Deputado Pastor Sargento Isidório resolve rivalizar com Eliot sobre 'o que é um clássico'
por Reinaldo Azevedo
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Esta é minha última coluna na Folha. Volto ao ponto no último parágrafo, como sempre. O país primeiro.
O Congresso tem aprovado pautas econômicas importantes. Tais matérias, com frequência, dizem respeito também a interesses dos patronos dos votantes. É do jogo. Exceção feita ao bolsonarismo fanático e a alguns vaidosos, chateados porque suas previsões estão sistematicamente erradas, ninguém torce para que o país desande. O Parlamento que aí está é, sim, o mais atrasado desde a redemocratização — quiçá o pior da história. Um novo surto de estupidificação, também a sincera, está em curso e tem como alvo o Supremo, justamente o ente que decide o destino dos golpistas. É retaliação. Infelizmente, até uma figura sempre ponderada, como Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado, houve por bem disputar o coração dos dinossauros.
Evitei acima uma palavra, recusando o clichê "corações e mentes". Como ensina Francisco Torrinha, no "Dicionário Latino Português", "mens, mentis" designa "o princípio pensante", o "espírito", "a inteligência". E não reconheço tais manifestações na "devastidão" — termo que se esqueceu de acontecer — bolsonariana. "Devastação" não expressa a razia havida. O senador resolveu dar pipoca à ignorância. Patrocina uma PEC que criminaliza o porte de qualquer quantidade de droga. Quer, assim, fazer frente a um STF que estaria a legislar no caso da maconha. A iniciativa ficaria bem num Tiranossauro Rex a se fingir de herbívoro boa-praça. Advogado, ele sabe que os presídios estão abarrotados de jovens, pretos e pobres em razão da aplicação porca de uma lei ruim. Se sua PEC prospera, tudo piora. Quem dá bola, senhor, para "a lágrima clara sobre a pele escura"?
Quer o quê? Sei lá. Ocorre-me, por exemplo, que Davi Alcolumbre (União-AP), seu antecessor no cargo e aliado, já é pré-candidato de novo à presidência da Casa. Estarão de olho nos votos dos "conservadores"? "Conservadorismo" é o vocábulo mais malbaratado da política nativa. Quem quer manter inalteradas as iniquidades ou extremá-las não "conserva" coisa nenhuma. Ao contrário: faz degenerar o tecido social, as leis e a Justiça. É um anticonservador. É um reacionário.
Há outra ação que mira o tribunal: o projeto de lei que define a Constituição de 1988 como o ano de referência para a demarcação de terras indígenas. O texto já foi aprovado pelos deputados. É grande o risco de ser piorado pelos senadores. Leiam o conjunto dos direitos assegurados àquela população e constatarão que a limitação temporal é inconstitucional. Uma lei não se sobrepõe à Carta.
Na Câmara, ensaia-se a tentativa de tornar ilegais futuras uniões homoafetivas, matéria já julgada pela corte. Não vai prosperar, eles sabem. O "Deputado Pastor Sargento" Isidório (Avante-BA) acredita ter a síntese definitiva sobre o caso: "Todo mundo sabe da minha fala clássica de que, é uma fala, inclusive, universal: o homem nasce como homem, com binga, portanto, com pinto, com pênis. Mulher nasce com sua cocota, sua ‘tcheca’, com sua vagina, mesmo com o direito à fantasia. Homem, mesmo cortando a binga, não vai ser mulher. Mulher, tapando a cocota, se for possível, não será homem, todo mundo sabe". O "Peçanha da genitália alheia" resolveu fazer sombra ao poeta Eliot na definição do que é um clássico...
Segue a sanha dos reaças contra o tribunal. O ódio aos ministros aumentou com a volta, vitoriosa, de Lula ao jogo eleitoral, com a resistência oferecida às sandices do biltre durante a pandemia e com a disposição de punir o golpismo. Nove meses depois daquele 8 de janeiro, dar corda e cartaz ao primitivismo mais abjeto sob o pretexto de enfrentar o ativismo dos magistrados é apostar na "devastidão" em que o "Deputado Pastor Sargento Isidório" nos revela o seu pensamento "clássico" e "universal" sobre binga e pepeca. É esse o caminho, Pacheco?
E agora o fim. Esta era a minha terceira jornada nesta Folha. Chega ao fim. Por quê? Não é por falta de leitores, sabemos todos. Recomendo que ouçam "Quereres", de Caetano. Eu e o jornal nos olhamos e nos dissemos: "Eu te quero (e não queres) como sou/ Não te quero (e não queres) como és". Vêm novidades por aí. Beijos.
Em meio à turnê Que tal um samba?, Mônica Salmaso relembra sua trajetória, desde quando topou com Chico Buarque nos bastidores de seu primeiro espetáculo, até estar ao seu lado – cantando todo o sentimento de um país em busca de reencontrar-se
por Mônica Salmaso em depoimento a Thallys Braga na Piauí
Nossa primeira apresentação em São Paulo com o show Que tal um samba? aconteceu no dia 2 de março, quinta-feira. Eu estava apreensiva, as estreias sempre são assim. No meu caso, pesava ainda o fato de estrear na minha própria cidade, com uma plateia cheia de amigos e familiares. Eu me sentia insegura por causa disso, mas a realidade é que não tem muito como dar errado com um repertório como esse, um show tão bem feito por tanta gente boa no que faz e com a celebração, de base, de estarmos todos, palco e plateia, ao lado de Chico Buarque.
Tenho 28 anos de carreira, mas o que estou vivendo agora é uma experiência inédita. No final de 2020, Chico Buarque me convidou para participar de alguns shows que ele faria em comemoração aos 50 anos do disco Construção. Parecia um devaneio. Eu cresci ouvindo a voz do Chico na vitrola dos meus pais, no rádio do meu quarto e no fone de ouvido. Construção foi lançado no ano em que eu nasci. Cantar ao lado dele, saindo do gigantesco deslocamento da pandemia, seria catártico. Aceitei imediatamente.
Mas houve uma nova onda de Covid, seguida de quarentena, e a ideia foi adiada e modificada – até que, em 6 de setembro de 2022, aconteceu a estreia, em João Pessoa, do show Que tal um samba?. A partir de então, começamos a percorrer o país.
A ideia do Chico, desde o início, era que eu me apresentasse sozinha na abertura e, depois em momentos pontuais, dividisse o palco com ele em algumas canções. Ele me deixou à vontade para que eu escolhesse aquilo que gostaria de fazer sozinha e, por e-mails e telefonemas, levantamos uma lista de possíveis duetos (considerando as formas, os assuntos e as tonalidades). Chico ensaiou com os músicos duas semanas e, comigo, mais cinco no Rio de Janeiro, entre julho e agosto de 2022. Os ensaios fizeram com que eu ganhasse mais segurança para interagir com ele, a equipe e os músicos – todos já meus amigos e conhecidos de longa data –, que formam, com o Chico, um corpo de trabalho de mais de trinta anos. Existe entre eles um modo de convivência tão calmo e respeitoso que faz com que a música aconteça da melhor maneira possível. Era curioso: um pedaço de mim sentia o peso da enorme responsabilidade, e outro, de cara, sentiu estar em um ambiente muito familiar.
Cheguei ao Rio crente que iria visitar os meus amigos, ver o Samba do Trabalhador, o Forró da Gávea, todos os eventos possíveis, cheia de saudade de viajar e encontrar todo mundo, depois de tanto tempo de pandemia. Mas rapidamente me dei conta de que não poderia fazer absolutamente nada disso porque precisaria fazer uma rigorosa preservação da minha voz, em vista do volume de ensaios e da gincana de viagens e shows.
Todas as noites chego em casa falando pouco, quase nada, e bem baixinho. Faço exercícios de fonoaudiologia de aquecimento e de desaquecimento vocal antes e depois de cantar. Não como nem bebo o que faz mal para a voz. Vou ao otorrino (que chamo de luthier), sigo as ordens da fono. Meu filho, Théo, e meu marido, o músico Teco Cardoso, viraram parceiros incríveis nessa fase de seguidas viagens e da minha rotina de cuidados, que é mais fácil de seguir à risca quando estou viajando, porque chego no quarto do hotel e fico em silêncio até dormir. Aos 30 anos, eu me cuidava menos e tinha maior resistência. Aos 52, qualquer bobeada pode provocar um efeito-cascata porque não há tempo hábil para tratamento e recuperação, com tantos shows – nas temporadas do Rio de Janeiro e de São Paulo, quatro noites seguidas e três dias de descanso. Na condição de convidada, não quero prejudicar o Chico, o show, toda a equipe e o público. Muita responsabilidade e uma vontade enorme de viver essa experiência, esse presente, esse momento histórico da forma mais bonita possível.
Depois de João Pessoa, a turnê passou por oito cidades antes de chegar em São Paulo. Neste ano, começamos com uma sequência de dezesseis apresentações no Rio de Janeiro, todas com ingressos esgotados e uma enorme procura. A produção e o Chico decidiram abrir mais duas datas extras com ingressos a preços mais acessíveis e sem mesas na pista para que mais gente pudesse ver o show. Acabamos gravando e filmando essas duas noites. Foram apoteóticas!
Houve uma época na música brasileira em que temporadas de shows assim, com essa quantidade de datas seguidas, eram comuns, mas eu faço parte de uma geração de artistas em que isso não acontece com frequência. Nossas temporadas (quando acontecem como temporadas) são mais curtas e espaçadas.
Antes de estrear em São Paulo, tivemos o mês de fevereiro quase inteiro de férias, pude voltar para a minha casa, no bairro da Aclimação, e ficar um pouco mais com meu marido e meu filho, que tem 16 anos. Pudemos ir para nossa casa no interior de São Paulo, descansar. Essa pausa me encheu de vontade de voltar ao palco e começar tudo outra vez. A gente se acostuma com toda a equipe do espetáculo e, quando fica longe, sente saudades. Antes de a turnê começar, eu olhava para a agenda e pensava, assustada, no tanto de shows e de viagens, com medo de não dar conta. Agora que estamos prestes a encerrar a turnê, me bate uma dorzinha no peito.
Assisti a vários shows do Chico Buarque na minha vida. Ele é certamente o artista que mais ouvi desde a infância. Depois que comecei a cantar, alguns compositores e estilos musicais viraram meus objetos de estudo e, naturalmente, acabei incorporando suas influências e seus aprendizados ao meu trabalho. Mas com o Chico não foi desse jeito. Como os discos dele fizeram parte da minha formação, eu os escutava sem pensar nas características que deveria absorver se quisesse me tornar cantora. Menina, eu nem sabia direito sobre os sentimentos adultos que ele descrevia tão bem, mas, mesmo sem entender algumas músicas, elas foram criando em mim um acervo de emoções. É o que a música faz, com a poesia costurada na melodia e vestida pela harmonia. Ouvir o Chico era assim: ele me despertava muitas vezes algo que eu não entendia e era incapaz de elaborar, mas que gerava tristeza, saudade, alegria, intensidade, tudo isso vivido de forma afetiva, não cerebral. Um movimento muito potente, enorme dentro de mim, e que me compõe.
Quando eu era criança, ninguém na minha casa fazia qualquer tipo de arte. Cresci sem conhecer nenhum artista pessoalmente. Mas meus pais compravam discos, e com isso eu me apaixonei pela música muito cedo. Escutava aqueles LPs coloridos de historinhas infantis com composições do Braguinha que ainda hoje acho maravilhosas. Eu me concentrava nos detalhes das músicas, e um mundo de prazer e emoções se abria para mim. Quando tinha 7 ou 8 anos, um grupo de amigos dos meus pais vinha em nossa casa (um sobradinho) algumas noites para tocar e cantar junto com um professor de violão. Eu descia do quarto, e os adultos me deixavam participar. O que quer que eles tocassem, eu tratava logo de aprender a cantar: Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Milton Nascimento, Caetano Veloso, João Bosco, Gilberto Gil. E Chico Buarque.
Eu fazia um certo sucesso por ser tão pequena, interessada e afinada. Claro, isso me fazia bem. Uma vez, um dos presentes me deu um papel com a letra de O Cio Da Terra, do Milton Nascimento e do Chico, para eu decorar e cantar no próximo sarau. Tem um verso da música que diz “Cio da terra, propícia estação”, mas a pessoa tinha escrito a letra com uns garranchos, e a palavra “propícia” ficou parecendo “propécia”. Na noite do sarau, fui com tudo e cantei, cheia de vontade: “Cio da terra, propécia estação.” Todo mundo ficou se entreolhando e rindo. Quando descobri o erro, morri de vergonha. Hoje é uma lembrança divertida. Aqueles saraus foram o meu parquinho de diversões, e me deixava contente ouvir dos adultos que eu tinha inclinação para cantar. Um comentário assim funciona como estímulo: cantar virou o meu lugar do prazer e a atividade que eu sabia que me renderia elogios.
Durante a adolescência, nos anos 1980, fui aos shows de vários artistas da mpb, como Caetano Veloso, Gal Costa e Milton Nascimento. Também comecei a frequentar festivais de jazz em São Paulo. Eram espetáculos realizados em grandes espaços, para uma plateia gigantesca. Na época, eu não tinha o costume de ir a shows em teatros menores. Ser artista, para mim, significava pertencer a uma gravadora multinacional, aparecer nos programas de televisão e novelas, tocar em rádios e cantar em palcos enormes, e isso parecia estar longe demais da realidade, um sonho para muito poucos, o que anulava qualquer pretensão minha de virar cantora profissional.
Durante o ensino médio, que eu fiz no Colégio Equipe, comecei a tocar “violão de acampamento”. Tive também um amigo incrivelmente musical (hoje advogado) que cantava e tocava bem, fazia rodas de música e me chamava pra cantar. Um dia, andando pelo bairro da Vila Madalena, vi esse meu amigo saindo todo feliz da escola Espaço Musical. Ele me contou que estava fazendo aulas de guitarra e de percepção musical. Eu estava com 18 anos e fazia cursinho para o vestibular. Queria cursar jornalismo, por influência da minha prima, a jornalista Renata Lo Prete.
O cursinho era uma experiência insuportável: a tradicional turma de Humanas (formada por todos aqueles que se reconhecem nessa área, como eu, e todos os outros que não têm ideia do que querem fazer), espremidos em uma sala sem janelas, com um professor tentando animá-los ora com musiquinhas para decorar, ora com lançamento de giz para acordá-los. Enfim, era o purgatório.
Decidi assistir a uma aula de canto da Espaço Musical e conheci a professora Regina Machado – hoje coordenadora do curso de canto da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e dona da escola Canto do Brasil –, que viria a se tornar a minha primeira referência de cantora profissional. Fiquei fascinada, porque ela não era uma estrela da tevê, mas uma trabalhadora comum, uma pessoa com quem eu poderia conversar e perguntar: “E aí, como é esse negócio de viver de música? Se eu escolher essa profissão, vou conseguir me sustentar, mesmo não sendo o equivalente ao Cristiano Ronaldo da indústria musical?”
Nas aulas de canto, com o auxílio do piano, pude me inteirar sobre a extensão da minha voz, entendi o papel da respiração, do apoio do diafragma. Minha voz fez ginástica, ganhou corpo, cresceu. Comecei a escutar os cantores de outra forma, a estudá-los. Dois meses depois, cheguei em casa e anunciei: “Pessoal, não quero mais fazer o vestibular de jornalismo porque vou viver de música. E descobri que isso é possível.” Como eu era uma jovem responsável e sempre fui bem na escola, meus pais concordaram, depois de fazerem algumas perguntas. O cenário da época apresentava novidades: os pequenos selos musicais se multiplicavam, e a Unicamp estava prestes a abrir inscrições para o curso de graduação em música popular de São Paulo.
Estudei por cerca de um ano e meio na Espaço Musical, intercalando as aulas teóricas com as de violão, canto e percepção musical. Estava diariamente cercada de outras pessoas que também viam a música como uma possibilidade de trabalho. Agora eu escutava os discos de outra maneira, buscando referências para aprender e pensar sobre música. Tentando entender como tudo funcionava e me conscientizar de quem eu seria ou como seria minha estrada. Um tempo depois, a mãe de uma amiga do ensino médio me elogiou para a atriz Rosi Campos, e ela, mesmo sem me conhecer, indicou o meu nome para o diretor de teatro Gabriel Villela.
Ele estava para montar a peça O Concílio do Amor, no Centro Cultural São Paulo, um espetáculo que não era um musical, mas tinha uma personagem cantante, a Verônica, que vai na frente das procissões da Paixão de Cristo, abrindo o Santo Sudário e cantando diante das casas. Gabriel me ligou, fiz um teste e entrei para o elenco. Cantar, por si só, oferece à pessoa um lugar de destaque. Começar uma carreira no centro do palco, com a luz dos holofotes sobre si, pode ser assustador para iniciantes rígidos como eu era. Nenhuma pessoa está preparada para esse salto, principalmente se for tímida, como eu também era. Começar em uma companhia de teatro era o que eu precisava para ganhar segurança, porque o ambiente e os atores eram acolhedores, o papel era um entre muitos, mas importante como todos na composição geral da peça. Ensaiamos muito, costuramos figurinos, pintamos cenários e eu mergulhei fundo nas apresentações, que começaram em novembro de 1989, e a peça ficou em cartaz cerca de um ano, acho. Foi uma experiência linda que carrego para sempre.
Em determinado momento, depois de me apresentar na peça, comecei a cantar em bares, onde conheci outros músicos. Formei um primeiro grupo com amigos da minha geração, começamos a fazer shows e decidi que era hora de me dedicar a isso. Saí de O Concílio do Amor, mas fui assistir muitas vezes, inclusive no último dia de apresentação, quando Gabriel me disse para voltar para casa e me vestir toda de preto, porque naquele dia teríamos uma Verônica a mais. Fui sem piscar, e ao voltar ao teatro, esbaforida, abri a porta e dei de cara com Chico Buarque, Marieta Severo e Silvia Buarque, que estavam lá para assistir à peça. Puxei o ar com força e prendi a respiração. Por instantes, fiquei travada, com os olhos bem abertos, diante do Chico. Foi a primeira vez que me encontrei com ele. Estava atrasada demais para continuar ali e então saí correndo, sem falar nada.
Nessa época, os meus amigos começaram a frequentar os bares da Vila Madalena e de Pinheiros. Dois eram especialmente legais para escutar música ao vivo, o Café Paris e o Vou Vivendo. Os artistas eram bons, e aos poucos fui me introduzindo a eles, cantando uma música aqui, outra ali. Eu participava do show de todo mundo, era incansável. Se alguém me convidava, eu ia, mesmo depois de ter me apresentado em algum lugar, e cantava até não poder mais. Acabei sendo contratada.
O compositor Eduardo Gudin frequentava o Vou Vivendo e um dia me convidou para participar de um disco que queria fazer com outros cantores, chamado Notícias dum Brasil. Foi o meu primeiro trabalho profissional. O Gudin também me provocou para fazer um disco só meu. Um tanto insegura, respondi que não tinha um trabalho próprio, nem saberia criar um às pressas. Jamais faço alguma coisa se tenho dúvidas, não sei ser assim. Ele disse para eu ter calma porque era ainda muito jovem, com várias possibilidades por explorar, e me sugeriu gravar Os Afro-Sambas, de Baden Powell e Vinícius de Moraes.
Dos Afro-Sambas, eu conhecia apenas os mais conhecidos, Berimbau, Canto deOssanha e Consolação, gravados por muitos cantores. Nunca tinha ouvido o disco original. A jornalista Maria Luiza Kfouri, estudiosa da música brasileira, amiga do Gudin e hoje minha amiga muito querida, me copiou uma fita cassete do LP original, de 1966, e fiquei embasbacada. Aquilo era coisa muito séria: no final da bossa nova, surgiu esse material com células rítmicas africanas, misturando a densidade amorosa do Vinicius de Moraes com os orixás. É um disco lindo, de um tipo de projeto raro na música brasileira. Achei que era um projeto seguro para eu começar a minha estrada e um presente imenso fazê-lo (também ideia do Gudin) com o violonista, compositor e arranjador Paulo Bellinati, músico incrível e generoso, que àquela altura já tinha uma carreira internacional de solista. Gravamos o disco em duo e o lançamos em 1995. Foi um desafio pra mim, um início honroso e uma escola musical.
Nos anos seguintes, gravei discos no selos Pau Brasil e Eldorado (por ter vencido o Prêmio Visa), viajei muito com o Bellinati com nosso show dos Afro-Sambas e recebi um convite para gravar três discos pela recém-criada gravadora Biscoito Fino (onde fiz até hoje oito CDs e dois DVDs). Em 2006, recebi com surpresa o convite do Chico para gravar com ele a música Imagina, parceria com Tom Jobim (que eu conhecia e amava há anos), no CD Carioca. Era inacreditável estar no estúdio com o ídolo da minha infância, cantando uma composição cuja letra eu conhecia de trás pra frente. Foi a segunda vez que o encontrei, desde aquele dia nos bastidores do teatro.
A gravação me deu vontade de agradecer a Chico Buarque, na forma de um disco dedicado à obra dele, o que eu sabia que faria em algum momento. No mesmo ano, comecei a selecionar as canções (eu era tão tímida que sequer considerei a possibilidade de convidá-lo para participar do projeto). Quando planejava esse disco, que chamei de Noites de Gala, Samba na Rua, já estava grávida do Théo, e decidi incluir a canção Você, Você, que o Chico escreveu para o primeiro neto. Cantei no estúdio “imaginando o imaginário” de alguém que ainda estava para nascer e que, desde sua chegada, se tornou um maravilhoso companheiro de viagem, um legítimo “filho de circo” ou um “menino-milhas” como a gente o apelidou.
Em 2008, consegui, pela primeira vez, patrocínio para realizar uma turnê. A de Noites de Gala, Samba na Rua foi também a primeira de grande porte que eu fiz. Rodei o Brasil com ela. Eu e o Teco não paramos de trabalhar desde o nascimento do Théo, levando nosso filho nas viagens, até ficar inviável – não para nós, mas para ele. Todas as escolhas que fazíamos visavam garantir segurança e o melhor cuidado para o Théo. A gente se divertiu muito! Esse momento que estou vivendo de uma turnê grande novamente, com muitos dias fora de casa, aconteceu em uma hora boa e possível, já que o Théo está crescido e o Teco está trabalhando em casa, compondo e escrevendo arranjos para um trabalho solo, e escrevendo um livro.
Vivi o período de isolamento social de maneira muito restrita, sentindo ansiedade, uma angústia absurda e também compaixão e vontade de ajudar o mundo. A pandemia interrompeu a minha agenda de shows e a do Teco, e tivemos que reduzir as despesas. Fizemos as malas e fomos com o nosso filho para uma chácara em Sarapuí, no interior de São Paulo, onde o custo de vida é bem menor que na capital. Havia quintal, espaço para pegar sol, cachorros, galinhas, varal para pendurar as roupas, segurança física e emocional, o que era fundamental naquele momento.
Logo no início da pandemia, em março de 2020, entrei no Instagram e tentei cantar em uma live com Alfredo Del-Penho, meu amigo. Mas havia o delay que tornava impossível sincronizar a minha voz com a dele. Foi engraçado e curioso, e me dei conta de que não só estava impedida de trabalhar como não poderia cantar com os meus amigos.
No dia seguinte, acordei e disse ao Teco que queria consertar o embaraço daquela live. Fiz uma proposta ao Alfredo: “Você topa gravar comigo um vídeo cantando e tocando A Cor da Esperança, do Cartola e Roberto Nascimento? A gente combina a forma da música previamente, você grava da sua casa um vídeo, tocando e cantando, e deixa os vazios onde eu vou cantar. Manda pra mim que eu faço aqui a minha parte e depois junto um ao lado do outro, para a gente se encontrar.” O Teco sugeriu que eu cantasse olhando para um lado e o Alfredo para o outro, assim, depois de editar os vídeos, ficaria parecendo que estávamos interagindo.
Publiquei o vídeo no Instagram e no YouTube, com o nome de Ô de Casas, em referência ao chamado das visitas no portão, embora ali, naquela gravação, cada um estivesse na sua casa. Fiquei feliz e aliviada com a brincadeira que me fez tão bem e afastou minha cabeça daquele momento difícil. Logo outros amigos viram e disseram que queriam fazer também. Foi uma enxurrada. Fizemos 75 vídeos seguidos, um por dia. Lotou a memória do iPad e do celular, precisei buscar o computador e um HD externo em São Paulo. Assim como fiz com outros compositores amigos, a cada vez que uma música deles era gravada na série, eu mandava o link por e-mail ou WhatsApp, com o anúncio: “Saiu mais um pão quentinho”, mandava para o Chico as gravações das músicas dele. De vez em quando, inspirada no bem que esses vídeos caseiros e amorosos faziam para a gente e para as pessoas que passaram a esperar por eles (fizemos 175, no total), num ato de coragem que eu não tinha antes, eu convidava o Chico a gravar uma música.
Um dia me lembrei de uma gravação ao vivo da música João e Maria, do Chico Buarque, no Tokio Marine Hall, o mesmo teatro em que nós dois estamos nos apresentando agora, em São Paulo. E convidei o Chico a gravar comigo essa música, no mesmo tom e arranjo, com a participação do Luiz Cláudio Ramos, que toca com ele há anos. O Teco poderia tocar a flauta, e eu cantaria os trechos que ele quisesse. Era uma sexta-feira. Ele me respondeu: “Pode ser na segunda-feira?” Fiquei exasperada. Combinamos o que cada um cantaria, liguei correndo para o Luiz Claudio, que topou e fez o primeiro vídeo. Gravei a minha parte em casa, mandei para o Chico, ele gravou a dele e me enviou. Dali a alguns dias, publicamos o vídeo.
O que se seguiu foi um incêndio numa caixa d’água. Acho que, como eu, as pessoas sentiram conforto em ver o rosto e escutar a voz de Chico Buarque num momento de tanta solidão e angústia, como aquele. E acho também que esse momento de convivência à distância, mas cheio de afeto, significado e confiança, foi um dos motivos de ele me convidar para o seu show.
Agora que os encontros presenciais voltaram, descobri que há coisas, pessoas e modos de conduzir a vida dos quais não preciso mais e que parecem estar relacionados a vidas passadas. Tendo sido obrigada a parar tudo por causa da pandemia e me “encontrado” à distância com tanta gente, pude parar e ter, pela primeira vez, uma percepção que nunca tive: a de que consegui construir uma carreira. Fiz um site novo com esse olhar. Por quase dois anos, não trabalhei nem vi o público, e estava com uma vontade absurda de subir ao palco. O fato de estar fazendo a turnê do Chico e o modo como tenho me apresentado são o resultado de respostas encontradas por uma pessoa que viveu a pandemia dessa forma. É indissociável, como acho certo que seja, tamanho o deslocamento, tamanho o susto e as perdas que tivemos, especialmente no Brasil com sua condução desumana, irracional e negacionista.
Quando começamos a conversar sobre o repertório do espetáculo, no ano passado, contei ao Chico que a cantora Teresa Cristina e eu fizemos algumas batalhas musicais temáticas no Instagram durante a pandemia. Nós somos muito amigas, e a Teresa estava naquela produção diária de transmitir lives com convidados. Em certa ocasião, o tema da batalha foi “canções para crianças”. Ela selecionou algumas, eu outras, e varamos a noite cantando.
Já de madrugada, eu me lembrei de Todos Juntos, uma música linda do Chico para o espetáculo infantil Os Saltimbancos. Comecei a cantar totalmente desarmada e motivada pela saudade da infância, e a Teresa me acompanhou, numa alegria bonita de ver. Tudo ia bem até chegar nos versos “Ao meu lado há um amigo/Que é preciso proteger/Todos juntos somos fortes/Não há nada pra temer”. Naquela hora, em plena quarentena, a música ganhou o peso do seu real significado. Eu chorei de um lado, a Teresa do outro, as duas alagaram suas telas, enquanto as pessoas que nos assistiam enviavam uma chuva de centenas de emojis de choro. Chico deu risada dessa história, adorou. Perguntou se eu teria coragem de cantar Todos Juntos no show. E eu respondi: “Eu tenho!”.
Em casa, fui brincar de tocar a música na kalimba, um instrumento musical de origem africana que tem algo de caixinha de música. Tenho uma kalimba pequena, com um pesinho bom, que achei numa lojinha de artesanato de beira de estrada. Mostrei para Chico, Luiz Claudio Ramos e Vinícius França, que disse categórico: “Isso tem que abrir o show.” Pensei: “Vixe!” O público estaria esperando ansiosamente pelo Chico e, quando as cortinas se abrissem, apareceria eu, cantando uma música de criança com voz e kalimba. Mas a ideia era bonita, inclusive conceitualmente, porque localiza o momento em que o Chico entrou na vida de muitas pessoas. Há uma geração que cresceu escutando Os Saltimbancos. Eu mesma assisti ao show com meus pais, nos anos 1980, no Teatro Tuca, em São Paulo, uma das primeiras montagens do musical.
No início da turnê Que tal um samba?, nós vivemos um momento histórico muito agudo, com a proximidade e a chegada da eleição. O show começou a percorrer o país em setembro a partir do Nordeste, a região que poderia ser fundamental para o fim do governo Bolsonaro. Era catártico. A maioria das pessoas na plateia usava máscaras, para muitas delas era a primeira vez que iam a um show depois da pandemia, estavam em estado de euforia por estar no mesmo ambiente que Chico Buarque – o que seria em qualquer tempo um enorme acontecimento –, poder encontrar seus pares e sua própria identidade afetiva, assim como a do país em que se reconheciam. Atravessamos o período entre os dois turnos com agonia, somada a muita força e esperança. Os shows foram vividos com um grau de emoção difícil de explicar. E, depois das eleições, acrescentou-se o sentimento de alívio e confraternização de voltar para casa, uma casa machucada, cheia de estragos, mas que é onde a gente se reconhece.
De todas as rasteiras que o Brasil sofreu nos últimos anos, a pior delas foi pensar que nós, talvez, poderíamos ter perdido nossa identidade. O país foi parar em um tenebroso lugar de mentira e ódio institucionalizados. Um lugar desumano, não só por causa de sua histórica e imperdoável desigualdade social (que temos que resolver, como tantas outras coisas estruturais), mas desumano até mesmo no discurso. Uma espécie de Brasil bizarro, como um mundo paralelo, uma realidade paralela. Sem falar nas pessoas que perdemos para a Covid e para a ignorância. Viver isso distante dos amigos na pandemia potencializou a sensação de “Cadê a minha casa? Cadê todo mundo?”. E então, de uma hora para a outra, nos vimos dentro de um teatro lotado de pessoas, e todas elas são irmãs, porque se identificam umas com as outras – e o show do Chico virou catártico, afetivo, de um modo que eu nunca vi, por propiciar essa celebração da vida, quase da ordem do religioso. Era muito mais que estar no show de um artista de quem gostamos tanto. Para mim, foi um privilégio máximo viver esses momentos em cima do palco e ao lado do Chico.
Que tal um samba? não é um showmício. O Chico teve o cuidado de fazer uma setlist que capta a indignação e a denúncia social, mas também os afetos, os valores que devolvem a identidade de brasileiro. Tudo em nome da esperança. Isso é ainda mais forte, ainda mais profundo. Nós tememos o resultado das eleições. É bem possível que a turnê parasse caso o resultado fosse outro. Como renovar a esperança? O que iríamos dizer àquelas pessoas? Como conseguiríamos? Abraçaríamos o choro? Incentivaríamos a coragem?
E então veio o alívio. Sempre digo que essa turnê significa para mim dois presentes. Primeiro, ter a chance de ver esse momento da história do Brasil de cima do palco. Ver, oferecer e receber plateias enormes e emocionadas. O segundo presente é o Chico ter reconhecido no meu trabalho uma identidade com a música dele. A minha sensação é de que fiz as escolhas certas. Tomei as decisões certas, segui os caminhos coerentes e verdadeiros para mim. É um presente gigante.
A minha carreira se encaixou por muito tempo no que chamam de música de segmento. Eu a defino como sendo a carreira de uma “cantora-instrumentista”, porque fiz uma estrada que aprendi com colegas músicos que admiro. As oportunidades e as escolhas que fiz também colaboraram para eu me tornar uma artista autoral. Por causa disso, o meu público foi sendo construído com capilaridade, a indústria fonográfica (já na minha geração atravessando mudanças radicais) não impôs o meu trabalho a ninguém nem ele foi moldado por ela. Agora sei do meu ofício, moro nele, tenho uma vida nele há 28 anos. Isso conta e faz diferença.
As pessoas às vezes me perguntam o que eu acho que essa turnê vai representar para o futuro da minha carreira. Eu, honestamente, não tenho resposta. Se eu fosse mais nova, provavelmente olharia de outro jeito para o convite que recebi e teria outras expectativas com o que virá depois. Sei que esta turnê está me dando uma visibilidade maior e nova. Ficarei feliz se esse novo público se identificar com o meu trabalho e se somar à minha estrada. O combinado que eu fiz comigo mesma é viver da melhor maneira possível o período musical ao lado do Chico. Essa turnê é para mim, além de um presente muito bonito, uma experiência importante, um sonho lisérgico. Tenho plena consciência disso e brinco, cumprimentando o público: “Boa noite, aqui quem fala é a Cinderela.”
Lancei dois discos depois da pandemia, Cantor Sedutor, com o Dori Caymmi, e Milton, com o André Mehmari, que foram apresentados poucas vezes em shows. Sinto vontade de cantar essas músicas ao vivo para o público. E gostaria de gravar um monte de canções que aprendi durante o isolamento social.
Minha vontade de cantar e o amor pelo meu ofício só aumentaram. Minha vida ganhou outros sentidos na pandemia, minha percepção, minha forma de viver, de ouvir o outro, de escolher o que vale ou não a pena, de me relacionar com o público através das redes sociais, tudo mudou muito. Mas meus pés estão bem no chão, enquanto meu coração está nas nuvens.(In Outras Palavras)
Coordenador nacional do MST, João Paulo Rodrigues avalia que comissão servirá de "palco para latifundiários" e tem objetivo de intimidar luta pela terra e paralisar políticas públicas do governo Lula no campo. CPI contra os sem terra manobra golpista da extrema direita
A criação de uma CPI na Câmara que investigue as ações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é encarada com preocupação por uma de suas lideranças. "Se ela acontecer, acredito que será violenta contra nós", afirmou em entrevista à DW Brasil João Paulo Rodrigues, coordenador nacional do movimento, durante evento da organização no sábado (29/04), na região central de São Paulo.
O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL) leu, na sexta-feira (27/04), o requerimento para abertura de CPI proposta pelo deputado Tenente Coronel Zucco (Republicanos-RS) e com apoio da FPA (Frente Parlamentar da Agropecuária). Para que a comissão seja de fato instalada é preciso que os blocos partidários indiquem seus representantes. A tendência é que nomes da bancada ruralista tenham predominância no colegiado.
A iniciativa no Congresso para avaliar a estratégia do MST acontece após uma série de ocupações pelo país durante o mês de abril, como as ocorridas em uma fábrica da empresa Suzano, na Bahia, e de uma área da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), em Pernambuco. Os atos não foram bem recebidos no governo Lula. O atual ministro da Agricultura, Carlos Fávaro (PSD), chegou a comparar a atuação dos sem-terra com os atos golpistas de 8 de janeiro.
João Paulo Rodrigues afirma que o embate com setores do governo é normal diante da expectativa criada dentro do MST após a vitória lulista. "O governo é nosso. O que nós achamos é que já são quase 120 dias da posse e estamos esperando que nossas pautas sejam respondidas o quanto antes. A luta pela terra exige urgência, porque queremos ter terra, crédito e produzir comida."
Guilherme Henrique entrevista João Paulo Rodrigues
DW Brasil: Como avalia a criação da CPI na Câmara dos Deputados contra o MST e como ela pode atingir o movimento?
João Paulo Rodrigues: Nós estamos preocupados. É uma CPI de perseguição política ao MST e totalmente desnecessária. Não há fato e nem objeto definido do que ela vai investigar. É uma CPI preventiva sobre o que o movimento vai fazer no futuro. É um instrumento importante do Congresso, isso não se discute.
Mas, da forma como esse mesmo Congresso está atuando contra o MST, é perigoso, porque está servindo de perseguição. Será nossa quinta CPI e nossa preocupação não se dá por aquilo que fazemos, mas porque essa comissão servirá de palco para a direita e para os latifundiários nos atacarem.
Há desinformação sobre o papel do MST?
Eles sabem o que nós fazemos e por isso nos atacam. Há consciência do nosso trabalho. É a Frente Agropecuária, que sabe que o MST está no caminho certo para a democratização da terra, e por isso precisam nos deter. Por que não atacam o movimento sindical?
O ataque é no MST, porque eles sabem da importância pública que o movimento conquistou e que coloca medo no agro. Nós criamos a capacidade de dialogar com a sociedade e mostrar o que o agro faz de errado. E por isso eles não podem deixar barato.
Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, você disse que o MST vai contestar a CPI no Supremo Tribunal Federal caso ela avance no Congresso. Como isso pode ser feito e sob qual argumento?
Nós estamos reafirmando a necessidade de um debate público antes da CPI sobre a função social da propriedade no Brasil, que é o nosso argumento nesse caso. O direito à propriedade na Constituição de 1988 está ligado a um direito de preservação ambiental, bem-estar, de garantia às leis trabalhistas e à produtividade. O MST nunca ocupou nenhuma fazenda que esteja atuando dentro desses requisitos.
O MST ocupa propriedades flagradas com trabalho escravo, que são devedoras da União, que desmatam ou ocupam terra pública, como é o caso da Suzano. Então, nós estamos muito tranquilos sobre nossa atuação. O problema é que nós não podemos achar que só vale a nossa compreensão das coisas. Os parlamentares no Congresso, o Judiciário, todos precisam entender que a função social da terra é tão importante quanto o direito à propriedade.
A base do governo na Câmara é suficiente para barrar ou ser atuante na CPI?
Ainda estou na perspectiva de que ela não aconteça. Se ela acontecer, acredito que será uma CPI violenta contra nós, que vai tentar intimidar a luta pela terra, mas que também tem como objetivo perseguir e constranger o governo Lula, para que a atual gestão não realizar nenhum tipo de política pública no campo.
Qual o saldo da Jornada de Lutas e das ocupações ao ocorridas ao longo de abril?
É positivo, porque deixou claro que nós estamos na luta pela reforma agrária. Não se pode existir dúvida de que esse é o objetivo do MST e em suas ações. Além disso, mostrou que o movimento tem autonomia em relação ao governo e o governo em relação ao movimento. É bom para não misturar as duas coisas.
Outro ponto é que mobilizamos nossa base social para que todos estivessem inseridos na luta. Agora, a verdade é que saímos da jornada sem nenhuma conquista econômica do governo, que não anunciou nada para nós até agora. Ainda assim, o balanço político é positivo.
Como é relação com o governo Lula? As críticas às ações em Suzano e na Embrapa surpreenderam?
O MST está acostumado a esse embate. O que nos preocupa é quando o governo ou setores do Congresso acham que o movimento não é mais uma organização de luta pela terra, mas uma grande cooperativa de produção de comida. É também. Mas o nosso foco principal continua sendo a luta pela terra.
O MST espera algo do governo Lula?
Claro, o governo é nosso. O que nós achamos é que já são quase 120 dias da posse e estamos esperando que nossas pautas sejam respondidas o quanto antes. A luta pela terra exige urgência, porque queremos ter terra, crédito e produzir comida. Essa é a nossa vontade que precisa avançar.
Governo é que nem feijão: só funciona na pressão. E o governo sabe disso. Para que uma conversa com Lula vire política pública demora meses, às vezes anos, porque o Estado é feito para não atender os pobres. Pressionar esse sistema é uma forma de tentar avançar.
Como vê o futuro do MST?
O MST precisa estar atento a um novo período, que é de atualização. Como fazer ocupação? Como explicar para a sociedade melhor o que nós fazemos? Antes demorava 24 horas para sair na imprensa uma ocupação nossa. Agora é tudo online, e às vezes não dá tempo de nós explicarmos os motivos de uma determinada ação.
O MST vai precisar cuidar mais desse diálogo e a jornada nos mostrou isso. E acredito que o MST precisa unificar e comunicar melhor a ideia de que produção, cooperativa, agroindústria e ocupação são ações que estão juntas. Não há outro jeito. É um esforço na construção de uma narrativa política na sociedade que não criminalize a ocupação de terra e nem coloque o MST como uma grande ONG produtora de comida.
As ocupações vão continuar?
Isso é a vida do movimento. Hoje mesmo nós tivemos duas ocupações: uma no Rio Grande do Norte e outra na Bahia. Tem terra e pessoas sem-terra, nós vamos agir. Agora, o que não há é uma grande jornada marcada para as próximas semanas. O MST não pretende anunciar grandes operações, mas também não vai ficar parado. A rotina do movimento de ocupar latifúndio improdutivo vai seguir.
Quais são as estratégias do MST contra a escalada de violência no campo?
Esse é um tema que nos deixa preocupados e apreensivos, porque tem muito fazendeiro armado no Brasil. A única forma de lidarmos com isso é fazer com que toda e qualquer ocupação seja feita dentro do campo da democracia e constituição. Não pode ser clandestina.
A lei está do nosso lado, no que já falei sobre a função social da terra, e nós temos que denunciar e mostrar os ataques sofridos. O país não pode se transformar em um grande pavio pólvora com conflitos sociais a todo momento.
Leia a íntegra do discurso do cantor, compositor e escritor Chico Buarque em cerimônia no Palácio de Queluz, em Sintra, Portugal
por Regina Zappa /247
“Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
Ainda guardo renitente
Um velho cravo para mim”
(“Tanto Mar”, Chico Buarque)
“Recebo este prêmio menos como uma honraria pessoal, e mais como um desagravo a tantos autores e artistas brasileiros humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e obscurantismo.” Com essas palavras, o cantor, compositor e escritor Chico Buarque recebeu hoje, em cerimônia no Palácio de Queluz, em Sintra, Portugal, o Prêmio Camões das mãos dos presidentes Lula, do Brasil, e Marcelo Rebelo de Sousa, de Portugal. Chico recebeu o prêmio, o mais importante da literatura de língua portuguesa, depois de quatro anos de espera. O anúncio do Prêmio foi feito no dia 21 de maio de 2019, na sede da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro.
Na época, o então presidente Bolsonaro se recusou a assinar o diploma e Chico se considerou um escritor com dupla sorte: recebeu o Prêmio e não teve o diploma assinado por Bolsonaro. "A não assinatura do Bolsonaro no diploma é para mim um segundo prêmio Camões", disse ele. Por essa razão e por causa da pandemia, Chico recebeu o Prêmio, quatro anos depois, vestindo um elegante terno escuro e uma gravata branca que, segundo disse com sua fina ironia, foi comprada pela mulher Carol Proner em uma loja de Lisboa, fazendo uma brincadeira com a gravata de Lula, comprada por Janja, que tanta “perplexidade” causou.
Emocionado, Chico homenageou Sergio Buarque de Hollanda, ao relembrar a veia literária e os ensinamentos recebidos do pai. “Posso imaginar meu pai coruja ao me ver hoje aqui, se bem que, caso fosse possível nos encontrarmos neste salão, eu estaria na assistência e ele cá no meu posto, a receber o Prêmio Camões com muito mais propriedade.”
Chico Buarque venceu os prêmios Jabuti de melhor livro do ano por "Leite Derramado" e por "Budapeste". Na categoria romance, ele também foi premiado por sua obra "Estorvo". No caso do Prêmio Camões, a escolha é pelo conjunto da obra.
Chico Buarque estreou como escritor de ficção em 1974, com a novela Fazenda Modelo. Em 1979, publicou o livro infantil Chapeuzinho Amarelo. Seu primeiro romance, Estorvo, foi lançado em 1991. Quatro anos depois, publicou o segundo, Benjamin. Em 2003, lançou Budapeste; em 2009, Leite Derramado e em 2014, Irmão Alemão. Escreveu as peças de teatro Roda Viva (1968); Calabar (1972, juntamente com Ruy Guerra); Gota D’Água (1974, com Paulo Pontes), e Ópera do Malandro (1978).
O prêmio Camões foi criado em 1988 com o objetivo de consagrar um autor de língua portuguesa que, pelo conjunto de sua obra, que tenha contribuído para o enriquecimento do patrimônio literário e cultural do idioma", segundo o Ministério da Cultura (Minc).
Na véspera das comemorações da Revolução dos Cravos em Portugal, Chico assegurou que “valeu a pena esperar por esta cerimônia, marcada não por acaso para a véspera do dia em os portugueses descem a Avenida da Liberdade a festejar a Revolução dos Cravos”.
A seguir, a íntegra do discurso de Chico Buarque:
“Ao receber este prêmio penso no meu pai, o historiador e sociólogo Sergio Buarque de Holanda, de quem herdei alguns livros e o amor pela língua portuguesa. Relembro quantas vezes interrompi seus estudos para lhe submeter meus escritos juvenis, que ele julgava sem complacência nem excessiva severidade, para em seguida me indicar leituras que poderiam me valer numa eventual carreira literária. Mais tarde, quando me bandeei para a música popular, não se aborreceu, longe disso, pois gostava de samba, tocava um pouco de piano e era amigo próximo de Vinicius de Moraes, para quem a palavra cantada talvez fosse simplesmente um jeito mais sensual de falar a nossa língua. Posso imaginar meu pai coruja ao me ver hoje aqui, se bem que, caso fosse possível nos encontrarmos neste salão, eu estaria na assistência e ele cá no meu posto, a receber o Prêmio Camões com muito mais propriedade. Meu pai também contribuiu para a minha formação política, ele que durante a ditadura do Estado Novo militou na Esquerda Democrática, futuro Partido Socialista Brasileiro. No fim dos anos sessenta, retirou-se da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo em solidariedade a colegas cassados pela ditadura militar. Mais para o fim da vida, participou da fundação do Partido dos Trabalhadores, sem chegar a ver a restauração democrática no nosso país, nem muito menos pressupor que um dia cairíamos num fosso sob muitos aspectos mais profundo.
O meu pai era paulista, meu avô, pernambucano, o meu bisavô, mineiro, meu tataravô, baiano. Tenho antepassados negros e indígenas, cujos nomes meus antepassados brancos trataram de suprimir da história familiar. Como a imensa maioria do povo brasileiro, trago nas veias sangue do açoitado e do açoitador, o que ajuda a nos explicar um pouco. Recuando no tempo em busca das minhas origens, recentemente vim a saber que tive por duodecavós paternos o casal Shemtov ben Abraham, batizado como Diogo Pires, e Orovida Fidalgo, oriundos da comunidade barcelense. A exemplo de tantos cristãos-novos portugueses, sua prole exilou-se no Nordeste brasileiro do século XVI. Assim, enquanto descendente de judeus sefarditas perseguidos pela Inquisição, pode ser que algum dia eu também alcance o direito à cidadania portuguesa a modo de reparação histórica. Já morei fora do Brasil e não pretendo repetir a experiência, mas é sempre bom saber que tenho uma porta entreaberta em Portugal, onde mais ou menos sinto-me em casa e esmero-me nas colocações pronominais. Conheci Lisboa, Coimbra e Porto em 1966, ao lado de João Cabral de Melo Neto, quando aqui foi encenado seu poema Morte e Vida Severina com músicas minhas, ele, um poeta consagrado e eu, um atrevido estudante de arquitetura. O grande João Cabral, primeiro brasileiro a receber o Prêmio Camões, sabidamente não gostava de música, e não sei se chegou a folhear algum livro meu.
Escrevi um primeiro romance, Estorvo, em 1990, e publicá-lo foi para mim como me arriscar novamente no escritório do meu pai em busca de sua aprovação. Contei dessa vez com padrinhos como Rubem Fonseca, Raduan Nassar e José Saramago, hoje meus colegas de prêmio Camões. De vários autores aqui premiados fui amigo, e de outras e outros – do Brasil, de Portugal, Angola, Moçambique e Cabo Verde - sou leitor e admirador. Mas por mais que eu leia e fale de literatura, por mais que eu publique romances e contos, por mais que eu receba prêmios literários, faço gosto em ser reconhecido no Brasil como compositor popular e, em Portugal, como o gajo que um dia pediu que lhe mandassem um cravo e um cheirinho de alecrim.
Valeu a pena esperar por esta cerimônia, marcada não por acaso para a véspera do dia em os portugueses descem a Avenida da Liberdade a festejar a Revolução dos Cravos. Lá se vão quatro anos que meu prêmio foi anunciado e eu já me perguntava se me haviam esquecido, ou, quem sabe, se prêmios também são perecíveis, têm prazo de validade. Quatro anos, com uma pandemia no meio, davam às vezes a impressão de que um tempo bem mais longo havia transcorrido. No que se refere ao meu país, quatro anos de um governo funesto duraram uma eternidade, porque foi um tempo em que o tempo parecia andar para trás. Aquele governo foi derrotado nas urnas, mas nem por isso podemos nos distrair, pois a ameaça fascista persiste, no Brasil como um pouco por toda parte. Hoje, porém, nesta tarde de celebração, reconforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando seu espaço em branco para a assinatura do nosso presidente Lula. Recebo este prêmio menos como uma honraria pessoal, e mais como um desagravo a tantos autores e artistas brasileiros humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e obscurantismo.
"Obscurantismo e a negação das artes foram marcas do totalitarismo e das ditaduras que censuraram o próprio Chico no Brasil e em Portugal", disse Lula no Palácio de Queluz
247 -O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) afirmou que a entrega do Prêmio Camões ao músico e escritor Chico Buarque representa uma vitória da democracia contra a ditadura, além de corrigir um “dos maiores absurdos cometidos contra a cultura brasileira". “Se hoje estamos aqui é porque, finalmente, a democracia venceu no Brasil”, afirmou Lula.
“O obscurantismo e a negação das artes foram marcas do totalitarismo e das ditaduras que censuraram o próprio Chico no Brasil e em Portugal", disse Lula durante a cerimônia de premiação no Palácio de Queluz, nesta segunda-feira (24), em Lisboa. O prêmio foi concedido a Chico Buarque em 2019, mas foi vetado por Jair Bolsonaro (PL) por questões ideológicas.
Lula não citou o ex-mandatário em seu discurso, mas afirmou que "o ataque à cultura em todas as suas formas" foi parte de" um projeto que a extrema-direita" tentou implementar no Brasil nos últimos quatro anos.
“É uma satisfação corrigir um dos maiores absurdos cometidos contra a cultura brasileira nos últimos tempos. Digo isso, porque esse prêmio deveria ter sido entregue em 2019, e não foi. Todos nós sabemos por quê. O ataque à cultura, em todas as suas formas, foi uma dimensão importante do projeto que a extrema-direita tentou implementar no Brasil. Se hoje estamos aqui é porque, finalmente, a democracia venceu no Brasil”, disse Lula.
Chico Buarque no palco da casa Vivo Rio, na estreia carioca do show 'Que tal um samba' no Rio de Janeiro — Foto: Ricardo Nunes / Divulgação Vivo Rio
Ex-presidente se recusou a assinar documentação necessária para que artista recebesse o diploma, apesar de o governo português tê-lo feito.
Por BBC
Depois dequatro anos de espera, o cantor, compositor e escritor Chico Buarque, de 78 anos, vai finalmente receber nesta segunda-feira (24) em Sintra, Portugal, o prêmio Camões, o mais importante da literatura de língua portuguesa.
Como resultado, todos os vencedores do prêmio — quatro no total, incluindo Buarque — ainda não o receberam.
Chico Buarque estreou como escritor de ficção em 1974, com a novela "Fazenda Modelo". Em 1979, publicou o livro infantil "Chapeuzinho Amarelo". Seu primeiro romance, "Estorvo", foi lançado em 1991. Quatro anos depois, publicou o segundo, "Benjamin". Em 2003, lançou "Budapeste"; em 2009, "Leite Derramado" e em 2014, "Irmão Alemão". Ele escreveu as peças de teatro "Roda Viva" (1968); "Calabar" (1972); "Gota D’Água" (1974), e "Ópera do Malandro" (1978).
O prêmio Camões foi criado em 1988 "com o objetivo de consagrar um autor de língua portuguesa que, pelo conjunto de sua obra, tenha contribuído para o enriquecimento do patrimônio literário e cultural do idioma", segundo o Ministério da Cultura (Minc).
É considerado a mais importante premiação da língua portuguesa e contempla anualmente autores da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Seu nome homenageia o poeta português Luís de Camões (1524-1580), uma das maiores figuras da literatura lusófona.
O ganhador do prêmio recebe 100 mil euros (R$ 555 mil), sendo metade desse valor subsidiado pela Fundação Biblioteca Nacional, entidade vinculada ao Ministério da Cultura. A outra metade é paga pelo governo português.
O diploma entregue aos laureados contém o nome de todos os países lusófonos e é assinado pelos chefes de Estado de Portugal e do Brasil.
A escolha é feita por um júri de seis membros, dois do Brasil, dois de Portugal e dois escolhidos em comum acordo por outros países lusófonos (Angola, Cabo Verde, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste).
O primeiro a receber o prêmio, em 1989, foi o poeta e escritor português Miguel Torga.
Desde então, outros 33 escritores foram agraciados, entre os quais 14 do Brasil, 14 de Portugal, três de Moçambique, dois de Angola e dois de Cabo Verde.
Entre os brasileiros laureados, estão Raduan Nassar (2016), Ferreira Goulart (2010), Lygia Fagundes Telles (2005) e Jorge Amado (1994).
Devido à recusa de Bolsonaro em conceder o prêmio a Buarque, os seguintes escritores ainda nãopuderam recebê-lo: o português Vitor Manuel de Aguiar e Silva (2020), a moçambicana Paulina Chiziane (2021) e o brasileiro Silviano Santiago (2022).
Primeira mulher a publicar um romance em Moçambique, Chiziane é a primeira mulher e a primeira negra a vencer a premiação. "Niketche: Uma História de Poligamia" é um de seus romances mais famosos.
'Viramos uma página'
Em declaração no sábado (22) em Lisboa por ocasião da abertura da 13ª Cúpula Brasil-Portugal, que já não acontecia havia sete anos, o primeiro-ministro português, António Costa, fez alusão ao prêmio Camões.
Ao lado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Costa usou a recusa de Bolsonaro em entregar a premiação como um exemplo do esfriamento das relações entre Brasil e Portugal nos últimos anos. Segundo ele, no entanto, é momento de "virar a página".
"Queria sublinhar a importância do dia de hoje, em que depois de sete anos de interrupção retomamos as cimeiras (cúpulas) anuais entre Portugal e o Brasil. Retomamos estas cimeiras na segunda visita que em poucos meses o presidente Lula faz a Portugal e na primeira visita que o presidente Lula faz à Europa", disse.
Costa falou da "interrupção de contatos" entre os dois países. Em sua visão, a consequência mais clara disso foi o fato de "só na próxima segunda-feira (24) ser entregue a Chico Buarque de Holanda o Prêmio Camões, que ganhou há quatro anos, em 2019".
"Viramos, por isso, uma página", disse.
Lula está em viagem oficial em Portugal, aonde chegou na última sexta-feira (21). Ele fica no país até terça-feira (25), quando segue para a Espanha. Seu retorno ao Brasil está previsto para a noite de quarta-feira (26).
Entrevisto o presidente Lula na manhã desta quinta. A conversa vai ao ar, na própria 5ª, no programa 'O É da Coisa', na BandNews FM, na Band, na BandNews TV e nas plataformas do grupo Bandeirantes.
Ministério Público de SP tem de abrir uma investigação. Prefeito de S.Sebastião, numa entrevista-chilique à BandNews FM, deixou escapar que empresários com casas em Maresias impediram a construção de 400 habitações populares. Quem são? O que fizeram? Por que a Prefeitura cedeu?
Entidade empresarial de Bento Gonçalves culpa o Bolsa Família por trabalho escravo. Nunca mais nem uma taça de vinho dessa gente!!! E qualquer pessoa decente fará o mesmo enquanto esses caras não pedirem desculpas e não assumirem a sua culpa. ELITE LIXO!
O vereador Sandro Fantinel (Patriotas), de Caxias do Sul, já sabe a quem culpar pelo trabalho escravo nas vinícolas: os baianos, q seriam sujos. O vereador é um criminoso, segundo a Constituição e a Lei 7.716. Ministério Público vai atuar?
Pregar a revolução com palavras e música é uma coisa, Vargas. Fazer a revolução é outra coisa, eu diria, se soubesse em 1972 os acontecimentos de 1973.
– Eu gosto de Caetano Veloso – Alberto fala. – Ele tem umas coisas boas.
– Boas?! – Vargas se exalta. – Ele é o melhor compositor da música brasileira…. – “de todos os tempos”, ele ia dizer. Hoje percebo que se conteve com uma modéstia do Barão de Itararé, que ia se chamar de Duque, mas baixou o título para Barão. E continuou Vargas: – É o melhor! Caetano Veloso é o melhor compositor do tempo da revolução.
Olho em volta e percebo que nas mesas vizinhas se faz um silêncio. Todos nos escutam, concluo. Assuntos de música popular, no Brasil, são os que mais despertam interesse depois do futebol. Mas na ditadura falar na altura da voz de Vargas, usando a palavra “revolução”, é demais. Nelinha lhe toca o braço e sussurra “cuidado”. Ele sorri:
– Tranquilo, minha santa. Estou falando de cultura.
– Estamos falando sobre música, não tem problema – Alberto fala.
– E tudo é revolucionário, não é? – Vargas completa. – O cinema de Glauber é revolucionário, a juventude é revolucionária, tudo é revolucionário. Menos Chico Buarque.
Todos riem. Ocorre o que às vezes se chama brincar com o perigo. Zombar do abismo. Mas na hora o que me ocorre é o cometimento de uma injustiça.
– Eu não acho – falo. – Chico, para mim, é o melhor compositor de música popular brasileira hoje. Ele tem uma poesia que não tem Caetano. Chico é de fazer música, não é de dar espetáculo. Caetano é escandaloso, entende?
– A revolução é um escândalo! – Vargas quase grita. Alberto ri, Nelinha sorri para o companheiro, que se vê estimulado. – Chico é o compositor de Carolina, Januária na janela. É o poeta dos olhos verdes das meninas. Isso é revolucionário? Preste atenção: a música de Chico é o passado. Ele é um compositor de 1960 pra trás.
– Olhe… – eu queria dizer, se compreendesse então, que Chico ligava a tradição à música de 1970, assim como Paulinho da Viola fez essa ligação como samba. Mas há um tempo em que possuímos o sentimento, mas não encontramos as palavras, que ainda não nos chegaram pela experiência. Então arquejo, como um náufrago, diante da catilinária. – Olhe, você quer poesia melhor que … – e tento cantarolar “se uma nunca tem sorriso, é pra melhor se reservar…” – que “a dor é tão velha que pode morrer”, hem? – E baixo a voz: – Chico é a esquerda do futuro.
– Ele não é nem do presente – Vargas responde. – Que dirá do futuro. Preste atenção, muita atenção: “sei que um dia vou morrer de susto, de bala ou vício”. Escutou? Esta é a música de agora, dos jovens revolucionários de hoje.
– Isso não é de Caetano. É de Gil, Torquato e Capinam – falo.
De Gil? – Vargas responde. – Não importa. Está no disco de Caetano. Ele fez da música um hino revolucionário. Isso é o que importa.
– Hum, sei – falo, mas ainda não sei. Vou do rosto de Vargas até Nelinha, sigo para Alberto, retorno a Vargas. – É bom também – admito, a fórceps.
Olho para Vargas e me pergunto “será bom mesmo?”, e o que vem a ser o conteúdo da pergunta eu não me digo nem quero ver. Se eu soubesse na noite o que soube depois, eu diria “esta música é o anúncio da morte”. Esse ritmo alucinante, à caribe, é enganoso e leviano. Pregar a revolução com palavras e música é uma coisa, Vargas. Fazer a revolução é outra coisa, eu diria, se soubesse em 1972 os acontecimentos de 1973. Mas ainda ali, percebo agora, eu seria injusto até a estreiteza e maledicência. Então os artistas não podem expressar o sentimento que corre na gente? Então é justo acusar de leviano, de traidor da revolução, quem escreve como homem poético o homem prático? Só a raiva, no que tem de embrutecedora, verá a canção da luta armada no Brasil dessa maneira. Se assim fosse justo e real, o que dizer de Lorca, de Víctor Jara, até mesmo de Neruda? Então eu, que de nada sabia, escuto Vargas cantarolar “estou aqui de passagem, sei que adiante um dia vou morrer de susto, de bala ou vício”. E para ser mais preciso, em meio à intuição do horror, se põem acordes do frevo lá na Dantas Barreto. Meus olhos correm do rosto de Vargas, vão até a barriga de Nelinha, tão desamparada me parece na tormenta. Me dá uma vontade à beira do irreprimível de acariciar o fruto que virá no temporal. Vargas, que é vigilante insone da mulher, flagra o meu olhar nesse instante. Mas o macho vigia da sua fêmea é derrubado pela humanidade que pressente nessa ternura solidária. Assim sei, assim soube, porque a sua voz baixa o tom, e me fala como a um camarada, um irmão de jornada:
– Companheiro, desculpe. Pensamos diferente, mas você é um companheiro. Estamos juntos, não importa o que fazem de nós. O companheiro me desculpe.
– Que é isso, rapaz? Não foi nada. – Comovido pela gravidez de Nelinha e pelo descobrimento do Vargas que vem, fico embargado. E como sempre, tento corrigir a emoção com uma frase que me salve: – Eu também gosto de Caetano Veloso.
– Eu também gosto de Chico Buarque de Holanda. – Vargas me responde e sorri: – Que revolucionário.
– Sim – falo – Mas não na forma, na altura de um Caetano.
Todos gargalhamos. Então Alberto puxa desafinado, à sua maneira desafinado, “Apesar de você”. E mesmo com os sons do frevo que se aproxima, cantamos juntos “amanhã vai ser outro dia, amanhã vai ser outro dia”.
Quando digo que o ensino jurídico fracassou, eis um exemplo peremptório: “Advogado vai ao TSE contra diplomação alegando que Lula drogou eleitores
por Lenio Luiz Streck
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Sou Lenio Streck. Avô do Santiago e do Caetano. Professor universitário, constitucionalista, advogado sócio de Streck & Trindade Advogados, fui procurador de Justiça do Rio Grande do Sul durante 28 anos e, vejam só, fui também goleiro. Porteiro. Goalkeeper. Guarda valas. Quase um Dibu Martínez na final da Copa, dizem as boas línguas.
Sempre gostei de futebol. Tenho diploma de comentarista de futebol (fui orador da minha turma de formatura). Não por menos, quando criança, na minha Agudo, pedia ao Weihnachtsmann, o Bom Velhinho (ou não), que me trouxesse uma bola e uma camiseta de goleiro. Um cético daria de ombros: Papai Noel não existe; não para uma criança que, de tão pobre, odiava férias (férias significa ficar em casa; ficar em casa significa trabalhar — e trabalho vem de tripalium, instrumento de tortura). É óbvio que Papai Noel não vem, embora até hoje façamos a árvore de Natal.
Um pouco de futebol!!!! O talento venceu!!!
Ou será que vem? Não sei. Fato é que eu fui goleiro. Com a bola, a camisa, e até as luvas, que nem imaginava à época. Abaixo, duas fotos: a primeira, de 1974, jogando no Avenida; a segunda, de 2017, no Prerrô F.C., time de advogados no jogo contra o Politeama, do Chico Buarque. (A primeira imagem mostra que as boas línguas têm razão...!)
Pois é. Será que foi o velho Santa Claus quem me deu as luvas e camiseta? Coincidência ou espírito de Natal?
Não sei. O que sei é que sou um incorrigível otimista metodológico. Ajo sempre "como se". Pudera: estou já há três décadas lutando contra os predadores do Direito. Já perdi muitas, e continuo aqui.
Sigo. E hoje, como já se tornou tradição aos finais de ano, divulgo, aqui na Senso Incomum, minha carta para o Weihnachtsmann, que era como chamamos o Papai Noel em terras de colonização alemã.
Eu tinha de recitar a seguinte "oração": "Ich bin Klein, mein Herz ist rein, Darf niemand drin wohnen als Jesus allein" ("sou pequeno, meu coração é puro, nele não deve morar ninguém, a não ser Jesus"). Sem pieguice, mas, repetindo isso agora, uma lágrima me pega desprevenido.
Isso é como ler O Grande Inquisidor: quando chega na parte em que Jesus beija seu algoz, é impossível chegar ao final sem me emocionar. Meus alunos, e quem me viu em palestras tentando contar, sabem do que falo. Não há como segurar as lágrimas quando elas vêm sem convite.
Celebrando o Natal que se aproxima. Pois é... muito embora alguns pensem que eu seja rabugento, por estar aqui na ConJur brigando toda quinta-feira contra o subjetivismo e o emotivismo, não sou nenhum Scrooge — falo do personagem de Dickens que odiava o Natal.
Eis, pois, minha carta ao Velho Noel.
Papai Noel, meu primeiro pedido é que as pessoas leiam textos com mais de quinze linhas (o que inclui este).
Você bem sabe, as coisas aqui no direito brasileiro não têm sido fáceis. Ameaças de golpe de estado quase todos os dias. Dureza. Papai Noel, passe a varinha nessa gente que fica, pateticamente, pedindo golpe e AI-5. Quem pede golpe de estado nunca teve ninguém preso pela ditadura. Eu tive. Papai Noel sabe. Várias vezes contei isso, pedindo para ajudar minha família. Afinal, é o que eles mesmos estão pedindo, pois não? Estou sendo generoso, pois!
Papai Noel, como tem tanta gente falando mal da Constituição e querendo destruir até cláusula pétrea, ajude-me na fundação do movimento salvacionista chamado Unfucking the Constitution (só posso dizer o nome em inglês porque me recuso a dizer palavrões). Ou em francês: Défornication de la Constitution. Já que tem tanta gente querendo fazer o contrário...
Antes que seja tarde demais. Sim, Pai Natal, ajude-me a fazer esse contramovimento. Alguns pedidos têm muito a ver com isso, meu caro Noel. Não quero uma Constituição nova. Pelo contrário. Só peço pra salvar a velhinha, surrada, que fez tão bem... se se dessem conta do bem que fez (e do perigo que seria trocar)...
Poxa, Pai Natal, por que tem tanta gente que faz faculdade de direito e sai odiando a Constituição? Seus professores seriam analfabetos funcionais? Veja isso pra mim, Papai Noel. E depois me conte.
Nosso ensino jurídico não foi, até hoje, capaz de ensinar — direito — conceitos básicos de Teoria do Direito. Sinopses (quem faz sinopse não faz sinapse), esqueminhas, facilitações, quiz shows, Direito-simplificado-mastigado-resumido... Afinal, “seja f... em direito!” (como consta na capa de um “livro”!!) Faça essa gente ajoelhar no milho, Papai Noel. E lhes tire o smartphone. Sem ele, derretem.
Papai Noel, diga-me: por que tem tanta gente reacionária no Direito? Onde fracassamos? Por que as faculdades formam tantos fascistas? Por que a comunidade jurídica é a que mais odeia direitos e garantias? Ajude, Pai Natal. Conceda-me esse pedido. Não mais permita que se forme tanta gente inculta e jus blasfema. Que as faculdades de direito ensinem direito, não uma má teoria política do poder.
A propósito, por favor, não mais permita que embargos de declaração ou agravos sejam "decididos" em duas linhas como "mantenho a decisão pelos próprios fundamentos; encaminhem-se os autos ao Tribunal Superior competente, na forma do artigo 1.042, parágrafo 4º. do CPC", enfim, que a Constituição seja cumprida de forma ortodoxa. Que o "livre convencimento motivado" (acrescido de um "precedente do STJ") não sirva pra justificar qualquer coisa.
Outro pedido, Noel, é que finalmente se discuta a sério neste país o que é isto — um precedente? Já estamos de há muito reféns de um ementário prêt-à-porter.
Assim, meu outro pedido não deixa de ter relação com todos os anteriores; é uma espécie de salvaguarda de tudo que mais importa nos momentos difíceis como é este que vivemos. Que a Constituição seja cumprida. Papai Noel: que se respeite a força normativa da Constituição.
Papai Noel, recolha todos os celulares cujos WhatsApp estejam fazendo fake news tipo "o artigo 142 da CF coloca as Forças Armadas como poder moderador". Faça-os ajoelharem no milho (no meu tempo de ensino fundamental era assim).
Mais um pedido: que os alunos das faculdades leiam livros. E que não fiquem consultando a m... do WhatsApp enquanto o professor fala. Passe a vara de marmelo no lombo dessa escumalha, Papai Noel. Ler, sabe? Ler livros. Parece antiquado, eu sei. Mas perdoem minha insistência: acho mesmo que não tem muito jeito. Fazer o quê? Dá trabalho, né? Pois...
Que as pessoas voltem a ler. Livros. Textos sofisticados. Não fake news de whatsapp ou 280 caracteres de twitter (mas, é claro, o twitter @Lenio_Streck oficial pode).
Se alguém vier com essa coisa de as urnas foram "fraldadas" (sic), ponha de castigo e não dê presente. Vai pro cantinho pra (aprender a) pensar.
Inspire o novo governo para que mude os concursos públicos! Prova de concurso não é para papagaios. Uma reforma na lógica que orienta esse mundo à parte!
Que advogados não mais sejam desrespeitados. Que o exercício da advocacia não se torne um exercício de humilhação. E que não se criminalize a profissão de advogado. Que não se confunda o advogado com seu cliente. A criminalização da advocacia é incompatível com o Direito, Velho Noel.
Que os desembargadores e ministros, durante a sustentação oral das partes, não fiquem olhando os seus tablets; e que prestem atenção no esfalfamento do causídico (ou finjam que estão prestando atenção).
Como se viu, são poucos os pedidos, Papai Noel. Assim como eram poucos os meus pedidos de menino de Agudo, terra do Bagualossauro Agudensis, o mais antigo dinossauro do mundo, encontrado a 3 km de onde nasci. Mais de duzentos e quarenta milhões de anos! Por isso sou um dinossauro da Constituição. Um jurássico.
No mais, querido Papai Noel, queria apenas uma bola, luvas e uma camisa de goleiro. E quem sabe uma boina e alpargatas...
Mas, enfim, homenageando um grande compositor do sul, Cesar Passarinho, sugiro que "oiçam" a música. Chama-se Guri! Vejam que maravilha de letra:
"- Hei de ter uma tabuada e meu livro 'Queres Ler'... E se Deus não achar muito, tanto coisa que eu pedir...!"
Também a música Tão que foi o Natal, música rara de Chico Buarque. Que bom que fosse Natal o ano todo. Oiçam.
Feliz Natal, leitores da ConJur. Sem exclusões. Porque sou includente!
Na ação, Chico cobra a retirada de sua música da postagem de Eduardo, além de uma indenização de R$ 48 milhões e publicação da sentença condenatória no Instagram. Em 1968, a letra virou inspiração para uma peça de teatro quando o elenco foi espancado pelo regime militar. Para Dilma, a canção “nos despertou” à época e “ainda inspira”.
A ex-presidenta indaga qual seria o intuito da magistrada: “Ignorar o uso indevido que Eduardo Bolsonaro fez da canção? Pois, como justificar que uma música feita para combater a ditadura militar fosse, sem autorização do seu autor, Chico Buarque, utilizada indevidamente em apoio ao fascismo que ele, Eduardo Bolsonaro, representa?”
Leia abaixo a íntegra e ouça a música, que também foi postada por Dilma:
Roda Viva" é de Chico Buarque e o testemunho é de muitas gerações
Qual o fundamento da sentença da juíza que concluiu não haver provas de que a música 'Roda Viva' foi escrita pelo nosso grande compositor, músico e poeta Chico Buarque de Holanda? Ignorar o uso indevido que Eduardo Bolsonaro fez da canção? Pois, como justificar que uma música feita para combater a ditadura militar fosse, sem autorização do seu autor, Chico Buarque, utilizada indevidamente em apoio ao fascismo que ele, Eduardo Bolsonaro, representa?
Só negando a autoria a Chico Buarque.
Ou se trata de simples desconhecimento do fato de que uma das músicas mais lindas da história da MPB foi escrita por Chico Buarque em 1967, cantada por ele num festival, premiada com o primeiro lugar e emocionado uma geração inteira de brasileiras e brasileiros? E que todos nós, desta geração e das próximas, podemos nos arrolar como testemunhas da autoria do Chico e da profunda emoção que Roda Viva nos despertou e ainda inspira?
Talvez a juíza substituta do TJRJ, Monica Ribeiro Teixeira, possa alegar como desculpa para ignorar a autoria de Roda Viva o fato de não ter nascido quando a música foi lançada. Mas, neste caso, a dificuldade poderia ter sido rapidamente sanada com uma consulta ao Google e ao Ecad, para descobrir o que o país inteiro já sabe.
Assista a seguir a prova de que a música que encantou o Brasil e continua fundamental até hoje tem como autor um dos maiores compositores brasileiros de todos os tempos: Chico Buarque cantando a SUA Roda Viva no festival da canção, ao ser anunciada a sua vitória: