Internação psiquiátrica de presos políticos ocorreu em pelo menos nove estados do Brasil. Imagem: Yasmin Ayumi/UOL
por Amanda Rossi /UOL
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Ali estava a perigosa "terrorista" pernambucana de quem os jornais falavam em fins de 1964. Desacordada, recebia soro na ala feminina do Manicômio da Tamarineira, no Recife. Os "olhos diabolicamente ingênuos", como descreveu o delegado que a prendera, estavam fechados. Media 1,55 m e pesava menos de 30 kg. Os cabelos longos tinham sido raspados em um quartel do Exército. No braço esquerdo, uma das queimaduras de cigarro que marcavam sua pele tinha infeccionado e cheirava a carne podre.
Nome, Silvia Montarroyos. Codinome, Tatiana. Idade: "21 anos", segundo sua ficha prisional. Já a família alegava que tinha 17 anos —a data de nascimento teria sido alterada ao ingressar na escola. Acusação: crime contra a segurança nacional. Atividades: participação em um partido trotskista, distribuição de um jornal com conteúdo "subversivo", alfabetização de lavradores.
A militância durou pouco. Em novembro de 1964, sete meses depois do golpe militar, Silvia foi presa. Em dezembro, após um mês de tortura, os militares a mandaram para o manicômio. Passou os três primeiros dias desacordada. Ao recobrar os sentidos, foi tratada com eletroconvulsoterapia —eletrochoque.
Ivan Seixas, um dos presos políticos enviado ao manicômio, relata como foi a captura junto com o pai e torturas sofridas durante seis anos. "Fui mantido desaparecido junto com pessoas que desapareceram para sempre (...) Fiquei numa situação que era para me enlouquecer", relatou.
Um levantamento inédito do UOL descobriu 24 casos de presos políticos internados pela ditadura militar em instituições psiquiátricas, em nove unidades da federação. Pelo menos 22 foram antes submetidos a tortura em prisões comuns. As internações foram determinadas pela Justiça Militar ou por autoridades que tinham os presos políticos sob custódia.
Leia neste link documentos da internação de presos políticos durante a ditadura militar.
Informado sobre o levantamento, o Ministério da Defesa afirmou, por nota, que "os fatos relativos ao período compreendido entre os anos 1964 a 1973 foram abrangidos pela Lei de Anistia, que alcançou, de forma ampla, geral e irrestrita, atos de cidadãos brasileiros". O Ministério da Defesa responde pelas Forças Armadas.
Número de casos pode ser maior que o identificado pelo UOL. Imagem: Yasmin Ayumi/UOL
Tortura que leva à loucura
Algumas formas de tortura empregadas pela ditadura militar tinham como objetivo "provocar danos sensoriais, com consequências na esfera psíquica, tais como alucinações e confusão mental", diz o relatório da Comissão Nacional da Verdade —criada para investigar violações de direitos humanos no regime militar.
Alucinações e confusão mental, assim como depressão profunda ou ideias suicidas, são quadros relatados na maioria dos 24 casos. Há, inclusive, laudos psiquiátricos —elaborados por peritos indicados pela própria Justiça Militar— que sugerem que esses sintomas psíquicos foram desencadeados pela experiência na prisão.
"A tortura é tão desagregadora que a pessoa nem sempre vai encontrar recursos psíquicos para se defender, por isso enlouquece", diz a psicanalista Maria Cristina Ocariz, uma das coordenadoras da Clínica do Testemunho —projeto de atenção psicológica para vítimas de violência do Estado durante a ditadura.
Também há casos de presos políticos internados sem nenhum sintoma de ordem psíquica. Um deles é Ivan Seixas, colocado em uma prisão psiquiátrica no interior de São Paulo, sem indicação médica. Tinha 19 anos. Em carta de denúncia, sua mãe escreveu que os próprios peritos do Estado tinham atestado "tratar-se de rapaz normal, equilibrado, sem nenhum distúrbio psicótico".
Para identificar os casos, o UOL analisou documentos produzidos durante a ditadura —como processos da Justiça Militar— e informações levantadas por comissões da verdade. Uma das principais fontes de pesquisa foi a biblioteca digital do Brasil Nunca Mais. Também foram feitas entrevistas com presos políticos e seus familiares. O número de casos pode ser maior, já que muitos documentos da época foram destruídos e outros não estão acessíveis.
Dentre os 24 casos, estão 21 homens e três mulheres, internados entre 1964 e meados de 1970. A maior parte das internações ocorreu em prisões psiquiátricas —naquela época, chamadas de manicômios judiciários. Outras se deram em alas psiquiátricas de hospitais, principalmente hospitais militares, e quase sempre sob vigilância de forças de segurança.
Não foram incluídos no levantamento os casos de internação psiquiátrica depois da prisão, sem participação do Estado.
"Nós nunca soubemos disso. Só sabíamos de casos isolados. E, de repente, são 24 casos, e você tem uma nova dimensão de algo que se achava que não tinha acontecido no Brasil", diz Seixas, que coordenou a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo.
"Jamais houve uma reconstituição ampla desses eventos. [O levantamento do UOL] é um complemento ao relatório da Comissão da Verdade, que não teve a oportunidade de tratar especificamente desses casos", diz Paulo Sérgio Pinheiro, um dos autores do relatório.
"É um capítulo de mais um crime praticado pela ditadura de 64: além de desaparecer com pessoas, internou outras no manicômio. É muito importante reconstituir esses fatos, porque esses espaços também eram lugar de tortura", continua.
Silvia Montarroyos foi presa, torturada, e depois internada em manicômio no Recife. Imagem: Yasmin Ayumi/UOL
'Fábrica de loucos'
Na prisão, Silvia Montarroyos sofreu diferentes tipos de tortura. "Eram bofetões, queimaduras de cigarro... Me colocaram em uma jaula de uns 80 cm quadrados. Eu tinha que agachar e abraçar as pernas para dormir, mas jogavam balde de água gelada para me acordar. Eu só recebia meio pão seco e meio copo de água", lembra Silvia Montarroyos, hoje uma senhora com mais de 70 anos.
Privação de sono e de alimento, isolamento e incomunicabilidade são algumas das torturas psíquicas que, segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade, podem desencadear alucinações.
"Mas eu fiquei calada. O ódio que eles tinham de mim era porque eu não falava nada", diz Silvia, com um sotaque misto de Pernambuco e do país europeu onde vive desde o exílio durante a ditadura —e cujo nome pediu que não fosse citado, para preservar sua privacidade. Um ofício militar de dezembro de 1964 confirma que Silvia "vinha recusando-se a prestar qualquer declaração, desde a data de sua prisão, e ultimamente apresentava sintomas de alienação mental".
"Eu estive além da dor. Daí para a loucura foi a coisa mais natural do mundo. Tive alucinações visuais e auditivas", diz a ex-presa política.
Ao chegar no Manicômio da Tamarineira, Silvia estava inconsciente e muito machucada. "Você chegou aqui quase morta", disse um dos médicos que trataram dela. O profissional acreditava que Silvia tinha sido mandada para o manicômio para morrer, de modo que a culpa da morte não fosse atribuída à tortura.
Como tratamento, Silvia não recebeu apenas eletrochoques. Também foi tratada com insulinoterapia, que consistia na aplicação de doses excessivas de insulina para provocar convulsões e até levar ao coma. "Dos choques elétricos eu não lembro, mas está no laudo médico. Já a insulina eu lembro ligeiramente. Precisavam me amarrar na cama, senão eu caía, de tanto que me debatia com as convulsões. Eram formas de tortura", relata.
A insulinoterapia foi abandonada pela psiquiatria há décadas. Já o eletrochoque é usado de forma muito mais limitada e controlada. A própria internação psiquiátrica foi colocada em xeque pela luta antimanicomial, que pediu o fim dos manicômios, a partir do final dos anos 1970. "A forma de tratamento utilizada nos manicômios era medieval. Sem dúvida, agravava o quadro de quem ficou louco pela tortura", diz a psicanalista Maria Cristina Ocariz.
"A ditadura foi uma fábrica de mortos e uma fábrica de loucos. Como eu, muita gente enlouqueceu na tortura. Muitos outros precisaram [de suporte psiquiátrico] depois da prisão", diz Silvia.
Manicômios funcionavam como prisões e adotavam tratamentos hoje rechaçados pela medicina. Imagem: Yasmin Ayumi/UOL
Perigo para a sociedade
"Entre as torturas que me fizeram, a pior foi... [silêncio] Está me vindo um branco agora. Acho que é porque eu estou mexendo em um assunto que estava um bocado enterrado, sabe? Mas é necessário contar, para que fique para a posteridade o que aconteceu, é um caso histórico", diz Silvia, engasgando para relatar uma lembrança que já tem 56 anos.
É final de novembro de 1964. Em uma sala escura de um quartel no Recife, a militante é colocada frente a frente com Pedro Makovski. Uruguaio de 24 anos, Makovski emigrou para o Nordeste para chefiar o grupo político que Silvia integrava, o Port (Partido Operário Revolucionário Trotskista).
Os dois haviam sido presos juntos, de mãos dadas, quando tentavam fugir da polícia. Estavam noivos. "A luta e eu eram toda a vida dele. E ele era leal a nós duas e só se dedicava a nós duas."
Desde a prisão, no início daquele mês, os noivos não se viam. Neste reencontro promovido pela ditadura, Silvia foi estuprada, e Makovski foi obrigado a assistir. "Eu estava completamente ensanguentada... ele viu que eu ia morrer se continuassem... foi aí que ele falou [aceitou depor]."
Documentos militares enviados para o Arquivo Nacional confirmam que Makovski foi reinquirido em 23 de novembro de 1964. E que, desta vez, deu um longo depoimento —são nove páginas de testemunho.
Ao ser julgado pela Justiça Militar, anos depois, Makovski denunciou que "um dos meios conseguidos para forçá-lo a assinar os depoimentos foram torturas físicas impostas a sua noiva". E que, "em consequência das torturas sofridas, Silvia foi internada no Manicômio da Tamarineira em estado de coma" e que "ainda hoje se encontra mentalmente abalada".
"As pessoas [torturadores] que fizeram isso com Silvia constituem um perigo para a sociedade", disse o jovem uruguaio.
Diante do relato de Makovski, o procurador militar debochou, dizendo que o preso político, "por um processo de transferência explicado por Freud, quer transmitir a outrem sua própria periculosidade". Mas sua "periculosidade" era apenas de ideias. O julgamento de Makovski não revelou nada além de crimes de pensamento. Já o que viu a noiva sofrer foi extremamente material.
"O estupro foi o que mais me fez enlouquecer. Mas foi o conjunto das torturas, não só a ignomínia da violência sexual, que me levou à loucura", escreveu Silvia no livro de memórias Réquiem por Tatiana.
Internações ocorreram de 1964 até meados da década de 1970. Imagem: Yasmin Ayumi/UOL
Soro da verdade
Em agosto de 1964, poucos meses antes de Silvia ser internada no Manicômio da Tamarineira, o médico que dirigia a instituição enviou duas cartas para o tenente-coronel do Exército Hélio Ibiapina. Por ordem do militar, e sem mandado judicial, dois outros presos políticos tinham sido enviados ao manicômio. Era o início da ditadura.
O texto das duas cartas era idêntico, só mudava o nome do preso: "Acontece que a Lei que rege a Assistência a Psicopatas no Brasil, ao falar de Manicômios Judiciários diz: 'Os internamentos serão feitos pelo Juiz'. A palavra Juiz, na Lei, compreende os Magistrados e os órgãos auxiliares da Justiça. Diante da Lei, está o paciente acima internado ilegalmente neste serviço. Saudações cordiais".
Eram cartas ousadas, quase uma insubordinação. O tenente-coronel Ibiapina era amigo de Castello Branco, primeiro ditador do regime militar e um dos articuladores do golpe. Além disso, Ibiapina não escondia que ocorriam torturas em Pernambuco.
Certa vez, ao se queixar das intervenções de Dom Hélder Câmara em favor dos presos políticos, Ibiapina afirmou: "Nunca neguei que as torturas existissem. Elas existem e são o preço que nós, os velhos do Exército, pagamos aos jovens. Caso tivessem os oficiais jovens empolgado o poder, os senhores estariam hoje reclamando não de torturas mas de fuzilamentos. Nós torturamos para não fuzilar". A declaração veio a público em 1966, no livro Torturas e Torturados, de Marcio Moreira Alves.
A mensagem do diretor do manicômio, o médico Ruy do Rego Barros, para o tenente-coronel Ibiapina era clara: a internação de presos políticos, sem ordem judicial, por simples mando militar, era ilegal.
Ainda assim, os dois presos políticos citados nas cartas foram mantidos na Tamarineira. Um deles era Edival Freitas, que trazia diversas marcas de injeção pelo corpo. Sobre ele, a equipe médica do manicômio avaliou que seu quadro "foi decorrente das torturas e, provavelmente, doses excessivas do soro da verdade" —como era chamado o pentotal, um anestésico usado na tentativa de fazer os presos políticos falarem.
Aos psiquiatras, Freitas disse que "enlouqueceu quando estava preso". O diagnóstico do laudo de sanidade confirmou: "acometido de uma crise de psicose maníaco-depressiva, com predominância de depressão, consequência da prisão".
O segundo preso era Antônio Albuquerque, um lavrador acusado pelos militares de participar de movimentos camponeses de oposição à ditadura. Sobre ele, há apenas registros de que tremia e berrava ao ver alguém de farda no Manicômio da Tamarineira.
Roberto Motta foi internado em Santa Catarina; Ivan Seixas, em São Paulo. Imagem: Yasmin Ayumi/UOL
Porões da loucura
As primeiras internações de presos políticos ocorreram em Pernambuco e na Paraíba, em 1964. Nos anos seguintes, os casos se espalharam pelo país: São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Bahia, Distrito Federal, Ceará.
Em São Paulo, em 1971, presos políticos mantidos na rua Tutóia, no Paraíso (zona sul da cidade), puderam acompanhar a deterioração do estado mental de Antonio Carlos Melo, estudante de Geologia na USP (Universidade de São Paulo). No local funcionava o DOI-Codi —sucessor da Oban (Operação Bandeirante), criada para centralizar a investigação de organizações de esquerda. Hoje, é uma delegacia.
"Eu sou Tadeu, Tadeu eu sou, sou comandante revolucionário. Eu sou Tadeu, Tadeu eu sou, sou comandante revolucionário. Vanda! Vanda! VAR-Palmares!", cantarolava Melinho, como era conhecido, enquanto andava de um lado para o outro da cela.
Tadeu era seu codinome. Vanda, o codinome de Dilma Rousseff, que viria a ser eleita presidente da República em 2010. Ambos integraram a VAR-Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária Palmares), uma organização política de esquerda que pretendia derrubar o regime militar, inclusive por meio de ações armadas.
O estudante foi preso em 1970, mesmo ano que Dilma. "Melinho foi barbaramente torturado, porque queriam que falasse sobre algumas pessoas. Uma delas era a Vanda [Dilma]. Mas ele não falou", diz Ivan Seixas, que também ficou preso no DOI-Codi em 1971, antes de ser mandado para a prisão psiquiátrica.
"O Melinho foi enlouquecido na tortura. Eu fiquei em uma cela do lado da dele. Ele ficava cantando essa música sobre Tadeu e Vanda, depois entrava debaixo do cobertor e falava sozinho", lembra o colega de prisão.
Em 1972, Melinho foi mandado para o Manicômio Judiciário de Franco da Rocha, região metropolitana de São Paulo. A Justiça Militar o considerou inimputável —ou seja, incapaz de responder pelos próprios atos— e o condenou a dois anos de internação compulsória. Mas só foi liberado quatro anos depois, em 1976. Quando se viu livre, Melinho foi ajudado por antigos colegas da Geologia da USP, mas nunca se recuperou totalmente.
"Que monstruosidade fizeram com ele", disse Dilma a Ivan Seixas, em um encontro em Brasília quando a ex-presa política era presidente.
Ao sair do manicômio, Melinho foi questionado por amigos se havia outros presos políticos em Franco da Rocha. Respondeu que não tinha como lembrar. Estava sempre sob efeito de medicamentos psiquiátricos muito fortes, que tiravam a consciência da realidade.
Durante a ditadura militar, uma das drogas usadas no Manicômio de Franco da Rocha foi a escopolamina. Sob altas doses, a substância pode produzir sensação de morte iminente. Médicos nazistas a combinaram com morfina para praticar eutanásia. Já em Franco da Rocha, a droga foi usada como forma de "disciplina e não terapêutica", cita um ofício assinado pelo diretor do manicômio em 1968.
Também no início dos anos 1970 passou pelo Manicômio de Franco da Rocha o jornalista João Adolfo Castro da Costa Pinto, acusado de fazer parte da Ação Libertadora Nacional (ALN) —o que ele negava. Em seu laudo psiquiátrico, Costa Pinto disse que "sua doença iniciou-se um ano após ser preso".
"Eu apanhei muito, me deram choque na cabeça, nos testículos e acho até que estou impotente. Aí me disseram que eu fiquei muito nervoso, tinha ocasião que eu saía de mim, mas não sei explicar. Eu sei que não consigo me distrair, não tenho fome, não durmo, só tenho vontade de ficar deitado", relatou Costa Pinto ao psiquiatra do manicômio.
Em conclusão, o médico assinalou que o jornalista passava por "um quadro mental de intensa apatia e depressão, com ideias delirantes de ruína".
Solange Gomes, Aparecidão Galdino e A.S. foram internados a mando da ditadura. Imagem: Yasmin Ayumi/UOL
Queima de arquivo
No início dos anos 1970, enquanto Melinho e Costa Pinto estavam no Manicômio de Franco da Rocha, a pernambucana Silvia Montarroyos foi considerada foragida.
No primeiro semestre de 1965, depois de quase seis meses de internação, sua defesa conseguiu um habeas corpus para tirá-la do manicômio no Recife. Livre, mas com medo de ser presa ou internada novamente, Silvia decidiu fugir de Pernambuco. O medo tinha razão: logo depois, a Justiça Militar voltou a decretar sua prisão preventiva.
O risco de ser identificada durante a fuga era grande. Cartazes com a fotografia de Silvia tirada no dia da prisão ainda estavam estampados por Recife. O rosto parecia de menina, mas o texto dizia se tratar de uma perigosa subversiva.
Católica devota, a família Montarroyos conseguiu articular uma fuga com benção da igreja: Silvia se escondeu debaixo de um andor de Nossa Senhora do Carmo, que foi transportado por um jipe dirigido por dois frades franciscanos, do Recife a João Pessoa.
Da Paraíba, Silvia foi para o Rio de Janeiro. Depois, fugiu para outro país da América Latina. Já estava fora do país quando, em 1966, a Justiça Militar a condenou a oito anos de prisão por crimes contra a segurança nacional. Em 1970, fugiu de vez para a Europa, onde se exilou. Sua pena foi extinta com a Lei da Anistia, em 1979.
No exterior, Silvia estudou, se casou, teve filhos e netos. Em 2001, voltou ao Recife e bateu às portas do Manicômio da Tamareira, já renomeado Hospital Psiquiátrico Ulysses Pernambucano. Queria ver sua ficha médica. Mas o único registro de sua passagem pelo manicômio era de que dera entrada em 1964. Nada mais. Os documentos completos tinham sido destruídos.
Segundo a instituição, não havia "condições de fornecer melhores dados por causa da enchente ocorrida em 1975 que destruiu grande parte de nosso arquivo". Já segundo Silvia, funcionários do antigo manicômio confidenciaram que só os documentos dos presos políticos foram destruídos.
"Mesmo assim, não podem negar o que aconteceu, porque há o meu depoimento e o de diversas pessoas que me viram lá."
Um deles é o do psiquiatra Othon Coelho Bastos Filho, que trabalhou no Manicômio da Tamarineira. O médico relatou para a Comissão da Verdade de Pernambuco, em 2013, que recebeu na instituição uma estudante universitária "em estado deplorável", levada pela rádio patrulha (antiga designação para as rondas ostensivas da Polícia Militar), em 1964.
"Ela chegou... aquela coisa humana", disse. "Essa moça, eu me recordo bem, chamava-se Silvia".
"Apesar do estado de perturbação da consciência, ela tinha momentos de plena lucidez. Ela conseguiu dizer, por exemplo, 'eu fui seviciada sexualmente'. O testemunho dela, para nós, tinha fidedignidade", declarou o médico, que morreu em 2016.
Outra testemunha, o uruguaio Pedro Makovski, noivo de Silvia à época, morreu em 2006. Depois que saíram da prisão, os dois voltaram a se ver uma única vez, em 1986, quando visitaram o Recife com as respectivas famílias.
Já era democracia no Brasil outra vez. "Quando eu perguntei sobre esse episódio [o estupro], ele ficou com os olhos cheios de lágrimas, segurou minha mão e falou: petiza [pequena, em espanhol], há coisas que é melhor esquecer".
"Eu só me lembro de cenas deste dia [do estupro]. Cheguei até a fazer um tratamento de regressão de memória. Mas, com o tempo, eu entendi que, se eu não lembro, é porque minhas forças ainda não são capazes de suportar. A natureza é sábia: sepultou a dor no subterrâneo da memória", diz Silvia, a quem o Brasil já chamou de terrorista por ter ideias políticas e distribuir jornais.
BESTAS=FERAS. A santíssima trindade da tortura na ditadura de 1964 – Morreu Pedro Seelig: como o coronel Brilhante Ustra e o delegado Fleury, todos impunes
Durante os anos mais turbulentos da ditadura militar de 1964, Seelig resumia na sua figura de delegado mais temido do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) o estágio supremo de violência e bestialidade
por Luiz Cláudio Cunha - Jornal GGN
O delegado de polícia Pedro Carlos Seelig morreu em Porto Alegre na terça-feira, 8 de março, fulminado por um infarto aos 88 anos, com sequelas da covid. Ficou dois meses internado, até sair para morrer em sua casa de vidros coloridos e revestimento de azulejo no bairro da Tristeza, zona sul da capital. Algum leitor desatento dos burocráticos, ineptos registros dos principais jornais e portais da internet poderia imaginar que era apenas a morte encoberta de um policial irrelevante, que não merecia mesmo a atenção da imprensa. Grave erro.
Durante os anos mais turbulentos da ditadura militar de 1964, Seelig resumia na sua figura de delegado mais temido do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) o estágio supremo de violência e bestialidade que a repressão política disseminou pelo Rio Grande do Sul e pelo Brasil. Foi o mais notório e intimidante torturador gaúcho, símbolo maior do terror de Estado que lhe garantiu lugar eterno no panteão dos grandes patifes da repressão brasileira. Seelig formou, ao lado do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, chefe do Departamento de Operações de Informações-Centro de Operações e Defesa Interna (DOI-CODI) do II Exército, e do delegado Sérgio Fleury, do DOPS de São Paulo, a santíssima trindade da tortura brasileira.
Ganhou espaço merecido na lista definitiva dos 377 brasileiros acusados de graves violações dos direitos humanos cometidas durante os 21 anos do regime militar de 1964-85, segundo o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Ali se misturam generais-presidente e sargentos, coronéis e inspetores, diplomatas e médicos legistas, policiais militares e civis e até um ex-piloto de companhia aérea. No topo da cadeia de comando da repressão, foram denunciados os 53 militares que comandaram o aparato repressivo brasileiro nas duas décadas de violência como política de Estado: os cinco generais-presidentes (Castello Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo) e os três ministros-militares da Junta Militar que governou o país por dois meses em 1969. Além deles, como cúmplices, são citados seis ministros do Exército, sete da Marinha, cinco da Aeronáutica, três chefes do Serviço Nacional de Informações (SNI), oito do Centro de Informações do Exército (CIE), onze do Centro de Informações da Marinha (CENIMAR) e cinco do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (CISA).
Logo abaixo, na pirâmide da repressão, são apontados pela CNV outros 84 militares, policiais e um diplomata, responsáveis em diferentes níveis pela gestão do aparato repressivo. O número 71 da lista é o coronel Brilhante Ustra, que organizou e comandou entre 1970 e 1974 o DOI-CODI paulistano da rua Tutoia, o mais letal do país, onde morreram 51 pessoas sob tortura. Finalmente, completando a relação dos torturadores, estão os 240 militares e policiais com responsabilidade direta naviolência física, os torturadores que fizeram o serviço sujo dos porões. Fleury é o número 367 da lista e Seelig, o 333.
O fã de Fleury
Quando estourou o golpe de 1964, Seelig estava há três meses no lugar certo: o DOPS de Porto Alegre. Aos 23 anos, tinha trocado o quepe de motorista de ônibus pela boina vermelha, a jaqueta, a calça cáqui com listra vermelho e o negro cassetete de borracha da tropa de choque da antiga Guarda Civil da capital gaúcha, formada por lutadores profissionais para dispersar tumultos. Aos 29, entrou na Polícia Civil como escrivão de 3ª classe. No primeiro semestre de 1964, teve uma rápida passagem pelo DOPS, antes de passar cinco anos na ronda de delegacias do interior. Com o curso de delegado, voltou para a capital e para o DOPS em junho de 1969, quando o país já amargava seis meses de AI-5.
Foi destacado para o Serviço de Investigações da sensível Divisão de Segurança Social do DOPS, cada vez mais atarefada pelo aquecido clima político nas ruas e universidades. No mês seguinte, julho, nascia em São Paulo a Operação Bandeirantes (OBAN), a mãe dos DOI-CODI, que integraria militares e policiais no estágio mais sofisticado e virulento da repressão política, excitada pelo combate mais intenso à luta armada nos centros urbanos.
Seelig era discípulo do colega mais famoso de São Paulo, o delegado do DOPS Sérgio Fleury, que ganhou fama internacional por sua ligação visceral com os meliantes do Esquadrão da Morte, de onde tirou o know-how para eliminar os militantes mais radicais da esquerda. Ficou amigo de um astro em ascensão na comunidade de informação, o major Carlos Alberto Brilhantes Ustra, antes ainda de sua notoriedade como comandante do sangrento DOI-CODI em São Paulo. Inspirado nesses notáveis exemplos, Seelig foi promovido em 1970, aos 36 anos, para a direção da Divisão de Segurança Social do DOPS, tornando-se o homem mais importante da repressão gaúcha no momento buliçoso em que o Estado convivia com sete organizações da luta armada: VPR, ALN, VAR-Palmares, M3G, POC, M-26 e FLN.
Nas duas maiores capitais brasileiras, Rio de Janeiro e São Paulo, o combate à guerrilha urbana era tarefa do Exército e seus DOI-CODI, onde morreram pelo menos 81 das 339 pessoas assassinadas sob tortura na ditadura – 51 no DOI paulistano da rua Tutoia, 30 no DOI carioca da rua Barão de Mesquita. Segundo documentos recolhidos pela Comissão Nacional da Verdade, os dois locais concentravam quase um quarto (23,8%) das vítimas oficiais do regime militar. No Rio Grande do Sul, essa tarefa literalmente bruta não sujou as mãos do DOI-CODI local. A missão foi delegada a Pedro Seelig e sua comprovada eficiência repressiva. Em janeiro de 1971, na fervura da política local, o DOPS de Seelig contabilizava a prisão de 256 esquerdistas e a apreensão de 15 metralhadores, 49 pistolas, nove automóveis, 27 mil dólares e milhares de cruzeiros (a moeda da época). Investigou 13 assaltos a banco praticados pela esquerda. Esquadrinhou a frustrada tentativa de sequestro do cônsul estadunidense Curtis Cutter por um comando desarrumado da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).
Na passarela do DOPS
O policial mais famoso do Rio Grande do Sul não tinha o figurino desgrenhado de um meganha rastaquera de filme noir : um ‘tira’ balofo de uma delegacia qualquer da periferia, com a barriga saltando dos botões torturados pela obesidade, a gravata cafona desarrumada e frouxa no pescoço gordo, o suor escorrendo pelo rosto. Nada disso. Seelig contrariava o padrão folclórico.
Em uma rua elegante, o vaidoso Seelig poderia ser confundido com um executivo arrogante e descolado da avenida Paulista ou do centro financeiro de Wall Street. Porte atlético, pose de galã, exibia músculos em vez de gordura espalhados pelo corpo esguio de mais de um metro e oitenta. Tinha alfaiate próprio e preferênciapor ternos de corte justo e conjuntos esportivos, tipo safári, nada comuns em delegacias. Pelo talhe elegante, Seelig parecia predestinado à passarela iluminada de modelo de loja de grife, não aos corredores sombrios das celas da repressão.
Sua alinhada cabeleira precocemente grisalha, repartida ao meio, caía em ondas disciplinadas sobre o pescoço, escoltando duas abundantes costeletas que quase escondiam as orelhas. O rosto anguloso, mais retangular, exibia traços duros, esculpidos por cinzel prussiano. Grossas sobrancelhas, mais escuras que os cabelos, acentuavam a frieza dos olhos, separados por um nariz maciço que ressaltava o tom marcial do rosto. O perfil nasal se impunha sobre os lábios finos e o queixo quadrado. A pele mais escura da face mostrava que os pelos rígidos da barba resistiam à lâmina matinal com rebeldia crônica, quase subversiva.
Aos sábados, passava rapidamente pelo DOPS, no segundo andar do Palácio da Polícia, sede da Secretaria de Segurança, na avenida Ipiranga, vestido imaculadamente de branco. Ninguém estranhava. Era o dia em que Seelig, sem demanda extra na delegacia, saía dali para jogar tênis no clube.
Olívio Lamas Baru Derkin/Coojornal Ricardo Chaves
Delegado Pedro Seelig era outro fora do ambiente funesto do DOPS: vaidoso, elegante, garboso, aprumado
No trabalho, conforme testemunho de sobreviventes, Seelig sabia alternar a fala mansa com o rigor e a rudeza necessários para extrair o máximo possível de informações dos presos políticos no tempo mínimo indispensável. Na sala de tortura do DOPS, apesar do capuz de praxe que os presos usavam para não identificar os torturadores, a presença de Seelig era antecipada pelo odor torturante do perfume dedo-duro que usava e pelo codinome ‘Major’ com que era tratado pelos subordinados. Com um sotaque levemente carioca, que ele achava ser moderno e charmoso, tentava ser claro e direto pelo uso de gíria e de palavrões dos mais jovens.
Em novembro de 1977, o repórter Rafael Guimarães, empossado dias antes no comando do centro acadêmico da faculdade de Jornalismo da PUC gaúcha, caiu numa blitz da Brigada Militar na avenida Independência, perto de casa. Com o uniforme da época – calça Lee, tênis, camiseta e bolsa a tiracolo –, Rafael parecia o suspeito de sempre. O caldo entornou quando acharam na bolsa um exemplar do jornal de esquerda Movimento, um livro de teoria política, um caderno de anotações e uma papelada em xerox com um título eloquente: “A redemocratização do país pelo desmantelamento do aparelho repressivo”. Foi levado direto para o DOPS de Seelig. Depois das perguntas de praxe do escrivão de plantão, apareceu o delegado. Rafael, hoje escritor e dono de uma bem-sucedida editora de livros, conta em depoimento publicado em 2021 no jornal eletrônico não.til:
Até que ele entrou na sala. Quer dizer, primeiro, entrou o perfume, depois o homem magro, mais baixo que eu pensava, cabelo grisalho repartido no meio, moderno na época, mas hoje absolutamente ridículo. Pedro Carlos Seelig, o símbolo da repressão no Rio Grande do Sul, o mais frio, eficiente e covarde torturador de que se tem notícia nestes pagos.
Na época, ainda era um mito. Só aparecia em fotos distantes e desfocadas e nos relatos dolorosos de dezenas de homens e mulheres por ele torturadas. Quando entrou, eu soube imediatamente de quem se tratava. Literalmente, tremi nas bases. Olhou para mim com desprezo e mostrou um desenho numa das páginas do meu caderno de anotações:
– Que mapa é esse? –. Era um mapa que tinha desenhado semanas antes, com base nas informações de um caminhoneiro, para chegar a uma cidadezinha na fronteira norte do estado onde eu tinha feito uma matéria sobre o cultivo da citronela, uma planta que serve de matéria prima para a produção de perfumes. Certamente, a mente paranoica da repressão via naquele mapa mal feito um plano subversivo ou um futuro foco de guerrilha. Não contive um esboço de sorriso com tal absurdo, que ele naturalmente percebeu:
– Tá rindo de quê? –. Comecei a contar a história da citronela, mas ele interrompeu:
– Olha pra mim quando fala. Que idade tu tem, seu merda? Teu pai sabe que tu anda metido nessas coisas? –. “Metido em quê”, eu ia dizer, mas calei. Seelig me olhava fixo, esfregava um lábio no outro e flexionava os dedos das mãos. Baixei os olhos e me senti o maior covarde da face da terra.
Ele saiu e não mais entrou. O escrivão faz mais umas perguntas que eu respondi de forma triste e desanimada. Sobrevivi sem sequelas físicas ao encontro com o temível Pedro Seelig, o ‘Pedrão’, ao contrário de tantos que apanharam, sofreram castigos hediondos e desapareceram em suas mãos.
O susto mortal no filho
A partir do segundo semestre de 1970, fase mais aguda da repressão política do recém-empossado governo do general Médici, os presos do DOPS de Seelig foram obrigados a usar capuz nos interrogatórios. O Instituto Médico Legal recebeu ordens superiores para não mais exigir de presos oriundos do DOPS de Seelig a anamnese, o histórico clínico do paciente anterior ao exame de corpo de delito. O objetivo era claro: convencer os médicos legistas a esquecer a fase de duro interrogatório aplicado pelo time do ‘Pedrão’.
Apesar do recato forçado, Seelig ganhou da imprensa o título de ‘Fleury dos Pampas’, seu sanguinário modelo do DOPS paulistano. A face violenta do delegado gaúcho está marcada pelas cicatrizes da Justiça na sua machucada folha funcional: em 1957, Seelig foi processado por crime de lesões corporais e, em 1958, por agressão. O momento mais difícil de sua carreira ocorrera em 1973, quando enfrentou uma CPI na Assembleia Legislativa e a ameaça de julgamento pelo Tribunal de Júri de Porto Alegre em processo de homicídio qualificado, acusado da morte por afogamento de seu filho adotivo, Luís Alberto Pinto Arébalo, de 17 anos.
Na manhã do dia 6 de fevereiro de 1973, suspeito de ter roubado uma pequena quantia em dinheiro de uma associação comunitária presidida por Seelig, o menor foi levado para uma das celas do DOPS para ganhar “um susto” – por ordem do pai adotivo. Passou por duas sessões de pancada na “fossa”, a principal sala de torturas no fundo do corredor do DOPS. Arébalo apanhou por meia hora. À tarde, ao ouvir a voz do delegado, chamou por ele. Seelig abriu a porta e se espantou com o que viu.
– O que fizeram contigo, cara? Não era pra fazer isso com o guri… – disse, olhando contrariado para três caras feias de sua equipe. Quando Seelig saiu, eles devolveram Arébalo à “fossa”. Mais vinte minutos de pau, desta vez enfiando uma mangueira de água na boca. O garoto se afogou, passou a noite agonizando, tremendo de frio, respirando mal, com dores no peito. Enrolado em um cobertor, suava diante de um grande ventilador ligado o tempo todo. Horas depois, mais machucado do que assustado, Arébalo foi transferido às pressas para o Hospital Sanatório Partenon. Sussurrou para a irmã Celsa, chefe do serviço de triagem do hospital:
– Aqueles caras me bateram…. Aqueles caras lá, né! – Morreu quatro horas depois, no dia 8 de fevereiro, e não foi de susto. O laudo de necropsia disse que Arébalo sucumbiu por “insuficiência respiratória aguda, consecutiva a afogamento parcial”, antecedida por traumas que debilitaram o jovem. O afogamento, escreveram osegistas, foi comprovado pela presença de plâncton mineral nos assustados pulmões do rapaz.
Arquivo Coojornal Ilustração Edgar Vasques Carlos Rodrigues
Arébalo, o filho de 17 anos, morreu afogado na tortura do DOPS: devia ser só um ‘susto’, rezava Seelig.
Indiferente a essas líquidas evidências, a maioria governista na CPI desensopou a denúncia e concluiu secamente – por quatro votos da ARENA governista contra três do MDB oposicionista – que Seelig poderia no máximo ser acusado de ‘abuso de autoridade’. Na Justiça, o juiz Luiz Carlos Castello Branco, alegando ‘falta de provas’, impronunciou o delegado. A defesa alegou que o ventilador assassino é que causou a pneumonia fatal no garoto. Emotivo, Seelig chorou perante a família e os amigos policiais. Humilde, dobrou-se diante dos fotógrafos dos jornais, persignado em um banco de igreja, e orou contrito na missa pela alma do finado filho adotivo. Parecia um pai devastado, não um delegado incriminado.
A mão amiga e verde-oliva
Seelig, no entanto, tinha mais fé na força terrena do que no conforto divino. Especialmente na força verde-oliva. Rosto compungido ainda de dor, pouco antes da sentença complacente do caso Arébalo, o delegado submeteu-se a uma reconfortante cerimônia castrense: a entrega solene pelo Exército da “Medalha do Pacificador”, honraria militar concedida sempre por indicação de um general e entregue apenas àqueles que se destacaram na luta contra a subversão. Ele tinha o amparo da força terrestre da ditadura, fiel ao seu lema: “Braço forte, mão amiga”.
Ricardo Chaves
Seelig e seu braço forte: o Exército vê o pacificador, não o torturador
O delegado, ao contrário do filho, era imune a sustos. Pedro Seelig era um dos intocáveis do regime. Depois do caso Arébalo, o delegado teve por duas vezes a refrescante sensação da boa imagem junto à opinião pública. Em 1974, quando ainda respondia ao processo por homicídio, Seelig comandou uma espetaculosa operação policial para libertar o estudante Alexandre Möeller das mãos de seus sequestradores. Depois que a família pagou o resgate, o garoto, de 13 anos, acabou sendo resgatado por agentes da Polícia Rodoviária Federal. Em 1977, em nova ação sensacional, Seelig coordenou as investigações sobre seis crianças de um bairro da capital, o Cristo Redentor, sequestradas pelo comerciário Santino Ferreira – mas o sequestrador, em outro desfecho frustrante para o delegado, acabou sendo preso por uma anônima patrulha da Brigada Militar.
Nessa época, o Internacional era o grande time do país, com Paulo Roberto Falcão, Paulo César Carpegiani, Batista, Manga e don Elias Figueroa. Para desespero dos gremistas, já acumulava o segundo título de campeão brasileiro de futebol. Era comum então encontrar Seelig, fanático torcedor colorado, nos vestiários do estádio Beira-Rio confraternizando com jogadores e dirigentes após as grandes vitórias, que ele assistia confortavelmente instalado em uma das cabines reservadas à imprensa
Durante o campeonato gaúcho de 1978, ele mesmo organizou o esquema de segurança do time colorado em alguns jogos mais arriscados do interior. O delegado circulava pelos corredores do DOPS e pelo gramado do Beira-Rio com muita familiaridade. Seu grande amigo e estrela principal do Inter, o meio-campo Falcão, era o terceiro melhor jogador do mundo em 1982 e 1983, segundo a revista inglesa World Soccer. O volante foi escalado em 2021 na melhor seleção brasileira de todos os tempos, ganhando a camisa 5 de um meio de campo de luxo que divide com Didi e Pelé, segundo a eleição de 170 jornalistas e narradores profissionais de esporte selecionados pela revista Placar.
Falcão tinha como procurador o então preparador físico do time, Reinaldo Jorge Salomão – filho de um cunhado de Seelig e também delegado do DOPS. O craque colorado retribuía sua presença no estádio visitando-o no DOPS.
– Olha, eu sou suspeito pra falar do Pedro, porque sou muito amigo dele. Conheci ele em 1972, no tempo em que o Salomão estava nos juvenis. Sou amigo dele desde 1974, quando às vezes eu ia lá na polícia. Até hoje a gente sai, vamos a festas juntos. Ele é bem relacionado – dizia Falcão, driblando com a elegância habitual as perguntas incômodas da imprensa.
O time do carcará
JB Scalco Olívio Lamas
Falcão e Seelig, dois amigos elegantes: só o craque não batia no seu local de trabalho
No futebol, ao contrário da leveza e classe de craque de Falcão, Seelig era um zagueiro de estilo duro e botocudo, que maltratava mais os adversários do que a bola. Como provaria depois no DOPS, gostava de bater. Por isso, alto e vigoroso, era o temido capitão do time de futebol da Secretaria de Segurança, nos idos de 1967. A família trazia a polícia no sangue: tinha uns dez ou doze parentes com o sobrenome Seelig servindo na corporação. Dava para formar um time – e formava.
A parentada integrava uma unida e exclusiva equipe doméstica chamada Carcará. Além do sobrenome, o que dava harmonia ao time era o lema – inspirado na música de 1965 de João do Valle – que atemorizava os adversários: “pega, mata e come”. O comissário de polícia Omar Seelig, primo-irmão de Pedro, definiu assim o time familiar para os repórteres Najar Tubino e Caco Schmidt, do semanário Coojornal, em 1979:
– No Carcará, do umbigo pra baixo é canela! Quando o cara não dá pau, a gente chama e diz: “Meu filho, qual é o teu negócio? Vai pra casa e bota uma sainha, vai…”
Passados 43 anos, essa corajosa reportagem de primeira página do bravíssimo semanário da Cooperativa dos Jornalista de Porto Alegre ainda é a única, solitária investigação sobre Seelig. O resto da imprensa calou-se, por quatro décadas, intimidada pela fama do personagem maior da tortura.
Arquivo CooJornal
A reportagem corajosa: um feito ainda inédito, passados 43 anos
No jogo bruto do DOPS, o estilo de atuação de Seelig ficou mais doloroso do que o do Carcará. Dos cabelos para baixo, tudo era canela, ninguém usava sainha, era puro pau. Em 1969, ao mesmo tempo em que nascia em São Paulo a Operação Bandeirantes, era criada em Porto Alegre a Divisão Central de Investigações (DCI). Quando a OBAN virou DOI-CODI, no ano seguinte, a DCI continuou ocupando o espaço central da repressão no sul. Na verdade, havia algumas diferenças.
Em São Paulo, o DOI-CODI, com a parceria do DOPS, fazia tudo – da análise das informações aos pedidos de busca e combate nas ruas, passando pela sangrenta fase de interrogatórios e torturas. Em Porto Alegre a DCI do coronel Attila Rohrsetzer processava as informações e coordenava o combate à subversão, mas delegava ao DOPS de Pedro Seelig o serviço sujo e perigoso – o suplício dos interrogatórios e as operações externas de combate. Embora formalmente ligada ao secretário de Segurança, a DCI se reportava diretamente ao comandante do III Exército e à 2ª Seção do Estado-Maior, ligados ao CIE em Brasília. O que o DOPS e o DOI-CODI somavam em São Paulo se concentrava em Porto Alegre, com vigor redobrado, na DCI e seu braço executor, o DOPS. Ou seja, o delegado Pedro Seelig era sozinho, em Porto Alegre, o que o delegado Sérgio Fleury e o coronel Brilhante Ustra representavam juntos em São Paulo em termos de truculência.
Os estádios dos torturados
Quase metade dos casos de tortura no Rio Grande do Sul que chegaram ao Superior Tribunal Militar (STM), instância máxima dos inquéritos contra presos políticos,aconteceu no quintal de trabalho de Seelig. Nunca se saberá o número exato de vítimas, porque nem todas as denúncias chegaram a Brasília. Segundo levantamento feito pelo projeto Brasil Nunca Mais, da Arquidiocese de São Paulo do cardeal Paulo Evaristo Arns, nos primeiros treze anos da ditadura – de 1964 a 1977 – houve 6.016 denúncias de torturas em todo o país, espalhadas ao longo de 707 processos julgados pelo STM.
Em uma simples conta aritmética, isso representa cerca de 8,5 denúncias de maus-tratos em cada causa levada ao tribunal. Quando o cardeal Arns acusou a ocorrência de 502 casos de tortura no DOI-CODI de São Paulo, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que comandou aquele inferno na fase mais dura, entre 1970 e 1974, ironizou:
– Não foram 502, foram mais de três mil pessoas que passaram lá. E ficam sempre inventando denúncias de torturas não comprovadas…
Nos 21 anos do regime militar brasileiro passaram 25 mil presos pelos cárceres da ditadura, que exilou outros dez mil. O Brasil Nunca Mais afirma que “dificilmente houve pessoas que passaram pelos processos de elaboração dos inquéritos policial-militares sem terem sido torturadas”. Se cada um desses presos representasse um processo, seria possível fazer uma estimativa assustadora sobre as fronteiras sempre imprecisas, ocultas, inóspitas da tortura. Nessa conta, segundo as projeções feitas sobre os números do STM, o Brasil contabilizaria 212 mil casos de tortura – o que lotaria quatro vezes a Arena ou o Beira-Rio, os estádios de Grêmio e Internacional, cada um com capacidade para 55 mil espectadores.
O quadro de denúncias formalizadas na Justiça Militar no período de 1964 a 1977 – mais da metade das duas décadas de ditadura – fotografa o endurecimento do regime ao longo do tempo. Em 1964, ano do golpe, houve 203 acusações de maus-tratos, número que se reduziu em 1965 (84 casos) e em 1966 (66 casos). Chegou ao seu ponto mais baixo em 1967 (50 casos) quando Costa e Silva sucedeu a Castello Branco. Voltou a subir em 1968 (85 casos) e em 1969 foi vinte vezes maior do que a marca de dois anos antes: 1.027 denúncias de tortura – segundo a meticulosa tese de mestrado de 2006 da historiadora da UFRGS Caroline Silveira Bauer – Avenida João Pessoa, 2050 – 3º andar: terrorismo de Estado e ação política do DOPS-RS (1964-1982).
O país tinha irrompido o ano já sob o império do AI-5, e 1969 acabou com o Brasil governado por uma patética junta militar, que ocupou por dois meses o vazio de poder provocado pelo derrame que matou Costa e Silva. O ano seguinte, 1970, que marca a promoção de Seelig como diretor da Divisão de Segurança Social do DOPS, registra também a estreia retumbante do general Médici e o ápice dos porões da repressão: foram 1.206 denúncias de tortura.
A taxa se manteve em nível elevado no período restante dos Anos de Chumbo: 788 denúncias de tortura em 1971, 749 em 1972 e 736 em 1973. Caiu dramaticamente no último ano de Médici, 1974, quando se registraram apenas 67 casos. A violência voltou a explodir em 1975, no primeiro ano do general Geisel no Planalto, com 585 casos de tortura – quase dez vezes mais do que o saldo do derradeiro ano de Médici no Planalto.
RS, maior concentração da tortura
Os parcos registros do STM assinalam apenas 122 denúncias de tortura no Rio Grande Sul nesses treze anos iniciais de ditadura. Embora distantes da realidade, os números mostram percentualmente o peso do DOPS de Seelig no terrorismo de Estado. Um total de 48 casos, 43% do total, se localizam nas dependências do segundo andar do Palácio da Polícia, quintal onde reinava Seelig e seus asseclas.
A pancadaria no DOPS de Seelig não era um exagero individual da repartição. Era uma prática institucional do regime, que acabava chancelando por cima o que se cometia por baixo. No mesmo período, o balanço do STM mostra outros 17 casos de torturas espalhados por sete quartéis diferentes de guarnições do Exército em quatro cidades distintas do Rio Grande do Sul – Livramento, Santo Ângelo, Cruz Alta e Porto Alegre. Trinta denúncias de tortura atingiram quartéis da Brigada Militar em Passo Fundo, Três Passos e na capital gaúcha.
A extensa fronteira seca do Rio Grande do Sul com o Uruguai e Argentina e o fato dos principais líderes depostos em 1964 terem se asilado em solo uruguaio explicam, historicamente, a alta concentração militar que fez do III Exército (hoje Comando do Sul) a guarnição mais poderosa do país, com as unidades reforçadas –especialmente Santa Maria, no centro do Estado, sede do maior destacamento blindado e de uma importante base aérea, com dois esquadrões aéreos de caça AMX, outro de helicópteros Black Hawk e um de aeronaves não tripuladas.
Ainda assim, é surpreendente que esteja no Rio Grande do Sul a maior concentração de instalações identificadas pela Comissão Nacional da Verdade como centros de tortura ou, na elegante terminologia da CNV, “locais de graves violações de direitos humanos (1964-1985)”. Os 230 centros revelados no país se espalham por 23 Estados (as exceções são Mato Grosso, Acre, Rondônia e Roraima) e o RGS é o primeiro da lista, com 39 locais de tortura, superando até mesmo o Rio de Janeiro (38) e São Paulo (26).
Veja o mapa da CNV:
Relatório CNV, Volume I, Cap. 15, pg 830
RS, campeão nacional de centros de tortura: o DOPS de Seelig é o maior e mais sangrento dos 39 no Estado
O trio parada dura de Seelig
É impossível dimensionar, com precisão, o tamanho do circo de horrores que Seelig imprimiu, com sangue, suor e lágrimas, na carne e na alma de tanta gente que passou por suas mãos. Nessa tarefa desalmada, teve ao seu lado um trio diabólico de policiais truculentos que obedeciam cegamente suas ordens e o poupavam de maiores esforços físicos. Os outros batiam por ele, mas seu perfume angustiante estava sempre ali, na sala de torturas, pairando acima dos corpos, excitando os comparsas, envenenando o ambiente de miséria e terror.
O trio era formado por três inspetores: Nilo Hervelha, Nelson Pires e Itacy Vicente, que atendia pelo sugestivo apelido de ‘Mão-de-Ferro’. Todos os três foram parceiros na sessão de tortura no DOPS com mangueira e ventilador que levou o jovem Arébalo à morte, após o ‘susto’ ordenado por Seelig, seu devotado pai adotivo.
O pior deles era Hervelha, codinome ‘Silvestre’, considerado o mais sádico e violento de um trio temido pelos sobressaltados frequentadores, nada voluntários, daquele martírio em terra gaúcha. Hervelha tanto fez e aconteceu, sob as ordens de Seelig, que acabou arranjando um lugar na lista de 377 torturadores do relatório final da CNV: é o número 318.
Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21 Correio do Povo
João Carlos Bona Garcia e seu torturador
João Carlos Bona Garcia era um jovem de 24 anos, militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), quando foi preso em abril de 1970 na feroz blitz da repressão desencadeada duas semanas após o frustrado sequestro do cônsul dos Estados Unidos. Foi levado diretamente para o DOPS de Seelig. Ele lembrou sua agonia no livro de memórias, Verás que um filho teu não foge à luta, lançado em 1989:
Entrei encapuzado e quando me tiraram o capuz vi sangue nas paredes, sangue no piso, pessoas ensanguentadas jogadas no chão e se arrastando, rostos inchados, corpos cheios de marcas e feridas, olhos em fogo, bocas contraídas mostrando coágulos no lugar dos dentes, gemidos e soluços, uivos de dor. Lembrei imediatamente do matadouro. Tive a sensação de estar num matadouro de gente.
No dia seguinte, marcado pelas queimaduras de ponta de cigarro, Bona Garcia foi levado para a “fossa”, a mesma sala do DOPS onde Arébalo começou a morrer. Bona Garcia conta:
Havia um gerador elétrico manual, a ‘maricota’, para dar choques elétricos. Conforme a velocidade na manivela, a voltagem ia subindo, até mais de trezentos volts (…) Foram me amarrando fios nas orelhas e dando choques na cabeça. A primeira vez dá uma sensação terrível. Com o choque nas orelhas se perde a visão, na hora fica tudo escuro (…) O pessoal da polícia ficava à volta, enlouquecido, gritando de prazer. Especialmente o Nilo Hervelha. Era o mais sádico, um dos piores torturadores, o mais cruel. Era também ligado ao tráfico de drogas. Durante as torturas chegava ao orgasmo. (…) Já o major Attila Rohrsetzer mostrava uma volúpia especial torturando mulheres. Especialmente nos seios e órgãos genitais.
Seelig e Hervelha devem ter ficado perplexos com os caprichos da História que, em apenas duas décadas, viraram o mundo de Bona Garcia de cabeça para baixo.
Na ditadura, Bona Garcia era assaltante de banco, terrorista e inimigo dos militares. Participou de duas ações da VPR atacando os carros pagadores do Banco do Brasil e do Bradesco. Foi banido do país, em janeiro de 1971, no grupo de setenta esquerdistas enviados para o Chile de Salvador Allende em troca do embaixador da Suíça, Giovanni Bücher, sequestrado no Rio de Janeiro por um comando da VPR liderado por Carlos Lamarca.
Na democracia, o ex-assaltante de banco virou executivo de banco. Em 1998, foi diretor do Banrisul, o banco estatal gaúcho, e presidente do Sindicato dos Bancos do Rio Grande do Sul. No regime civil, o subversivo caçado pela repressão, odiado pelos quartéis e banido pela ditadura virou subchefe da Casa Civil em 1986 do governador Pedro Simon e chefe da Casa Civil em 1998 do governador Antônio Britto. Acabou juiz da corte militar gaúcha no mesmo ano: o inacreditável ex-preso político e ex-torturado Bona Garcia sobreviveu a Seelig e a Hervelha e chegou em 2002 à presidência do Tribunal de Justiça Militar do Rio Grande do Sul. Morreu em 2021, aos 74 anos, vítima da covid-19.
Igor Sperotto/ExtraClasse Correio do Povo
Nilce Azevedo Cardoso e seu torturador
– Tira a roupa! – foi a primeira frase que a moça de 27 anos ouviu, no DOPS, logo após ser sequestrada em uma parada de ônibus no centro de Porto Alegre, na manhã de 11 de abril de 1972. Nilce Azevedo Cardoso, uma paulista que sonhava ser bailarina, ingressou na faculdade de Física quando a violência atravessou sua vida: “Entrei na USP em 1964 e, junto comigo, entraram os tanques do Exército”, dizia. No fim da década de 60 mudou-se para a capital gaúcha, já como militante da Ação Popular (AP), ligada à Igreja Católica. Em depoimento à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa gaúcha, em 1997, ela contou:
O delegado Pedro Seelig, junto com Nilo Hervelha e outros, arrancou minhas roupas. Perguntaram meu nome e eu disse: Nilce Azevedo Cardoso. Vieram então socos de todos os lados. Insistiram na pergunta, com socos na boca do estômago e do tórax. Mal podendo falar, eu disse que meu nome estava na carteira de identidade. Aumentou a violência. Ligaram fios e vieram os choques. Fiquei muda daí para a frente
Seelig mandou levar Nilce Cardoso para o pau-de-arara
Eram pontapés na cabeça e choques por todo o corpo. Minha indignação cresceu violentamente quando resolveram queimar minha vagina e meu útero. Enfiaram os fios e deram muitos choques. A dor, raiva, ódio, misturados com um sentimento de impotência, criaram-me um quadro assustador. E eu seguia muda. A raiva era tanta que eu não conseguia gritar (…). Quando eu pensava que estava morrendo, eles me tiraram dali (…).
Quando acharam que já estava melhor, eles me penduraram novamente. O meu sangue jorrava e eles enfiaram a mão pela minha vagina com jornais. Colocaram uma bacia no chão e o sangue continuava a cair. Molharam meu corpo e me arrebentaram com socos e choques. Não sei quanto tempo isso durou nem quantas vezes aconteceu esse ritual macabro. Assombrava-me ao perceber que, nos intervalos, eles comiam, conversavam, como se há instantes não estivessem cometendo aquelas atrocidades.
Nilce sofreu uma parada cardíaca. Ao tentar reanimá-la os policiais do DOPS acabaram provocando um esmagamento do seio e uma fratura no tórax. Foi levada para o Hospital Militar, ficou lá oito dias em coma. Depois voltou para o DOPS. Foi transferida para o DOI-CODI de Brilhante Ustra, em São Paulo, para novas sessões de pancada.
Voltou ao Sul e só escapou daquela tormenta de seis meses de suplício com o alvará de soltura, em julho de 1972. Tornou-se psicopedagoga e militante dos direitos humanos, trabalhando na Clínica do Testemunho, projeto que acolhe sobreviventes da ditadura, como ela. Morreu no dia 21 de fevereiro passado, aos 77 anos, 15 dias antes de Pedro Seelig.
O pintor pré-morto
Paulo Mello era um pacato pintor na praia de Xangri-lá, no litoral gaúcho, até ser preso em outubro de 1973. O DOPS não esquecera que meses antes ele integrava o MR-26, o movimento clandestino que o ex-sargento Manoel Raimundo Soares tentou infiltrar nos quartéis antes de aparecer boiando e com as mãos amarradas às costas nas águas do rio Jacuí. Foi recebido efusivamente no DOPS de Porto Alegre por Nilo Hervelha, que berrava enquanto o espancava:
– Brizolista! Comunista! Vais morrer nas minhas mãos, me fizeste de bobo muitas vezes!
O ex-tenente do Exército José Wilson da Silva, assessor de Leonel Brizola antes do golpe, relata no livro O tenente vermelho, de 1987, o que aconteceu com Paulo Mello:
Na primeira noite Pedro Seelig voltou para ver como andava o “serviço”. A sessão era debaixo da maior pancadaria. No segundo dia foi para a ‘fossa’, um cubículo sujo, escuro, com muitas marcas de sangue que Hervelha fazia questão de mostrar que tinha sido de outra pessoa que “quis bancar a durona”. (…) No “tratamento” junto com choques elétricos eram-lhe aplicados murros na cara e pauladas nas costas. Quebraram-lhe a boca várias vezes, passou pelo “telefone”, sangrava muito pelo nariz e ouvidos, o corpo todo inchado. Mesmo assim, não cedendo ao desejo das bestas, colocaram-no no pau-de-arara(…).
Num dia em que as forças estavam lhe faltando, chamaram o médico (…). [O médico] examinou-o, deu-lhe um remédio e disse a Seelig que não o espancasse mais, que o estado [de Mello] era de pré-morte.
Os boatos de que havia morrido debaixo de pau obrigaram o DOPS de Seelig a provar que Paulo Mello estava, ao menos, semivivo. Decidiram quebrar sua incomunicabilidade e permitir uma única visita – da mulher e do filho. Antes tiveram o cuidado de lavar e limpar o preso para lhe dar um aspecto mais apresentável. Não adiantou.
Ele surgiu diante da família com sangue purgando pelos ouvidos, olhos e nariz, além de hematomas no corpo. Ao ver o pai naquele estado, mais pré-morto do que semivivo, o filho sentiu-se mal. Teve que ser atendido por um médico. O pintor e ex-guerrilheiro foi libertado condicionalmente em 1975. Estava com os rins destroçados, os ouvidos rompidos, os nervos em frangalhos. Sofreu um derrame cerebral, ficou com o lado esquerdo do corpo paralisado. Paulo Mello nunca mais pintou.
DOI-CODI rejeita torturado do DOPS
Hilário Gonçalves Pinha, dirigente do PCB no Sul, foi preso em março de 1975 pelo Exército. Passou um mês incomunicável, mas ileso, na Polícia Federal e daí foi entregue ao DOPS de Seelig. Seu calvário começou ali, numa equipe de torturadores que incluía o irremediável Nilo Hervelha, o bate-estaca de Seelig. Pinha passou por sessões de afogamento, choque elétrico e pancada. Teve a barriga pisoteada, quatro costelas quebradas e os intestinos e o fígado rompidos em várias partes. Na madrugada de 24 de abril, desmaiado, com o abdômen inchado pela mistura de seis quilos de sangue e fezes, Pinha foi transportado pelo DOPS de Seelig até a base aérea de Canoas, requisitado pela Justiça Militar de São Paulo.
O estado dele era tão deplorável que o piloto da FAB, um oficial da Aeronáutica, exigiu uma prévia inspeção médica do paciente e o acompanhamento de um enfermeiro militar no voo. O preso estava tão machucado que nem o DOI-CODI de São Paulo quis receber aquela mercadoria tão estragada, ainda sem assistência médica. Ao ser transferido para o DOI-CODI de Ustra, o chefe do Estado-Maior do II Exército, general Antônio Ferreira Marques, exigiu um ofício atestando as condições deploráveis do preso remetido pelo DOPS de Seelig. O médico do DOI-CODI o mandou para o pronto-socorro e lá perceberam que ele precisava de uma cirurgia de emergência. Acabou sofrendo cinco intervenções cirúrgicas no abdômen no prazo de um mês no Hospital das Clínicas. Perdeu 80% dos intestinos e a capacidade de trabalhar. Devolvido a Porto Alegre em julho de 1975, Pinha foi submetido a mais quatro cirurgias no abdômen no Hospital Militar.
Em 1979, entrou com uma inédita ação pelas torturas sofridas. Em dezembro de 1981, o juiz Moacir Álvares, da 2ª Vara Federal de Porto Alegre, condenou a União como responsável pelos danos físicos produzidos pela tortura em Hilário Pinha. Foi o primeiro preso político do país a ter reconhecido o direito à indenização pelos maus-tratos da ditadura. Hilário Pinha morreu de câncer em Porto Alegre em 2006. Tinha 79 anos.
Naquela manhã de agosto de 1971, a estudante de Economia da UFRGS Marinês Grando, às vésperas de completar 24 anos, só conhecia a fama de truculência do inspetor Nilo Hervelha. Seria apresentada minutos depois ao seu estilo de trabalho, ao ser arrastada para um Fusca estacionado na avenida Salgado Filho, no centro de Porto Alegre, onde encontrou o companheiro preso cinco dias antes. Começou a apanhar já no banco de trás do carro, no curto trajeto de dez minutos até o DOPS de Seelig.
Hervelha lhe dava tapas no rosto e socos nos seios. Ao descer do carro foi levada ao segundo andar, passou por uma espécie de guichê e ingressou em uma sala grande, sem móveis, sem janela. Ali tudo escureceu. Sua cabeça foi coberta com um capuz, que dificultava a respiração com o forte fedor do vômito de presos anteriores. Ela foi despida e ficou por algumas horas em pé, rodando como pião sob gritos, ameaças, piadas obscenas e pontapés no traseiro. De repente, mudou o cenário.
Marinês, sempre encapuzada, foi levada através de um corredor com salas menores de um lado e outro e, no final, um banheiro. A superpopulação de presos obrigara o DOPS a transformar algumas salas em celas, onde jogaram colchões no chão para os presos dormirem, sempre com a luz acesa. Chegou enfim à sala de interrogatório – e a escuridão do capuz foi subitamente trocada pelo clarão ofuscante do holofote jogado sobre seu corpo nu, que tremia de frio, vergonha e medo.
Arquivo pessoal Correio do Povo
Marinês Grando e seu torturador
O holofote libidinoso na ruiva nua
Com cabelos ruivos e lisos, Marinês tinha pele clara, um rosto fino e uma fisionomia triste. Sob o brilho do holofote, ela percebia o intenso vai-e-vem na sala, como contou ao autor deste texto, em depoimento em 2008 para o livro Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios:
O interrogatório se prolongou pela noite adentro com muitas presenças, todas masculinas, todos agitados, entrando e saindo pela única porta daquela sala claustrofóbica, sem janelas. Eles todos no escuro e eu, nua, sob os holofotes. Diziam que queriam ver como era uma mulher ruiva, riam e batiam palmas. Na escuridão do lado de lá dava para eu distinguir a figura bem trajada do delegado Pedro Seelig, posicionado diante do bando de machos excitados e à frente do interrogatório.
Agitados pela rara visão daquela bela mulher de curvas bem delineadas no esplendor de seus 24 anos, toda nua e toda ruiva, eles se divertiam. Marinês chegoua pensar que seria estuprada, pelo grau de excitação no ar, mas ninguém a tocou. No limite entre a luz e a treva, o delegado Seelig, de terno e gravata, parecia controlar o foco de luz do holofote que lambia, libidinoso, o seu corpo indefeso.
Naquele teatro que misturava violência e degradação, Seelig fazia o papel do brincalhão, tentando se mostrar gentil e afável em meio a tanta sordidez. Durante todo o tempo, entre risos e piadinhas, Marinês ouvia perguntas sobre o POC (Partido Operário Comunista), suas ligações políticas e a atuação do grupo junto ao movimento estudantil.
Quando o show terminou, o holofote foi desligado e ela colocada em uma cela com outra mulher, uma paulista da luta armada que havia sido violentada nos cárceres do DOI-CODI de Ustra. Estava toda arrebentada pela tortura e, ainda assim, era ‘tratada’ por um médico do DOPS para aguentar a sessão seguinte de suplício. Desestruturada pela violência, ela imediatamente procurou o colo de Marinês. Embora adulta, a jovem encolhida em posição fetal comportava-se como um bebê desamparado, em busca do conforto materno.
A expressão melancólica de Marinês ficou ainda mais triste.
Na quinta-feira, 12, dois policiais levaram Marinês de volta ao seu apartamento. Entraram com a chave da presa e reviraram tudo, recolhendo alguns livros e deixando para trás tudo bagunçado. No dia seguinte Marinês completou 24 anos. A notícia se espalhou pelos corredores e celas do departamento. Todo mundo queria ver, de perto, aquela moça azarada que fazia aniversário em uma sexta-feira, 13 de agosto – e ainda presa no DOPS.
Marinês foi liberada quarenta dias após sua prisão. Ela saiu da cadeia enquadrada na Lei de Segurança Nacional, com hematomas na alma mais fundos que as dores no corpo. Ela perdeu o emprego na clínica médica onde trabalhava. Não houve explicação. Nem precisava.
Em liberdade, continuava vigiada e seguida a todo momento. Certo dia, em uma rua meio deserta do bairro Floresta, um sujeito de uns 25 anos se aproximou e lhe falou ao pé do ouvido:
– Eu te vi nua, eu te vi nua, eu te vi nua!…
Era um dos “machos do DOPS de Seelig”, que ela não reconhecia. Marinês saiu dali correndo, apavorada. Perdeu todas as cadeiras do semestre no curso da faculdade. Amigos esfumaram-se, parentes afastaram-se. Conseguiu um emprego provisório em um órgão de pesquisa estadual. Meses depois ele tornou-se a Fundação de Economia e Estatística (FEE), vinculada à Secretaria de Planejamento estadual, que a contratou como economista em 1974. Três anos mais tarde, ela fazia um doutorado na Universidade de Paris I quando se viu, inesperadamente, no centro da guerra de estrelas em Brasília entre Geisel e Frota.
Marinês era um dos 97 “comunistas” infiltrados na administração pública, segundo a lista dedo-duro que o general Sylvio Frota, ministro do Exército, divulgou na tarde de 12 de outubro de 1977, horas depois de ser demitido pelo presidente Ernesto Geisel. Nove nomes da lista atuavam no Rio Grande do Sul, quatro deles eram economistas na FEE – entre os quais Marinês Grando e uma colega chamada Dilma Rousseff. Marinês só não foi demitida, como os outros três, porque estudava na França, protegida por um acordo internacional que lhe garantia ficar por lá até a poeira baixar. Ela só voltou da França em outubro de 1978 – sete anos após sua prisão, às vésperas da anistia.
O tour de terror de Seelig
O DOPS de Seelig estava em temporada de caça ao POC, integrado por Marinês. O DOPS localizou três ‘aparelhos’ da organização em Porto Alegre e prendeu 30 militantes, entre eles sete universitários das federais de Porto Alegre e Santa Maria. Um dos comandantes do POC era casado com a secretária de um dos jornalistas mais famosos do Rio Grande e do Brasil: Paulo Totti, 33 anos, o respeitado chefe da sucursal da revista Veja em Porto Alegre, que depois teria fulgurante carreira em São Paulo e Rio, nas redações de Veja, Gazeta Mercantil, Jornal do Brasil, O Globo e Valor Econômico. Seelig avisou a sucursal que queria ouvir Totti, naquele momento fazendo uma cobertura jornalística na Argentina. “É um simples esclarecimento de rotina, coisa rápida”, tranquilizou Seelig.
Quando Totti voltou a Porto Alegre, na manhã de terça-feira, 10 de agosto de 1971, lá estavam no aeroporto a mulher e os dois filhos, de sete e quatro anos – e um cidadão elegante de terno, gravata e cabelos grisalhos, que ele não conhecia, mas se apresentou:
– Sou o delegado Pedro Seelig, do DOPS. Tu estás convidado a ir até lá hoje à tarde – falou, com a fidalguia de um recepcionista que dá as boas-vindas ao turista recém-chegado. Simpático, passou a mão na cabeça dos dois filhos de Totti, de sete e quatro anos, voltou a encará-lo e elogiou:. – Teus filhos são muito bonitos. E não falte, hein?
Ricardo Chaves Correio do Povo
Paulo Totti e seu torturador
À tarde, atendendo ao cordial convite de Seelig, Totti se apresentou no DOPS acompanhado pelo gerente da Editora Abril, Michel Barzilai. A dupla foi recebida cortesmente por Seelig, que os levou até sua sala, no segundo andar do DOPS. O delegado voltou a dizer que precisava de Totti para responder apenas algumas perguntas, que exigiriam só algumas horas de permanência ali.
– Ele será bem tratado – tranquilizou.
No embalo, escancarando um sorriso, Barzilai tentou ajudar:
– O Totti só pensa em trabalhar, delegado. Ele é um cara pacífico…
Seelig emendou, retribuindo o sorriso:
– Todos dizem isso, mas tu precisas ver os trabucões que eles usam – replicou, sem esclarecer quem eram “eles”. Barzilai ainda sorria quando o delegado o levou até a porta e o despediu com um abraço e um rijo aperto de mão. Mal fechou a porta, ao se virar Seelig já se transformara. Totti se levantava da cadeira quando o sorriso do delegado simpático à porta se desfez de repente. Seelig, de rosto crispado, aproximou-se e lhe desferiu uma violenta cutilada no ombro esquerdo. O golpe inesperado com a parte externa da mão direita do policial atirou Totti de volta à cadeira. A pancada doeu. Totti ficou surpreso com a violência repentina. Seelig sorriu:
– O que é isso, Totti? Não me leve a mal. É só pra mostrar que aqui a coisa é mais dura do que parece…
– Vou te mostrar nossas instalações – emendou o delegado, percorrendo os corredores do DOPS com o orgulho de quem mostra o conforto de um estabelecimento cinco estrelas. Apresentou as celas e uma delas, no final de uma sala grande, escancarou o inferno daquela hospedaria fora de catálogo: havia dois presos ali, pendurados no pau-de-arara como dois frangos expostos na vitrine.
Um deles era uma mulher pequena, encolhida, totalmente nua, que soluçava em um ritmo cansado. Ignês Maria Serpa de Oliveira, 21 anos, a Martinha da VAR-Palmares, estava naquele antro há quatro meses. Parecia ter chorado muito, durante muito tempo, e o soluço agora era sua última demonstração de alento. Seelig nem olhou para ela. Perguntou ao sujeito que estava ao lado, comandando o interrogatório:
– Tudo bem aí? Alguma novidade? – falou, como quem confere mecanicamente a mercadoria na prateleira. O homem respondeu com um grunhido, que soou como um “até agora, nada”, e Seelig entendeu. Fechou a porta e conduziu Totti para uma nova atração da casa: abriu a porta de outra sala e, com um gesto de mão, mostrou a cena à sua frente. Um homem no pau-de-arara, com a cueca vermelha de sangue. Na cadeira ao lado, outro preso, sentado, com os pés amarrados e fios enrolados em torno dos dedos. Tinha o rosto todo machucado, um dos olhos parecia saltar da órbita ensanguentada.
A visitação parecia ter chegado ao fim. Seelig levou Totti a uma cela onde havia mais duas pessoas e um beliche. Apontou para a parte superior da cama: – Tu vais ficar aqui, por enquanto. Amanhã vamos conversar. Acho que não vou precisar te levar para aquelas celas que visitamos há pouco, né? – disse, em tom que fundia ironia e ameaça.
Totti na “cadeira do dragão”
Nada aconteceu no resto do dia. Na manhã seguinte, quarta-feira, 11, Seelig voltou. Pediu que Totti descrevesse toda a sua vida, contasse o que pensava da política, do governo, do regime.
A “cadeira do dragão” é uma cadeira pesada, com assento, apoio dos braços e espaldar revestidos de zinco. Os pés e os pulsos de quem ali senta são amarrados e as pernas empurradas para trás por uma travessa de madeira. Na parte traseira existe um terminal onde se acopla o magneto que transmite a corrente elétrica, gerada manualmente pela manivela conectada a um dínamo. A “pimentinha” dos torturadores ardia no corpo dos torturados, graças aos cem volts que produziam uma corrente de dez amperes. Uma voltagem duas vezes menor já produz fibrilação ventricular. Com a pele molhada ou a voltagem aplicada diretamente na pele por eletrodos, uma carga de apenas quarenta volts pode ser letal. Um choque de meros dezesseis volts, aplicados diretamente no coração, leva à morte. A ponta dos fios conectados ao dínamo era fixada em pontos sensíveis do corpo – como o mamilo, situado exatamente sobre o músculo cardíaco. (Continua)