Nos últimos tempos descobri um padrão interessante. Sempre que uso o Twitter para criticar Jair Bolsonaro e os filhos dele e/ou ridicularizar os generais milicianos que atacam o TSE e pretendem dar um golpe de estado eu recebo ligações que minha operadora identifica como Spam. Minha conta de Twitter já foi bloqueada 2 vezes, obrigando-me a recorrer ao poder Judiciário.
Ontem, ao ler uma matéria do jornalista Luis Nassif https://jornalggn.com.br/politica/xadrez-de-como-sera-o-golpe-da-urna-eletronica-por-luis-nassif/ percebi que o padrão referido acima pode não ser uma coincidência e sim uma estratégia deliberada utilizada pelo GSI e por Carlos Bolsonaro para me punir e intimidar. Os arquitetos do golpe de estado querem controlar o mercado de opinião e impedir qualquer tipo de reação dos defensores do regime democrático. Ambos estão em condições de utilizar recursos tecnológicos que não estão à disposição dos cidadãos brasileiros.
Dois precedentes do STF tutelam de maneira ampla a liberdade de expressão:
3. A liberdade de expressão desfruta de uma posição preferencial no Estado democrático brasileiro, por ser uma pré-condição para o exercício esclarecido dos demais direitos e liberdades.
4. Eventual uso abusivo da liberdade de expressão deve ser reparado, preferencialmente, por meio de retificação, direito de resposta ou indenização. Ao determinar a retirada de matéria jornalística de sítio eletrônico de meio de comunicação, a decisão reclamada violou essa orientação. (Rcl 22328 / RJ – RIO DE JANEIRO, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Julgamento: 06/03/2018, Publicação: 10/05/2018, Órgão julgador: Primeira Turma)
1. A Democracia não existirá e a livre participação política não florescerá onde a liberdade de expressão for ceifada, pois esta constitui condição essencial ao pluralismo de ideias, que por sua vez é um valor estruturante para o salutar funcionamento do sistema democrático. 2. A livre discussão, a ampla participação política e o princípio democrático estão interligados com a liberdade de expressão, tendo por objeto não somente a proteção de pensamentos e ideias, mas também opiniões, crenças, realização de juízo de valor e críticas a agentes públicos, no sentido de garantir a real participação dos cidadãos na vida coletiva. (ADI 4451, Órgão julgador: Tribunal Pleno, Relator(a): Min. ALEXANDRE DE MORAE, Julgamento: 21/06/2018, Publicação: 06/03/2019)
Com base nesses precedentes reuni as informações necessárias e protocolei uma Reclamação Constitucional no STF. Enquanto for possível, precisamos lutar em defesa da liberdade de expressão. Na ditadura miliciano-militar que estão querendo criar todos terão apenas o direito de ficar calados.
Robert Ressler, um agente aposentado e seus colegas de trabalho, adotaram o termo “serial killer” na década de 70. Atualmente esta palavra é empregada nos sujeitos que cometem séries de crimes cruéis (SAMPAIO, 2015).
Ressler fez parte de uma corporação do FBI denominada Behavior Sciences Unit (Unidade de Ciência Comportamental), tal corporação deu continuidade ao trabalho estabelecido por James Brussel o genitor da metodologia moderna e psiquiatria. Brussel era considerado o precursor do conhecimento das mentes perigosas e assassinos em série (CASOY, 2002).
Os integrantes da BSU Behavior Sciences Unit (Unidade de Ciência Comportamental) visitavam os seriais killers dentro da cela de prisão e realizam entrevistas com os apresentados. As entrevistas eram gravadas e arquivadas com o objetivo de construir coletas de informações. A ideia do grupo que principiou a busca para dialogar com os assassinos em série, foi destinada na vontade e interesse em aspirar a compreensão da mente do serial killer. E a partir da relevância pela clareza destas mentes perturbadoras, originam-se os nomeados profilers. A nomeação é direcionada para os profissionais que demarcam o perfil do assassino em série. O conhecimento para alcançar o delineamento do perfil advém das entrevistas e fotografias retiradas na cena do crime (FAVARIM, 2015).
Alguns autores discordam da colocação do FBI. "há muitas críticas em relação à correta definição do serial killer. Alguns entendem serem necessárias apenas duas mortes; outros afirmam serem necessárias no mínimo, quatro pessoas mortas" (VELLASQUES, 2008, p. 18).
O Manual de Classificação de Crimes do FBI (1992) configura o serial killer da seguinte forma. “três ou mais eventos separados em três ou mais locais separados com um período de resfriamento emocional entre os homicídios” (NEWTON, 2005, p. 49). O termo período de resfriamento emocional, refere-se ao serial killer que retorna as suas atividades cotidianas, sem tirar vidas de pessoas inocentes.
Segundo Newton (2005, p. 49-50), o conceito posto pelo FBI cristaliza três falhas:
Primeiro, temos o requisito de “três ou mais” assassinatos para compor uma série bona fide. Infelizmente, as outras categorias “oficiais” do FBI de assassinato - único, duplo, triplo, massa, e atividade de assassinato - não fazem nenhuma referência ao fato de o assassinato de apenas duas vítimas no requisitado período de “resfriamento” entre os crimes e que é então preso antes atingir o número três. O assassinato duplo, no linguajar do FBI, descreve duas vítimas assassinadas no mesmo tempo e lugar; atividade de assassinato, enquanto isso, pode ter apenas duas vítimas, mas é definido como “um evento único com [...] nenhum período de resfriamento emocional entre os assassinatos”. Assim, o assassino que aguardar meses ou mesmo anos entre seu primeiro e segundo assassinato e encontra-se na prisão não se encaixa no esquema do FBI (NEWTON, 2005, p. 49-50).
Bem como, para Vellasques (2008), conceituar um indivíduo como serial killer, é necessário levar em consideração as causas ou a ausência desta ao cometer o homicídio. Neste ponto, não é relevante verificar a quantidade de indivíduos mortos.
Entretanto, foi verificado impasses nesta definição imposta pelo FBI, de acordo com Harold Schecheter (2003, p.16) “por um lado ela é vasta demais podendo ser encaixada em tipos homicidas que não são considerados seriais killers, como por exemplo, os matadores de aluguel.”
Ainda com a posição do autor Harold Schecheter (2003)
Quando Siegfried Kracauer usou pela primeira vez o termo “homicida em série” falava do personagem interpretado por Peter Lorre no clássico filme Fritz Lang, O vampiro de Dusseldorf (1931), um pervertido repulsivo de cara redonda que atacava menininhas. Alguns anos mais tarde, John Brophy usou-o para descrever assassinos como Jack, o Estripador, e Earle Leonard Nelson, o infame “Gorila Assassino” da década de 1920, que estrangulou e estuprou dezenas de mulheres nos Estados Unidos e no Canadá. Quando Robert Ressler e seus colegas na Unidade de Ciência Comportamental do FBI adotaram o termo na década de 1970, aplicaram-no a psicopatas homicidas como ted Bundy, John Wayne e Gacy e Edmund Kemper. Em todos esses casos. Havia um ponto em comum: um forte componente de sexualidade depravada (SCHECHTER, 2003, p. 17).
Sob a concepção de Casoy (2004) a respeito do serial killer;
O primeiro obstáculo na definição de um serial killer é que algumas pessoas precisam ser mortas para que ele possa ser definido assim. Alguns estudiosos acreditam que cometer dois assassinatos já faz daquele assassino, um serial killer. Outros afirmam que o criminoso deve ter assassinado pelo menos quatro pessoas (CASOY, 2004, pág. 16).
Existe a nomeada “definição estatística” onde diz respeito a “três ou mais mortes para a configuração de um serial killer” (Alvarez, 2004). Porém, surgiram críticas referentes a esta colocação de aspectos que definem o serial killer, pois, não poderia considerar às vezes em que o criminoso fracassa na sua intenção de matar.
Na universidade de Illinois, localizada em Sprinfield, o professor Egger lançou umas das atuais definições para enquadrar como serial killer o sujeito que mata, seguindo alguns critérios impostos pelo supracitado. Fato que ocorreu no ano de 1998. Egger, diminuiu a quantidade de homicídios que até então era três, regrediram para dois. Além do mais, o ato criminal frequentemente é realizado em distinto local (ALVAREZ, 2004).
Um assassinato em série ocorre quando um ou mais indivíduos (em muitos casos homens) cometem um segundo e/ou posterior assassinato; não existe em geral relação anterior entre a vítima e o agressor (se aquela existe coloca sempre a vítima em uma posição de inferioridade frente ao assassino); os assassinatos posteriores ocorrem em diferentes momentos e não têm relação aparente com o assassinato inicial e costumam ser cometidos em uma localização geográfica distinta. Ademais, o motivo do crime não é o lucro, mas, sim, o desejo do assassino de exercer controle ou dominação sobre suas vítimas. Estas últimas podem ter valor simbólico para o assassino e/ou ser carentes de valor e, na maioria dos casos, não podem defender-se e avisar a terceiros de sua situação de impossibilidade de defesa; ou são vistas como impotentes dada sua situação nesse momento, o local e a posição social que detenham dentro de seu entorno, como, por exemplo, no caso de indigente, prostitutas, trabalhadores imigrantes, homossexuais, crianças desaparecidas, mulheres que saíram desacompanhadas de casa, velhas, universitárias e paciente de hospital. (ROCA apud BONFIM 2004, p. 79).
A autora Vellasques (2008), aborda assuntos a despeito dos equipamentos existentes nos Estados unidos. País este onde a ocorrência do serial killer é alarmante, e por consequência dos episódios de brutalidade cometida pelo sujeito alcunhado assassino em série, foi gerado o material avançado para simplificar na operação da investigação do indivíduo que efetua uma série de crimes, sendo assim a autora aborda que:
O departamento de polícia americano possui equipamentos avançados que facilitam na investigação desses tipos de casos, prova disso é que possui o Violent Criminal Apprehension Program (VICAP), um programa de 17 computador que registra os assassinatos em sua base de dados, facilitando relacionar velhos homicídios a novos fatos (VELLASQUES, 2008, p 22).
Em contraposição, no Brasil ainda existe impedimento para o reconhecimento do perfil do serial killer, em virtude da escassez de estudos pormenorizado a respeito do tema referido. Tendo em vista que, casos no Brasil culminam em não ser julgado e tem por encerrado o arquivo dos registros (MOURA, 2017).
[No Brasil dos massacres, das chacinas, do genocídio de jovens negros, do genocídio dos povos indígenas, dos assassinos eleitos para "heróicas" bancadas da bala nas Assembleias Legislativas e Câmara dos Deputados e Senado Federal, dificilmente o reconhecimento do perfil do psicopata serial killer e, principalmente, seu julgamento pelos crimes praticados, notadamente de tortura, mutilações e mortes extremamente desnecessárias, covardes, humilhantes, desumanas e violentas.
O famoso coronel Ustra "brincava" de colocar ratos em vaginas de adolescentes, de jovens estudantes secundaristas e universitárias. Na repetição da incomum, extravagante tortura, todo o sadismo sexual de um psicopata, de um assassino frio e cruel]
A ministra Maria Elizabeth Rocha, do Superior Tribunal Militar (STM), disse ao blog nesta segunda-feira (18) que a divulgação dos áudios que detalham tortura na ditadura militaré importante para que “erros que foram cometidos não se repitam” na História do Brasil.
Importante serem revelados esses áudios porque tudo faz parte da história do país, memória do país -- e para que erros não se repitam”.
As gravações, reveladas pela jornalista Miriam Leitão, no jornal O Globo, são de sessões do STM de julgamentos durante a ditadura. Desde 2018, esses áudios estão sendo analisados pelo historiador Carlos Fico.
Em entrevista ao jornal "O Globo", Carlos Fico explicou que, em 2006, o advogado Fernando Fernandes pediu ao STM acesso às gravações, mas não conseguiu e, então, acionou o Supremo Tribunal Federal, que determinou a liberação do conteúdo. O STM, porém, não obedeceu a decisão e, em 2011, a ministra Cármen Lúcia determinou o acesso irrestrito aos autos, decisão posteriormente referendada pelo plenário.
Hoje, o vice-presidente, Hamilton Mourão,ironizou a possível investigação dos áudios, após a revelação feita pela coluna de Miriam Leitão. “Apurar o quê? Os caras já morreram tudo, pô. [risos]. Vai trazer os caras do túmulo de volta?”, afirmou Mourão, que é general da reserva do Exército.
Questionada pelo blog sobre uma investigação das gravações, a ministra Maria Elizabeth disse que qualquer apuração depende, primeiro, da ação da Polícia Judiciária e do Ministério Público Militar --o que nunca ocorreu.
Elizabeth faz, então, o que ela chama de “defesa institucional” do Superior Tribunal Militar.
Para a ministra, “do jeito que está sendo colocado”, “parece que o STM não sabia das torturas” e não se “insurgiu contra as sevícias (barbaridades)”. “As torturas aconteceram e o STM reconheceu isso, inclusive, em documento, num acórdão unânime de um caso em 1977”. “Agora, não julgou pois nunca houve --pelo menos eu não tenho conhecimento-- de uma ação do Ministério Público Militar. O STM não podia julgar sem ação penal. E todo mundo sabe que Judiciário só pode se pronunciar sob provocação”, afirma.
Na avaliação da ministra, o Judiciário falhou na ditadura militar: “Instituições erram”. Mas, para Maria Elizabeth, a ditadura provocou desgastes para as Forças Armadas como um todo, assim como fez para a imagem do STM, o que ela chama de “injusto”.
Procedimento pode ser feito pelo site do Tribunal Superior Eleitoral
Todos os brasileiros a partir de 16 anos têm até o dia 4 de maio para pedir a primeira via do título de eleitor ou regularizá-lo a tempo de votar nas Eleições de 2022. O procedimento pode serfeito pela internet, por meio doTítulo Net.
O primeiro turno da votação está marcado para2 de outubro.Já o segundo turno, nos estados e nacionalmente, caso preciso, ocorrerão em30 de outubro,último domingo do mês.
Conhece alguém com 16 e 17 anos que ainda não tirou o título de eleitor? Compartilhe esta notícia porWhatsAppouTelegramque ainda dá tempo. Leia mais
Vamos derrotar as forças do mal. Os inimigos da Claridade, da Liberdade, da Democracia, da Fraternidade. Vamos calar os golpistas. Vamos fechar o gabinete do ódio e sua máquina de fake news.
Tortura nunca mais. Exílio nunca mais. Ditadura nunca mais.
O sequestro dos uruguaios, afinal revelado pela repentina aparição de dois repórteres de Veja no apartamento de Lilián, no momento em que era mantida prisioneira pelo comando binacional da Condor, quebrou o necessário sigilo da operação encoberta e jogou sobre ela os inesperados holofotes da imprensa e da Justiça. O sequestro frustrado de Porto Alegre é a única operação da Condor que fracassou no continente, já que impediu a tétrica rotina carcará que fazia suas vítimas serem capturadas, torturadas e mortas.
Ricardo Chaves
Seelig, Irno e Didi Pedalada : a repressão de 1964 senta pela primeira vez no banco dos réus
Graças à denúncia da imprensa, Universindo e Lilián deixaram de ser mortos, apesar de presos e torturados. Assim, pela primeira vez no Brasil, agentes do intocável aparato repressivo de 1964 tiveram que sentar no banco de réus, na Justiça Federal de Porto Alegre, para responder por seus crimes políticos. O delegado Pedro Seelig e seus dois agentes do DOPS, o inspetor João Augusto da Rosa, o ‘Irno’, e o escrivão Orandir Portassi Lucas, o ‘Didi Pedalada’ – que receberam com pistola na cabeça o repórter Luiz Cláudio Cunha e o fotógrafo João Baptista Scalco –, tiveram o inédito constrangimento de ouvir, como réus, os testemunhos sobre o crime transnacional praticado.
No seu voto corajoso, o juiz Moacir Danilo Rodrigues deu uma bofetada moral na ditadura, que sempre tratou o caso como mero ‘desaparecimento’, reconhecendo na sua decisão final que havia ocorrido, sim, um sequestro. Por limitações da lei, o magistrado teve que condenar ‘Irno’ e ‘Didi Pedalada’, os dois agentes de Seelig que receberam armados os jornalistas no apartamento de Lilián, ao crime menor de abuso de autoridade – com a pena de seis meses de detenção, beneficiada pela suspensão do sursis, e a proibição de trabalhar por dois anos na região de Porto Alegre. O criminoso maior, o delegado Seelig, executivo principal do sequestro, acabou não sendo condenado por “falta de provas”, apesar das maciças evidências contra ele.
Além da tecnicalidade da decisão, restava a certeza de que as provas que faltaram contra Seelig estavam naquele momento, julho de 1980, penduradas sob tortura nas masmorras de Montevidéu. Sequestrados em Porto Alegre, Universindo e Lilián foram condenados a cinco anos de cárcere pela servil Justiça Militar de seu país pelo falso crime de ‘invasão do Uruguai’. Foram libertados em 1983, para confirmar aos jornalistas o que todos sabiam: Pedro Seelig era o homem que os sequestrou e torturou na capital gaúcha.
A ditadura no banco dos réus
O delegado torturador também só escapou da prisão porque não teve contra ele o testemunho devastador de Adélio Dias de Souza, 34 anos, o bilheteiro da empresa TTL na Rodoviária que viu o exato momento, naquele domingo, em que Seelig prendeu Lilián pelo braço. Como milhões de brasileiros, Adélio temia a ditadura – e, como gaúcho, temia ainda mais o afamado Seelig. Uma última tentativa de convencimento sobre Adélio foi na casa do promotor Dirceu Pinto, responsável pela acusação no caso do sequestro. O bilheteiro tinha razões maiores para temer: sua mulher, Carmen, estava grávida de seis meses do segundo filho. Quando o promotor lhe garantiu segurança e proteção para depor como testemunha de acusação, Adélio respondeu com uma pergunta certeira, que assombrava a cabeça de todo brasileiro sensato: – Proteção contra o DOPS, doutor?
O bilheteiro Adélio não gozava da proteção que amparava o delegado Seelig. Em meados de agosto, três semanas após a decisão do juiz reconhecendo o sequestro, o general Antônio Bandeira, comandante do III Exército, concedeu a Seelig a Ordem do Mérito Militar, no grau de Cavaleiro. No final de dezembro, o governador Amaral de Souza promoveu Seelig a delegado de quarta classe, o ponto mais alto da hierarquia policial. O delegado do DOPS atingira, enfim, o topo da carreira. Graças ao sequestro, contudo, caíra no fundo do poço de sua premiada e atribulada biografia na repressão brasileira.
Com o peito estufado de medalhas e a incômoda notoriedade de seu retumbante fracasso, Seelig submergiu no ocaso melancólico da ditadura, rumo ao silêncio da aposentadoria, na placidez da velhice e no conforto de sua eterna impunidade. Até morrer na terça-feira, 8 de março, aos 88 anos.
O fracasso do jornalismo
O que não morreu, porém, foi a crônica e cúmplice preguiça da imprensa no tratamento, agora, de uma personalidade tão complexa e devastadora. A grande imprensa nacional deu pouco espaço à sua biografia sangrenta e destacou apena o detalhe burocrático de que ele fazia parte da lista de 377 responsáveis por grave abusos de direitos humanos na ditadura, segundo a Comissão Nacional da Verdade. A imprensa nativa e cordial do Rio Grande do Sul fez ainda pior, com o agravante de saber, com mais precisão, do verdadeiro caráter da personagem que morria.
REPRODUÇÃO
O Correio do Povo gagueja na sua covardia: diz que foi a equipe de Seelig, não ele, que torturava
Os dois principais jornais do Rio Grande do Sul afundaram na mediocridade e na indolência que leva ao conluio, sinônimo de cumplicidade. A dimensão repressiva e a esteira de sangue que Seelig deixou para trás merecia o rigor jornalístico que o personagem exige, sob o perigo de se cometer um crime de lesa-memória. O Correio do Povo, hoje subjugado pelos pastores da Igreja Universal do governista bispo Edir Macedo, teve o cuidado de não ofender as convicções autoritárias do capitão-presidente Jair Bolsonaro, que defende a ditadura e os torturadores. Escreveu um obituário miserável, de 25 linhas e apenas 303 palavras, que deixaria até um pastor envergonhado pelo péssimo e omisso jornalismo.
O texto gagueja para não dizer que Seelig foi o maior torturador gaúcho, um dos principais do Brasil. Abusa das palavras ‘suspeito’ e ‘suposto’ para dizer que Seelig é apenas suspeito pelo sequestro dos uruguaios, um ‘suposto’ crime praticado pelas duas ditaduras. Em absolvição plenária, diz que o delegado é ‘suspeito’ de ser um dos nomes fundamentais da repressão de 1964 e informa que ele foi citado, em CPIs da Assembleia por ‘supostos’ crimes contra opositores do regime. E não deixa de fazer uma ressalva: Seelig comandava “uma equipe que foi acusada” (a equipe, não o delegado) de praticar e estimular a tortura.
Muito pior fez o principal jornal gaúcho, a Zero Hora¸ que capengou em um jornalismo relaxado e fundamentalmente comparsa. Não conseguiu fingir agilidade nem em sua decantada edição digital. Seelig morreu na terça-feira, 8, e a notícia já disparava pelas redes sociais, na manhã seguinte, 9. Apesar disso, o distraído portal da ZH só conseguiu dar a notícia da morte de um policial tão importante quase no final da noite de quarta-feira, às 22h07. O texto foi atualizado nove horas depois, já na manhã de quinta, 10, às 7h35, sem conseguir agregar nenhum detalhe ao texto insosso da noite anterior. A começar pelo título indulgente, simplório e apaniguado:
“Aos 87 anos, morre Pedro Seelig, ex-delegado da Polícia Civil”.
A Zero Hora e seu texto servil e desinformado: burocrático, simplório, revoltante
Deu a notícia enrolada em falsa neutralidade, com infame distanciamento, como se fosse a morte de um cidadão comum, da rotina do serviço público, não o mais controverso e contestado agente do aparato repressivo da ditadura no Sul, sempre relacionado à tortura. O texto da Zero Hora, de apenas 246 palavras e enxutas 21 linhas, mais abreviado do que o telegráfico registro do Correio do Povo, deixaria assombrado o mais modorrento redator do Diário Oficial.
Oficialista, o jornal cedeu um terço de seu desinformado espaço para a nota previsível e lamentosa da diretoria da Associação de Delegados, que Seelig integrou várias vezes. Depois, com o devido recato, registrou levianamente, sem detalhes, que o delegado foi ‘acusado’ de participar de casos de detenção ilegal e tortura, mas nunca foi condenado, por “falta de provas”. Não houve nenhum esforço, nem nos dias seguintes, para ouvir os inúmeros sobreviventes de dor e sofrimento espalhados por Porto Alegre que passaram pelos comprovados suplícios praticados no DOPS sob o comando de Seelig.
Reprodução
A morte oculta de Seelig na ZH: obituário sem foto, entre motorista de cervejaria e treinador irlandês
No obituário complacente da edição impressa, na quinta-feira, o mesmo texto imprestável da digital foi reproduzido, sem uma vírgula de atualização. Em vez de uma reportagem ampla, dois dias após a morte, detalhando o que foi a vida e a obra sanguinária de Seelig, a notícia protocolar de sua morte foi confinada à rebaixada página do Obituário, naquele dia dedicado a três mortos: o irlandês Frank O’Farrel, um desconhecido treinador de futebol que comandou craques dos anos 1960 no Manchester United, e o gaúcho Victor Wartchow, um ex-motorista de caminhão de 82 anos. Um e outro com foto.
No centro, no espaço confinado de uma coluna, a nota insossa e repetida da morte de Pedro Seelig, sem fotos. O texto da ZH encerra com um primor de desinformação e desatino histórico. Diz que Lilián e Universindo, depois de sequestrados para o Uruguai, “lá foram libertados graças a uma denúncia em reportagem feita por jornalistas da revista Veja”. Falso. Os jornalistas denunciaram o sequestro, que é o que lhes cabia. Os uruguaios sequestrados e torturados foram condenados e cumpriram cinco anos de pena por “invasão” do Uruguai, até serem libertados pelos militares – e não pela imprensa – em 1983.
Se fosse menos leniente, a redação do jornal poderia fazer um jornalismo elementar, sem maiores esforços, apenas consultando o seu próprio arquivo. Lá encontraria, na edição de 22 de novembro de 1993, a fulgurante primeira página do jornal, anunciando um caderno especial de oito páginas que Zero Hora fez, com destaque, sob um título inspirador: ”EXCLUSIVO – 15 anos do sequestro dos uruguaios – O fim dos segredos”.
Reprodução Arquivo Zero Hora
Vexame jornalístico: o caderno especial e o ‘furo’ que Zero Hora esqueceu no seu arquivo
É uma reportagem apurada e assinada em 1993 pelo mesmo repórter que fez a denúncia na Veja em 1978, Luiz Cláudio Cunha, então chefe da sucursal da Zero Hora em Brasília – e agora autor deste texto no OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA.
Uma das revelações relevantes e inéditas do caderno de ZH era a identidade do bilheteiro Adélio, da Rodoviária, denunciando pela primeira vez o momento exato da prisão de Lilián pelo próprio Seelig, sem as bobas condicionantes e ressalvas que o jornal faz agora para absolver o delegado morto.
Por incrível que pareça, ZH esqueceu o seu próprio ‘furo’!
Mais lamentável do que a morte de Seelig, um notório torturador que sucumbiu sem contar nada do que sabia e sem pagar nada pelo que cometeu, é constatar a escassez de repórteres nas ruas e a falta de coragem política no comando das redações para exercer um jornalismo de qualidade e de relevo, essenciais para manter o leitor informado.
O desprezível desempenho da imprensa, agora, no episódio da morte de um dos principais torturadores do país deveria ser tema de estudo intenso e aceso debate nas redações e nas escolas de jornalismo.
Tudo isso é fundamental para cumprir o mesmo e perene compromisso que todo cidadão tem – especialmente nós, jornalistas e executivos de redação – para denunciar sempre a tortura e a ditadura.
Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça!
O Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas divulgou na sexta-feira, 11, nota pública contestando a ocultação de trechos do relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Menções ao nome de Olinto de Sousa Ferraz, ex-coronel da Polícia Militar de Pernambuco, foram tarjadas em preto na versão do documento disponibilizada pelo Sistema de Informações do Arquivo Nacional (SIAN). As organizações que assinam a nota – entre as quais o objETHOS – qualificam a ação como uma “grave ameaça ao acesso à informação, ao direito à verdade e à memória no Brasil”.
A censura ao relatório da CNV é resultado de processo movido contra a União, em 2019, pelos filhos do ex-coronel, já falecido. Marcos Olinto Novais de Souza e Maria Fernanda Novais de Souza Cavalcanti alegam que o documento incluiu Olinto Ferraz em uma “lista de torturadores e violadores de direitos humanos”. No entanto, o relatório não o qualifica diretamente como torturador e/ou violador de direitos humanos, mas o cita entre os integrantes da cadeia de comando de órgãos usados na ditadura militar brasileira. Ferraz foi diretor da Casa de Detenção do Recife à época em que Amaro Luiz de Carvalho, militante do Partido Comunista Revolucionário (PCR), foi morto no local, em 1971.
O Fórum afirma que a decisão descumpre a Lei de Acesso à Informação (LAI), ao ocultar informações que desrespeitam a uma ação voltada para a recuperação de fatos históricos (Lei 12.527/2011, art. 31, § 4º). Além disso, a restrição contraria dispositivos internacionais, como o da Corte Interamericana de Direitos Humanos envolvendo o caso de Vladimir Herzog e a “Ley Modelo de Acceso a la Información”, da Organização dos Estados Americanos (OEA), que tem o Brasil entre seus signatários.
“A decisão da Justiça Federal abre um precedente inadmissível para que a censura seja imposta a documentos que registram as graves violações aos direitos humanos ocorridas durante a ditadura militar e as investigações a respeito, bem como toda a história brasileira”, alertam as entidades. “Ignorar esse princípio e permitir o tarjamento é violar o direito ao acesso à informação e o direito à memória e à verdade de toda a sociedade brasileira”.
Por meio da nota, as organizações exigem que a Advocacia-Geral da União (AGU) tome providências para apelar contra a decisão da 6ª Vara Federal do Recife e busque o restabelecimento imediato dos trechos ocultados no relatório final da Comissão Nacional da Verdade armazenado pelo Arquivo Nacional.
Grave ameaça ao acesso à informação, ao direito à verdade e à memória no Brasil
Nota do Fórum
Restrição imposta ao relatório final da Comissão Nacional da Verdade é grave ameaça ao acesso à informação, ao direito à verdade e à memória no Brasil
Em decisão tomada no dia 8 de abril de 2021, a Justiça Federal de Pernambuco determinou a retirada de trechos do relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), alterando pelo menos três páginas do documento. Menções ao nome de Olinto de Sousa Ferraz, ex-coronel da Polícia Militar de Pernambuco, foram tarjadas em preto no relatório final da CNV disponibilizado pelo Sistema de Informações do Arquivo Nacional (SIAN) – justamente o órgão que tem como função gerir o patrimônio documental do país. A edição original do documento, sem censura, pode ser consultada no site da CNV, no Internet Archive e em versões divulgadas pela imprensa .
A resolução atende ao pedido de filhos do ex-coronel, já falecido, em processo movido contra a União em 2019. Marcos Olinto Novais de Sousa e Maria Fernanda Novais de Souza Cavalcanti afirmam que o relatório incluiu Ferraz em uma “lista de torturadores e violadores de direitos humanos”.
Além de ser um sério retrocesso ao direito à memória e à verdade e de contrariar a legislação nacional e a jurisprudência internacional, a decisão tem problemas formais e lógicos. Na sentença que determinou a retirada do nome de Ferraz do relatório, indica-se que a mencionada lista consta de uma reportagem do Jornal do Commercio de 14 de dezembro de 2014, reproduzida por um historiador no Facebook.
O documento da CNV não qualifica diretamente o ex-coronel como torturador e/ou violador de direitos humanos, mas o aponta na cadeia de comando de órgãos usados na repressão. Olinto Ferraz é citado em dois contextos por ter sido o diretor da Casa de Detenção do Recife à época em que Amaro Luiz de Carvalho, militante do Partido Comunista Revolucionário (PCR), foi morto no local, em 1971.
O primeiro contexto é uma relação que aponta “responsabilidade pela gestão de estruturas e condução de procedimentos destinados à prática de graves violações de direitos humanos” (Volume I, página 871). O segundo, a lista de mortos e desaparecidos políticos (1970-1971), em que o ex-coronel aparece como integrante da cadeia de comando dos órgãos envolvidos – no caso, a Casa de Detenção do Recife.
O próprio juiz aponta, na sentença, que “inexiste, por parte da UNIÃO, qualquer imputação de crime de tortura ou prática de graves violações de direitos humanos ao Sr. Olinto de Souza Ferraz ao informar que ele era o responsável pelo controle de estruturas e pelos agentes de procedimentos (…)”.
Ainda assim, o magistrado atendeu ao pedido da família por considerar que o uso de uma palavra (“permitiram”) no relatório “abre margem para interpretações negativas” sobre a imagem, dignidade e honra de Ferraz. O termo aparece na explicação da CNV a respeito da lista em que o ex-coronel aparece, de responsáveis por gerir estruturas usadas na repressão:
[A seção do relatório] corresponde a agentes que, mesmo sem haver praticado diretamente graves violações de direitos humanos, permitiram, por atuação comissiva ou omissiva, que tais atos ilícitos fossem cometidos, sistemática ou ocasionalmente, em unidades do Estado sob sua administração.
“Entendo que qualquer interpretação negativa, em especial quando o assunto é o cometimento de crimes tão graves, deve ser coibida”, diz o juiz.
Coibir interpretações negativas não é um argumento válido para submeter documentos públicos a restrições de acesso de qualquer natureza.
O § 4º do art. 31 da Lei de Acesso à Informação (LAI) – sancionada simultaneamente à lei que criou a CNV – determina que “a restrição de acesso à informação relativa à vida privada, honra e imagem de pessoa não poderá ser invocada com o intuito de prejudicar processo de apuração de irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido, bem como em ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância”.
A decisão da Justiça Federal abre um precedente inadmissível para que a censura seja imposta a documentos que registram as graves violações aos direitos humanos ocorridas durante a ditadura militar e as investigações a respeito, bem como toda a história brasileira. Sobretudo, a decisão deturpa a razão de ser da Comissão Nacional da Verdade – trazer justiça, ou ao menos o reparo da verdade, àqueles e àquelas que sofreram com a perseguição política, desaparecimento forçado e assassinato pelas mãos do Estado ditatorial. Ignorar esse princípio e permitir o tarjamento é violar o direito ao acesso à informação e o direito à memória e à verdade de toda a sociedade brasileira.
Além disso, a decisão judicial é contrária aos dispositivos de diversas decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos envolvendo o Brasil, como os casos Gomes Lund e Vladimir Herzog, em que o tribunal internacional determinou ao país a adoção de medidas para assegurar o acesso à informação, o direito à memória e à verdade.
De maneira abrangente, a própria “Ley Modelo de Acceso a la Información”, da Organização dos Estados Americanos (OEA), permite que algumas informações sejam de fato tachadas em documentos em que haja registros de violações de direitos humanos – mas apenas para proteger a individualidade e a honra das vítimas. Cabe lembrar que o Brasil é signatário da OEA.
É extremamente preocupante, ainda, a omissão da Advocacia-Geral da União em seu dever de defender o direito fundamental de acesso à informação, à memória e à verdade, ao não apresentar recurso contra a decisão e emitir parecer interno pela sua imediata execução.
As organizações que constituem o Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas, coalizão dedicada à defesa da Lei de Acesso à Informação e da transparência pública, se solidarizam com todas as vítimas e familiares de graves violações aos direitos humanos durante a ditadura civil-militar. Exigem que a Advocacia-Geral da União (AGU) tome providências para apelar contra a decisão da 6ª Vara Federal do Recife, que ainda não transitou em julgado, e para buscar a plena aplicação da Lei de Acesso à Informação e o restabelecimento imediato dos trechos agora ocultados do relatório final da Comissão Nacional da Verdade armazenado no Sistema de Informações do Arquivo Nacional (SIAN). Trata-se de ação indispensável para a garantia do cumprimento da missão do Arquivo Nacional.
Assinam:
Agência Livre.jor
ARTIGO 19
Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji)
Associação de Jornalismo Digital (Ajor)
Associação Fiquem Sabendo
Observatório da Ética Jornalística (objETHOS)
Rede Nacional de Observatórios da Imprensa (RENOI)
Tomar a vacina foi o momento coletivo mais esperado de 2021! Por conta dele, a vacina não chegou no braço da maioria dos brasileiros e brasileiras.
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Natália Bonavides
A gente tb, Henfil! Hoje, são 34 anos de saudades! #HenfilPresente
Hj perdemos a advogada Eny Moreira, militante dos direitos humanos que defendeu presos políticos do regime militar. Entre eles, a jovem Aurora do Nascimento, torturada e morta aos 26 anos. No vídeo, Eny relata emocionada como encontrou o corpo de Aurora.
Nosso mandato trabalha pra garantir direitos à classe trabalhadora. Queremos assegurar condições dignas de trabalho, moradia, educação e qualidade de vida. Em tempos tão difíceis, não podíamos deixar de apresentar a maior quantidade possível de propostas p/ proteger a população.
Os principais exemplos são a prorrogação da Lei Aldir Blanc, de incentivo a cultura, aprovação do Vale Gás, c/ desconto de 50% no preço do gás de cozinha p/ famílias de baixa renda e o Despejo Zero, q impede despejos em plena pandemia. Em 2022, nosso trabalho continua! Tamo junto!
Obrigada a todo mundo que chegou junto nas lutas deste ano. Em 2022 seguiremos lado a lado, defendendo as coisas mais belas, a ciência e a saúde, a classe trabalhadora, os sonhos, a comida no prato do povo e a democracia! Simbora fazer o Brasil Feliz de Novo!
Para o autor de ‘Repúblicas das milícias’, na cartilha de Bolsonaro, achacar alguém pelo preço do gás ou destruir uma floresta é a mesma coisa. Estamos próximos a uma República Federativa de Rio das Pedras
AO ASSUMIR EM 2018, o presidente Jair Bolsonaro não trouxe apenas a sua visão de mundo para o governo, mas um projeto de uma sociedade pautada a partir dos valores da milícia gestado há décadas em Rio das Pedras, favela na zona oeste do Rio, a poucos quilômetros do condomínio Vivendas da Barra.
É a defesa desse projeto que permite, por exemplo, que um certo Jair fique à vontade para conversar com um miliciano foragido como Adriano da Nóbrega, que já era um dos principais criminosos do Rio quando teve sua mãe contratada como assessora no gabinete de Flávio Bolsonaro, o 01, em 2016. Ou que o dinheiro das rachadinhas recolhido nos gabinetes da família financie construções da milícia.
Conversei com o jornalista e historiador Bruno Paes Manso no fim de julho para entender como essa lógica “milicianista” é reproduzida nacionalmente. Para Paes Manso, autor do livro “A república das milícias” e do ensaio “República Federativa de Rio das Pedras”, publicado em agosto na revista Serrote, editada pelo Instituto Moreira Salles, há semelhanças entre o modelo econômico dos paramilitares e as práticas do governo atual que enxergam qualquer lei ou limite – em especial a Constituição cidadã de 1988 – como inimigos. Em escala nacional isso significa poder destruir florestas, invadir terras indígenas, armar a população, passar por cima dos interesses das minorias e dos valores democráticos.
Apesar de a conversa ter acontecido antes dos planos bolsonaristas de tomada do STF no 7 de setembro ganharem manchetes, o historiador já indica que o golpe é o único caminho possível para um presidente que vê seu apoio derreter dia a dia e faz questão de viver em uma realidade paralela.
Paula Bianchi entrevista Bruno Paes Manso
Foto: Arquivo Pessoal/Bruno Paes Manso
Intercept – Você começa tanto o livro quanto o artigo falando da favela de Rio das Pedras, que acabou se tornando um personagem nacional com a ascensão do governo Bolsonaro. Qual é a especificidade desse lugar que te permite vislumbrar essa caminhada para uma “República de Rio das Pedras”?
Bruno Paes Manso – Rio das Pedras é um bairro na zona oeste do Rio que começa a crescer e a se fortalecer a partir dos anos 1970, e que tem um modelo de auto-organização que ganha forma nos anos 1980 e 1990. Era um lugar com pouco mais de 1 mil pessoas nos anos 1960 e que, em 50 anos, ganha dimensões de uma cidade média, com 40 mil, 50 mil habitantes. Essa auto-organização parte da associação de moradores já que o estado pouco trabalha para fazer a organização dos lotes, a colocação de água, luz, etc. Tudo é feito por intermédio da associação, que tem quase o papel de uma subprefeitura. É ela que estabelece e negocia os terrenos, cobra mensalidade. Também é uma comunidade com forte presença de imigrantes nordestinos, orgulhosos de estabelecer uma certa ordem no caos que era o Rio.
Ao mesmo tempo que havia essa negociação de lotes e de casas pela associação, esse dinheiro ficava na economia local, impulsionando o crescimento do bairro. Quando estive lá, foi uma das coisas que mais me chamou a atenção. Era loja de sushi, de hambúrguer artesanal, mas também de buchada de bode, loungerie, moda feminina de diversas idades, barbearia hipster, internet… Muitas vans nas ruas, um trânsito infernal. Me pareceu – e aqui é o paulistano falando – uma 25 de março de periferia. Um micro formigueiro com uma economia muito forte, bem diferente da imagem de favela que eu imaginava que pudesse encontrar.
A partir dos anos 1990, esse microcosmo é tomado pelos policiais que moravam lá, que matam dois presidentes das associações de moradores em sequência e assumem o poder. Eles passam a criar as leis, ditar o que pode e o que não pode, aplicar as ditas surras pedagógicas, para não deixar roubar, fumar maconha, e por aí vai. Há um momento no começo dos anos 2000 que esse modelo é visto como uma solução de autodefesa comunitária e ganha simpatia dos políticos da época. Naquele tempo, o tráfico era o grande vilão do Rio e apavorava a cidade com conflitos no meio da rua, no meio dos túneis, tiroteios com balas traçantes durante a noite. Rio das Pedras era de alguma forma até valorizada politicamente como um espaço que evitava esse domínio territorial do tráfico. Agora a República do Rio das Pedras é mais sobre como esse modelo veio a se tornar um modelo de gestão nacional.
O que seria o milicianismo?
O milicianismo surge dessa distopia que passamos a viver. Pego esse conceito de organização que surge em Rio das Pedras para pensar nacionalmente, pós-Nova República, como chegamos a essa situação durante o governo Bolsonaro. É a ideia de que você tem instituições democráticas frágeis, incapazes de lidar com o crime, e que para você levar a ordem para esses lugares, você tem que se impor pelo uso da violência. É um tipo de gestão que acredita no papel instrumental da violência, da ameaça, para fazer as pessoas obedecerem e respeitarem as leis. Que acredita que um estado democrático, que exerce o monopólio legítimo da força, o estado moderno, é incapaz de fazer esse trabalho. Pelo contrário, atrapalha a polícia.
De onde vem a ligação da família Bolsonaro com as milícias?
É interessante porque o Bolsonaro sempre fez apologia a essa violência paramilitar. Como quando falava dos grupos de extermínio na Bahia que, para ele, deveriam ser levados para o Rio de Janeiro para acabar com o crime. De alguma maneira, ele sempre representou esses grupos que usavam a violência para levar ordem nos territórios. Eles têm essa forma compartilhada de enxergar o mundo. Além dessa afinidade ideológica, os Bolsonaro têm uma ligação próxima com os grupos milicianos que parte de Fabrício Queiroz, que se tornou uma eminência parda da família. Ele começa a se aproximar deles quando Bolsonaro começa a levar os filhos para o parlamento.
O milicianismo surge dessa distopia que passamos a viver
Quando Flávio Bolsonaro vai disputar as eleições em 2003, aos 22 anos, um garotão de classe média, sem conhecimento nenhum da vida, que acaba eleito a partir do sobrenome do pai, é o Queiroz quem faz a mediação junto aos batalhões e aos grupos de PMs. Em 2006, o Fabrício se torna o principal nome do gabinete do Flávio e começa, como as investigações têm mostrado, a ajudar a organizar as rachadinhas que vão ser um dos modelos de enriquecimento da família na política.
De certa forma, Queiroz foi o primeiro miliciano dessa nova era, ao reunir a ideologia e a prática.
Exatamente. O Fabrício é uma figura muito importante e que tem uma história muito interessante. Ele se formou como PM trabalhando no 18º BPM, na região de Jacarepaguá. Era um batalhão muito conivente com esse grupo que começava a se formar e que hoje entendemos como milícia – inclusive, no livro conto algumas histórias de como um dos milicianos que entrevistei chegava a entrar para pegar armas do 18º BPM para ajudar os policiais a combaterem o tráfico. Queiroz fica lá até 2003 mais ou menos, quando conhece o capitão Adriano Magalhães da Nóbrega, então tenente, que também vai trabalhar no 18º BPM. Juntos eles matam uma pessoa na Cidade de Deus e passam a responder na justiça pelo crime. Eles alegam legítima defesa e conseguem ser inocentados desse caso, mas cria-se um vínculo de sangue entre os dois.
A partir de 2004, Adriano vai trabalhar no 16º BPM, da região de Parada de Lucas [bairro na zona norte do Rio próximo à divisa com a cidade de Duque de Caxias], e ele e o seu grupo passam a ser acusados de extorquir traficantes da região. É nesse momento que Queiroz começa a fazer o lobby do Adriano junto à família Bolsonaro. Adriano era acusado de ter matado uma testemunha que iria denunciá-lo, e o Jair Bolsonaro vai defendê-lo no Congresso, sempre muito atuante para tentar inocentá-lo. Ele ganha a medalha Tiradentes da Assembleia Legislativa do Rio, maior honraria do estado, por indicação do Flávio. Nesse período em que está sendo acusado pela morte, Adriano fica quase dois anos preso. Ele se aproxima do jogo do bicho para a construção do Escritório do Crime que vai ser um grupo de matadores 2.0. Os bicheiros passam a disputar o espólio dos antigos líderes do bicho e começam a travar disputas muito violentas. Eles contratam matadores especializados e é o Adriano que organiza isso.
Ao mesmo tempo, o Adriano vai se tornando ao longo dos dez anos seguintes um dos principais criminosos da história do Rio. Não só um organizador dessa pistolagem 2.0, que vai matar impunemente pagando propina para a polícia durante anos, como vai fazer sociedade na construção de prédios e grilagem na região de Muzema e Rio das Pedras, sociedade com o tráfico de drogas, e participação no jogo do bicho.
Ele se envolve nos principais negócios do crime no Rio. É uma das pessoas mais temidas, inclusive pela própria polícia. E, apesar de nessa década ele se tornar um dos maiores criminosos cariocas, a família dele é contratada para participar do esquema das rachadinhas no escritório do Flávio Bolsonaro. A ex-mulher dele é contratada em 2006 pelo Queiroz, só que a mãe dele é contratada em 2016, quando ele já era um dos maiores criminosos do Rio. A relação [com milícia] acontece mais dessa forma tortuosa, pela ligação do Queiroz com o Adriano e pela ligação do Adriano e da família do Adriano com as rachadinhas no escritório político da família Bolsonaro.
E o que acontece quando se reproduz essa lógica miliciana, que é violenta, que vai contra a legalidade, nacionalmente?
Essa é uma das discussões que faço no artigo da revista Serrote. Por que as pessoas passam a acreditar que isso pode ser um projeto para o Brasil e como isso passa a ser vendido como uma solução para o futuro do país, como muita gente comprando esse projeto, que é quase uma distopia. Um desmonte do que vinha sendo construído desde a Constituição de 1988. A gente passa por 30 anos de Nova República e, a partir de 2014, entra em um momento com denúncias permanentes dos desmandos que também aconteceram na televisão, com vazamento de informações, e todo esse trabalho da força-tarefa da Lava Jato com a imprensa.
Fica uma publicidade ostensiva desses esquemas que aconteciam para financiar eleições muito caras que ocorriam no Brasil que leva a um descrédito e a uma criminalização da política. As pessoas passam a ver a institucionalidade que vinha sendo construída até então como algo danoso, algo formado por ladrões e criminosos. Passam a ver a política como um problema. Só que quando você não acredita na política como uma maneira de mediar conflitos, levar ordem e garantir o contrato social, a solução é a guerra, é a polícia, é uma ordem violenta.
Uma figura e um grupo que dizem não acreditar no estado de direito, na Constituição
Nessa depressão coletiva que a gente passa a viver em 2018, com sucessivas crises políticas e econômicas e com a descrença geral na política, é que uma figura como essa, que se coloca como alguém capaz de restabelecer a ordem pelo uso da violência, passa a ganhar um certo crédito. É nesse sentido que o milicianismo ganha uma dimensão nacional. Uma figura e um grupo que dizem não acreditar no estado de direito, na Constituição, querem reinventar uma nova ordem a partir dos valores que eles representam. E pelo uso da violência armada, da adesão de grupos armados que compactuam com os mesmos valores. Ao mesmo tempo, desconstruindo tudo que vinha sendo formado pela recente democracia brasileira. E a gente passa a correr o risco de se transformar na República Federativa de Rio das Pedras.
Foto: Evaristo Sá/AFP via Getty Images
O próprio presidente Bolsonaro se coloca como se não fizesse parte do governo, quando diz, por exemplo, que ‘o crime de prevaricação se aplica a um servidor público, não a mim’. Com ele não se vê vendo como parte do estado, ele não veria problema em embarcar nessa cruzada miliciana contra a Constituição?
Não deixa de ser curioso que ele pregue o golpe o tempo todo como se já não estivesse no governo há quase 30 anos. Ou seja, ele não quer os limites da lei. Quer se livrar e ter liberdade para agir de acordo com a cabeça dele, os valores dele, e não com o contrato coletivo legitimado pela população que é a Constituição. Ele quer tomar suas decisões e impor suas vontades de acordo com as suas crenças, que é uma visão milicianista de autoridade e do estado de direito.
As nossas instituições, especialistas em notas de repúdios, estão conseguindo lidar com essa situação?
Acho que o presidente já cometeu crimes de responsabilidade suficientes para estar fora do governo. Nenhum governante antes cometeu essa quantidade de erros e de crimes de responsabilidade. Se você for comparar com as pedaladas da Dilma Rousseff é um absurdo. Mas eu compreendo esse debate em torno do desgaste e do trauma que é um processo de impeachment. O próprio impeachment da Dilma mostrou isso.
Bolsonaro quer tomar suas decisões e impor suas vontades de acordo com as suas crenças
Me parece que Bolsonaro está perdendo bastante força política e que a credibilidade dele está se esvaindo. Ele está ficando cada dia mais desacreditado a ponto de já falar sobre a possibilidade de não disputar a reeleição, o que não me parece ser uma coisa da boca para fora porque a surra que ele pode tomar nas próximas eleições é tamanha que eu não sei se ele vai ter coragem de passar por isso depois desses quatro anos. Já vem surgindo uma série de ações que mostram essa fragilidade.
Desde as urnas eletrônicas até outras questões que vão ficando pelo caminho. Ele tem conseguido muito pouco desse embate com as instituições. O que não significa que essa não seja a pretensão dele. É o caminho do golpe. A quantidade de crimes que ele já praticou, a quantidade de desmandos. A única saída que resta é ele reverter o quadro constitucional e governar pelas próprias leis. É a única saída para ele e a família não acabarem presos. Então, apesar de as instituições de alguma forma terem percebido todos os riscos que ele implica, inclusive o mercado, a pretensão dele, no que ele aposta, é o golpe, é a crise. A sublevação das polícias. É uma aposta na desordem para conseguir, a partir dessa sensação de selva e de medo, surgir como o único predador. É o único caminho que ele vislumbra.
Apesar desse derretimento e das ameaças constantes de virar a mesa, Bolsonaro segue mantendo um piso eleitoral bem alto, com cerca de 25%, 30% de apoio.
Essa é uma grande questão. Estamos vivendo numa pandemia, numa crise econômica e social imensa, transitando numa loja de porcelana. Por que as pessoas apoiam ele? O que elas enxergam nele, nesse projeto? De certa forma, é um projeto sedutor. Oferece uma saída simples, constrói bodes expiatórios, inimigos, para explicar a desordem, a pobreza. Supostamente a partir da guerra com esses inimigos, você vai resolver. Trabalhando com o ódio, o sentimento das pessoas, você consegue mobilizar essa adesão, como temos visto, com surpresa, pelas redes sociais, ainda que sem sermos capazes de entender direito o tamanho dessa adesão.
Para além desse piso eleitoral, Bolsonaro e essa lógica milicianista contam com o apoio de grupos grandes, como parte dos evangélicos. Qual o interesse deles em endossar esse projeto?
Os evangélicos são uma força impressionante que surge nas cidades brasileiras a partir dos anos 70, 80, quando aumenta muito a pobreza. Nessa época, inclusive, existia um discurso religioso muito forte mobilizado pela Igreja Católica, pela teologia da libertação, que pregava uma mobilização coletiva para pressionar o estado para ampliação dos direitos e para que o estado melhorasse as condições de vida e os direitos sociais das pessoas que viviam nas misérias das cidades. Esse é um discurso que vai formar o PT, vai ser muito influente na esquerda no começo dos anos 80. Com o passar do tempo, com o descrédito das instituições, quem vive nas periferias passa a duvidar da capacidade do estado de ajudá-los. Pelas próprias fragilidades do estado, limites fiscais para criar condições iguais para as pessoas viverem nas cidades.
Daí surgem os evangélicos com um discurso de empreendedorismo e vontade individual para sair da miséria sem esperar a ajuda de ninguém. Não apenas pela construção de uma auto imagem relacionada ao sagrado que te permite se enxergar como alguém protegido, abençoado, mas como uma força para lutar contra a miséria numa rede, numa espécie de maçonaria de pobre, em que se transformam essas igrejas. Não deixa de ser uma força liberal, anti-estado. Ao mesmo tempo, sempre trabalhando com essa questão do autocontrole individual. Festa, excessos, álcool, droga, sexo – tudo que vai contra esse ideal asceta que é necessário para que você fuja da miséria.
Essa visão moralista também faz parte desse discurso milicianista e dessa nova forma de enxergar o mundo. Você acaba, de alguma forma, permitindo que haja um diálogo com esse milicianismo que também é um discurso empreendedor, que também se pauta pelo consumo, pelo valor do mercado. Do que adianta você ter uma floresta amazônica se existem pepitas no solo que podem te deixar rico? Vamos devastar essa floresta. É você enriquecer pelo seu próprio esforço independente dos valores das minorias, dos valores democráticos. Um empreendedorismo meio selvagem. A teologia da prosperidade, que substitui a da libertação, dialoga justamente com essa ideia de que o consumo, a capacidade de enriquecer, revela uma conexão sua com o sagrado e suas virtudes. Como você é bem aceito por deus. Você acaba tendo esse diálogo e essa compatibilidade de visões de mundo a partir da valorização do empreendedorismo, do ascetismo, do consumo, a despeito das questões coletivas, acusadas de serem pautas de esquerda, do globalismo internacional, do comunismo, que querem frear essa capacidade individual das pessoas de enriquecer. Eles passam a achar que esse projeto milicianista contempla os interesses de todos.
Se para os evangélicos há esse diálogo ideológico, de visão de mundo, o que explica os militares seguirem nessa barca furada?
Você tem um grupo de militares que vem desde a época da ditadura que eram mais próximos da forma como o Sylvio Frota [general linha dura e ministro do Exército, demitido pelo presidente Ernesto Geisel, que tentou evitar que a reabertura democrática acontecesse] enxergava a ditadura militar. Esses militares são formados a partir de uma doutrina formada pelo exército francês nas guerras coloniais na Argélia e no Vietnã de que eles combatiam uma guerra de insurgência. E essa guerra de insurgência não implicava apenas a vitória em combate, já que esses grupos tinham uma ideologia muito forte. A batalha ideológica, cultural, era a principal guerra a ser vencida. Para esses militares, os esquerdistas vinham vencendo essa batalha cultural chegando no ápice em 2010 quando a Dilma, uma ex-guerrilheira, é eleita presidente e faz a Comissão da Verdade.
É isso que [coronel Brilhante] Ustra retrata no livro “A verdade sufocada”, que acaba sendo a bíblia do Bolsonaro. Eles começam com essa teoria conspiratória de que eles estavam perdendo essa batalha cultural e que precisavam retomar os valores tradicionais do Brasil dentro dessa guerra. Isso parecia uma coisa de uns malucos de pijama até 2018 quando eles se mostraram fortes e passaram a governar o Brasil, entrando num governo de um candidato improvável e o transformando num governo militar. E sempre com essa ideia de que havia uma batalha cultural a ser vencida. Do ponto de vista da ciência, das artes, da cultura. Tudo faz parte da luta que eles estão travando.
Temos então uma mistura entre esse grupo miliciano que, por si só, não tem ideologia além de se dar bem a qualquer custo, com uma ala altamente ideológica.
Há um grupo de 30% de brasileiros que compartilham valores reacionários ou tradicionais, seja lá qual o nome que você queira dar a isso, e que estão submetidos a uma lei em que eles não acreditam, que eles consideram que atrapalha o desenvolvimento nacional, que é feita por esquerdistas e comunistas com excesso de direitos e deveres e que eles querem desconstruir para construir uma nova ordem. Porque eles têm as armas e teriam essa capacidade de impor um novo projeto de desenvolvimento a partir dos valores da família, dos valores tradicionais. Isso seria o que eles gostariam de fazer, só que falta combinar com os 70% restantes da população. Por enquanto me parece que ainda temos força para barrar esse projeto.
Quais seriam os limites do presidente Bolsonaro, como eles esbarram nesse governo?
No caso do Bolsonaro, existem algumas especificidades como esse ódio presente o tempo inteiro
O tipo bolsonarista é uma figura muito pouco interessante, com a qual a gente tromba diversas vezes em diversos ambientes. Mas no caso do Bolsonaro existem algumas especificidades como esse ódio presente o tempo inteiro. A defesa explícita da tortura, que nem os militares fazem, o desejo de matar 30 mil pessoas, que a solução para o Brasil seria uma guerra. Uma pessoa não é má por si só. Acho que existe uma história a ser compreendida de onde que vem tanto ódio. E, por outro lado, existem essas obsessões relacionadas a questões sexuais. Ele expôs recentemente isso quando pegaram o Eduardo Pazzuelo negociando o preço de vacinas, e ele soltou do nada, “seria ruim se ele tivesse pelado dentro da piscina”.
Ele também tem essa visão erótica o tempo inteiro. Você vê que, de alguma forma, ele tem desejos que não conjugam com seus próprios valores, por outros homens, que precisaram ser escondidos de si mesmo. Ao mesmo tempo, esse autocontrole acabou tendo que extravasar o gozo por outros caminhos. E esse gozo é na guerra, no ódio, na luta contra algumas pessoas que ele escolhe como inimigos. Uma pessoa com problemas cognitivos, que precisou entrar numa realidade paralela à realidade existente. Os fatos para essa pessoa que luta contra a própria verdade de si próprio começam a ser desprezíveis. Ele começa a acreditar num outro tipo de verdade, que só ele enxerga. Acho que o mais interessante disso tudo é como essa figura cheia de ódio e cheia de recalques, que extravasa o gozo a partir do ódio, começa a ser vista como um salvador da pátria por muita gente. Essa é a grande questão. Porque tanta gente passa a acreditar nisso, que existe solução numa liderança como essa.
Tanto no livro quanto no artigo você fala em uma sociedade mal resolvida com a sua cultura. Que chaga é essa que temos que olhar e resolver como sociedade?
De alguma maneira, a gente vê isso no próprio movimento pentecostal, que convive mal com uma cultura que associa com o atraso e a incivilidade, que é a cultura negra, africana e indígena. O demônio é tudo aquilo que de alguma forma representa as religiões afro-brasileiras, associadas ao atraso, à inseguridade. E para a gente se tornar um país desenvolvido e mais parecido com Miami, com os EUA, a gente precisaria de alguma maneira podar e controlar esse nosso passado selvagem indígena e africano. Combater tudo o que é associado a esse estigma de outras culturas que fazem parte da nossa identidade. Somos um país muito mal resolvido com a nossa própria identidade. Que não se enxerga, não quer se enxergar. Não olha para a riqueza que essa mistura de culturas pode produzir como sociedade.
A gente prefere negar traços e características para chegar a um moderno idealizado. E esse discurso de negação da nossa própria identidade produz toda a violência que a gente está vendo. Qual seria a sociedade que surgiria de um país com essa riqueza cultural indígena, africana, europeia, asiática? Como a gente conseguiria contemplar essas diferenças num projeto de sociedade? Agora o milicianismo quer resolver isso a partir de uma idealização. Como a gente vira um Estados Unidos? Extirpando todos os traços e reprimindo qualquer possibilidade ou traço de comportamentos ligados a esse tipo de cultura. É uma questão que precisamos resolver.
Se queremos um outro país, sem genocídios e sem racismo, com uma democracia também para o povo periférico, somos obrigados a reconhecer que os desaparecidos são “nossos”.
“Onde estão?” Essa é uma pergunta que ganhou certa notoriedade, durante os anos 1980, devido aos movimentos de diretos humanos da América Latina. Foi a década de queda das ditaduras militares no continente e um dos resultados desses regimes foi a produção, em larga escala, de corpos desaparecidos. Normalmente, os “desaparecidos políticos” eram opositores que foram presos em centros clandestinos ou oficiais do Estado, torturados e assassinados sofrendo, por fim, o ocultamento de seus corpos. As mães, companheiras, irmãs e outros familiares mantiveram nas novas democracias a exigência de apuração das circunstâncias dos fatos, localização dos corpos e responsabilização dos agressores.
No Brasil, segundo o Relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV – 2012/2014), a Ditadura e sua fábrica da morte produziu 243 desaparecidos políticos. Desses, 35 foram identificados ao longo dos anos. Na imensa maioria, por esforço dos movimentos de familiares e dos parentes mais próximos. O Estado democrático se manteve na condição de agente do desaparecimento forçado, já que é um crime considerado contínuo até que o corpo seja localizado. De modo distinto ao caso argentino, por exemplo, não houve uma política pública de encaminhamento da questão. O Estado brasileiro fabricou os corpos desaparecidos e os mantém nessa condição até os dias atuais.
Contudo, não estamos nos referindo aos desaparecidos da Ditadura quando lançamos a questão: “Onde estão os nossos desaparecidos políticos?”. Mesmo com o fim da Ditadura e depois de mais de 30 anos de democracia o país continua (e sofistica) sua máquina de desaparecer pessoas. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2017 foram registrados 82.684 boletins de ocorrência de desaparecimentos. Infelizmente, não há dados completos sobre esse tipo de violação de direitos. Mas, sabemos por outras pesquisas e pela atuação dos movimentos de mães de vítimas de violência policial que um número importante desse total configura o desaparecimento forçado.
78.584 pessoas desaparecidas.
56% são pessoas negras
No Sistema Nacional de Localização e Identificação de Pessoas Desaparecidas (Sinalid), ligado ao Conselho Nacional do Ministério Público, no momento em que escrevo este texto temos registradas no país 78.584 pessoas desaparecidas. O sistema não registra os casos de vítimas de desaparecimento forçado, mas é possível verificar que a máquina de desaparecer funciona a pleno vapor. Desses quase dezenas de milhares de desaparecimentos, 56% são pessoas negras. Certamente, quando tivermos formas de separar os desaparecimentos forçados esse percentual terá um salto alarmante, ilustrando o racismo estrutural.
A gestão da segurança pública aposta na militarização da vida e na estratégia da guerra. O resultado tem sido o aumento da violência e a criação de territórios nos quais o Estado aterroriza suas populações. É o caso, por exemplo, das favelas e das periferias. E, como mostram os números, essa guerra tem um alvo: os negros.
As vítimas endêmicas da violência urbana são jovens negros e pobres das periferias. Um jovem negro tem 147% mais chances de sofrer homicídio do que um branco. O país supostamente cordial e democrático tem três mulheres assassinadas por dia. E a maioria é composta de mulheres negras. Segundo pesquisa da Flacso, entre 2003 e 2013 a morte violenta de mulheres negras aumentou 54%, enquanto a de mulheres brancas diminuiu 9,8%. Não vamos nesse texto nos aprofundar nos dados sobre a política de morte contra o povo negro. Há diversos estudos apontando para isso. E, principalmente, o movimento negro denunciando o “genocídio” há décadas.
No caso do desaparecimento forçado ocorre o crime de ocultação de corpos, em geral com as vítimas já mortas, cometido por agentes do Estado ou por organização não estatal, mas atuando de acordo com determinadas práticas da violência de Estado. Em geral, caracteriza-se por esse crime o ataque a opositores políticos ou segmentos populacionais que, por sua própria existência, são contra as normas de ideologias e grupos conservadores com acesso às instâncias de poder. Segundo o Tribunal Penal Internacional (TPI), e o documento “Estatuto de Roma”, o desaparecimento forçado qualifica-se como crime contra a humanidade e assim se caracteriza quando ocorre o ataque sistemático a uma população civil.
O filósofo camaronês Achille Mbembe, no começo do século XXI, lançou o conceito de “necropolítica” para definir uma estrutura fundamental do capitalismo global: a rejeição de vidas classificadas via racismo. A partir dessa experiência fundante o autor discorre sobre o “devir negro”, através do qual os corpos precarizados e descartáveis tendem a sofrer processos de morte. São instituições, conhecimentos, arquiteturas, discursos que conformam regimes de produção de sujeitos – poderíamos mesmo dizer de “corpos” – que devem ser submetidos a controles, incluindo a violência e o desaparecimento.
Se o conceito de “necropolítica” faz sentido e se o movimento negro e das mães de vítimas de violência policial têm razão em denunciar o “extermínio”, então, podemos afirmar que o desaparecimento forçado no Brasil tem conotação de um desaparecimento político. Produz vítimas de uma política racista por parte do Estado.
Quem sintetiza bem essa situação é a lutadora dos direitos humanos Rute Fiuza: “para mim a democracia nunca chegou. Há um complô de genocídio, de extermínio da juventude negra”. Rute é mãe de Davi Fiuza, desaparecido desde que foi levado detido em uma abordagem da Polícia Militar do Estado da Bahia, no ano de 2014. Até hoje não sabemos o paradeiro de Davi. Rute representa e organiza o Movimento Mães de Maio no Nordeste e, assim como ela, muitas mulheres relacionam o desaparecimento forçado de seus filhos com a política de morte da juventude negra e periférica.
Se queremos um outro país, sem genocídios e sem racismo, com uma democracia também para o povo periférico, somos obrigados a reconhecer que os desaparecidos são “nossos”. Uma eficaz estratégia do Estado democrático com relação aos reclames dos familiares de desaparecidos da Ditadura foi manter a dor e a história sem luto entre as famílias. Nunca o país foi encarado de frente e o crime dos desaparecidos enfrentado como um problema nacional. Assim também é com a história de Rute e dos milhares de jovens negros que desaparecem todos os anos.
Ou batemos de frente, por meio de políticas públicas, afetos, lutas sociais, produção de conhecimento, ou seguiremos reféns da militarização e dos golpes. Davi, André, os três meninos de Belford Roxo, Amarildo são todos desaparecidos políticos e a suas histórias são a nossa história.
A conclamação do Bolsonaro para a matilha fascista se armar com fuzil não é galhofa; é estratégia política: “povo armado jamais será escravizado!”, brada o “mito”.
Esta estratégia política vem sendo materializada pelo Exército por meio da liberalização geral das normas sobre compra, posse e uso de armamentos e munições por particulares.
Desde 2019, o governo militar publicou mais de 20 portarias e decretos com este objetivo. “Como resultado da guinada, este é o momento de toda a história nacional em que existem mais armas nas mãos de cidadãos comuns. Em 2019 e 2020, os brasileiros registraram 320 mil novas armas na Polícia Federal. De 2012 a 2018, o total havia sido de 303 mil. As autorizações concedidas pelo Exército a caçadores, atiradores esportivos e colecionadores de armas também bateram recorde no atual governo — 160 mil nos últimos dois anos contra 70 mil nos sete anos anteriores. O mercado de armas e munições, tanto as de origem nacional quanto as importadas, está extraordinariamente aquecido”, noticia site do Senado.
Além da escória armada que se proclama “gente de bem” – empresários, latifundiários, pastores, caminhoneiros, motoqueiros, militantes de extrema-direita, frequentadores de CACs [clubes de colecionadores, atiradores e caçadores] etc –, as milícias e o crime organizado também se beneficiam com a estimulação deste mercado homicida.
Esta estratégia bolsonarista é coerente com a ideia da política como exercício da violência, inclusive armada, analisa o professor Paulo Arantes. É o confronto violento entre diferentes “visões, valores e expectativas humanas”; “é luta, é violência, é eliminação do adversário”.
"Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa"
Paulo Arantes entende que Bolsonaro representa uma ruptura com base popular e significa a descontinuidade do padrão civilizatório. O “bolsonarismo, como tal, reintroduziu a política no cenário contemporâneo” nos termos mencionados.
Ele critica que enquanto a esquerda pensa a política numa perspectiva gestionária, de gestão e atenuação da barbárie capitalista com políticas compensatórias ao invés da superação revolucionaria do sistema, eles “romperam com a ideia gestionária de política, estão se lixando para políticas públicas e em governar; vieram para destruir e encaminhar o programa deles”. O bolsonarismo significa, neste sentido, uma perspectiva renascentista.
É uma visão apocalíptica, diz Arantes, que chama atenção para o ativismo orgânico da extrema-direita: “eles estão seriamente engajados”.
Os bolsonaristas acreditam que “cedo ou tarde vão encerrar o ciclo inaugurado por essa coisa nova que foi 64, que não foi uma quartelada, mas foi uma mudança de civilização que não se completou, [porque] foi traída” pelos generais que traíram a “revolução de 64” e devolveram o poder aos vencidos [sic].
É esta geração de oficiais ressentidos e reacionários – órfãos e viúvos da ditadura – que chegou ao poder através do Bolsonaro e que comanda o país. Augusto Heleno, por exemplo, foi ajudante-de-ordens do general Sílvio Frota, um expoente da linha mais facínora da ditadura que era radicalmente contra o fim do regime.
O horizonte bolsonarista da luta política é o extermínio, o aniquilamento do inimigo
Bolsonaro precisa ser levado a sério nas suas sandices. Como, por exemplo, quando reclama que a ditadura assassinou menos opositores do que deveria; ou quando explica didaticamente a natureza destrutiva/ecocida/genocida do projeto que lidera: “O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa. Para depois nós começarmos a fazer”.
O horizonte bolsonarista da luta política é o extermínio, o aniquilamento do inimigo; não uma disputa institucional entre distintos projetos políticos e de gestão do Estado; é guerra.
O bolsonarismo aposta no confronto, na guerra armada. Eles acreditam no “vaticínio da guerra civil”, alerta Arantes. Na visão dele, há um “sistema jagunço brasileiro que está sendo montado e está sendo armado”, que faz com que o Brasil seja “a primeira nação a voltar mil anos atrás, em que a origem do Estado é o crime organizado, a extorsão”.
Com a politização nova das Forças Armadas, diz Paulo Arantes, “que, ao contrário da interferência desde que existe República no Brasil, que eles fazem e desfazem políticas, dão quarteladas, se transformam em guarda pretoriana etc, pela primeira vez estão na direção de se transformar em um bando armado, como foi o Estado Islâmico, como vai ser o Afeganistão agora”.
Diante deste cenário, de nada adianta se “cortar os pulsos” por desespero ou se contentar com notinhas de repúdio e discursos vazios dos líderes das instituições que “funcionam normalmente”.
É preciso mais, muito mais, sobretudo em termos de capacidade de mobilização democrática e popular na escala de dezenas de milhões de manifestantes nas ruas.