para Todas e organizações como CONTAG, Feministas Anticapitalistas, Instituto Plurais, Juventude Rebeldia, MAMA, MMN de São Paulo, Movimento de Mulheres Olga Benário, MCONEN, MLB, Rede Afro LGBT, Rede Emancipa de Cursinhos Populares, Resistência Feminista, União de Mulheres do Município de São Paulo e Unidade Classista.
Todas às ruas no dia 8 de março: Contra o governo Bolsonaro e pela vida das mulheres
Em 2018, milhões de mulheres ocuparam as ruas do Brasil para dizer de forma sonora que o projeto político ultraneoliberal e conservador apresentado por Bolsonaro não nos representa e ameaça nossas vidas e nossa liberdade. O movimento #EleNão reuniu mulheres trabalhadoras, do campo e cidade, das florestas, das águas, negras, indígenas, bissexuais, travestis, transexuais, lésbicas, com deficiência, brancas e amarelas que estiveram nas ruas do país contra a rede de Fake News organizada para distribuir mentiras durante o processo eleitoral.
Neste ano, o movimento de mulheres vai às ruas pedir o fim deste governo e lutar contra os desmandos e desmontes praticados por Bolsonaro. Não admitimos as tentativas autoritárias do presidente e seus apoiadores de acabar com as condições democráticas no nosso país.
Por esse motivo, convidamos as mulheres de todas as organizações, coletivos, partidos políticos e movimentos feministas e sociais do país, bem como todas as ativistas independentes, para marcharmos juntas neste 8 de março em defesa da democracia e dos nossos direitos, pela nossa liberdade, pela vida das mulheres e contra este governo conservador, reacionário, racista, machista, xenófobo e LGBTfóbico e que já declarou inúmeras vezes que tem o movimento de mulheres organizado como seu inimigo.
Estamos de pé na defesa dos avanços dos direitos conquistados pela classe trabalhadora que vêm sendo retirados. Vamos lutar contra a violência e o corte de verbas promovidos pelo governo Bolsonaro aos programas sociais, que fragilizam e colocam em risco a vida das pessoas mais pobres. Caminharemos juntas contra todas as formas de violência, pelo direito à diversidade, à autonomia, à liberdade, pelo direito e soberania de nossos corpos, pelo direito de existir.
Somos contra a reforma trabalhista, a reforma da previdência, a Emenda Constitucional 95 que congelou os investimentos públicos por vinte anos e contra a “nova” proposta de reforma administrativa desse governo. Defendemos uma aposentadoria digna, o direito às políticas sociais, políticas públicas que defendam nossas vidas e o direito de viver com dignidade, pois somos nós que sustentamos a maioria das famílias neste país.
Marchamos contra a opressão histórica que silencia mulheres de diversas formas e contra o machismo, o racismo, a lesbofobia e a transfobia que nos mata todos os dias.
Denunciamos o genocídio e o encarceramento em massa da população negra e indígena. Estamos nas ruas pela vida de TODAS as mulheres, brasileiras e imigrantes
Em cada estado do país iremos ressoar a luta por demarcação de terras indígenas e quilombolas, denunciando os desastres ambientais que vimos se espalhar pelo país, em especial na Amazônia, Brumadinho e no Nordeste.
Nossas vozes também ecoarão alto em defesa da Petrobrás, em solidariedade à greve dos Petroleiros e pela garantia da soberania nacional, ameaçada diariamente pela obsessão de Bolsonaro em entregar nossas riquezas e patrimônios para os interesses estrangeiros.
Ocuparemos as ruas em defesa do Estado laico e pelo respeito a todas as religiões e aos que não tem nenhuma, por uma convivência harmoniosa e respeitosa. Lutaremos pelo direito à pluralidade de vozes, em defesa de todas as formas de organização da classe trabalhadora e da sociedade civil.
Nós não esquecemos que, há dois anos, foi executada Marielle Franco, parlamentar mulher, negra, favelada, que amava mulheres e era de esquerda. Marielle foi assassinada pelo projeto político que representava em seu próprio corpo e até hoje não temos respostas. Exigimos justiça para Marielle e punição aos mandantes de seu assassinato.
Atentas, mobilizadas e organizadas para defender o Brasil e o nosso povo, neste mês de março mostraremos toda a nossa força. Convidamos todas a se somarem aos atos convocados em todos os estados do país neste dia 8 de março, Dia Internacional de Luta da Mulher Trabalhadora. Também nos incorporamos ao chamado dos atos que acontecerão no dia 14 de março, data que marca dois anos da execução da vereadora Marielle Franco, e ao dia 18 de março, quando iremos às ruas em defesa dos serviços públicos de qualidade.
Assinam essa convocação: Ação da Mulher Trabalhista – PDT PCdoB PCB PCR PSOL PSTU Secretaria Nacional de Mulheres do PT Secretaria Nacional de Mulheres do PSB UP – Unidade Popular pelo Socialismo Afronte! ABGLT – Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transsexuais e Intersexos ABL – Articulação Brasileira de Lésbicas ANPG – Associação Nacional de Pós-Graduandos ANTRA – Associação Nacional de Travestis e Transsexuais Artjovem LGBT Católicas pelo Direito de Decidir CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura Círculo Palmarino Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro Coletivo Juntas Coletivo Negro Minervino Oliveira Coletivo Para Todas CSP-Conlutas CUT – Central Única dos Trabalhadores EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero Feministas Anticapitalistas Intersindical Instituto Plural
Juventude Rebeldia MAMA – Movimento de Mulheres da Amazônia Marcha das Mulheres Negras de São Paulo Marcha Mundial das Mulheres Movimento de Mulheres Olga Benário Movimento Mulheres em Luta MCONEN – Mulheres da Coordenação Nacional de Entidades Negras MLB – Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas MNU – Movimento Negro Unificado MST – Movimento dos Trabalhadores Sem Terra MTST – Movimento dos Trabalhadores Sem Teto Rede Afro LGBT Rede Emancipa de Cursinhos Populares Rede Feminista de Juristas – DEFEMDE Resistência Feminista RUA – Juventude Anticapitalista UBM – União Brasileira de Mulheres UBES – União Brasileira de Estudantes Secundaristas UNE – União Nacional dos Estudantes UJR – União da Juventude Rebelião UJS – União da Juventude Socialista União de Mulheres do Município de São Paulo Unidade Classista
Minha filha mais velha, quando menina, ganhou um quadro de palhaço, pendurado na parede oposta cabeceira da cama.
Embora feito com carinho pela avó, pintora amadora, o quadro não a divertia, assustava, sobretudo quando vinha a noite.
A noite econômica está caindo sobre o Brasil, embora os comentaristas econômicos prefiram ficar em cima do muro dizendo que a mais brutal paralisia da economia produtiva mundial seja apenas uma “incerteza”.
Não é e, ao contrário da de 2008, não se move do mundo das finanças para a economia real, mas em sentido inverso.
Hoje, os maiores pesos-pesados do dinheiro no Brasil vão se reunir com Jair Bolsonaro na Fiesp.
Nenhum deles perguntará “o que é PIB”?.
Não, como crianças ranhentas, chorando pitangas com seus bilhões, não é pedir mais “balas”: privatizações, queda dos juros, menos impostos, mais cortes e sacrifícios para o pessoal que não está no circo, mas está na lona.
Sabem que estão com um idiota imprestável: muito útil para iludir o público mas que nenhum deles colocaria a gerir a sua menor filial.
Parece incrível, mas só depois de mais de três décadas comecei a entender o medo de minha filha.
O palhaço pode ser uma máscara de idiotia para esconder um monstro.
A noite começou a cair e, como costuma acontecer, toda a gente só vai só vai perceber quando estiver bem escuro.
Nenhum vento ajuda quem não sabe a que porto quer chegar, escreveu Sêneca, dramaturgo e filósofo estoico, há dois mil anos. A semana do Carnaval, que vai chegando ao fim, foi marcada por dois fatos de enorme profundidade e repercussão – e por um factoide banal e recorrente. O coronavírus espalhou-se pelo mundo, com grandes eclosões na Coreia do Sul, Irã e Itália, e um rastro de novos casos em dezenas de países – inclusive o Brasil, onde já há 300 suspeitas de contaminação. Em sua garupa, um tremor está sacudindo os mercados financeiros do planeta. As bolsas de valores registram quedas expressivas e seguidas (com grande impacto na de São Paulo). Cresce o risco de uma crise prolongada, capaz de se espraiar pelas cadeias produtivas e atingir os bancos. Os dois acontecimentos expõem, cada um a seu modo, a desordem global provocada pelo capitalismo em sua etapa financeirizada – e em especial os descaminhos do Brasil, em meio ao caos. Abre-se, portanto, enorme espaço para iniciativas, pedagogia e mobilização política. Mas a ficha não caiu. Bastou um tuíte patife, de um presidente parvo, e a oposição se desviou daquilo que importa e lhe daria força, para se perder, mais uma vez, na agenda do adversário. Há tempo para corrigir o rumo – mas haverá sagacidade e ânimo?
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Os vírus não têm, é claro, significação política – mas as epidemias provocadas por eles, sim. A atual torna claro o desastre de uma globalização sem instituições democráticas e sem políticas públicas. Diante de uma possível pandemia, faltam coordenação internacional, órgãos responsáveis, recursos, notou o New York Timesno início da semana. A Organização Mundial da Saúde, agência do ONU dedicada ao tema, tenta virar-se com o risível orçamento anual de 2,2 bilhões de dólares – 545 vezes menos que o aumento de riqueza dos quinhentos maiores bilionários do planeta em 2019. A ausência de ação internacional será sentida na falta de medidas para conter a propagação do vírus pelo mundo, e nas consequências possivelmente trágicas, em países populosos e empobrecidos. Pense em Bangladesh, na Indonésia ou no Haiti.
Mas o coronavírus deixa a descoberto, em especial, as políticas neoliberais de desmonte dos serviços públicos e os governos que aderem a elas. O Brasil, onde Temer e Bolsonaro congelaram o gasto social e mantêm o SUS sob constante ameaça, é um caso clássico. As características particulares da doença exigem sistemas de saúde sólidos e equipados, e Estados capazes de investir com presteza e coordenar políticas. A letalidade é moderada (em torno de 2%); mas a facilidade do contágio é notável; e a necessidade de hospitalização, intensa. O exemplo chinês revela que, nas localidades atingidas, entre 25% e 70% da população pode ser contaminada, quando não há medidas rigorosas de controle. Cerca de 15% dos atingidos necessitam internação; e 5%, cuidados intensivos. Basta fazer as contas, considerando a população de sua cidade, para constatar a gravidade da ameaça.
Enfrentá-la exige, em particular, três componentes: uma rede hospitalar robusta; medidas de prevenção e isolamento; capacidade de adotar vastas ações emergenciais, como o suspensão das aulas e espetáculos e, muitas vezes, a paralisação de quase todas as atividades produtivas. Reveja a China, onde o coronavírus parece agora regredir. Lá, uma região com 89 milhões de habitantes foi isolada, dois hospitais com mil leitos erguidos em dez dias, toda a população convidada a permanecer em suas casas. Repare também no hotel Costa Adeje, nas Ilhas Canárias (Espanha), onde a identificação de um único caso levou as autoridades a manter em quarentena estrita 723 hóspedes, autorizados a sair de seus quartos, usando máscaras, apenas para breves refeições.
Nada no Brasil sugere um esforço semelhante. As autoridades tentam sustentar, com auxílio da mídia, um discurso de falsa tranquilidade – que bloqueia a conscientização e mobilização necessárias. Faltam máscaras e imunoglobina e arrasta-se o processo para adquiri-las no exterior. Os hospitais carecem de aparelhos de ventilação, um equipamento crucial contra a doença. O ministro da Saúde faz declarações estapafúrdias, dizendo esperar que o vírus “tenha comportamento” como na China – sem fazer referência alguma às medidas lá adotadas e aqui ausentes.
De um governo que se empenha em devastar os serviços públicos e que nega a própria Ciência, que se poderá esperar? A mobilização terá de surgir de fora. Mas ela permite, em contrapartida, evidenciar a necessidade de novos rumos. O Brasil constituiu, ao longo de décadas, vasta experiência e conhecimento em Saúde Pública. Ele está expresso, em especial, em centenas de pesquisadores extremamente qualificados, politizados, defensores do SUS, hoje distantes dos órgãos de governo. Não seria difícil mobilizá-los, construir com eles um conjunto claro de respostas à nova emergência, apresentá-las à população, cotejá-las com a paralisia oficial. Combinar denúncia com proposição de alto nível. Informar e mobilizar – inclusive nas ruas.
Abriria o elenco de propostas, certamente, a revogação da Emenda Constitucional 95, que congelou o gasto social por vinte anos. Foi uma decisão central do governo instalado após o golpe de 2016. O ambiente político da época tornou difícil questioná-la. Agora, abre-se uma brecha inédita: a Saúde da população está em risco; todos os esforços para protegê-la são necessários; não é possível aceitar que recursos públicos existentes sejam desviados para a especulação financeira. Em torno de pontos
As crises sempre geram oportunidade. Mas aproveitá-las exige enxergar e agir.
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À medida em que a semana evoluía, ergueu-se uma segunda crise global, agora estampada com todas as letras nas manchetes da mídia internacional relevante. Os mercados financeiros estão em pânico. As perdas nas principais bolsas de valores aproximam-se dos 15% e já se comparam às dos dias críticos de 2008. Mais: a própria economia será duramente atingida, com risco de falências e demissões em massa. Não está afastada a hipótese de um contágio dos bancos, o que multiplicaria a potência dos desastres. O Brasil, onde a reprimarização da economia vem de longe – mas acentuou-se nos últimos anos – está especialmente fragilizado. Também aqui, vai se abrir um enorme terreno de disputa política.
O coronavírus serviu apenas de estopim. Ele interrompeu parcialmente as cadeias produtivas de certas indústrias – a automobilística, que usa componentes produzidos em diversos países, é o caso típico. Também pode afetar gravemente serviços como aviação e turismo e, nas localidades fortemente atingidas, a atividade comercial. Mas o que se viu nos últimos dias tem raízes muito mais profundas e revela como o capitalismo financeirizado é tão devastador quanto frágil.
A revista Economist explica. As quedas das bolsas de valores foram provocadas, e devem se propagar, principalmente devido a movimentos especulativos. Enormes fundos globais, que fazem aplicações visando o lucro financeiro sem investimento real, ficaram em situação de desequilíbrio, após sofrer com desvalorização das primeiras ações afetadas. Isso os obrigou a se desfazer de parte dos papéis; mas o porte destas vendas gerou novas ondas de instabilidade, numa reação em cadeia que ainda não foi interrompida.
Começou, então, uma corrida por ativos seguros, em que os grandes fundos tendem a tirar dinheiro de aplicações consideradas de risco. É o caso dos papéis que expressam empréstimos corporativos. Parte das empresas – mesmo as que têm condições de captar recursos nos mercados financeiros globais – passa a ter dificuldades de rolar suas dívidas, podendo tornar-se inadimplentes. Se o processo não é interrompido, os próprios bancos entram na linha de contágio. E a situação se agrava porque houve, nos últimos anos, novo movimento de desregulamentação financeira. Passados os efeitos mais dramáticos da crise de 2008, foram sendo removidos os limites então impostos operações temerárias, que geram grandes lucros e grandes riscos.
Assim como a crise sanitária, o vendaval financeiro e econômico abre imensa janela – tanto para denunciar as políticas em curso quanto para propor sua reversão em massa. O Brasil sofrerá forte impacto, porque em crises globais as vendas e os preços das commodities agrícolas e minerais são os mais expostos (veja, no gráfico abaixo, a imagem da reprimarização de nossas exportações). Mas o debate central será sobre o que fazer. A receita neoliberal costumeira é dupla: obrigar a maioria a apertar os cintos; salvar os ricos.
Nada obriga a seguir este script vulgar. O caso norte-americano é o mais eloquente. Bernie Sanders cresceu nas últimas semanas, e tende a avançar ainda mais, ao expor aos eleitores um projeto oposto. Implica ampliar radicalmente os serviços públicos (em particular, a Saúde gratuita…); defender e alargar os direitos sociais; estabelecer a política de Emprego Digno Garantido; tributar os ricos e as corporações; combater fortemente a desigualdade e, em especial, a especulação financeira.
Seu exemplo demonstra: há imenso espaço para uma esquerda disposta a dialogar com as necessidades concretas da população e, ao mesmo tempo, propor mudanças profundas, de sentido pós-capitalista. A crise, com sua enorme potência para colocar em xeque o que parece normal, multiplicará esta condição. Alguém se dispõe a aproveitá-la?
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Nos últimos dias, ficou clara a tática velhaca de Bolsonaro em relação às manifestações de ultra-direita marcadas para 15 de março. Mais uma vez, são duas caras. Por um lado, ele republicou – mas não assume… – a exortação ao golpe, claramente sugerida pelos organizadores (“Os generais aguardam a ordem do povo”). Por outro, dedica o próprio tempo a chorumelas contra suposta perseguição que diz sofrer por parte da mídia, o Congresso, os governadores, a esquerda – em suas palavras, “os poderosos”. O objetivo é óbvio: alimentar a manifestação, gerando se possível três semanas de polêmica incessante sobre ela. E, em especial, convertê-la no fato mais importante do período, livrando o governo de responder pelas crises que realmente importam e se possível reduzindo-as a fatos secundários.
A suposta “polêmica” com o Congresso, que foi acalentada por uma fala do ministro da Segurança Institucional, general Augusto Heleno, tem como foco as emendas parlamentares impositivas. O Executivo estaria contrariado por ter de empregar parte do Orçamento em despesas que os deputados e senadores criam e o Palácio do Planalto é obrigado a pagar (embora possa protelar). A falsidade da disputa pode ser atestada por dois fatos simples. As emendas impositivas foram instituídas em 2015 com o voto do então deputado Jair Bolsonaro, e ampliadas em 2019 graças ao apoio do PSL, seu partido de então. Além disso, nenhum presidente liberou mais emendas parlamentares do que Jair Bolsonaro. Foram R$ 5,7 bilhões, em 2019 – 3,04 bi apenas na votação da contrarreforma da Previdência. A liberação é uma espécie de antecipação. Se não ocorre, os valores, embora “impositivos”, podem ficar disponíveis apenas ao final do ano ou cair no buraco negro dos “restos a pagar”. O Executivo mantém, portanto, poder de barganha. E nenhum presidente agradou mais os deputados e senadores que este mesmo, agora fingidamente contrariado…
A encenação de uma disputa falsa com o Congresso é uma patifaria calculada, que, além de desviar a atenção das crises, traz duas vantagens adicionais ao presidente. Primeiro, ele inventa para si um “adversário” fictício altamente impopular – e obtém nova chance de manter a máscara de “anti-establishment”, essencial para sua imagem. Segundo, coloca em sinuca a esquerda, seu inimigo real. Para contrapor-se a Bolsonaro, ela será vista pelas maiorias como aliada dos personagens mais associados à corrupção e que mais têm se empenhando em retirar direitos do povo e prestar favores ao grande poder econômico. Vale lembrar que agora, quando timidamente criticam o capitão, Rodrigo Maia e César Alcolumbre, os presidentes da Câmara e do Senado, o acusam de… tumultuar a tramitação das contrarreformas Administrativa e Tributária. Estas mesmas, que devastam ainda mais os serviços públicos e os direitos sociais…
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Três jornadas de lutas poderão se contrapor, nas próximas semanas, ao ato convocado pela ultra-direita para 15/3. Em 8 de março, haverá o Dia Internacional da Mulher. Seis dias depois, a homenagem a Marielle Franco, no segundo aniversário de seu assassinato. Em 18/3, atos em defesa da Educação e dos Serviços Públicos. Qual será o caráter destas manifestações? Que se fará antes e depois delas? Duas hipóteses opostas parecem hoje possíveis.
A primeira é construída em torno do viés reativo e burocratizado que a esquerda institucional assumiu desde a crise do projeto lulista, no governo Dilma – e em particular após o golpe de 2016. Os partidos, e os movimentos que orbitam em torno deles, mantêm o controle. Repete-se a narrativa segundo a qual tudo, inclusive 2013, não passou de uma conspiração das elites. Fala-se para os convertidos. Morde-se a isca infantil lançada por Bolsonaro. Nos atos – marcados pela presença ensurdecedora dos caminhões de som e a estética igualmente autoritária e rivalista dos enormes balões – a tônica será apenas a defesa contra mais um golpe. Os participantes sairão como chegaram, comentando as falas dos oradores centrais e despreparados para o que virá a seguir.
Na segunda hipótese, aflora outra tradição, que também compõe o repertório da esquerda. Retoma-se o gigantesco #elenão, as ondas feministas, as paradas LGBT+, os atos autoconvocados em repúdio ao assassinato de Marielle Franco, as chegadas dos sem-terra, dos sem-teto e dos indígenas ao centro das metrópoles, as marchas em defesa da Educação de maio de 2019. Os partidos estão presentes, mas o protagonismo é compartilhado com a multidão. Emerge a imensidão criativa de cartazes, de corpos pintados, de cantos e danças.
Acima de tudo, assume-se uma pauta que provoca, ao invés de (ou mesmo para) se defender. As marchas referem-se a uma democracia concreta – que implica o direito da sociedade ào Comum – a saúde, a educação, o trabalho, uma vida digna, uma nova relação com a natureza. Defende-se o Congresso contra as investidas autoritárias, mas fala-se também em reinventar a política com novas formas de participação e ação direta. Enfrenta-se o bolsonarismo de fato. Inverte-se a dinâmica atual, forçando-o a responder. Cria-se uma situação em que cada participante encara os atos não como um espetáculo onde se assiste ao discurso de personalidades ilustres – mas como um momento onde se compartilham ideias, para tomar em seguida novas iniciativas. Inclusive, porque a luta contra o fascismo será prolongada e precisará de milhões de ativistas permanentemente capazes de falar, escutar o outro, criar.
A batalha em defesa da democracia e de um país respirável parece cada vez mais imbricada com o que a esquerda brasileira quer ser, no século XXI. Uma repetição improvável? Uma recriação possível? Como disse Bertolt Brecht, há quase um século: “não espere outras respostas, além das suas”…
O presidente quer acabar com todos os 248 fundos públicos infraconstitucionais
por Sérgio Fontenele
E por falar de mais um Carnaval, que acabou de passar, na avenida e vida dos brasileiros, como o momento é de voltar ou tentar voltar à realidade, à rotina do dia-a-dia, o presidente Jair Bolsonaro, enquanto a folia acontecia, continuou, febrilmente, a convocar a manifestação do “F***-se!” para o próximo dia 15 de março. Para quem brincou o carnaval, de forma merecida, e se desligou da casa de horrores em que se transformou o Brasil, o presidente, o governo e o bolsonarismo estão convocando grande ato nacional contra a democracia.
Segundo Bolsonaro, seus filhos, ministros – ou parte deles –, centenas de militares de alta patente, exercendo cargos de alto escalão, no Governo Federal, a manifestação do “F***-se!” visa fechar instituições como o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF), em apoio ao “salvador” da pátria, Jair Bolsonaro. O presidente da República, seu staff mais poderoso e íntimo, inclusive generais de pijama e da ativa, embevecidos com o prestígio, o dinheiro e as altas mordomias do poder, estão incitando seguidores a atacar o País .
O objetivo é, claro, intimidar o Legislativo e o Judiciário, obrigando-os, dessa forma, a compactuar com todos os desejos, delírios e desatinos do desgoverno Bolsonaro, que quer, entre outras barbaridades, acabar com todos os 248 fundos públicos infraconstitucionais, essenciais à sociedade. Isso, sob a cumplicidade criminosa da mídia, que o ataca em editoriais lidos por quase ninguém, em seus decadentes jornalões – Estadão, Folha, O Globo, IstoÉ, etc. –, mas “esconde” da população que o governo quer perpetrar absurdos como esse.
R$ 219 bilhões a menos
E que fundos são esses? O senador Paulo Paim (PT-RS), por exemplo, tem denunciado, chamado para o debate, dedicado quase que diariamente seus pronunciamentos alertando às consequências do iminente desastre, como desdobramento da extinção desses 248 fundos. Os fundos, segundo o parlamentar, totalizam R$ 219 bilhões, valor investido nos mais variados setores, como políticas sociais, seguridade social, educação e segurança pública. Em geral, Paim fala às moscas, para o plenário vazio do Senado Federal.
Seus colegas – a maioria da base que dá sustentação às propostas do ministro da Economia, Paulo Guedes, definitivamente determinado a destruir o País –, não têm tido a coragem de debater, não com os parlamentares de esquerda, mas com quem quer que seja crítico desse tipo de política neoliberal ou ultraliberal. Esses senadores, provavelmente financiados pelo mercado financeiro, dão de ombros, ignoram completamente os apelos para que se faça um debate sobre essa nefasta série de reformas neoliberais que o ministro quer implantar.
E o “F***-se!”, a linguagem oficiosamente adotada pela Presidência da República, para divulgar os atos do 15 de março, tem a finalidade de pressionar o Congresso a aprovar todo o lixo despejado por Guedes, e sua obsessão por fazer tudo o que o mercado espera que o faça. Essas manifestações fascistas, de extrema-direita, que deverão reunir bolsonaristas, no auge de seu fanatismo, têm o condão esperado de atemorizar o Congresso e o Supremo, e submetê-los à submissão de aprovar tudo o que fascismo quer fazer no Brasil.
Jair Bolsonaro entra no segundo ano de governo na condição de estelionatário eleitoral. Já que o carnaval começou, nada mais apropriado do que demonstrar essa verdade no ritmo da passarela. Ele representa ideias econômicas que vieram ao mundo nas décadas de hegemonia do neoliberalismo, e pareciam mortas, que ressurgiram com nova roupagem, agora com outros estribilhos e outras cantilenas.
Ainda candidato, Bolsonaro entrou na marcha de Paulo Guedes prometendo fazer o país voltar a crescer, mas, a julgar pelo zunzunzum da mídia, a evolução tende a chegar à fase da dispersão sem ter passado direito pela fase da concentração.
Com o samba de uma nota só de Guedes — o script de que as “reformas” neoliberais são a salvação da lavoura —, tido por Bolsonaro como o famoso posto de combustível que daria resposta a tudo — o Posto Ipiranga —, a economia do país segue encruada. De acordo com o Banco Central, o crescimento de 0,89 de 2019 segue se repetindo nesse início do ano, com o agravante de que não há nenhum sinal de melhora. Para 2020, o próprio “mercado” já reduziu os prognósticos para um crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), inferior a 2%.
O puxador do samba não consegue dar ritmo ao que prometeu e o presidente, sua segunda voz, já aparece na passarela como o estelionatário que prometeu o que não está entregando. Bolsonaro, ao repetir muitas vezes que não entende de economia e que confia cem por cento em Guedes, deu uma espécie de cheque em branco para o ministro aplicar o seu programa econômico.
Já circulam informações de que se avoluma o contencioso entre Bolsonaro e seu “mago” da economia. É lógico há ainda muita evolução pela frente, mas os sinais de descontentamento transcendem o Palácio do Planalto. Os apupos começam a aparecer em setores empresariais da plateia que apoiou essa aventura, manifestações traduzidas em editoriais dos jornalões e em rodas de entrevistas com especialistas no assunto em veículos de mídia.
As consequências dessa desarmonia entre promessa e realidade são trágicas para o povo. O desemprego em massa se mantém praticamente imóvel, a desindustrialização não dá sinais de reversão, o dólar não para de galopar e o comércio exterior perde fôlego. A alta da moeda norte-americana encarece as importações, o que eleva muitos preços internos (um exemplo são alguns itens de alimentação).
Em nome do sacrossanto “ajuste fiscal”, o patrimônio público vai para a bacia das almas, com as privatizações criminosas, e o orçamento sofre cortes que arrocham investimentos essenciais — como em infraestrutura e em políticas sociais —, inclusive nos estados e municípios. Tudo o que o governo pode lançar mão para a meta de Paulo Guedes de “economizar” R$ 1 trilhão ele não titubeia.
O exemplo mais recente é o confisco do dinheiro do trabalhador com o congelamento da tabela do Imposto de Renda (IR). Esse é outro caso de estelionato eleitoral. Para cumprir a promessa de campanha de não aumentar a carga tributária dos brasileiros, o governo teria de corrigir a tabela em 7,39% — um valor de R$ 13,5 bilhões, de acordo com estudo da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Unafisco).
Além das performances de baixo calão de Bolosonaro, dando espetáculos grotescos de discriminações sociais, ele se revelou um demagogo na encenação de que devolveria a alegria aos brasileiros com o espetáculo da retomada da economia. O cheiro de queimado no “Posto Ipiranga”, tido pelo presidente como infalível, sinaliza a ineficácia do programa ultraliberal e neocolonial. É com esse programa desastroso que Bolsonaro está na passarela.
Uma prática comum da extrema direita consiste em alterar a percepção que temos do verdadeiro e do falso, promovendo o sentimento generalizado de insegurança, confusão em relação aos fatos, medo do futuro, enquanto direitos básicos são retirados.
A angústia que vivemos, espécie de atordoamento, ante o desmoronar de setores como engenharia nacional, petróleo, educação, ciência e tecnologia (Embraer vendida etc.) expressa não apenas a indignação que comungamos frente à canalhice toda, mas o fato de termos voltado ao Estado mínimo.
E brutalmente mínimo: Teto de Gastos, privatizações, mudanças na Previdência, cortes de direitos sociais, concentração brutal da renda, venda do patrimônio público (que pertence aos nossos filhos e netos), ausência de regulação das atividades das corporações internacionais e por aí vai.
Apenas mentiras e dissimulações são capazes de sustentar a política assassina de Temer e, agora, a do pinochetista Paulo Guedes. E como são várias mentiras, propomos pequenas reflexões sobre apenas sete, cada vez mais naturalizadas na fala cotidiana das pessoas.
1 - A eleição de 2018
Muitas dúvidas giram em torno da vitória de Bolsonaro em 2018. Não nos referimos à facada – aliás, parece-nos estranho que Adélio Bispo, no meio daquela multidão de anjinhos, tenha saído com vida após o atentado... –, mas ao uso escancarado da mentira naquela eleição, através da massificação de desinformação, do engodo e da calúnia para milhares de pessoas.
Em junho de 2019, reportagem de Patrícia Campos Mello na Folha, revelava que empresas pró-Bolsonaro desembolsaram até R$ 12 milhões para garantir centenas de milhões de disparos nas redes sociais (em especial o WhatsApp) contra o PT. A questão é que além de pessoas terem sido enganadas com conteúdo veiculado (mamadeira de piroca, kit gay etc...), a proibição do financiamento público de campanha foi burlado por essas empresas que pagaram diretamente os disparos aos fornecedores, sem nada declarar à Justiça Eleitoral. Uma malandragem do poder econômico trapaceando quatro décadas de reconstrução democrática. A mensagem das eleições para a população é clara: não importam os meios para se chegar aos fins. Vale tudo.
2 - A eleição de 2016
Essa eleição suja que vimos ocorrer no país traz a marca de Steve Bannon, o espertalhão todo-poderoso de Trump, estrategista-chefe de seu governo em 2017, envolvido nas trapaças da Cambridge Analytica, reveladas no Guardian e New York Times, envolvendo a compra, análise e segmentação de dados publicados no Facebook por 80 milhões de usuários. Esse mapeamento possibilitou uma estratégia de direcionamento de conteúdo produzido extremamente eficaz. Não é o que explica, naturalmente, mas nos ajuda a compreender fenômenos bizarros como o Brexit na Inglaterra, a vitória de Trump nos Estados Unidos, ambos em 2016.
3 - A recuperação da economia
Enquanto a Globo blinda Paulo Guedes, é cada vez mais evidente a artificialidade da tese sobre a volta da confiança e o retorno dos investimentos nos Brasil. Os números do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI), divulgados em 17.01.2020 e relativos a novembro de 2019, atestam declínio de - 1,2% na indústria, “um dos seus piores resultados, atingindo a maioria dos seus ramos, mostrando também disseminação do ponto de vista geográfico”. Segundo do IBGE, “71% dos parques regionais da indústria ficaram no vermelho, não poupando praticamente nenhum dos principais polos do setor”. A indústria em São Paulo registrou - 2,6% de atividade industrial, queda duas vezes mais intensa que o total do Brasil e seu pior resultado da série. No Rio Grande do Sul a queda foi de - 1,5%; e em MG de - 3,4% (leia mais). Apesar disso, a imprensa vem batendo tambor a Guedes, sem questionar a quem interessa essa política. Algo que os nossos economistas em 2016 já questionavam no livro “Austeridade para quem?” (leia aqui a íntegra).
4 - Guerra contra o Irã
Cavando sua reeleição neste 2020, Donald Trump vem promovendo sua guerra particular no Irã, após o assassinato do general iraniano Qasem Soleimani. Conforme aponta Karen De Young, essa guerra nasce sob a suspeição de 73% dos norte-americanos preocupados com a possibilidade de envolvimento dos EUA em uma guerra de larga escala com o Irã. No Brasil, entretanto, assim que noticiada, a possibilidade de guerra ganhou apoio de Bolsonaro, num primeiro momento, eufórico com a oportunidade de exibir sua subserviência ao Império; depois, o presidente amansou, e ouviu a manifestação de espanto, inclusive de generais, contrários à ação norte-americana no Oriente Médio. Nesta quarta-feira, 29.01, o Governo brasileiro, ignorando as resoluções internacionais, exaltou o plano dos Estados Unidos para a região, afirmando que o plano “contempla as aspirações de palestinos e de israelenses”. Um verdadeiro escárnio.
5 - Briga entre Globo e Bolsonaro
Primeiro ponto a considerarmos nessa briga: a Rede Globo não age motivada por empatias ou antipatias, mas sob profundo espírito de classe, buscando assegurar privilégios e as negociações de sempre. Além disso, seu DNA nunca foi democrático. A Globo é autoritária e nunca respeitou a democracia neste país. Segundo ponto: não podemos dissociar (como eles querem que façamos) o autoritarismo do atual governo da agenda econômica, uma das mais violentas desde a redemocratização, chancelada pela Globo e pelas mídias responsáveis pelo golpe em 2016. Basta ligar a televisão, dia após dia, a imprensa brasileira enfia goela abaixo da população, tão marcada por carências básicas, a dramática redução de direitos afirmando que isso é o certo, o único caminho, a saída depois do descalabro dos governos petistas. Quer violência maior do que tirar a aposentadoria das pessoas, obrigando-as a trabalhar até os 70 anos de idade? Confinar a população a salários não corrigidos pela inflação e sem direitos trabalhistas? Qualquer imprensa que se nomeie imprensa sabe muito bem como é sólido o casamento entre esses veículos de comunicação e o autoritarismo. Enquanto servir, Bolsonaro está no páreo. Simples assim.
6 - Normalidade do Judiciário
Acompanhamos estarrecidos desde 2005, para nos situarmos apenas neste século, a contínua perseguição promovida por setores do Judiciário contra os governos do PT e suas principais lideranças. Perseguição que culminou no golpe de 2016, com participação central do sistema de Justiça do Brasil – seja pela omissão (em vários momentos o STF lavou as mãos, simplesmente), seja pela perseguição propriamente dita, com todo seu aparato ideológico garantindo os abusos que vimos e denunciamos. Ao mesmo tempo, essa mesma Justiça, movida pelo racismo institucionalizado quando não mata, condena milhares de jovens, contribuindo com verdadeira chacina da juventude negra das periferias. E estamos dando dois exemplos, poderíamos elencar vários outros, que revelam o quanto o nosso Judiciário, apesar da Constituição de 1988, vem garantindo a exploração do pobre pelo rico, do negro pelo branco, da mulher pelo homem.
7 - Vivemos numa democracia
Por fim, a mentira de que vivemos em normalidade democrática. E darei aqui apenas um exemplo, porque jamais poderá ser democrático um país que impede a ascensão de sua juventude à universidade pública, como estamos vendo, estarrecidos, na tentativa de desmonte do ENEM, SISU, Prouni... Além de antidemocrático é desumano impedir a ascensão do povo ao que lhe é de direito: a educação superior. E não tenhamos dúvidas, isso é parte de um projeto de privatização massiva no país – envolvendo setores cruciais como Educação, Saúde, Segurança Pública - e que jamais poderia ser verbalizado, porque se fosse, fora os malucos de plantão, ninguém teria votado em Jair Bolsonaro e no seu séquito de ministros assassinos de futuros, de sonhos, de oportunidades. E ainda se dizem defensores da família brasileira.
É muita hipocrisia. Cabe a cada um de nós desmascará-la.
Trata-se de farsa ideológica e ética a grande imprensa brasileira tentar apresentar-se como isenta e independente face ao governo Bolsonaro, quando, de fato, o apoia, como apoiou o golpe de 1964 e a era Campos-Bulhões-Delfim, como apoia todo governo de força que promova o império do capital, efetivo condutor de seus movimentos.
E é este, exatamente, o regime de nossos dias, a aliança antipopular neoliberal e ao mesmo tempo autoritária que assegura a absoluta liberdade do mercado e impõe restrições aos direitos civis, às liberdades e aos interesses dos trabalhadores. Nesse regime, que ajudou a implantar (desde a preparação do impeachment), o papel da grande mídia é o de legitimar, junto às grandes massas, dos interesses da classes dominante, promovendo a sistemática distorção da realidade, a construção do falso como substituto do real.
Critica em editoriais os excessos autoritários do capitão, no mesmo tom em que se dedica à defesa da “pauta Guedes” e entoa odes e loas ao ex-juiz feito ministro como recompensa aos seus deslizes na Lava Jato, buscando passar para a população a falsa imagem de que estamos diante de entidades distintas, e não de duas faces da mesma moeda. Repete e amplia essa falsa percepção como se reproduzisse a realidade. Ora, esses personagens, e seus projetos, são inseparáveis e interdependentes como vasos comunicantes.
A “pauta Guedes” – nota promissória que caucionou o apoio do mercado à candidatura do capitão – foi levada ao governo pelo atual presidente, e é um dos esteios de sustentação do bolsonarismo junto ao grande capital, e, para operar, de mãos e pés livres como agora, depende do projeto autoritário militar-civil em plena consolidação. Pois só um Estado autoritário pode levar até às últimas consequências uma pauta econômica neoliberal em país de economia estagnada, crivada por uma patológica desigualdade social e algo como 13 milhões de desempregados, epidemia que, segundo a FGV, mais atinge os jovens de 19 a 29 anos, principalmente os jovens mais pobres.
Os jornalões, que aqui e acolá fazem restrições, justas, ao capitão e sua caterva são os mesmos que, em suas páginas de fundo e nos textos de seus principais articulistas, exalta o ex-juiz, como se pudessem ser medidas as diferenças entre essas duas espécimes de autoritarismo caboclo. Pensará essa gente que o juiz das falcatruas da Lava Jato é menos próximo do fascismo do que seu chefe de hoje?
De manipulação em manipulação, a chamada grande imprensa (gráfica e tecnológica) faz o jogo da direita e da extrema-direita, pois, para nossa atrasada classe dominante, são válidos todos os expedientes quando se trata de afastar as forças progressistas de qualquer expectativa de poder, mesmo quando a alternativa poupada seja o autoritarismo, com o qual, aliás, em todo o mundo e em todos os tempos, o capital sempre dialogou muito bem, servindo e servindo-se.
O mesmo jornalismo que se abespinha com os excessos canhestros da súcia governante – acima de tudo porque não contribuem para a coesão em torno do chefe – canta os “avanços” da economia brasileira, a pílula dourada com a qual tenta vender à população um país que só existe nos contos de carochinha. Mente para sustentar o bolsonarismo.
No regime do ajuste fiscal – um dos pleitos do golpe de Estado parlamentar que derrubou Dilma Rousseff –, a dívida pública federal sobe 9,5% e vai a R$ 9 trilhões. O crescimento do PIB continua medíocre e a renda per capita dos brasileiros permanece estagnada, quando a taxa de crescimento demográfico cai a níveis de países europeus desenvolvidos. No período 2010-2019 o PIB marcou sua pior taxa em 12 décadas, mesmo considerando a previsão otimista de crescimento de 1,7% do Boletim Focus do Banco Central para 2010. O PIB do quarto trimestre de 2010 cresceu apenas 1,0%.
As contas externas têm hoje um rombo de US$ 50,7 bi, o pior resultado desde 2015. A crise econômica internacional, a crise geral do comércio e a desaceleração da China (embora ainda seja a economia que mais cresce no mundo, a previsão de aumento do PIB para 2019 é de 6,1%, a menor taxa em 29 anos), nosso principal parceiro comercial, fazem antever a continuidade da queda das vendas externas e, ao mesmo tempo, se o país não tiver sua crise interna agravada, a expectativa é de aumento das importações de matérias-primas, insumos e bens de consumo final.
A dívida externa bruta saltou de US$ 320,61 bi, em 2018, para US$ 323,59 bi em 2019, e o quadro só não é mais grave porque o governo está deitado no colchão de US$ 356,9 bilhões acumulados como reservas internacionais a partir dos governos Lula. No entanto, a “confiança do empresário é a maior desde 2010”, disse o jornal Valor Econômico em 24 de janeiro de 2020.
Esse empresário não tomou conhecimento da queda das vendas do varejo, que se deu apesar das campanhas de liquidação de Natal e fim de ano e da Black Friday. O mais de grave de tudo é que esse empresário ignora a queda da produção industrial (-1,2%). Depois da estagnação, começamos a andar para trás.
Entre 2015 e 2018 o Brasil perdeu 17 fábricas por dia. Em 2019, sob o reinado da “pauta Guedes” que encanta nossa imprensa, a produção da indústria de transformação operou 18,4% abaixo do pico de março de 2014 (dados da Pesquisa Industrial Mensal – Produção Física do IBGE). Cada ponto percentual de queda representa o fechamento de 5,9 mil unidades produtivas.
Ao todo, 25.376 unidades industriais encerraram suas atividades, diz levantamento da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC). As instituições patronais não apuram ou não informam o número de desempregados. mas os dados do ICT-DIEESE do terceiro trimestre de 2019 comprovam a degradação do trabalho, principal consequência da ocupação precária.
“O índice registrado em 2019 foi o menor do ICT-DIEESE para todos os terceiros trimestres desde o início da série histórica. A economia brasileira tem apresentado baixo crescimento (em torno de 1%, anualizado), abrindo postos de trabalho em ritmo lento e, essencialmente, em condições mais precárias. Com isso, o ICT-DIEESE mantém-se em patamar baixo e sem perspectivas de melhora estrutural, diante do rebaixamento de direitos e da precarização do trabalho”.
Sabe-se que a precariedade das condições de trabalho e o desemprego só tendem a crescer, alimentados pelas reformas antitrabalhistas do governo, pela crise geral do trabalho em face das novas tecnologias, pela desindustrialização, pela desarticulação da engenharia nacional e pela desmontagem das estatais e as demissões em setores industriais estratégicos, como a BR-Distribuidora e a Casa da Moeda, como as subsidiárias da Petrobras vendidas na bacia das almas, e mais adiante o complexo Eletrobras, cobiçado pela especulação.
Qual a resposta da “pauta Guedes”? Desaparelhar o Estado e investir no austericídio. Nenhum plano estratégico de desenvolvimento, que requer, aqui e em qualquer parte do mundo, investimentos públicos e privados (estes puxados por aqueles). Na sua lógica a pauta econômica é fenômeno autônomo, tem vida própria e independente, e não pode se comover com questões sociais. De sua parte, o dito mercado aguarda, ávido, as prometidas privatizações, quando espera fazer grandes negócios. Não tem do que reclamar de seu preposto.
A queda do setor industrial parece sem fim. Apesar de ainda possuir o 9º maior parque industrial do mundo, o Brasil perde relevância no comércio internacional de produtos manufaturados. Em 2018 nossas vendas representaram apenas 0,62% do mercado internacional; caímos da 29ª para 32ª posição no ranking dos maiores exportadores (dados da OMC). O único mercado para nossas manufaturas é o Mercosul, visto de revés pelo “posto Ipiranga”, e nele a Argentina, cujo governo, hostilizado pelo capitão, é nosso principal importador, dando fôlego à indústria automotiva aqui instalada.
A indústria de alta/média tecnologia (veículos e peças automotivas, aviões e remédios) tem o menor peso em 24 anos; retornando aos níveis de 1995 respondeu, em 2019, por 32% das vendas externas da indústria de transformação, a menor participação desde 1995. Essa indústria, porém, é a medida do desenvolvimento nacional pelo seu potencial gerador de emprego e renda e de atração de dólares para a balança comercial. Envolve, como a indústria da construção civil, mais insumos e produtos de outros fabricantes na cadeia de fornecedores, gerando empregos.
De atraso em atraso, vivemos uma nova “revolução dos caranguejos”, andando para trás na ordem política e na ordem econômica. Retornamos aos meados do século passados e voltamos a depender das exportações de matérias-primas, dependente dos preços das commodities. Estima-se já em 10 bilhões de dólares os prejuízos que advirão em consequência do acordo provisório entre Washington e Beijing de que resultará, de imediato, a substituição de commodities brasileiras por equivalentes chinesas.
Quando as políticas públicas de educação, ciência e tecnologia e inovação são cruciais para a retomada da indústria nacional e a recuperação de nossa capacidade industrial exportadora, o governo da Fiesp-Febraban aposta no desmonte da universidade brasileira, do ensino público e da pesquisa.
É importante evitar ilusões em relação aos atritos epidérmicos que se dão no seio da classe dominante: seus agentes se entendem no fundamental: a manutenção do governo dos mais ricos. É preciso mobilizar a maioria da população, desprezada pela pauta Guedes, que hoje assiste como que bestializada à destruição dos seus direitos e o encurtamento do seu horizonte. Mas para isso precisamos de oposição e estratégia.