A crescente falta de solidariedade que resulta de políticas econômicas concentradoras de renda e excludentes é preenchida por valores conservadores, defesa da família tradicional e idealismo punitivo. Tal mecanismo de compensação — identificado em diferentes lugares do mundo desde o desmonte das estruturas de bem-estar do pós-Segunda Guerra — somado, entre outros fatores, à reação contra o avanço de pautas feministas e LGBTQIA , engrossou um movimento que, ao fim e ao cabo, levou à eleição de Jair Bolsonaro à Presidência em 2018.
Esse é, em síntese, o argumento do livro O novo conservadorismo brasileiro: de Reagan a Bolsonaro (Zouk), que lancei em 2019 - amparado em ideias de autores que vieram antes de mim e confirmado por pesquisas posteriores. Resgato esse episódio porque, de pronto, naquele ano, recebi o questionamento: então o PT, em seus governos, não deveria ter adotado políticas nessas áreas?
A sugestão embutida na pergunta foi reiterada em um artigo recente de Thaís Oyama. Comentando a criação de grupo de trabalho que vai tratar de inserir o nome social de pessoas trans no documento de identidade, ela afirma que isso "é tudo o que deseja o bolsonarismo" porque a chamada pauta de costumes seria "um ativo da direita e um fardo para a esquerda".
A fundo, o argumento da jornalista implica concluir que, ou se enfrenta o debate desses temas e assim, indiretamente, a direita se fortalece, ou se deve permitir que o campo conservador leve adiante livremente suas agendas, sem contraponto. Significa, portanto, dizer que o conservadorismo é um caminho inexorável, qualquer alternativa que se adote.
É claro que todas as políticas públicas devem passar por diálogos e mediações em sua elaboração. Mas desenvolver ações para efetivar a cidadania de todas as pessoas é um imperativo jurídico e ético. Qual seria o sentido de disputar e ganhar uma eleição se não é possível trabalhar por uma agenda assim elementar?
A tríade ortodoxia econômica, moralismo conservador e punitivismo foi expressa didaticamente nas figuras de Paulo Guedes, Damares Alves e Sérgio Moro. Bolsonaro encarnava todas elas simultaneamente. O conservadorismo moral e o belicismo operam nas fissuras deixadas pelo neoliberalismo, tanto mais amplas quanto mais as décadas desse modelo deixam escombros, ruínas, feridas.
A ideia de guerra cultural, que combate o "globalismo cultural marxista" - termos difundidos no Brasil por Olavo de Carvalho - sintetiza a questão porque reúne os elementos que a direita pretende combater: o iluminismo e suas derivações e as propostas igualitaristas, estereotipadas desde as redes digitais para o imaginário popular como ameaçadoras.
Mas, se é assim, não se enfrenta o bolsonarismo adotando uma política de direita. Ao contrário. É preciso ampliar as medidas distributivas, de igualdade social que ofereçam perspectivas sólidas aos cidadãos - incluindo as de educação e as de emprego - para além de retóricas autoritárias ou esperanças místicas.
Os valores conservadores devem ter espaço na sociedade, mas na esfera privada: não podem ser impostos como políticas públicas. O Estado deve garantir a coexistência de estilos de vida.
A preocupação com a família reside justamente na ideia desse organismo como fonte de provimento geral das necessidades num mundo de insegurança. Quem vai se responsabilizar pelas crianças e pelos idosos? E por isso o governo Lula acertou ao vincular as políticas de família à pasta de desenvolvimento e assistência social, e ao criar uma ampla política de cuidados. E acerta também em escolher como uma das principais batalhas a redução da taxa geral de juros.
Tudo o que deseja o bolsonarismo é que o governo Lula não consiga efetivar a melhoria das condições socioeconômicas. Esse é o verdadeiro substrato último dos pânicos morais que assombram nossa democracia há anos.
As classes dominantes no Brasil são filhas naturais da Casa Grande, conservadoras, reacionárias, preconceituosas, autoritárias, violentas
por Francisco Calmon
As classes dominantes no Brasil são filhas naturais da Casa Grande, conservadoras, reacionárias, preconceituosas, autoritárias, violentas, entreguistas e cruéis.
É produto de um histórico de dominação/exploração e impunidade, desde os tempos da colônia.
Os mais de três séculos de trabalho escravo (foi o último país da América Latina a abolir, no papel, a escravatura), deixaram sequelas intensas na sociedade e marcas ideológicas nas classes dominantes.
Soma-se a esses 388 anos as tentativas de golpes contra a democracia e as ditaduras geradas e teremos como resultado a impunidade como marca nuclear e DNA da nossa história.
O que esperar dessas classes de cinco séculos de impunidade?
O capitalismo tardio, dependente, herdeiro de um feudalismo com características escravocratas, não incorporou a participação popular e nem rompeu por completo com as velhas estruturas sociais, o que explica, em parte, ainda no presente haver relações de trabalho escravistas, como agora os 200 trabalhadores, recrutados na Bahia para a safra da uva no RG. Descobertos por conta da denúncia de três deles que conseguiram fugir.
Uma operação do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), escoltada pela Polícia Federal (PF), libertou 212 trabalhadores que labutavam em condições análogas à escravidão na lavoura de cana-de-açúcar, em Goiás, nesta sexta-feira, 17.
Não são casos isolados, na década 1970/80 o emprego de trabalho escravo numa fazenda da Volks no sul do Pará foi descoberto, denunciado durante a ditadura, nada aconteceu, agora o caso voltou a ser investigado pelo MTE, é outro exemplo entre vários.
Novos ares com a derrota do ex-capitão genocida, vem estimulando as instituições e os movimentos socias a mais investigações, denúncias e processos.
Nos 388 anos de escravidão, os escravos se organizaram em diferentes e criativas formas de luta e resistência, nas fugas e na constituição de quilombos, mas, essa história foi abafada, falsificada. Ainda desconhecida da maioria da população.
O fim oficial da escravidão foi paradoxalmente desumano, pois os libertos de toda ordem se viram sem amparo e sem mercado de trabalho que os acolhessem dignamente.
A compleição de leis e regras do mundo do trabalho foi tardia e autoritária como também a conquista de direitos e de organizações sindicais.
A tutela do Estado nessa construção aparece como de cima para baixo, como dádivas dos governos.
Esperar das classes dominantes do Brasil, compromisso, entusiasmo ou apoio ao governo Lula, não é só por conciliação de classes e pensamento desejoso, mas, outrossim, por ingenuidade teórica ou má fé política de quinta-coluna.
Esperar empatia e bondade dessas classes com os necessitados é crer em Papai Noel.
A burguesa no mundo é cruel e sanguinária.
Quanto melhor for o governo para o povo e para o Brasil, mais engrossarão as críticas e tentativas de desestabilização.
Elas temem o sucesso do Lula e do PT.
Os ministros não têm correspondido em postura e narrativas as de Lula. Felizmente a presidenta do PT faz o contraditório no tom certo e necessário.
Uma das causas e talvez a principal é que muitos deles são pretensos presidenciáveis. O que tem levado Lula a deixar aberta a possiblidade da sua reeleição. Isso segura alguns, mas, estimula a outros do campo à direita.
A mídia golpista procura abrir uma cunha entre os ministros do governo, estereotipando uns e outros, formando imagens de ocasião à luz de seus interesses a serviço, notadamente, do mercado financeiro.
Nesse diapasão vão imprimindo estereótipos de bonzinho, de mauzinho e de feinho, em relação aos seus parâmetros.
Getúlio tentou fazer uma revolução social, levaram-no ao suicídio. Jango tentou, golpearam. Lula e Dilma foram tentando devagarinho, uma foi golpeada e o outro preso.
E Lula só concorreu em 2023 porque não encontraram outro com potencial para derrotar o genocida.
Não foi a súbita lucidez jurídica do STF e nem o arrependimento por terem sido partícipes do golpismo a redenção do Lula, foi por razões políticas.
Mesmo assim, a direita não se engajou na transferência de votos, pelo contrário, arriscaram a eleição, para que o resultado não empoderasse demais o Lula e o PT.
Merval Pereira levantou esse “perigo”, de uma vitória larga, várias vezes, no jornal Globo e na Globo News, sugerindo dosar o apoio.
E a vitória foi por uma diferença estreita de 1.8%, pouco mais de dois milhões de votos.
A semente da discórdia será exatamente o futuro 2026 no presente 2023.
Temo por tantos suplentes no Congresso, substitutos dos ministros convidados para compor o governo.
Congressistas de esquerda experientes estão no governo. Ocorre que o parlamento, as ruas e as redes sociais constituem os palcos principais na marcha da reconstrução da democracia.
Nos governos I e II de Lula o PT foi desfalcado, atrofiou-se, no III é a bancada da esquerda a subtraída.
Se por um lado, os ministros eleitos para o Congresso frustram em parte seus eleitores, que votaram para vê-los no Parlamento, por outro, no governo, são mais fortes no desempenho de suas funções, exatamente pela mesma razão. Enquanto os ministros sem voto necessitam mais do respaldo do Lula.
Com ou sem votos, todos os ministros precisam conhecer a história, para não esquecerem as lições e também dos protagonistas de outrora.
Conversar, sim, fazer acordos quando necessários, sim, ceder quando inevitável, sim, mas tratar adversários ideológicos a pão de ló, nem na curva da encruzilhada da desesperança.
Sem incorporar a participação popular não se rompe com as velhas estruturas sociais. Para isso, as pautas e embates institucionais devem ser também dos movimentos sociais. E cabe aos partidos fornecerem o combustível de agitprop às suas militâncias inseridas nesses movimentos.
Quando dormem e esquecem a hora, os militantes devem despertar as suas lideranças.
A hora é baixar imediatamente os juros!
Quem é favor dos juros baixos? Todos! Quem é favor dos juros altos? O mercado rentista.
A sociedade tem que ser a musculatura dessa empreitada contra os juros exorbitantes e por uma reforma tributária socialmente justa, e os movimentos sociais a sua vanguarda. A frente partidária de esquerda a direção.
E os sindicatos, quando vão despertar da burocracia?
A oportunidade de conjugar luta institucional com a luta social está dada.
E o presidente do Banco Central, bolsonarista desafeto do Lula, carece de escracho da sociedade civil organizada.
Nesse sentido saúdo a CUT que está convocando trabalhadores(as) e lutadoras(os) sociais para se manifestarem no dia 21, terça feira, em frente a cada sede regional do Banco Central, e, onde não houver, em local assemelhado, para exigir #jurosbaixos e #ForaCamposNeto.
Em meio a inúmeros resgates de trabalhadores em situação análoga a escravos, o deputado federal Luiz Philippe de Orleans e Bragança, autointitulado “príncipe do Brasil”, tem colhido assinaturas para aprovar uma Proposta de Emenda a Constituição (PEC) que prevê a extinção do Ministério Público do Trabalho (MPT) e das cortes de Justiça especializadas na área trabalhista. A proposta recolheu 66 assinaturas de parlamentares. A maioria dos apoiadores da proposta é composta por deputados de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, estados onde ocorreram os casos mais recentes de violação dos direitos trabalhistas. Estará o Congresso de acordo com a impunidade do trabalho escravo no País? E mais: O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) admitiu que há grandes possibilidades de que ele seja condenado pelas mentiras contadas durante a reunião com embaixadores em Brasília e fique inelegível após julgamento do caso no Tribunal Superior Eleitoral. E ainda: As investigações sobre os atos golpistas em 8 de Janeiro fecham o cerco. E CPI no DF aprova a convocação do general Augusto Heleno.
Desde a vitória da frente democrática, encabeçada por Lula, eleito presidente pela terceira vez, o Brasil vive uma onda de ataques à democracia que copia o script pós-derrota de Trump. A assessoria de marqueteiros como Steve Bannon deixa clara a ação publicitária, patrocinada por empresários, alguns que têm por princípio, não pagar impostos. Por trás dessa atitude, está a falta de senso de cidadania necessário à democracia.
Um dado interessante a considerar é que, mesmo que toda essa encenação, para a qual são convocadas pessoas autoritárias, conservadoras e muitas com problemas emocionais sérios, mesmo que isso não esteja levando a nada, os publicitários americanos ganham muito dinheiro com a promoção da extrema direita.
Eles têm vendido sua expertise para partidos e grupos extremistas do mundo todo com a função de colocá-los na moda. Os que gostam de reflexões estéticas se perguntam: como fazer algo cafona voltar à moda? Ora, manipulando as massas e, para isso, apelando ao sistema de crenças intimamente ligado ao gozo de alguém. Em sentido psicanalítico o gozo é a profunda satisfação com aquilo no que se acredita. Pode ser na democracia, pode ser no autoritarismo. Pode ser numa mentira. O que importa é o êxtase. Os publicitários sabem manipular o gozo das massas adulando-as e fornecendo o êxtase. Líderes religiosos fazem o mesmo. Religião e política produzem o êxtase necessário à publicidade.
O ridículo político que elegeu tantos em 2018, inclusive Bolsonaro, volta agora. Mesmo derrotadas, as pessoas se entregam ao ridículo e grotesco coletivo, tomadas de um gozo profundo, o gozo do êxtase. Elas se entregam sem questionamento, entram em delírio. Rezar para um muro do quartel, assim como outras atitudes desesperadas, provoca risos. Mas foi esse mesmo jogo cênico que desencadeou o código fascista entre 2016 e 2018.
Que as pessoas tenham perdido a vergonha é um sinal de perda de relação com a verdade. A mesma vergonha que se perde no carnaval permitindo a catarse e a entrega, ocorre nessas manifestações, mas perdendo de vista que aqui não é uma brincadeira. A manipulação das massas vai continuar enquanto a subjetividade livre continuar sequestrada.
Nas últimas semanas pré-eleições presidenciais, o candidato que ocupava a Presidência e pretendia se reeleger constatou que as mulheres não votariam nele. A partir daí, passou a criar uma série de ações, todas elas ilegais, usando recursos públicos para captar o voto das eleitoras. De modo geral, o eleitorado brasileiro tem revelado uma surpreendente divisão: o País se mostra aparentemente cindido entre conservadores e progressistas. Embora essa seja uma visão relativamente superficial, sob ela há uma outra divisão substancial, o eleitorado dividido por gênero. O citado candidato percebeu que os homens o preferiam, enquanto as mulheres votariam na oposição. Por que as ações eleitoreiras como o aumento do Bolsa Família, décimo terceiro para mulheres, auxílio gás entre outras, não cooptaram o voto feminino?
Nas últimas semanas, aquele que queria permanecer no governo pensou que compraria as mulheres transferindo recursos econômicos que elas valorizam como se as mulheres não percebessem que na verdade ele desviava verbas da educação, de livros escolares, dos medicamentos, das creches, da alimentação infantil. Essas supostas benesses eram absolutamente contrárias a tudo o que se observara durante os quatro terríveis anos desse governo marcado por ações machistas, misóginas e racistas: xingava as mulheres, destratava-as, protegia os estupradores, tinha verdadeiro ódio a mulheres que ousavam falar em sua presença.
Se alguém tem dúvida dessa divisão por gênero proponho um exame da foto publicada na imprensa, como naFolha de S. Paulo, no dia 2 de novembro, quando o perdedor não se pejou de deixar o País na agonia por não saber o que aconteceria face às ameaças diárias que ele propalara por quatro anos – que só sairia do governo morto, que era um ungido por deus (o deus dele é claro) e que estava cercado por uma perseguição! Provavelmente esperando que seus apoiadores o carregassem em cortejo montou um pódio no Palácio da Alvorada quando dois homens foram obrigados a carregar nos braços o imóvel com a estrela da Presidência, para mais um ridículo ato tartamudeado. Montado o cenário o País continuou sem saber o que iria acontecer. Esse teatro provocou o esperado estímulo para que as rodovias se enchessem de indivíduos e caminhões num modelo fascista, controlando pela força a circulação de pessoas, obstruindo as estradas, impedindo que circulassem caminhões, ambulâncias, medicamentos, doentes em busca de hospitais e clínicas, alimentos para os mercados. Sim, houve exceções bancadas à força: dois times de futebol romperam as barricadas porque, afinal, o esporte nacional não pode parar.
Mas vamos à cereja do bolo: a foto do dia 31 de outubro. Nela, o citado relutante perdedor montou um cenário cercando-se de seus 30 ministros, todos homens com exceção de uma desconhecida que se veio a saber depois era a chefe do Ministério da Mulher, diligentemente identificada pela socióloga Adriana Gragnani, aliás a desconhecida era a substituta daquela que destruiu o Ministério da Mulher que nós feministas levamos décadas para construir. Mas a foto espelha também com clareza o lado racista desse governo: no fundo, atrás, como sempre atrás do ex-capitão, há um homem negro. O único negro em todo o Ministério. Vale também acrescentar que embora o candidato tivesse apelado para as forças religiosas, o demógrafo José Eustáquio Diniz Alves mostrou que finalmente foram os sem religião que pesaram na balança do voto progressista. Estamos reconstruindo o Brasil democrático e ao escrever esse texto precisamos encontrar os caminhos do respeito e da igualdade de direitos sem esquecer que estivemos à beira do precipício. E viva a Democracia!
Apoiadores fiéis de Bolsonaro chegaram a convocar para este início de semana uma greve geral para pressionar autoridades a revisar o resultado proclamado das urnasAP - Silvia Izquierdo
Por Raquel Miura
Enquanto a equipe do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva trabalha na transição e discute como equacionar o rombo nas contas e desafios urgentes, a exemplo da manutenção do auxílio emergencial de R$ 600 a famílias pobres, do outro lado uma parcela do eleitorado brasileiro insiste num discurso bem fora da realidade, de fraude nas eleições, reivindincando intervenção militar no país.
Analista ouvida pela RFI diz que 20% do eleitorado compraram o discurso de fraudes nas eleições devido à enxurrada de fake news nas redes sociais, mas que as manifestações perdem força pela ausência de políticos eleitos
Apoiadores fiéis de Bolsonaro chegaram a convocar para este início de semana uma greve geral para pressionar autoridades a revisar o resultado proclamado das urnas. A expectativa de adesão não é grande: pelo impacto no bolso dos empresários e porque muitos dos protestos começam perder força.A grande maioria dos bloqueios em rodovias foi desfeita e em várias cidades, como Brasília, a mobilização de domingo (6) em frente aos quartéis reuniu muita gente, mas foi menor do que na semana passada.
"É exatamente por não haver muitas lideranças políticas dispostas a carregar o caixão do Bolsonaro, ou seja, a gente não vê nessas manifestações golpistas a presença de pessoas com mandato, de representantes eleitos. Isso tira o fôlego dessas manifestações. São protestos antidemocráticos que perdem oxigênio por não ter representação no campo político”, afirmou àRFIa cientista política Mayra Goulart, professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e coordenadora da Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro).
“Porém, cabe ressaltar, que essas mobilizações têm, sim, representação no campo social. Temos cerca de 20% da população que foi muito tocada pelos discursos de Jair Bolsonaro e acabaram nutrindo ideias contrárias à própria existência da democracia", completa Goulart.
"Ele lutou muito pelo nosso conservadorismo"
Nem todos os bolsonaristas entoam o coro de golpe militar, rejeitando por completo o papel das instituições democráticas. Mas a própria esquerda sabe que não será fácil demover o negacionismo dos mais fanáticos. ARFIfalou com manifestantes que fizeram mobilização na capital federal este fim de semana.São pessoas de várias classes sociais que não aceitam a vitória de Lula.
“Lula é comunista e não quero isso para meu país. E ele não ganhou as eleições, foi tudo roubado. Olha, na casa da minha amiga o filho de seis anos sentado no sofá e vendo a apuração semana passada questionou como o quadro do Bolsonaro (percentual) só diminuía e o de Lula só aumentava. E falou, ‘mamãe, isso é fraude’. Se um menino de seis anos vê isso, como a gente não vê?”, indagou a aposentada Edivânia Ferreira.
“Eu creio que a saída pode ser a intervenção federal. Porque houve coisa errada. A mídia é contra a gente e o STF apoiou muito a militância do PT”, disse a professora Eulina Barbosa.
“Houve fraudes nas eleições. E por isso estamos aqui. E vamos ficar nessa luta até sair o resultado das eleições. Estamos aguardando esse resultado”, contou o segurança Pedro Moura.
“Bolsonaro é um homem de direita, conservador. Ele lutou muito pelo nosso conservadorismo, os cristãos, a pátria, a família. Isso foi a meta dele. E nunca teve apoio da imprensa. E ficou sem muito espaço de fala nas rádios do Nordeste. Ele não perdeu na urna. E acho que é preciso haver intervenção federal”, concluiu Maria Souza, servidora pública.
“Essa mobilização não pertence mais ao Bolsonaro. É o povo do Brasil que quer saber o resultado da eleição. O Exército já enviou o relatório. A imprensa internacional já mostrou o relatório. Só o TSE que não quer mostrar o relatório das provas de fraudes que houve. E nós vamos ficar até eles mostrarem”, afirmou o pedreiro Luiz Gonzaga.
“Estou aqui porque estou aguardando a auditoria das urnas. Eu não aceito que um ex-presidiário seja o presidente do Brasil”, revoltou-se Elenir Rodrigues, monitora de educação.
“Não podemos deixar o Brasil virar comunista, virar uma Venezuela. Todo mundo sabe que houve fraude. Até pensadores de fora do país estão apontando, como as provas que surgiram na Argentina sobre as eleições no Brasil. Está na cara que roubaram a favor de Lula, só não vê quem não quer”, assegura o servidor Cristiano Silva.
Futuro de Bolsonaro
O PT diz que não adotará a prática de revanchismo contra Bolsonaro, mas há expectativa sobre uma das promessas de campanha de Lula, que é o fim do sigilo de documentos sobre a família e ministros do governo. Além disso o presidente perde o foro de autoridade em primeiro de janeiro.
A analista Mayra Gourlart avalia que Bolsonaro, da forma possível para quem colocava em dúvida o processo eleitoral, reconheceu a derrota ao nomear o chefe da Casa Civil para fazer a transição de governo. E que agora ele tentará permanecer como um líder de direita.
"Esse é o futuro do Bolsonaro. Primeiro tentar não ser investigado criminalmente. E aí vamos ver se ele tem alguma moeda de troca que permita protegê-lo. E a segunda coisa é tentar ser o líder político desses grupos sociais que têm afetos antidemocráticos, se entendem como extrema direita”.
“São pessoas que foramalimentadas por redes de dissonância cognitiva. O que é isso? São esses nichos, são grupos de pessoas com perfil ideológico e social similar abastecidos por conteúdos desviantes da realidade, fake news que reforçam sua própria identidade", avalia Goulart.
Emir Sader
@emirsader
Exibe uma suástica no anel da mão direita. Mais um nazista
A maioria é composta por conservadores que introjetaram os valores da sociedade patriarcal, ignorados durante muito tempo pela esquerda como assunto secundário
Durante muito tempo, boa parte da esquerda rejeitava qualquer tema que se afastasse do que então se entendia por luta de classes, vista apenas numa chave economicista. Assim, as lutas feministas, antirracistas e anti-homofóbicas eram rejeitadas como “pautas identitárias” que enfraqueciam a luta revolucionária do proletariado contra a burguesia. E a questão indígena não era percebida como problema social, e sim como uma questão puramente ambiental. O índio era visto como natureza.
Essa visão equivocada afastou os partidos e organizações políticas da esquerda de setores sociais que lutavam por seus direitos contra a opressão de que eram vítimas. Mas a esquerda tradicional não via opressão social e cultural, só via a exploração econômica dos trabalhadores. Com isso, se afastou de uma agenda crítica da sociedade patriarcal e não enfrentou na luta política os valores conservadores.
Lembrei disso para explicar, por outro ângulo, os 51 milhões de votos recebidos por Jair Bolsonaro no primeiro turno. Entre esses votos, temos os neoliberais que consideram o teto de gastos como questão de princípio, os militares reacionários – a grande maioria – os evangélicos e católicos de direita, e os que são ideologicamente fascistas. Mas esse contingente está longe de ser a maioria.
A grande maioria dos eleitores de B. é constituída por conservadores que rejeitam, assustados, o empoderamento das mulheres que não aceitam mais o seu papel tradicional como mãe de família e dona de casa. Nostálgicos da Casa Grande e da Senzala, ficam intimidados com a luta dos negros pela igualdade e verdadeiramente escandalizados com a luta dos gays (LGBTQIA+) pelo reconhecimento de seus direitos. Por exemplo, casamento entre pessoas do mesmo sexo é visto como algo vergonhoso. Além disso, associam desmatamento a progresso.
No eleitorado de B. não existem apenas interesses econômicos do empresariado capitalista, interesses corporativos dos militares, ou interesses de uma grande massa de evangélicos ludibriados em sua boa-fé por pastores corruptos. A grande maioria é composta por conservadores que introjetaram os valores da sociedade patriarcal, ignorados durante muito tempo pela esquerda como assunto secundário, fora do foco da luta de classes.
Esse grande contingente de eleitores conservadores não pode ser classificado de fascista. Mas não se deve ignorar que eles apoiariam uma ditadura fascista que levantasse bem alto o lema “Deus, Pátria e Família”. São, antes de tudo, conservadores que se identificam com os governantes que, mesmo de forma hipócrita, anunciam aos quatro ventos seus valores retrógrados como política oficial. Por exemplo, defendem a vida desde a concepção, mas não defendem as crianças que morrem de fome ou vítimas de “balas perdidas” nas favelas.
Esse eleitorado conservador transforma seu líder em mito e apoiaria uma ditadura de natureza fascista. Quer um governo forte para impedir as mudanças sociais, principalmente na esfera comportamental. O fascismo italiano e o nazismo alemão servem de modelo, ressalvadas as diferenças e as adaptações necessárias. Mas as palavras de ordem, como “Brasil Acima de Tudo”, “Deus, Pátria e Família”, “O Trabalho Liberta”, “Uma Nação, Um Povo, Um Líder” e outras, o gestual, os passeios de motocicleta, muita coisa é copiada diretamente do nazi-fascismo europeu.
Os conservadores detestam a liberdade. Precisam de um chefe autoritário para dar ordens, estão ansiosos por obedecer. Combatem a mudança, principalmente no que se refere a valores morais. Esse substrato do bolsonarismo terá de ser atacado de forma permanente, mesmo correndo o risco de romper depois a atual frente democrática anti-fascista de apoio a Lula. As lutas das desprezadas “questões identitárias” terão de ser travadas em articulação com as lutas econômicas da classe trabalhadora e com a luta pela redução da desigualdade social.
O que está hoje em questão não é uma disputa eleitoral “normal” entre dois candidatos, como a imprensa gosta de apresentar. Há um confronto entre democracia e ditadura dentro das próprias instituições, como o episódio surrealista do Roberto Jefferson demonstrou. Já estamos convivendo com medidas de um Estado de exceção. O presidente cometeu dezenas de crimes e nem processado foi, tamanha a cumplicidade criminosa das instituições de controle. O que está em jogo é a sobrevivência da democracia em luta contra a ditadura que, com o apoio dos conservadores, certamente seria implantada com a vitória do candidato hoje no poder.
Após a provável vitória de Lula, por margem mais apertada do que imaginávamos, a luta contra os valores conservadores da sociedade patriarcal será inadiável. Teremos de articular essas lutas “identitárias” com as lutas econômicas dos trabalhadores. Na linguagem da filósofa norte-americana Nancy Fraser, trata-se de articular o “reconhecimento” com a “redistribuição”, que não podem mais andar separados.
A vitória de Bolsonaro levaria avante seu projeto de desmontagem das instituições de forma abertamente autoritária e ameaçadora de um golpe de Estado
O atual presidente apresenta traços desvairados e tem feito constantes ameaças à normalidade democrática, caso venha perder as eleições. No primeiro turno em 2 de outubro recebeu 43,44% dos votos enquanto o ex-presidente Lula levou 48,5% dos votos. Há grande expectativa que Lula venha a ganhar a eleição, pois a superioridade sobre Jair Bolsonaro é notável.
Lula tem recebido o apoio de quase todos os partidos até dos mais distantes. Pois, perceberam que a democracia está em jogo e também o destino histórico de nosso país. A vitória de Jair Bolsonaro levaria avante seu projeto de desmontagem das instituições de forma abertamente autoritária e ameaçadora de um golpe de Estado.
Precisamos tentar entender por que irrompeu esta onda de ódio, de mentiras como método de governo,fake news, calúnias e corrupção governamental impedida de ser investigada. Vieram-me à mente um artigo que publiquei tempos atrás e que aqui reformulo.
Duas categorias parecem esclarecedoras: uma da psicanálise junguiana, a dasombrae outra da grande tradição oriental do budismo e afins e entre nós, do espiritismo, okarma.
A categoria desombra, presente em cada pessoa ou coletividade, é constituída por aqueles elementos negativos que nos custa aceitar, que procuramos esquecer ou mesmo recalcar, enviando-os ao inconsciente seja pessoal seja coletivo.
Efetivamente, cinco grandessombrasmarcam a história político-social de nosso país.
A primeira é o genocídio indígena, persistente até hoje, pois, suas reservas estão sendo invadidas e durante a pandemia foram praticamente abandonados pelas autoridades atuais. A segunda é a colonização que nos impediu que ter um projeto próprio, de um povo livre, mas, ao contrário, sempre dependente de poderes estrangeiros de outrora e de hoje. Criou a síndrome do “vira-lata”.
A terceira é o escravagismo, uma de nossas vergonhas nacionais, pois, implicava tratar a pessoa escravizada como coisa, “peça”, posta no mercado para ser comprada e vendida e submetida constantemente à chibata, ao desprezo e ao ódio.
A quarta é permanência da conciliação entre si, dos representantes das classes dominantes, seja herdeiras da Casa Grande ou do industrialismo especialmente a partir de São Paulo, denominadas por Jessé Souza de “elites do atraso”. São profundamente egoístas a ponto de Noam Chomsky ter afirmado: “O Brasil é uma espécie de caso especial, pois, raramente vi um país onde elementos da elite tenham tanto desprezo e ódio pelos pobres e pelo povo trabalhador”. Estes nunca pensaram num projeto nacional que incluísse o povo, projeto somente deles e para eles, capazes de controlar o estado, ocupar seus aparelhos e ganhar propinas e fortunas nos projetos estatais.
A quinta sombra represeta a democracia de baixa intensidade entrecordada por golpes de Estado mas que sempre se refaz sem, entretanto, mudar de natureza. Perdura até hoje e atualmente mostra grande debilidade pelo grau dos representantes de direita ou extrema direita, com suas maracutaias como o orçamento secreto. Medida pelo respeito à constituição, pelos direitos humanos pessoais e sociais, pela justiça social e pelo nível de participação popular, comparece antes como uma contradição de si mesmo do que, realmente, uma democracia consolidada.
Sempre que algum líder político com ideias reformistas, vindo do andar de baixo, da senzala social, apresenta um projeto mais amplo que abrange o povo com políticas sociais inclusivas, estas forças de conciliação, com seu braço ideológico, os grandes meios de comunicação, como jornais, rádios e canais de televisão, associados a parlamentares e a setores importantes do judiciário, usaram o recurso do golpe seja militar (1964), seja jurídico-político-mediático (2016) para garantir seus privilégios.
O desprezo e o ódio, outrora dirigido aos escravizados, foi transferido covardemente aos pobres e miseráveis, condenados a viver sempre na exclusão.Estas sombras pairam sobre a atmosfera social de nosso país. É sempre ideologicamente escondida, negada e recalcada.
Com o atual presidente e com o séquito de seus seguidores, o que era oculto e recalcado saiu do armário. Sempre estava lá, recolhido, mas atuante, impedindo que nossa sociedade, dominada pela elite do atraso, fizesse as transformações necessárias e continuasse com uma característica conservadora e, em alguns campos, como nos costumes, até reacionária e por isso de fácil manipulação política. Dentro da alma de uma porção de brasileiros há um pequeno “bolsonaro” reacionário e odiento. O Jair Bolsonaro histórico deu corpo a esse “bolsonaro” escondido. O mesmo aconteceu com o “Hitler” escondido dentro de uma porção do povo alemão.
As cinco sombras referidas foram agravadas atualmente pela aquisição incentivada de armas na população, pela magnificação da violência até da tortura, pelo racismo cultural, pela misoginia, pelo ódio aos de outra opção sexual, pelo desprezo aos afrodescendentes, aos indígenas, aos quilombolas e aos pobres em geral. É de estranhar que muitos, até pessoas sensatas, inclusive acadêmicos e gente da classe média, possam seguir uma figura tão destemperada, deseducada e sem qualquer empatia pelos sofredores que perderam entes queridos pelo Covid-19.
Essa é uma explicação, certamente, não exaustiva, através da categoria dasombra que subjaz às várias crises político-sociais.
A outra categoria é a dokarma.Para conferir-lhe algum grau analítico e não apenas hermenêutico (esclarecedor da vida), valho-me de um longo diálogo entre o grande historiador inglês Arnold Toynbee e Daisaku Ikeda, eminente filósofo japonês, recolhido no livroElige la vida(Emecé). Okarmaé um termo sânscrito originalmente significandoforça e movimento, concentrado na palavra “ação” que provocava sua correspondente “re-ação”. Aplica-se aos indivíduos e também às coletividades.
Cada pessoa é marcada pelas ações que praticou em vida. Essa ação não se restringe à pessoa, mas conota todo o ambiente. Trata-se de uma espécie de conta-corrente ética cujo saldo está em constante mutação consoante as ações boas ou más que são feitas, vale dizer, os “débitos e os créditos”. Mesmo depois da morte, a pessoa, na crença budista e espírita carrega esta conta; por isso se reencarna para que, por vários renascimentos, possa zerar a conta negativa e entrar no nirvana ou no céu.
Para Arnold Toybee não se precisa recorrer à hipótese dos muitos renascimentos porque a rede de vínculos garante a continuidade do destino de um povo. As realidades kármicas impregnam as instituições, as paisagens, configuram as pessoas e marcam o estilo singular de um povo. Esta força kármica atua na história, marcando os fatos benéficos ou maléficos, coisa já vista por C.G.Jung em suas análises psico-sócio-históricas.
Arnold Toynbee em sua grande obra em dez volumesUm estudo da história[A Study of History] trabalha a chave desafio-resposta (challange – response) e vê sentido na categoria dokarma.Mas dá-lhe outra versão que me parece esclarecedora e nos ajuda entender um pouco as sombras nacionais, especialmente, da extrema direita brasileira e até internacional, sempre ligando-se à religião de versão moralista e fundamentalista que facilmente chega ao coração do povo, normalmente, religioso.
A história é feita de redes relacionais dentro das quais está inserida cada pessoa, ligada com as que a precederam e com as presentes. Há um funcionamento kármico na história de um povo e de suas instituições consoante os níveis de bondade e justiça ou de maldade e injustiça que produziram ao largo do tempo. Este seria uma espécie de campo mórfico que permaneceria impregnando tudo.
Tanto Arnold Toynbee quanto Daisaku Ikeda concordam nisso: “a sociedade moderna (nós incluídos) só pode ser curada de sua carga kármica, acrescentaríamos, de sua sombra, através de uma revolução espiritual e social começando no coração e na mente, na linha da justiça compensatória, de políticas sanadoras e instituições justas.
Entretanto, elas sozinhas não são suficientes e não desfarão as sombras e o karma negativo. Faz-se mister o amor, a solidariedade a compaixão e uma profunda humanidade para com as vítimas. O amor será o motor mais eficaz porque ele, no fundo, afirmam Arnold Toynbee e Daisaku Ikeda “é a última realidade”. Algo semelhante diz James Watson, um dos descodificadores do código genético: o amor está em nosso DNA.
Uma sociedade, perpassada pelo ódio e pela mentira como em Jair Bolsonaro e em seus seguidores, alguns fanatizados, é incapaz de desconstruir uma história tão marcada pelas sombras e pelo karma negativo como a nossa. Não se trata um veneno com mais veneno ainda. Isso vale especificamente pelos modos rudes, ofensivos e mentirosos do atual presidente e de seus ministros.
Só a dimensão de luz e o karma do bem livram e redimem a sociedade da força das sombras tenebrosas e dos efeitos kármicos do mal como os grandes sábios da humanidade como o Dalai Lama e os dois Franciscos, o de Assis e o de Roma o testemunham.
Se não derrotarmos eleitoralmente atual presidente neste segundo turno a realizar-se no dia 30 de outubro, o país se moverá de crise em crise, criando uma corrente de sombras e karmas destrutivos, comprometendo o futuro de todos. Mas a luz e a energia do positivo sempre se mostraram historicamente mais poderosas que as sombras e o karma negativo.
Estamos seguros de que serão elas que garantirão, assim esperamos, a vitória de Lula que não guarda rancor nem ódio no coração, mas se move pela amorosidade e pela política do cuidado do povo, especialmente dos empobrecidos e de suas necessidades.
Quem flerta com o fascismo e aceita sua possibilidade já se entregou a ele de corpo e alma. A lição histórica é dura e inequívoca, mas ela também se aplica ao enfrentamento de posturas assemelhadas às do fascismo, ao fascismo genérico. Ou seja, são exemplos de uma moralidade pusilânime e cúmplice a indiferença diante de crimes ambientais ou de manifestações racistas, o silêncio diante dos ataques ao conhecimento, às artes ou à cultura e a omissão diante de ameaças ou do desrespeito à vida. Diante do absurdo, qualquer neutralidade é abominável, não podendo ser interpretadas como destreza técnica ou como argúcia política atitudes que naturalizam o mal.
É verdade que o termo ‘fascismo’ não é suficiente nem exato para descrever o que tem ocorrido em nosso país. Contextos e traços do fascismo histórico são distintos das atuais manifestações autoritárias. Entretanto, o que temos enfrentado (ameaças às instituições, conservadorismo, violência) não é menos repugnante que o fascismo que outrora também converteu multidões e mesmo ganhou eleições. Diversa a situação histórica, seria indigência analítica usar o mesmo conceito para quadros históricos afastados, mas seria ainda mais obtuso e puro preciosismo acadêmico não identificar uma perturbadora semelhança de família.
O servidor público deve sim sempre agir com competência e, no interesse do comum, deve ser capaz de lidar com quem quer que seja. Não há aqui do que se gabar, pois se trata de uma obrigação institucional, consignada, aliás, nos códigos de conduta da administração pública. É preciso, afinal de contas, separar a conduta do servidor da filiação do político. Não se pode, todavia, fazer dessa necessidade virtude, nem suprimir, por conta disso, o dever ainda maior de reagir com toda força e dignidade contra manifestações de autoritarismo, grosseria, preconceito, ignorância.
A postura de ACM Neto ao dizer que governará bem com qualquer presidente, quer a apresente como neutralidade, quer como sinal de competência, termina por significar conivência com o absurdo de se ter um presidente autoritário e obscurantista. É um grave erro como posição, para além de mera esperteza política ou cálculo pragmático. Tal silêncio equivale a uma postura tecnocrática de baixa estatura, sendo ainda mais grave tal “neutralidade” quando o país se defronta com a eleição de nossas vidas. Não é, porém, de estranhar, pois esse gesto se generalizou como um sintoma a mais da degradação de nosso sistema partidário, reduzido este em grande medida a agregados sem a mais mínima unidade ideológica, com interesses acima de tudo e valores abaixo de qualquer coisa.
2.
Durante a apuração dos votos do primeiro turno, recebi de um amigo de outro estado uma mensagem entusiasmada. Afirmava que a Bahia haveria de salvar o Brasil.
A mensagem é de bom agouro e espero que vingue sua melhor expectativa. Para tanto, porém, a Bahia precisa confirmar que, em nossa terra, não há mesmo espaço para tiranetes de qualquer estatura ou de qualquer matiz. Além de votos, de muitos votos, precisamos dizer ainda mais e melhor nesta eleição. Precisamos mostrar programaticamente que não comungamos com medidas que tornam hoje tão parecidos governantes que deveriam estar em extremos opostos, mas estão igualmente inclinados a medidas privatizantes e à defesa de valores conservadores e neoliberais, de modo que, ao fim e ao cabo, se unificam na ideia de que a boa governança é mensurada por um conjunto de realizações.
Governantes atuais se jactam de resultados, como o faziam governos pretéritos, e terminam por competir em números e não em valores. Tudo parece poder reduzir-se à condição de instrumento na gestão pública, que valeria na proporção de suas entregas. Alardeia-se assim a quantidade de obras, estradas, policlínicas, empregos. Enquanto isso, por exemplo, aceitam-se uma imagem de cultura em muito reduzida ao interesse da economia do turismo, uma visão de segurança militarizada ou uma educação orientada sobretudo aos interesses imediatos do mercado. E essas, quero insistir, não são questões secundárias, pois afetam escolhas de largo alcance.
Falta então civilidade e sobra rudeza no fundamento de muitos discursos, de modo que as marcas ideológicas de uma Bahia retrógrada, excludente e autoritária ainda se mostram pervasivas e resistentes. Nossos governantes progressistas devem, então, oferecer mais do que isso, pois não se medem nem se diferenciam apenas por seus resultados, mas sim por representarem princípios democráticos e esperanças igualitárias.
3.
Resultados certamente importam e, por óbvio, costumam valer nas urnas mais do que quaisquer princípios. Entretanto, para além de qualquer pragmatismo, é nosso dever guardar uma verdade utópica, qual seja, a de que é possível ter resultados ainda melhores e mais duradouros se tivermos por horizonte uma nação radicalmente democrática. Há, afinal, algo estranho e deveras incômodo quando todos falam a mesma linguagem do progresso e compartilham os mesmos critérios do que seja o sucesso de uma gestão.
Um voto é sempre uma aposta no futuro. Neste momento, porém, é bem mais do que uma simples aposta. Votar em Lula é uma questão de sobrevivência como nação e expressa a melhor reação diante da ameaça da pura e simples barbárie. Ou seja, não queremos Lula apenas porque ele fará mais. Certamente, fará. Mas queremos Lula sobretudo porque ele fará de modo diferente. E queremos Jerônimo ao lado de Lula porque esperamos que outros serão os princípios, os métodos e, logo, no essencial, os benefícios para nosso povo.
Ao declarar voto em Jerônimo, acredito que para ele não deve valer a regra pragmática de que “tanto faz”. Tendo ele outra experiência de vida, precisamos acreditar que saberá decidir com a altivez que a Bahia necessita, até diante de questões para as quais não sei se já apresentou um posicionamento claro, mas às quais, acredito, responderá em conformidade com valores progressistas, fazendo depois valer suas respostas, quando estiver enfim respaldado pela legitimidade que as urnas (e apenas as urnas) conferem.
Assim, devendo reverência tão somente ao interesse do comum, o futuro governador enfrentará com clareza questões deveras delicadas. Como progressista, deve saber, por exemplo, que não basta levar água e garantir saneamento a todas as regiões, pois importa sim, e muito, como isso será feito. Água não é mercadoria, mas sim direito. E Jerônimo não deve ocultar sua posição a esse respeito nem deve se esquivar de uma resposta clara. Deve, sim, com todas as letras, afirmar seu compromisso de reverter tudo que já foi feito visando a privatizar a Embasa.
Um governante progressista também tem enorme e ainda maior compromisso com a segurança de nossa comunidade. Isso, porém, só pode significar uma outra compreensão de segurança pública, uma que não vitime nosso povo e não seja um instrumento perverso de opressão nem de discriminação. Uma postura progressista deve falar mais alto do que as visões que preferem resolver os graves problemas de segurança em nosso estado apenas com mais polícia e não com políticas públicas.
Afinal, é inaceitável que, em nossa terra, ainda se louvem ou se desculpem procedimentos de extermínio, que não se corrigem com mero aumento de recursos ou de efetivos, mas sim com outra visão dos laços entre a segurança e o combate à fome, ao desemprego, aos preconceitos, à exclusão.
Um governante progressista tampouco pode descuidar da ciência. A Bahia é lugar de cultura, de arte, de pesquisa científica – e essa deve ser uma parte essencial da gestão do nosso estado, na contracorrente do obscurantismo que nos ameaçou nos últimos anos e que havemos agora de superar. Nosso próximo governador não pode deixar então de investir no conhecimento.
É tempo, pois, de afirmar e garantir com toda clareza que será cumprido o artigo 5 da Lei 7.888/2001, de criação da FAPESB, no qual se afirma: “O Estado destinará, anualmente, recursos à FAPESB correspondentes a 1% (hum por cento) da sua receita tributária líquida”. Cumprir tal meta certamente contribui para conformar um cinturão iluminista duradouro, que fortaleça a produção do conhecimento em nosso estado e apoie ademais todas as áreas do saber. Não há, afinal, governo realmente progressista que descuide das ciências, das culturas, do patrimônio histórico e das artes.
Também a educação precisa contar com sua palavra altiva. Nesse caso, fala com altivez quem sabe escutar. A altivez não é arrogância, mas disposição e força para aprofundar e multiplicar diálogos. Para conservadores, o exercício da representação substitui a comunidade representada. Os que, ao contrário, têm espírito democrático, sabem que a representação autêntica amplia a presença do povo e cria condições para o povo ser, enfim, o verdadeiro protagonista de sua história. Nesse sentido, é importante a escuta, o acolhimento, a criação de condições para parcerias institucionais de natureza pública.
Importa, portanto, o compromisso, claro e explícito, do governador em respeitar a autonomia das Universidades, em valorizar o diálogo com as associações que representam as categorias de trabalhadores, em contribuir para o bem-estar e o respeito do funcionalismo público, em garantir que os direitos da educação não sejam subtraídos por restrições orçamentárias, uma vez que projetos civilizatórios jamais podem ser objeto de políticas de austeridade.
E diálogo é também parceria autêntica, como a que deve ser mantida com as instituições de ensino superior públicas, estaduais e federais, pois a cooperação entre instituições públicas, se levada a sério, não pode ser uma figura de retórica, abandonada talvez na primeira hora por alguma conveniência, sobretudo em áreas de produção de conhecimento e de formação de cidadãos.
4.
São apenas alguns pontos. Outros podem ser elencados, como uma contribuição para uma candidatura que há de unir na Bahia, juntamente com Lula, todos que desejam combater a barbárie. Líderes democráticos autênticos, sabemos bem, não são gerentes, não fazem meros cálculos de interesses; e o jogo duro da política não há de lhes retirar a ternura e o respeito. Jerônimo precisa dar toda atenção a pontos como esses, corrigindo erros, mas também reafirmando virtudes de um governo estadual que, por sua feita, aprofundou políticas públicas importantes e mostrou firmeza e coragem, resistindo a desmandos negacionistas e autoritários do governo federal.
Jerônimo deve assim mostrar, de forma inequívoca, compromisso com uma pauta civilizatória básica, sabendo afastar práticas conservadoras, privatizantes, autoritárias, com a integridade de um completo líder progressista, como a Bahia precisa e merece. Jerônimo, afinal, tem preparo, história e talento; não amadureceu em carbureto. Tenho certeza que a benção das urnas lhe trará ademais a força e a autonomia necessárias, que lhe fará engrossar o pescoço como um líder independente, capaz de decidir e, enfim, de fazer o que há de melhor e mais certo para nosso povo, tendo por horizonte uma sociedade radicalmente democrática.
Enuncio assim princípios, manifesto minha opinião, declaro meu voto. Minha declaração de voto, aliás, já está nas redes e a reitero aqui. Ficarei certamente alegre caso nosso candidato se manifeste sobre tais pontos, mas compreendo bem que, assim como a palavra, também pode ser significativo o silêncio. Afinal, a palavra marca com tinta, enquanto o silêncio marca com fogo.
O sentido do que faremos, do nosso futuro, está em aberto. Agora, temos pressa. É tempo de arregaçar as mangas e não paralisar pela justeza de “considerandos” e temores, compartilhados talvez por outros companheiros. Vamos juntos, na Bahia, centro do universo, ao combate das forças reacionárias e oportunistas; enfrentemos unidos o fascismo genérico, presente em diversas formas de obscurantismo e autoritarismo. E vamos à vitória, sim, com Lula e Jerônimo!
Considerações sobre o papel da religião na decisão do voto
por Matheus Gomes Mendonça Ferreira
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Para entender o peso da religião na decisão do voto é preciso questionar sobre como a religião pode influenciar o voto dos eleitores. Segundo a literatura acadêmica, há três modelos teóricos principais para se compreender como a religião afeta a decisão eleitoral.
O primeiro é pelo pertencimento a um mesmo grupo religioso (fator identidade). Segundo esse modelo teórico, os eleitores escolhem seus representantes porque eles compartilham a mesma identidade religiosa. Nas eleições presidenciais no Brasil, historicamente, foram Anthony Garotinho e Marina Silva (que se apresentaram como candidatos evangélicos) que conseguiram mobilizar parcela de eleitores evangélicos nas eleições de 2002, 2010 e 2014. Em um experimento realizado no Brasil, o pesquisadorTaylor Boasdescobriu que, quando um candidato utiliza a palavra “pastor” antes do nome, há uma menor chance de eleitores não evangélicos votarem nele e, por outro lado, há uma maior chance de eleitores evangélicos apoiarem tal candidato.
O segundo é pela via das crenças e valores (fator crenças e valores). Nesse caso, os eleitores escolhem candidatos que mais se aproximam ou que defendem valores morais importantes para o grupo, tais como questões associadas ao papel da religião na sociedade, aborto, casamento entre pessoas do mesmo sexo, ensino religioso nas escolas, etc. A importância dos valores se faz presente em quase todas as eleições. Em 1989, Lula não teve desempenho tão satisfatório nas classes mais populares. O que teria explicado isso? SegundoMariano e Pierucci, na época, Lula era o candidato apresentado como uma ameaça aos valores tradicionais brasileiros e contra a religião, muito importantes para as camadas populares. Após aquele ano, houve tentativas de tornar a questão do aborto saliente, principalmente em eleições em que Dilma Rousseff era a candidata pelo PT. Tal saliência pode ser produzida tanto pela campanha de um candidato ou candidata, quanto por líderes de opinião pública, como são as lideranças religiosas.
O terceiro é a comunicação política que se estabelece entre os fiéis e suas lideranças religiosas (fator comunicação). Importante destacar que aqui não estamos falando apenas de “voto de cajado”, em que uma liderança utiliza os recursos da Igreja e sua posição de autoridade para “obrigar” os fiéis a votarem em um candidato. Embora campanhas políticas durante cultos e missas sejam proibidas pela Constituição, não há uma fronteira definida entre o que se enquadra ou não como campanha política dentro dos cultos. Umepisódio ilustrativoé o caso do pastor Josué Valandro Jr., da Igreja Batista Atitude. Nesse caso, o pastor não pede votos explicitamente, mas ora para que Jair Bolsonaro vença as eleições de 2018.
Porém, essa prática não pode ser generalizada para todas as igrejas e templos. Não são todas as lideranças religiosas que utilizam o púlpito para falar de política. Isso depende da abertura que tal liderança tem para fazer isso. Em uma comunidade religiosa marcada pela diversidade de interesses políticos, essa prática pode ser custosa para as lideranças religiosas. Falar de política depende do grau de abertura que a liderança tem junto à comunidade religiosa e do conhecimento de seus interesses.
Após as eleições de 2018, os dois últimos modelos teóricos (valores e comunicação) ganharam mais destaque. Isso ocorreu, principalmente, pelo fato de Jair Bolsonaro ter tido um ótimo desempenho entre os evangélicos. Esse apoio massivo do segundo maior grupo religioso brasileiro (e que está em ascensão) foi explicado pelo apoio das grandes lideranças evangélicas e pelo fato de Jair Bolsonaro ter sido o primeiro candidato a defender fortemente uma agenda política ultraconservadora em termos de valores morais.
Naquele ano, discutir a relação entre religião e política foi sinônimo de discutir a relação entre os evangélicos e Jair Bolsonaro. Existem razões que justificam essa confusão. Primeiro, porque foi nesse grupo que houve um voto mais homogêneo. Segundo, a política é algo muito mais presente nos templos evangélicos do que nas igrejas católicas. Padres católicos não se engajam com a mesma intensidade que pastores evangélicos. O terceiro ponto é que os evangélicos são mais assíduos aos cultos do que os católicos. Logo, estão mais expostos às mensagens políticas de suas lideranças. Por fim, o quarto ponto, é que os evangélicos são mais conservadores do que os católicos em relação a algumas pautas morais.
Em 2022, esse cenário parece se repetir, embora com menor intensidade. Um dos fatores que ajudam a entender essa queda é a forte crise econômica.
Os dados acima são do Datafolha e mostram o desempenho de Lula e Bolsonaro entre os evangélicos. Importante destacar que no final de maio de 2022, o desempenho de ambos candidatos era bem parecido nesse grupo (ambos próximos de 40%). Com o tempo é possível observar uma mudança nas intenções de voto dos evangélicos, revelando uma vantagem para Jair Bolsonaro. Essa mudança pode ser explicada tanto pelas movimentações de Jair Bolsonaro (ativando os valores conservadores desse eleitorado) quanto pelas campanhas políticas nas Igrejas, conduzidas por lideranças religiosas. Portanto, para que Lula tenha melhor desempenho nesse segmento, deve contar com apoio de grandes lideranças religiosas.
Vale lembrar que o apoio de Edir Macedo – líder de uma das maiores igrejas evangélicas do Brasil (Igreja Universal do Reino de Deus – IURD) – a Jair Bolsonaro em 2018 não se deu no início da campanha. Edir Macedo era apoiador de Alckmin. Com o então candidato do PSDB fora da disputa e no impedimento de Lula concorrer, Edir Macedo passa a apoiar Bolsonaro, que estava na frente nas pesquisas eleitorais. Como Lula vem apresentando um desempenho superior ao de Jair Bolsonaro, com alguma chance de vitória no primeiro turno, devemos ficar de olho nos passos desse ator religioso de relevância nacional. Importante destacar que lideranças religiosas são atores políticos com interesses econômicos e não só morais. Questões ligadas às telecomunicações, por exemplo, são muito importantes para eles.
Outro fator que deve afetar negativamente o apoio evangélico a Jair Bolsonaro é a economia. Considerando que quase metade dos evangélicos (e dos católicos) possuem uma renda de até dois salários mínimos, é esperado que o desempenho ruim da economia ative o voto econômico nesse grupo, principalmente entre pessoas que estão menos expostas às pressões do grupo e às mensagens políticas de lideranças religiosas.
A fatia de evangélicos que não está exposta às pressões institucionais de uma Igreja é considerável. Analisando os dados do Censo de 2010, dos que se declaram evangélicos, 21,8% são evangélicos sem vínculo com igrejas ou “desigrejados”. Entre os “desigrejados”, não há a presença de uma liderança religiosa que dê pistas eleitorais aos fiéis, ou que utilize da “rede de assistência” da igreja para “trocar” por votos. Esse tipo de raciocínio foi muito bem desenvolvido porVictor Silva. Segundo ele, “o aumento de bem-estar induzido pelo Programa Bolsa Família (PBF) produziu retornos eleitorais para o PT apenas entre os beneficiários não-pentecostais e nos locais com alta concentração de pobres católicos”.
Nesse contexto é importante enfatizar que não é possível falar de um voto evangélico, mas de um voto dos evangélicos. Estes, além de representarem um grupo heterogêneo, não apresentam um interesse político cristalizado em torno de uma candidatura ou de uma agenda política específica. É plausível pensar que uma parcela do sucesso de Jair Bolsonaro entre os evangélicos ocorre pela dificuldade que partidos de centro e esquerda têm em lidar com questões relacionadas ao papel da religião na vida desses eleitores e eleitoras.
Material didático associa o feminismo à zoofilia e incesto e o diabo à esquerda. Defende o machismo, o racismo e o apedrejamento da mulher que Jesus perdoou. E esquece a fome de 33 milhões de brasileiros, as 500 mil crianças prostitutas, a fila da morte nos corredores dos hospitais
A ASSEMBLEIA DE DEUS DE SANTA CATARINAestá usando desde julho – período pré-eleitoral – uma cartilha anti-esquerda para doutrinação de fiéis. O material, enviado aoIntercept, menciona nominalmente Luiz Inácio Lula da Silva como defensor da chamada “ideologia de gênero”, termo que conservadores usam para atacar os movimentos LGBTQI+ e feminista, e espalha pânico moral ao associar o feminismo à pedofilia, zoofilia e outras “perversidades”.
“O feminismo representa uma das maiores armadilhas do mundo contemporâneo, levando a sociedade a um nível de depravação e perdição inimaginável. Como toda ideologia mundana, tomou proporções inimagináveis, financiando coisas sórdidas como: pedofilia, zoofilia, sexo desregrado, homossexualidade e diversas outras perversidades. O feminismo é uma aberração nascida no mais profundo inferno, produzindo divisão, briga, promiscuidade, homossexualidade e todo tipo de sordidez”.
Parece um fórum de internet dedicado à misoginia, mas trata-se de uma transcrição literal da cartilha para jovens e adultos “Revista EBD – O cristão e os desafios do nosso tempo: entendendo as ideologias, póliticas[sic]e pensamentos da atualidade”, versão do professor. Essas frases saíram mais precisamente da “Lição 12 — Feminismo e a distorção de papéis”.
‘Pedofilia’, ‘depravação moral’ e destruição do casamento': cartilha deturpa conceitos do feminismo.
Esse material – uma legítima cartilha do ódio e intolerância – foi distribuído nos templos da Assembleia de Deus de Blumenau e por toda a próspera região do Vale do Itajaí de Santa Catarina para ser usado na escola bíblica dominical ao longo do trimestre de julho a setembro. Não por acaso, o teor do conteúdo coincide em muitos pontos com o discurso de Jair Bolsonaro, do PL.
Além das feministas, a obra também ataca toda a esquerda, as correntes cristãs vistas como liberais, os evangélicos que não querem misturar igreja com política, o estado democrático de direito, todo o arcabouço legal que garante direitos aos cidadãos não-heteronormativos, o sistema de ensino público e privado e muito mais. Nem a lei do divórcio de 1977, que assegura o direito dos casais a se separarem, escapa da raiva santa exposta no livro.
Ao longo de 124 páginas divididas em 13 lições, é descrito um cenário de medo e horror para o cristão moderno e sua família. Ele passa por toda a realidade paralela erigida em cima de teorias da conspiração e quimeras da extrema direita: globalismo, ideologia de gênero, fim da família tradicional, perseguição aos cristãos, marxismo cultural, ditadura estatal na forma de viver e criar os filhos, “abortismo”, Paulo Freire e por aí vai.
De maneira explícita, o ex-presidente Lula é lembrado nominalmente na obra como um incentivador do que é chamado de ideologia de gênero. Em um quadro amarelo no capítulo dedicado ao tema, a cartilha lembra que ocorreu em seu governo a implementação do Programa Nacional de Desenvolvimento Humano, que estabeleceu direitos básicos hoje desfrutados pela a população LGBTQI+, como união civil, adoção de crianças e reconhecimento do nome social em documentos oficiais, além de políticas afirmativas. Para os autores da cartilha, algo imperdoável.
Trecho da cartilha que menciona nominalmente o ex-presidente e candidato Lula.
“Durante o governo do presidente Luís[sic]Inácio Lula da Silva o movimento LGBT e os ideólogos de gênero conquistaram garantias significativas”, lamentam. Eles escrevem que, se as definições de homem e mulher não são mais absolutas, cada um se torna o que bem entender. Assim, “isso é apenas o começo da catástrofe, pois quando a relativização domina, já não tem critérios para nada, e normalizar a pedofilia e o incesto é questão de tempo”, profetiza o texto. E nada de cair “na conversa de que os cristãos estão se intrometendo na vida dos outros que desejam ser diferentes”. Afinal, “eles não querem apenas um direito para ser quem desejam, querem implantar uma ditadura que afeta a nós e nossos filhos”.
O que é dito e ensinado na escola dominical é entendido como 100% verdade pelo povo fiel.
A cartilha não tem um autor claro, mas traz um prefácio escrito pelo pastor Lediel dos Santos, vice-presidente da Assembleia de Deus em Blumenau. “É impossível não enxergar que estamos em uma grande e intensa batalha”, diz o texto de abertura. “Mais do que nunca precisamos nos posicionar também no campo ideológico e político se queremos de fato edificar. Se o povo de Deus não buscar governar de acordo com os princípios bíblicos, alguém irá nos desgovernar. Esta é a hora de combater o bom combate!”.
Santos é um dos donos da editora Kaleo, que publicou a cartilha raivosa. O outro sócio, Alexandre de Almeida, também é pastor da Assembleia de Deus em Blumenau, segundo dados da Receita Federal. Fundada em 2019, a editora surgiu “com a intenção de difundir conteúdos de qualidade de escritores que ainda não são grandemente conhecidos no mercado publicitário mas cujo pensamentos e ideias merecem ser compartilhados”, diz seu site.
O material, aliás, é oferecido na plataforma para uso em escolas dominicais de todo o Brasil. Cada exemplar custa R$ 13,90 mais a taxa de envio.
Cartilha é utilizada na escola bíblica dominical, uma das instituições mais tradicionais da Assembleia de Deus e de igrejas cristãs no geral.
Apocalipse cristão
A cartilha começa delineando o “apocalipse cristão contemporâneo”. Duas lições inteiras justificam com trechos da bíblia a promiscuidade entre política e religião. Com essas bases lançadas, os capítulos seguintes partem para cima da esquerda e tudo que consideram ser sua obra, sempre a serviço do demônio.
Além do capítulo sobre feminismo, “Educação – um desafio para a igreja brasileira”, “Marxismo cultural e seus impactos”, “Grupos minoritários”, “Ideologia de gênero”, “Machismo: masculinidade deformada” e, por fim, “Sexualidade distorcida em uma cultura erotizada” completam o extenso material. Cada capítulo ou lição equivale a um domingo de aula na escola dominical.
O argumento principal que permeia todo material é o de que não há hipótese de um evangélico ser de esquerda. “Um cristão genuíno é por definição um conservador”, afirma o texto na terceira lição, chamada “Sendo um conservador em um mundo corrompido”. No capítulo “O que o cristão precisa saber sobre direita e esquerda”, o material reafirma que a esquerda só serve para dividir a miséria. Mais adiante, na mesma seção, reforça que “algumas ideologias, como as de esquerda, são fundamentalmente contra o cristianismo”.
Cartilha diz que a esquerda quer 'controlar todos os aspectos da vida social. Sobrou até para Paulo Freire, criticado por ser um 'libertador'.
O pedagogo Paulo Freire é lembrado com destaque na lição sobre os desafios da educação e merece um intertítulo próprio, “O desserviço da pedagogia de Paulo Freire”.
Já na lição sobre o marxismo cultural, o texto questiona: “Quantas meninas não querem se casar mesmo tendo mais de 25 anos?”. A culpa seria do fim da moral e do incentivo à promiscuidade dos esquerdistas que dominam a indústria cultural, principalmente o jornalismo da grande mídia. E arremata: “a bíblia e o marxismo são incompatíveis.”
Trecho da cartilha sobre ‘marxismo cultural’ usa o Brasil Paralelo como referência teórica.
Como apoio aos professores, a editora oferece ainda vídeos no YouTube em que explica os principais pontos das aulas. Ali, o tom é menos explícito que na cartilha, mas a intenção segue clara. Na lição 6, por exemplo, “O que um cristão precisa saber sobre esquerda e direita”, publicado em 5 de agosto no canal da Kaleo, um “professor” não identificado repassa o que é mais importante: “é impossível você ser de esquerda e ser cristão”.
O Intercept tentou falar com Lediel dos Santos e Alexandre de Almeida, donos da editora, e pediu um posicionamento para a Assembleia de Deus de Blumenau sobre o material e a campanha política implícita. Não houve resposta.
Ataque sensível
A escola bíblica dominical é uma das instituições mais tradicionais da Assembleia de Deus e de igrejas cristãs no geral. É a interface da vida real com o que é ensinado e refletido dentro do templo. Nela, boa parte dos fiéis estuda a bíblia em grupo e busca uma bússola moral e exemplos práticos para guiar seu cotidiano de acordo com os ensinamentos da igreja.
“Estão atacando por um lado que é muito sensível na comunidade”, afirmou o advogado Artur Antunes. Criado dentro da Assembleia de Deus de Santa Catarina, o advogado indignou-se ao tomar conhecimento do material didático para doutrinação político-eleitoral e procurou o Intercept para denunciar o caso.
“O que é dito e ensinado na escola dominical é entendido como 100% verdade pelo povo fiel que frequenta a instituição. E não é pouca gente, boa parte dos fiéis que vai ao culto aos domingos fica para a escola dominical depois”, explicou. “O objetivo disso, junto com o que é dito durante os cultos, é consolidar a imagem de Bolsonaro junto aos fiéis como o único candidato possível para os cristãos. Ao mesmo tempo, associa o Lula a todas essas fake news e a assuntos que preocupam muito os religiosos”.
Na escola da igreja, as turmas são divididas entre crianças e jovens de até 14 anos, que recebem aulas e materiais didáticos diferentes, e jovens e adultos a partir dos 15 anos de idade —submetidos à cartilha do horror deste trimestre. Os professores geralmente são voluntários da própria comunidade religiosa, o que aumenta o grau de confiança nas informações que são passadas nessas reuniões.
Na opinião de Antunes, o efeito eleitoral disso é poderoso. “Coloca-se quase como se o fiel tivesse que escolher entre votar em um candidato de esquerda e a própria religião, sua participação naquela comunidade. É uma coação mesmo. A conotação disso é óbvia quando pensamos na eleição presidencial, mas espraia-se por todas as candidaturas, que passam a ser consideradas com essa lupa hedionda”.