No Brasil, mistérios de um golpe de Estado judicial
A destituição da presidenta Dilma e o processo espetaculoso e a prisão de Lula, favorito nas eleições de 2018, fundaram-se num mesmo motivo: o combate à corrupção. Muitos observadores apoiaram essa vassourada dada em nome da justiça republicana – antes de perceberem que se tratava de um golpe de Estado que, ao final, favoreceu a extrema direita
por Perry Anderson
Le Monde
A Operação Lava Jato, ligada ao mais importante escândalo de corrupção da história brasileira recente, teve início em março de 2014. Ficou sob a responsabilidade do juiz Sérgio Moro, que tinha mostrado as garras em 2005 quando era assistente em outra questão muito midiatizada: o escândalo do Mensalão, concernente ao pagamento, pelo PT, de propinas a deputados em troca de apoio.
Moro descrevera seu modo de proceder em um artigo publicado em meados da década de 2000. Consiste em imitar os procedimentos utilizados por ocasião da Operação Mani Pulite [Mãos Limpas], que, no início dos anos 1990, derrubou os partidos de governo italianos, antecipando o fim da Primeira República. Em seu texto, Moro salienta a importância de dois aspectos desse método: o recurso à prisão preventiva, de modo a incitar a delação, e a divulgação na imprensa, calibrada para suscitar a ira da opinião pública e pressionar suspeitos e instituições. De acordo com ele, a cenografia midiática tem mais importância que a presunção de inocência.
Durante a Operação Lava Jato, o juiz brasileiro revelou talentos ocultos de produtor artístico. Ataques, prisões com grande espetáculo, confissões: apelos na imprensa e nas redes de televisão garantiram em cada etapa uma grande cobertura das operações que ele orquestrou. Cada uma mais dramática que a outra, elas foram numeradas e dotadas de código emprestado do imaginário cinematográfico, clássico ou bíblico: Dolce Vita, Casablanca, Aletheia (“verdade”, em grego antigo), Julgamento Final, Omertà, The Abyss [no Brasil, O segredo do abismo] etc. Os italianos se vangloriam de ter um senso inato de espetáculo? Moro os fez passar por amadores.
Juízes, justiceiros ou políticos
Isolada e enfraquecida, Dilma pediu ajuda ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ele utilizou sua habilidade de negociador para reparar as relações com o antigo aliado, o PMDB. Cunha, que parecia ter colocado vários milhões de dólares em contas secretas na Suíça, propôs um pacto de proteção mútua: ele interromperia suas investidas contra a presidenta se o governo lhe fizesse um favor. Lula solicitou a Dilma que aceitasse a mão que lhe era estendida; ela se recusou, com o apoio da direção nacional do PT, que temia que a cumplicidade fosse descoberta. Por fim, os deputados do PT apoiaram as acusações contra Cunha, que reagiu lançando o processo de destituição.
Por sua vez, Moro preparou o tiro fulminante. No início de março de 2016, ele desencadeou a Operação Aletheia. Lula foi interpelado nas primeiras horas do dia, diante das objetivas das câmeras, tendo a mídia sido avisada antes. Suspeitava-se que o ex-presidente tinha se beneficiado da generosidade da Odebrecht. Seguiram-se outras investidas. Moro interceptou – e divulgou para a imprensa – uma conversa telefônica entre Dilma e Lula, que ele grampeara. Nela, os dois dirigentes se referem à possibilidade de este se tornar ministro-chefe da Casa Civil. Como os funcionários de escalão ministerial e os membros do Congresso desfrutam de foro privilegiado, não há a menor dúvida de que se tratava de uma estratagema para impedir sua prisão.
No início de 2017, Lula foi acusado com base em suspeitas de corrupção ligadas à aquisição de um apartamento à beira-mar do qual jamais foi o proprietário legal. Julgado em Curitiba no verão do ano seguinte, foi condenado a nove anos de prisão. Na apelação, a pena subiu para doze anos. Com o primeiro presidente vindo do PT atrás das grades e a segunda destituída sob escárnio, o naufrágio do partido parecia total.
Pena reduzida para dono da Odebrecht
No sistema judiciário brasileiro, policiais, procuradores e juízes formam corpos independentes uns dos outros. A polícia reúne as provas, os procuradores proferem as acusações e os juízes arbitram as penas (no Brasil, os júris populares só intervêm em casos de homicídio). Todavia, na prática, as três funções se fundiram na ocasião da Lava Jato, quando a polícia e os procuradores trabalharam sob a supervisão do juiz que controlou as investigações, determinou as penas a serem cumpridas e as pronunciou: uma inegável negação dos mecanismos básicos da justiça, que preveem a separação da acusação e da condenação (sem mencionar o fato de o juiz Moro ter varrido de uma hora para outra o princípio da presunção de inocência).
Outra invenção do sistema judiciário brasileiro: a “delação premiada” permite ameaçar uma pessoa com penas de prisão pesadas, a menos que ela contribua para envolver outra condenável – o equivalente judiciário a uma chantagem. É possível calcular as derivas para as quais contribui um dispositivo como esse no caso de Marcelo Odebrecht, o empresário mais rico interpelado na investigação. Condenado a dezenove anos de prisão por corrupção, ele teve sua pena reduzida para dois anos e meio a partir do momento em que se curvou ao jogo dissimulado da delação. Nesse contexto, teria de se esforçar para superestimar a pressão submetida de modo a fornecer aos magistrados os elementos suscetíveis de contribuir para avançar as investigações que mais os preocupavam.