Às vésperas do feriadão de Finados, sem outros assuntos mais urgentes na sua área para resolver, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, acompanhado de uma fornida comitiva, embarcou num avião da FAB para o arquipélago de Fernando de Noronha (PE), onde não há sinais de focos de incêndio.
Estavam a bordo também o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, e outros funcionários do governo.
Objetivo da excursão: assinar o termo de concessão do Mirante do Boldró, um imóvel federal que será entregue à iniciativa privada, e fazer uma vistoria técnica do Parque Nacional Marinho, que também deverá ser privatizado.
Cobram tanto do governo para acelerar as privatizações que Salles resolveu dar sua contribuição.
"Assinei a permissão de uso desse espaço tão privilegiado da ilha, que estava abandonado há tanto tempo. É um bom investimento do turismo que gera emprego e renda", declarou Salles, ao fazer um discurso na solenidade da concessão.
Começava assim o primeiro dia da visita oficial e, para comemorar, todos foram para a pousada Maria Bonita, que pertence ao empresário Paulo Fatuch, sócio do ator Bruno Gagliasso e do bolsonarista Julio Pignatari.
Vinho branco
Segundo reportagem da revista Crusoé, a comitiva chegou à pousada no final da tarde de quarta-feira e lá ficou por cerca de três horas e meia, enquanto os garçons serviam rodadas de garrafas de vinho branco para amenizar o calor.
Não por acaso, o Mirante do Bodró, um dos principais pontos turísticos de Fernando de Noronha, foi concedido ao empresário Paulo Fatuch, que ofereceu a recepção à comitiva oficial.
Foi de lá que o celular oficial de Ricardo Salles disparou a mensagem no Twitter chamando de "Nhonho" (personagem do seriado "Chaves") o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que o criticara na semana passada por ter chamado o ministro Luiz Ramos de "Maria Fofoca". Salles gosta de dar apelidos.
Mas o ministro garante que não foi ele. Alguém deve ter usado seu celular, alegou. Com tanta gente na mesa, e tanto vinho, fica mesmo difícil descobrir quem foi.
A boiada não passou nas restingas
Condenado em São Paulo por improbidade administrativa nos tempos em que era secretário de Meio Ambiente do governador Geraldo Alckmin (PSDB), Salles sofreu outra derrota na Justiça nesta quinta-feira.
Enquanto ele passava por Fernando de Noronha, a ministra Rosa Weber, do STF, suspendia a decisão do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) em que o ministro derrubou regras de proteção ambiental a áreas de mangues e restingas, liberando-as para a iniciativa privada no embalo do seu projeto de "passar a boiada".
Para sexta-feira, a agenda oficial prevê apenas uma visita à Escola de Referência em Ensino Médio do Arquipélago.
Eu só me pergunto: quando custa uma viagem dessas aos cofres públicos?
Em tempo: por via das dúvidas, Salles tratou de apagar logo sua conta no Twitter, mas Maia não acreditou nessa lorota.
Vida que segue.
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Nota deste correspondente: O filho presidencial n. 1, senador da República, também participou dos comes & bebes. Flávio Bolsonaro foi para os banhos de mar & sol & lua com passagens pagas pelo Senado.
"Precisa ter um esforço nosso aqui, enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só se fala de covid, e ir passando a boiada, e mudando todo o regramento (ambiental), e simplificando normas".
A frase é famosa: foi dita pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, na reunião ministerial do dia 22 de abril, e tornada pública por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).
Apesar disso, segundo ambientalistas e procuradores ouvidos pela BBC News Brasil, Ricardo Salles já está trabalhando para "passar a boiada" desde o começo de sua gestão, em janeiro de 2019, muito antes da pandemia do novo coronavírus.
Desde que assumiu a pasta, o ministro criou regras que dificultaram a aplicação de multas; transferiu poderes do Ministério do Meio Ambiente para outras pastas; e tentou mudar o entendimento sobre normas como a Lei da Mata Atlântica.
A última tentativa de Salles de remover regulamentações ambientais aconteceu nesta segunda-feira (28). Em reunião convocada dias antes pelo ministro, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) revogou quatro resoluções que tratavam de diferentes áreas da política ambiental do país.
Duas das resoluções eliminadas restringiam o desmatamento e a ocupação em áreas de restinga, manguezais e dunas. Na prática, o fim das resoluções, que estavam em vigor desde 2002, criou a possibilidade de ocupação em áreas de restinga numa faixa de 300 metros a partir da praia. Antes, essas áreas eram consideradas como sendo de proteção ambiental.
Na mesma reunião, o Conama também permitiu a queima de lixo tóxico — como embalagens de defensivos agrícolas, por exemplo — em fornos usados originalmente para a produção de cimento. Além disso, o conselho também derrubou uma resolução que criava normas para projetos de irrigação.
A decisão do Conselho é controversa.
Segundo o advogado especializado em direito ambiental Rodrigo Moraes, a decisão foi juridicamente correta, pois as resoluções que foram revogadas seriam ilegais.
As normas foram criadas para regulamentar uma versão anterior do Código Florestal, de 1965, que foi revogado com a edição do novo código, em 2012. Assim, estas também teriam perdido a eficácia, argumenta Moraes. Além disso, diz ele, a exigência de preservar a faixa de 300 metros depois do mar não estava presente na lei original — assim, o Conselho de meio ambiente teria "legislado" de forma indevida ao criar a norma, em 2002.
Já ambientalistas argumentam que a decisão do Conselho foi feita sob medida para atender a setores econômicos.
"Mesmo com a revogação das resoluções, a proteção dos mangues, dunas e restingas continuarão a existir pelas regras do Novo Código Florestal, pela Lei da mata Atlântica e ainda pelas regras constitucionais", argumenta o advogado.
Segundo o deputado federal Rodrigo Agostinho (PSB-SP), coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista do Congresso, o "revogaço" agrada ao mercado imobiliário, que deseja erguer prédios em áreas protegidas à beira-mar; a criadores de camarão que querem construir seus tanques dentro de manguezais; e ao agronegócio, que deseja menos regulamentações nas suas operações com irrigação e agrotóxicos.
Agostinho também rebate o argumento de que as resoluções seriam ilegais. "Tivemos algumas decisões do Judiciário confirmando que as resoluções tinham sido recepcionadas (pelo novo Código Florestal) e estavam em vigor. Agora, ficou uma lacuna. A regulamentação que tinha para manguezais e restingas deixou de existir", disse ele à BBC News Brasil.
No começo da noite desta terça-feira (29/09), a decisão do Conama que revogou as resoluções foi anulada pela Justiça Federal. É uma decisão liminar (provisória) da juíza Maria Amélia Almeida Senos de Carvalho, da 23ª Vara Federal do Rio de Janeiro. Ela atendeu a uma ação popular formulada por um grupo de advogados. Cabe recurso.
Em entrevista ao canal de TV CNN Brasil, nesta quarta-feira (30/09), Salles disse que a pasta vai recorrer da decisão. Ele também lembrou que já existiam estudos para revogar as resoluções desde a gestão da ex-ministra Izabella Teixeira (2010-2016), ainda nos governos do PT. (Continua)