Dia sim, dia sim militares ameaçam golpe

Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]
por Luiz Marques
“Lula é mais aceito pelo establishment internacional do que pelas oligarquias locais”, escreve o diplomata aposentado Milton Rondó, na Carta Capital, a propósito da entrevista de Lula da Silva na revista Times, onde foi capa nesta semana. A reação da mídia nativa mostra o seu completo despreparo e mediocridade ao abordar o assunto.
Olha o galho, mas não enxerga a árvore, muito menos a floresta. A floresta mostra a importância da liderança do ex-presidente, reconhecido e prestigiado no mundo inteiro. Seria motivo de orgulho para o país, se as “elites do atraso” gostassem do Brasil e do povo brasileiro. A árvore mostra a visão holística do entrevistado acerca do conflito na Eurásia, que não repete feito papagaio os pronunciamentos do porta-voz do governo norte-americano. Ao contrário do que se lê, se ouve e se vê abaixo da linha do Equador. O galho é o que se inventa para justificar a cegueira.
Não apenas o Congresso Nacional fica pior a cada eleição, os vários veículos de mídia também. Na GloboNews o comentarista mais inteligente da turma buscava explicar a posição de Lula sobre a guerra da Ucrânia, apontando os erros do presidente-comediante ucraniano, quando abruptamente foi tirado do ar. A lucidez não tem sinal de satélite nos meios de comunicação da Terra brasilis. Não passa na Globo.
Nenhuma opinião discordante conseguiu romper o bloqueio imposto pela insensatez. Saudosa da inexistente “terceira via” e sedenta por uma ponte que justique voltar para os braços de Bolsonaro, os analistas midiáticos aproveitaram a oportunidade, não para felicitar o destaque da edição do prestigiado periódico de repercussão mundial, e sim para tecer críticas desairosas e desrespeitosas a Lula. Grande novidade.
Sobraram as comparações de praxe entre o democrata que fez o melhor governo da história da nação com o representante da extrema-direita, que tem como programa a destruição neoliberal (em curso, desde o impeachment) das políticas públicas em todas as áreas (saúde, educação, cultura, infraestrutura, desenvolvimento econômico, geração de emprego e renda, meio ambiente, etc). Igualar os desiguais é necessário para depois fazer como o editorial de O Estadão, em 2018, que declarou ser uma escolha difícil optar entre a democracia e o fascismo. Como se o preconceito contra as esquerdas (o PT, em particular), inflado pelos próprios meios de comunicação, fosse desculpa para corromper o bom senso. Não é.
Os estudantes de Jornalismo não merecem ter como horizonte trabalhar em um ambiente tão tóxico. Idem, no que toca os profissionais capazes tolhidos, hoje, em sua atividade por diretrizes verticais e comerciais. Uma pena porque as redes sociais, em grande parte manipuladas pelos robôs bolsonaristas, não representam uma alternativa. A solução está na democratização da democracia, que não se confunde com a liberdade para propagar fake news. A democracia é um processo histórico cumulativo de valores civilizatórios. As opiniões devem manter esse compromisso para receber o selo de validade. Please.
por Ricardo Bruno
- - -
Após se apropriar do verde e amarelo e da bandeira nacional, Jair Bolsonaro conseguiu ofuscar as comemorações da Independência Brasileira. Reduziu o Sete de Setembro a um espetáculo grotesco, beligerante, um revide público às instituições com viés profundamente antidemocrático. O fez movido exclusivamente por interesses pessoais, num movimento em que sobrepôs as questões que o afligem – entre elas a possibilidade de prisão – aos valores de bravura e coragem historicamente evocados neste dia pelas Forças Armadas.
A irresponsável subordinação dos grandes temas nacionais à pauta estreita do bolsonarismo certamente não agradou aos comandantes das tropas. A fala do general Carlos Alberto Santos Cruz de que o 7 de setembro foi sequestrado por interesses políticos não foi fortuita, fruto de um arrobo verbal disparado ao acaso. Ao contrário, representa com clareza a posição de setores importantes da caserna.
Em 199 anos de independência, pela primeira vez, um presidente da República - logo um ex -oficial do Exército Brasileiro - se coloca acima da Nação. Trata as questões penais que o adormentam com mais importância do que o conjunto de valores que dignificam a história das Forças Armadas e, de resto, do povo brasileiro.
Historicamente, o Sete de Setembro é o momento em que as Forças Armadas exaltam a essência do patriotismo dos brasileiros, dada a importância do fato para a construção da identidade nacional. Os conceitos que fundamentam a independência constituem a base de nossa formação cívica. Nesta terça-feira, contudo, os compromissos inarredáveis de devoção pública à pátria e a seus símbolos foram substituídos por achincalhes do presidente da República à Suprema Corte. Assim, valores cívicos basilares da Nação, os quais as Forças Armadas tradicionalmente exaltam e dos quais se orgulham em datas simbólicas, foram obnubilados pela fanfarronice presidencial.
Ressalvadas as diferenças ideológicas e de caráter de seus protagonistas, a mobilização de Jair Bolsonaro para o Sete Setembro poderia ensejar a apresentação de medidas estruturais para a transformação do País, a exemplo do que fizera João Goulart com as reformas de base no comício da Central do Brasil.
Ao juntar em praça pública a sua base de sustentação política, Bolsonaro poderia estar criando, hipoteticamente, as condições objetivas para apresentação de um conjunto de metas e diretrizes governamentais num ato altissonante em que supostamente obteria o aval popular para seus planos. Ainda que se discordasse de tudo que ele propusesse, seria inegavelmente um momento afirmativo do governo.
Nada disto aconteceu. É esperar demais de Bolsonaro. Minúsculo em tudo que faz, ele se ocupou apenas de uma contraofensiva retórica às investigações do STF que podem eventualmente levá-lo à cadeia. Capturou o sentimento pátrio do Sete de Setembro para promover uma patuscada cívica. Sequestrou valores nobres num movimento que, por baixo, malbaratou a história de bravura e coragem das tropas na construção da identidade nacional.
Ao fazê-lo, praticou crimes de responsabilidade aos borbotões numa cena pública deplorável para um país da importância e da dimensão do Brasil.
- - -
Em 31 de março de 1964 eu tinha 8 anos. Não sabia do que se tratava.
Todavia, senti o golpe na carne. Aprendi na concretude, quando meu pai foi preso em pleno trabalho na lavoura. Lembro a trilhadeira marca Continente — meu pai colocava a palha manualmente, sempre com o perigo de perder as mãos — cercada por mais de uma dezena de soldados, armados até os dentes, levarem meu pai e o atirarem dentro de um caminhão.
Era um novo método de aprender a história. O método de ver o que resta de famílias atingidas pelo rio da história, que arrasta a tudo. O resto é do capítulo de "histórias privadas".
Despiciendo falar dos males causados pela "noite que durou 21 anos'. E tem gente, como o presidente Bolsonaro, que nega que tenha sido golpe. Elogiam. "Salvaram o Brasil".
Pois é. O Brasil foi tão salvo que precisamos de mais de 30 anos de democracia constitucional para tentar curar as feridas.
E quando as feridas começam a descascar, anunciado apenas algumas marcas, vem de novo o medo. A ameaça. Pasmem: em 2021. Sim, em 2021, no meio de uma pandemia que mata mais do que duas bombas atômicas.
Paradoxalmente, a ameaça é a contrario sensu. "— Não se preocupem: está tudo bem". "— Os militares são legalistas". E o Brasil "respira" aliviado: ufa. A Constituição será cumprida, diz o novo ministro da defesa e o general-vice-presidente.
Como deixei anunciado no título, se eu fosse senador ou deputado federal teria ocupado a tribuna, no dia da crise (30 de março de 2021) para fazer um repto ao Presidente e a quem estivesse embriagado pela saudade da ditadura e o AI-5:
"Por que não dá, logo, o golpe? Assuma que odeia a Constituição. Pare com essa ronha de 'o STF me impede de governar', 'os governadores estão implantando o estado de sítio', 'os governadores tiram a liberdade' etc. etc., etc."
Assuma, Presidente. Faça o golpe.
Mas tenha em conta que terá de fechar no mínimo a metade dos jornais, TVs, rádios, prender metade do Congresso, fechar o STF e aguentar o isolamento mundial. O Brasil não é uma ilha, mesmo que Vossa Excelência se esforce para tal. Rasgar a Constituição tem custos.
Pergunto: Na hipótese de, como seria a chegada do Capitão-Presidente-autor-de-um-autogolpe na Alemanha? O Brasil viraria uma distopia? Um Conto de Aia?
Algum país da União Europeia receberia o mandatário brasileiro? Hungria, talvez. Se hoje já está difícil depois do desastre do combate à pandemia e das patacoadas de Ernesto Araújo, que dirá se o Brasil passar por um regime de exceção.
O Brasil tem de se curar dessa ferida causada pelo golpe — sim, foi golpe e não movimento, General Braga Neto — de 1964.
Vamos admitir que podemos ser adultos politicamente e ter uma democracia. Demo-cracia: a força do povo e não demo-parabellum.
De uma vez por todas. Estamos em meio do maior desastre humanitário da história. O mundo já nos considera um país-pária. Já somos um perigo sanitário. Brasileiros são barrados no mundo todo.
E o Presidente da República, eleito por mais de 57 milhões de votos, está preocupado em aumentar seus poderes e/ou fazer manobras que insinuam golpe-estado-de-exceção, inclusive com o medíocre deputado Major Vitor Hugo querendo dar o drible da vaca com um projeto que permite ao presidente fazer intervenções nas liberdades, inclusive com a convocação de policiais militares estaduais.
O Brasil quer vacinas. Quer paz. Quer comida. O Brasil não quer golpe, Senhor Presidente.
Mas, se quiser fazer um putsch, faça logo. Mas assuma o custo. Vai ter de prender milhões de pessoas. Milhões.
Com certeza, se fizer o "atalho constitucional" (sic), será uma vitória de Pirro. Sim, o neo-pirrismo à brasileira: mais um golpe, mais uma vitória do autoritarismo...
Porém, já nem se poderá dizer, como Pirro, "mais uma vitória dessas e estarei lascado". Por quê? Porque já não haverá nem vencidos e nem vencedores.
Veja-se o paroxismo. Até o deputado bem direitista Kim Kataguiri detectou o ar de golpismo que estava no ar no dia 30. E, cá para nós, neste ponto Kim é insuspeito. Algo como "se até Kim falou isso..."
E da tribuna do Senado ou da Câmara, eu pediria: "— Presidente: ainda dá tempo de Vossa Excelência ajudar na campanha contra a Covid. Imagine, com o seu prestígio, fazendo uma campanha dizendo 'use máscara, faça distanciamento social e deixe de lado essa coisa de tratamento precoce — eu estava enganado'. Já pensou no sucesso?"
Ao terminar, vem-me à mente de novo a cena de meu pai sendo cercado pelos soldados em meio à colheita de arroz daquela minúscula lavoura no interior do interior do mundo.
E me vem à mente o meu dia seguinte. Do bullying de meus coleguinhas na escola... Que me cercavam e diziam: o teu pai foi presoooo...
E eu não sabia o que responder!
Presidente, eu, uma criança, cercado pelos outros moleques, sem saber dizer por que meu pai fora preso.
Não vamos reviver isso, Presidente. Nem em pensamento. Nem em (seu) sonho.
Viva, pois, a demo-cracia! "Demo" significa "povo". E não... bem, Vossa Excelência sabe, não é Presidente?
A felicidade tem a ver com afetos, uma vida de princípios, de reconhecimento e de sabedoria. E essa vida se faz em comunidade e em sociedade. Pensando e agindo em nome do comum. Esse comum nesse momento é a cidade de cada um, é o Brasil, é o mundo. No meu caso, o Rio de Janeiro. Marcia Tiburi
Depois de mais de década escrevendo na CULT – sem nunca falhar ou aceitar convites de outras publicações para ganhar bem mais – a filósofa Marcia Tiburi se afasta da revista porque concorre, pelo PT, ao governo do Estado do Rio de Janeiro. Entendo as suas razões como heroicas e delineadas em uma plataforma de combate e enfrentamento ao fascismo que prepara, cada vez mais, a sua emboscada mortal.
Acompanho as vias percorridas por Marcia Tiburi, que nunca preferiu as mais acessíveis e triviais, embaladas pelo desejo de transformar o mundo. Uma intelectual pública que dá sua cara a tapa com bravura e paixão
Daysi Bregantini: Além disso ministra cursos e palestras em âmbito nacional. É casada, amada, tem uma filha. Por que resolveu abrir mão desse conforto para enfrentar uma candidatura ao governo do Rio de Janeiro, sabendo das dificuldades que enfrentará?
Marcia Tiburi: Não podemos permanecer vivendo como se não estivesse acontecendo nada com o nosso país. Na situação em que o Brasil se encontra, acreditar em neutralidade política pode até ser um direito, mas não é um bom caminho, tendo em vista o futuro aterrador que nos cabe modificar. Lembro de Walter Benjamin, às vésperas do nazismo tomar conta da Alemanha, falando que era preciso puxar o freio de mão da história. Estamos na mesma com a ascensão do fascismo no Brasil. Para mim, é um dever ético levar a sério a frase de Marx: os filósofos até agora se ocuparam em interpretar o mundo, cabe transformá-lo.
Você se filiou ao PT justamente quando a maioria deixou o partido. O que te move?
O Partido dos Trabalhadores é o maior partido do Brasil e cresceu desde o Golpe de 2016 e, mais ainda, desde a prisão de Lula. Não fui apenas eu que me filiei. Há muita gente tendo esse gesto. Não dá para abrir mão do maior partido de massas do campo progressista na luta por dias melhores para a população. No meu caso em particular, eu quis antecipar eticamente, aquilo que deveria ser feito por todos os que acreditam na união das esquerdas, que se beneficiaram das políticas do PT, direta ou indiretamente, ou aqueles que viram um país melhor e os esforços para que melhorasse. Demorei a entender que o PT era a luta possível em um país destinado a ser colônia, um país, cuja história se confunde com a escravização de pessoas, um país devorado pelo neoliberalismo, alinhado ao pensamento autoritário, à ditadura, desde os anos 60 e que agora é massacrado por ele novamente. Quase todo mundo disposto a pensar já percebeu que grande parte das críticas dirigidas ao PT foram mais por causa de seus acertos do que de seus erros. E como o mundo e a história dão voltas, o partido que foi apresentado como “terrível” durante o “escândalo” do famoso mensalão, agora se torna o baluarte da verdade na política desde a prisão injusta de Lula. A corrupta “guerra à corrupção” já mostra sua verdadeira face. Quem hoje ainda acredita que há um mínimo de imparcialidade nos juízes que mantém Lula preso? Quem não percebeu que a pretexto de combater a corrupção, a chamada “Operação Lava Jato” atendeu a interesses econômicos distintos dos do povo brasileiro e ainda corrompeu a própria democracia?
Qual é a sua principal plataforma política?
Fizemos, a muitas mãos, um programa de governo do qual podemos nos orgulhar, pois contempla aspectos fundamentais à redemocratização da sociedade em termos econômicos e sociais. Eu trato essa campanha como um “ensaio de governo”, ou seja, fazendo aquilo que consideramos que deve ser feito sempre: que é governar a partir de uma política da escuta e da participação. Não estamos vivendo uma eleição como outra qualquer. Trata-se de uma eleição sob intervenção do governo federal golpista. A situação do estado do Rio de Janeiro é catastrófica do ponto de vista econômico, fiscal e da estrutura produtiva. O estado hoje concentra índices muito ruins em todos os campos, do emprego à saúde, da segurança à educação, tudo vai de mal a pior. Sabemos que vivemos sob um desgoverno, cuja política é o desamparo e o descaso. Governar hoje no Rio será avançar para além disso, construindo um governo democrático, realista, mas atento, interessado, para além do abandono da coisa pública em que vivemos desde que a racionalidade neoliberal levou aos acordos do governo estadual com o governo do golpe. É evidente que precisamos melhorar a questão do emprego e renda em um momento imediato e, a seguir, vamos adensar cadeiras produtivas envolvendo saúde, educação, mobilidade, habitação. Vamos usar a cultura para disputar o jovem que hoje busca empoderamento no tráfico de drogas que, bem cedo, o levará à morte. Eu acredito muito que é preciso incentivar a economia solidária e a agroecologia. E, como não poderia deixar de ser, trabalharemos com uma política transversal de participação de mulheres e outras minorias políticas, tais como jovens, negros e deficientes, no governo.
Explique, por favor, a lógica do assalto para aqueles que ainda não entenderam.
Já escrevi e falei bastante sobre isso, mas para entender sobre qualquer assunto é necessário superar as barreiras impostas por aqueles que desejam o povo infantilizado e sem capacidade de entender uma simples argumentação. Esse tema gerou mais uma fake news, ou “notícia falsa” contra mim. Dessa vez, produzida no dia seguinte ao julgamento do Lula pelo TRF4, e isso porque não aceitei participar de um programa de rádio em Porto Alegre com um pós-adolescente que integra justamente um grupo conhecido por fabricar fake news. Naquele momento, quase caí em uma armadilha de um emissora em busca de polêmicas fabricadas para gerar audiência, sem a menor intenção de promover um debate sério e de qualidade. Sabemos hoje, a partir de monitoramentos, que essas notícias, distorcidas, recortadas e coladas com o objetivo de me difamar, são produzidas principalmente em Porto Alegre. Esse tipo de “mídia” é uma verdadeira fábrica de calúnias e difamações com objetivos econômicos e políticos. Desde então, grupos organizados, com o auxílio de robôs e ignorantes úteis, passaram a espalhar que eu era “a filósofa defensora de assaltos”. Tudo isso a partir de uma entrevista que dei em 2015 na TV Brasil para Florestan Fernandes Júnior e Paulo Moreira Leite. Nela falei algo óbvio, que devemos tentar compreender toda ação humana a partir de categorias da lógica. Mas, descontextualizaram uma fala minha e passaram a mentir que eu defendo assaltos. É claro que não defendo assaltos. Recortaram parte de um argumento, totalmente descontextualizada, e a tentaram fazer parecer uma opinião minha, justamente no momento em que eu tentava mostrar que opiniões não valem diante da verdade que, como professora de filosofia, eu busco. Toda essa polêmica, então, pode ser resumida em mau-caratismo com finalidade política.
Feminismo brasileiro: o feminismo da mulher preta , da mulher da periferia, da mulher sem posto de saúde e escola – é mais difícil de ser colocado em prática? O que é o feminismo além da teoria?
O feminismo não é apenas uma teoria. Ele é uma práxis, uma teoria-prática. Uma ético-política que exige atitudes. A politização consciente da vida das mulheres é a base do feminismo. Quero dizer que o feminismo nos leva necessariamente ao ato ético e político. Podemos hoje dizer que “as feministas se ocuparam em interpretar o mundo e acabaram por transformá-lo”. Tem sido assim. Hoje a transformação do Brasil exige uma visão feminista de mundo. Uma visão das mulheres e uma visão que inclua as mulheres. Algo importante a ser pensado é que o feminismo não é igual em todo mundo, senão como um princípio. Nosso feminismo brasileiro e latino-americano é diferente do feminismo das mulheres da Europa ou da Islândia. É diferente um feminismo negro nos EUA ou no Brasil. O feminismo em qualquer lugar se faz para atender aos direitos das mulheres e minorias políticas em relação às violências específicas em contextos diferentes. Ao meu ver o nosso feminismo brasileiro tem que ser popular, voltado aos problemas de gênero que são intimamente ligados aos de classe e raça em nosso caso.
Quais são as suas crenças espirituais? Acha que o Estado deve ter uma religião?
O estado deve ser laico. Mas isso implica que haja mais diálogo entre as religiões. O campo da fé é diverso do campo da política. Os neofundamentalismos religiosos, por exemplo, trabalham com certezas que são incompatíveis com a esfera política. Defendo a criação de mecanismos de constrangimento democrático capazes de evitar que a confusão entre igreja e Estado, entre religião e política, coloque em risco o Estado laico. A função social religiosa deveria ser a do diálogo e do aconselhamento dos cidadãos e dos governantes.
O que fazer para impedir que os fascistas cheguem ao poder e promovam a barbárie?
Vários já estão no poder e já a promovem, inclusive usando a máquina pública, atos de violação aos direitos e garantias fundamentais, atos de barbárie. Precisamos falar sobre o fascismo. Precisamos debater o avanço da personalidade autoritária. Precisamos fazer com que a educação e a cultura impeçam o retorno de Auschwitz, como dizia Adorno. Mas como ele também dizia: Auschwitz não cessa de se repetir. Aqui no Rio, cerca de um mês atrás, Marcos Vinicius, filho de Bruna da Silva, foi para a escola e acabou sendo morto por um agente do estado com um tiro. Do genocídio indígena ao genocídio dos jovens negros, vivemos em um estado de massacre. Esconder isso é contribuir para a sua continuação. Precisamos ocupar o Estado e construir um não coletivo ao fascismo e às políticas de extermínio.
Como pensadora, quais são seus projetos para a educação e cultura? Dois segmentos abandonados no estado do Rio e também no Brasil.
Eu sou professora e escritora, e evidentemente esses temas me tocam em particular. Estamos em um momento de catástrofe econômica e política e precisamos de algumas coisas que são bem complexas: educação de qualidade, crítica e formativa, técnica e humana; precisamos de uma base curricular forte; e de uma sistema de educação que fomente a interação entre universidades e escolas das redes federais, estaduais e municipais. Além disso, a escola nesse momento deve ser um fator de desenvolvimento. Ela deve ser centro cultural e local de acolhimento para famílias. As políticas de cultura precisam hoje ser políticas de criação de emprego também. Nesse sentido, vamos apostar no audiovisual que contempla jovens a partir de uma perspectiva interseccional. Vamos estimular o teatro como atividade capaz de criar muitos empregos. Escolas técnicas e iniciativas voltadas ao audiovisual, às artes, à música, ao teatro serão priorizadas.
Você é uma mulher bonita. Isso atrapalhou seu percurso acadêmico? Dizem que já foi convidada a posar nua para uma revista masculina: é verdade?
Prefiro não responder. Tudo bem? Mas, para quem quiser entender como funciona o mecanismo da beleza na vida das mulheres sugiro a leitura da Naomi Wolf, mais precisamente um livro chamado O Mito da Beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Acaba de sair uma edição nova pela Rosa dos Tempos.
Quem merece seu trabalho ? Quem inspira tanta coragem?
Sinceramente, eu vejo tanta gente sofrendo, crianças sem escola, mulheres vivendo sob todo tipo de violência, idosos morrendo à míngua, jovens sem oportunidades e perspectivas, os jovens negros morrendo aqui no Rio apenas por serem pobres e pretos e estarem sob a mira de um estado neoliberal e racista de extermínio, que eu acabo sofrendo junto. Talvez as pessoas não tenham a dimensão da compaixão e do amor aos outros em suas vidas. A depressão cívica que nos atinge em escala nacional tem a ver com isso. A infelicidade é social, não apenas um estado da alma. Somos seres subjetivamente porosos, somos abertos. Quando nos tornamos fechados é porque não aprendemos com o sofrimento, porque ele nos massacrou demais ou porque não conseguimos tratá-lo com a força da reflexão que é também uma força espiritual. Viver em um tempo de tanta miséria e de tanto sofrimento seria insuportável sem lutar contra isso. Ao mesmo tempo, existe para mim, um desafio ético em curso, que é também político. Quando eu falo em desafio ético, estou falando de uma travessia espiritual que todos temos que ter em nossas vidas. Cada um deveria se perguntar qual é o seu? Viver poderia se tornar algo até mais difícil, mas seria mais cuidadoso para com a alma. (No fundo, minha amiga, eu sou uma filósofa neoplatônica!)
O Brasil vai dar certo por que você quer?
Vai dar certo porque muitos querem. Agora é preciso agir para transformá-lo. Para tanto é necessário resgatar o sentido tanto de solidariedade quanto de comum, de algo que vale a pena ser construído junto. Eu, sinceramente, acredito que há um tremendo medo de ser feliz que opera no egoísmo e no fascismo social que atualmente assolam o Brasil. A gente sabe que a felicidade é social e é política e que os que a pensam de maneira egoísta não a alcançam. Daí que as fórmulas do capitalismo tenham levado as pessoas a delírios de consumo, de produção, de aquisição. O capitalismo transformou o egoísmo em virtude e o desejo de possuir em mote existencial. Neuroses e perversões nascem principalmente em nome do capital, do patriarcado e do racismo que o sustenta. Já a felicidade, que é o contrário disso, tem a ver com afetos, uma vida de princípios, de reconhecimento e de sabedoria. E essa vida se faz em comunidade e em sociedade. Pensando e agindo em nome do comum. Esse comum nesse momento é a cidade de cada um, é o Brasil, é o mundo. No meu caso, o Rio de Janeiro.
por Bepe Damasco
---
Acertou em cheio o ex-ministro Eugênio Aragão ao apontar, em entrevista publicada na revista CartaCapital desta semana, como pré-requisito para a retomada da democracia no Brasil o enquadramento do Judiciário através de um ato de força: “Acho que temos um consenso, tanto à direita quando à esquerda, de que algo precisa ser feito para colocar o Judiciário no lugar. O Judiciário cresceu demais, transbordou, tomou a autoridade do Executivo e do Legislativo. O Judiciário tem que parar de querer governar”, pregou o procurador aposentado do MP.
E ao ser perguntado pelo repórter André Barrocal se o Judiciário aceitaria abrir mão do poder, Aragão foi enfático: “Não, vai ter de ser um ato de força, e isso tem de partir de um acordo entre os atores políticos, não há outro jeito. Tem de botar a Lava Jato no seu devido lugar.”
Moral da história: ou os poderes respaldados pela soberania popular enfrentam de peito aberto a Lava Jato ou seguiremos em marcha batida rumo à consolidação da ditadura de novo tipo dos dias atuais, com a violação sistemática dos direitos e das garantias fundamentais previstos como cláusula pétrea na Constituição da República.
Mas acreditar que esse Congresso Nacional, formado em sua grande maioria por políticos corruptos e sem a envergadura política e moral necessária à empreitada de fazer o fantasma do fascismo retornar à garrafa, é pura perda de tempo. Por isso, os partidos comprometidos com a causa democrática devem elaborar e pôr em prática estratégias eleitorais que permitam a eleição de um grande número de deputados e senadores.
Votando à Lava Jato, orgulhosamente incluo-me entre aqueles que não veem nenhum mérito nessa operação. Nem mesmo a ressalva feita por algumas pessoas de esquerda de que a Lava Jato, apesar de tudo, logrou expor as vísceras das relações promíscuas entre políticos e empresários, me convence. Primeiro porque isso se deu de forma seletiva e contaminada pela militância política de direita de juízes, delegados e procuradores. E depois o preço de rasgar a Constituição nunca vale a pena ser pago.
E por que só um ato de força detém a Lava Jato, como diz o ex-ministro? Porque, com o apoio da Globo e seus satélites do monopólio midiático, suas relações com os serviços de espionagem dos EUA e ramificações em outras instituições do Estado brasileiro, a Lava Jato tomou gosto pelo poder e sente-se forte o suficiente para dar as cartas na política brasileira. Ela não será derrotada, portanto, com discursos e apelos polidos à moderação.
Só com um governo legitimado pelo voto popular e deputados e senadores dotados de coragem cívica e patriotismo será possível, por meio de decisões do Executivo e ações parlamentares, combater e derrotar a hipertrofia do Judiciário e trazer de volta o regime democrático.
Concebida para servir como principal instrumento para induzir o golpe de estado que se concretizou em 2016, levar a grande liderança popular do país para a prisão, para impedi-la de disputar a eleição presidencial deste ano, e, por fim, destruir o maior partido de esquerda do hemisfério ocidental, a Lava Jato foi além ao liquidar o setor de engenharia, óleo e gás, provocar recessão e espalhar desemprego e pobreza pelos lares dos brasileiros.
Perto do prejuízo gigantesco que a Lava Jato causou ao Brasil, não passa de uma merreca a propalada recuperação de recursos desviados por esquemas de corrupção.
11 seguidores
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.