Em vias públicas, mãos, fuzis e revólveres policiais levam a cabo a perfuração que verte o sangue negro no asfalto quente, em becos e vielas nos quais jorram a vida preta entre os ralos da miséria e do esquecimento
Passadas as celebrações do novembro negro e do mês que, em nome de Zumbi e Dandara dos Palmares, rememora, denuncia e exige reparações históricas à população negra brasileira, parece vigorar certo silêncio após a efeméride, no que diz respeito à (in)consciência negra nacional. Reinam, todavia, as imagens associadas à violência, ao genocídio, ao caos e aos casos nunca isolados de racismo que, de norte a sul, cortam o território amefricano. Casos que dilaceram famílias e comunidades, aniquilam sujeitos e arrasam possibilidades de vida plena e digna, tal como garantido na Carta Constitucional brasileira.
Imagens de controle, como enunciadas por Patricia Hill Collins, que reforçam práticas de dominação, criminalização e violência, física e simbólica, voltadas à estigmatização e à legitimação de suas próprias operações de morte. Se a morte ocupa um lugar fundamental nessa produção imagética é na medida em que se constitui como ponto de partida, sob a perspectiva do supremacismo branco, do que seja o destino natural e original do corpo negro, que da morte-em-vida à morte factual passaria de um estado de não-ser ao desaparecer, como o desvanecer da imagem de um fantasma – entre mundos, medos e modos de ser pautados pelo negativo.
Em vida, porém, a consciência retinta de ser, de viver e a teimosia tomam forma, rosto, nome e figura do que, sendo, insiste em desarticular os mundos de morte da branquitude e seus mecanismos de sufocamento, acionados por vias diversas. Em vias públicas, mãos, fuzis e revólveres policiais levam a cabo a perfuração que verte o sangue negro no asfalto quente, em becos e vielas nos quais jorram a vida preta entre os ralos da miséria e do esquecimento; em vias privadas, pelas mãos de algozes e feitores que chamam de amor (?) a doença que extirpa, subjuga e liquida as vidas de mulheres, sobretudo negras, encontradas em sacos pretos, rios, azulejos frios, imobilizadas em fotos que estampam, cotidianamente, pequenos retângulos de jornais sanguinolentos (até quando?).
Ceifadas, entre promessas de amor eterno e o eterno pedido de desculpas das forças policiais e chefes de Estado, desaparecem, em preto e branco, histórias, narrativas e memórias daquelas que, chacinadas, são condenadas sem inquérito, enquantoco-mandantes são condecorados em cerimônias oficias e oficiosas.
Penso nesses rostos enquanto escrevo e vejo o sorriso, os sulcos da pele, as marcas e linhas longas da vida – interrompidas. Penso nas vidas negras que importam, dizem, e, todavia, seguem conscientemente exterminadas por mãos apocalípticas enquanto, nas escolas, tentamos fazer valer a lei da vida, a lei da justiça e do ensino de história e cultura daquelas que, antes de nós, em diáspora, fizeram valer com seu suor a contra-lei do mundo dos homens injustos.
Passados 20 anos de promulgação da Lei 10.639/03, silentes ou complacentes, a conveniência segue esbranquiçando itinerários formativos. Mas o poder do brado negro desafia o silêncio reinante. Peleja, retumba, sacoleja e desarranja os ritos (fúnebres) de histórias lineares, pomposas e heroicas que não mencionam Dandara, Aqualtune, Marielle, Lélia e Sueli, porque, ali, o pacto sa(n)grado é branco, no masculino.
A consciência nossa é ciência, suor e roda. É repente, desafio e capoeira, ginga com os arranjos, institucionais ou não, há séculos organizados para transportar os corpos em tumbeiros, caveirões e rabecões, para quem a morte passa a ser pena capital e não parte da existência e do mundo compartilhado com a ancestralidade. Até a morte foi saqueada. E soterrada em covas rasas, sem nome, placa ou documento de identificação, para que a indigência devorasse, com o bico afiado, a carne putrefata de quem sonhava com casa própria, formatura e família grande, como Kethlen Romeu e seu filho, assassinado no ventre.
Vingar ainda é desafio na diáspora. Vingar até a última gota de vida, o desafio nas 52 semanas e 1 dia de consciência negra, que perfazem um ano. Nele, todos os dias são voltados ao desfazimento do pacto funesto. Todos os dias são voltados à lembrança do que, recalcado, não pode contentar-se com um único dia ou mês do ano. Emerge, dia a dia, porque nascido em zona de emergência. Contra a virulência, insurgente, gesta resistência na negra consciência da luta pelo que é, foi e será. Todos os dias do ano.
Ruan Marques era um jovem de 19 anos, pai de três crianças, que entrou pelo caminho errado, tornando-se assaltante de residências. Tentou assaltar uma casa nos jardins, armado de uma chave de fenda apenas. Não conseguiu.
Quando a Rota chegou ele, mais dois amigos, se esconderam em um carro, provavelmente roubado por um deles. Teve tempo de enviar três mensagens para a esposa, de puro pavor, medo de ser preso. Pede para mandar mensagem para a mãe. Diz que está no carro e que a Rota cercou.
Deveria ser preso, condenado, cumprir uma pena e voltar recuperado, depois do susto. Ou não.
Foi executado a sangue frio, sob aplausos de alguns moradores da região. E toda a mídia comprou a versão de que estavam com armas, que invadiram a casa, mantiveram os proprietários como reféns.
Tal e qual nos tempos da ditadura, quando a Rota e os porões semeavam versões que eram compradas pela mídia.
Pouco antes, na Caminhada do Silêncio, uma mãe exibiu a foto do filho, adolescente, morto na chacina de Paraisópolis cinco anos atrás. Até hoje os assassinos continuam à solta, no diligente trabalho de implementar a pena de morte.
Em 25 de janeiro, no primeiro mês do governo Bolsonaro, o rompimento da barragem da MinaCórrego do Feijão, operada pela Vale, resultou na morte de pelo menos 270 pessoas. Trata-se da maiorcatástrofe ambiental provocada pela ação humana em solo brasileiro. "A pior do mundo em 3 décadas" informou em manchete a BBC de Londres.
Fevereiro, 08: Dez pessoas morreram e quatro ficaram feridas em um incêndio de grandes proporções noCentro de Treinamento Ninho do Urubu, do Flamengo, em Vargem Grande, no Rio de Janeiro. As chamas começaram por volta das 5h. A maioria dos mortos era de adolescentes jogadores da base do time carioca, entre 14 e 17 anos. O alojamento, onde ficavam atletas da base cujas famílias moravam longe ou fora do Rio de Janeiro, foi totalmente destruído pelas chamas.
Março, 13: Em Suzano, a 50 km de São Paulo,dois atiradoresentraram em uma escola e dispararam contra alunos e funcionários. Cinco estudantes, uma diretora e uma coordenadora da escola foram assassinados pelos ex-alunos Guilherme Taucci Monteiro, 17 anos, e Luiz Henrique de Castro, 25.
Obedecendo a um pacto de morte, ambos se suicidaram assim que a PM chegou à instituição de ensino. Antes, Guilherme já havia matado o tio, Jorge Antônio de Moraes, 51 anos, alvejado no escritório da loja de veículos dele.
Setembro, 12: Umincêndio atingiu o Hospital Badim, na rua São Francisco Xavier, no Maracanã (zona norte doRio de Janeiro). Os bombeiros confirmaram que 12 pessoas morreram. Ao todo, 103 pacientes estavam internados na unidade no momento do incêndio.
Segundo o que funcionários relataram à polícia e publicações nas redes sociais, o incêndio teria começado por volta das 18h15 em um prédio antigo onde funcionava o setor de laboratórios do hospital.
Dezembro, 1º: Uma perseguição policial com troca de tiros durante umbaile funk em Paraisópolis, zona sul de São Paulo, deixou nove pessoas mortas após serem pisoteadas. Outras sete ficaram feridas. Segundo a polícia, os militares realizavam a Operação Pancadão na região, quando dois homens em uma motocicleta atiraram contra os PMS. Após os disparos, a moto fugiu para o baile funk.
Com isso, os agentes começaram a perseguir os suspeitos, que entraram na festa que reunia cerca de cinco mil pessoas. Os jovens foram pisoteados e a maioria morreu por asfixia e trauma na medula. Um vídeo gravado de uma casa da região mostra a movimentação da polícia e também a correria das pessoas que estavam na noitada. Veja:
Importantes livros historiam a desumanidade capitalista, a crueldade assassina do neocolonialismo, a ambição das minineradoras estrangeiras, o entreguismo dos governos de Minas Gerais e do Brasil
Para passar a boiada do ministro Ricardo Salles, o governo Bolsonaro iniciou a destruição da maior floresta tropical do mundo, com o fogo e a serra elétrica o desflorestamento da Amazônia, a contaminação dos rios com o mercúrio da mineração invasora e ilegal, a violência relacionada à regularização fundiária, demarcação de terras e reforma agrária na Amazônia Legal e no Cerrado. O holocausto, o genocídio dos povos indígenas. (Continua)
Deputado federal Heitor Freire (PSL-CE) acusou escola de apologia ao nazismo por causa de charge de Latuff
Trabalhos do chargista usados em escolas e em exposição no Congresso foram alvo de tentativas de censura, a mais recente ocorreu na semana da Consciência Negra. Artista afirma que violência do Estado não pode ser tratada como caso isolado
O chargista e o ativista político Carlos Latuff coleciona situações em que seus trabalhos foram alvos de críticas e tentativas de censura ao serem aplicados em escolas. A mais recente ocorreu na semana da Consciência Negra, quando estudantes do Colégio Cívico-Militar Ced 1 da Estrutural do Distrito Federal produziram uma exposição sobre a data. Nos murais estavam charges de diversos artistas com críticas à violência policial.
Alunos do colégio cívico militar fizeram murais com obras de artistas como Carlos Latuff e Antonio Junião, diretor de arte da Ponte, para o Dia da Consciência Negra; deputado do PSL acusou professores de corrupção de menores e apologia ao nazismo.
A operação da Polícia Civil do Rio de Janeiro no bairro do Jacarezinho, na zona norte da capital fluminense, no último dia 6 de maio, é vista unanimemente como a mais letal das ações repressivas do gênero no estado, com seus 28 mortos – 27 moradores e um policial.
Este artigo foi escrito após uma pesquisa sobre a história do bairro e dez visitas ao Jacarezinho nas semanas após a operação. Está dividido em quatro partes: 1) a avaliação do secretário da Polícia Civil do estado sobre o conjunto da sua obra, com a descrição dos fatos que seriam prova de que agiu corretamente, inclusive, respeitando decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) do ano passado que proibia operações em comunidades durante a pandemia; 2) as primeiras provas oficiais de que, ao contrário do que diz seu comandante, a operação foi um massacre, cavilosamente apresentado como sendo em defesa das crianças e adolescentes da comunidade, para aparentar respeito à decisão do STF que só as admitia em casos “excepcionais”; 3) nossas duas visitas ao local onde teria ocorrido a grande batalha da operação; 4) uma espécie de homenagem ao povo do bairro: narra a ocupação inicial do morro por trabalhadores, parte dos quais tinha sido escrava dos donos do Engenho de Dentro, do Engenho Novo e do Engenho da Rainha, nomes que até hoje batizam bairros vizinhos, e que se tornaram “livres” com a Abolição de 1888. Faz referência a um período de avanços políticos na gestão da comunidade, antes de as condições mais gerais do País terem levado para aquele povo pobre as drogas como um instrumento de geração de emprego e renda.
1. Fala o chefe Turnowski
Para Turnowski, o que aconteceu no Jacarezinho foi uma perseguição dos policiais pelos bandidos…
O que foi a operação do Jacarezinho do dia 6 de maio, em resumo? Foi “uma batalha entre o estado do Rio e uma facção criminosa”, disse o secretário da Polícia Civil fluminense, Allan Turnowski, em longa entrevista a O Dia, um jornal popular de grande circulação na cidade. Nela ele faz um balanço do significado maior e destaca detalhes da ação. “Na verdade”, continua ele, para explicar o que denuncia, “essa facção é politizada e articulada [...] Há um discurso de determinados especialistas em segurança pública que bate com o que vem de dentro da cadeia, de lideranças do Comando Vermelho. Que é: ‘Vocês não combatem milícias, só vão em nossas áreas, então a gente não vai mais aceitar operação na área do Comando Vermelho’. Tem um recado que veio uma semana antes da operação, de dentro da cadeia. ‘Nós não vamos mais aceitar operação em nossas áreas’, eu tenho os dados da inteligência com essa mensagem”.
Turnowski completa sua avaliação dizendo a O Dia que “fica claro” que o recado do Comando Vermelho para seus integrantes em Jacarezinho era o de não se renderem. “O que a polícia sente hoje é que há uma articulação desses traficantes com setores da sociedade, como se fosse uma defesa dessa facção criminosa, para que não fujam [do confronto]”, completa o jornal. “E aí, basta que ocorra uma morte e esse pessoal vai para o discurso nas redes sociais, dizer que a polícia protege as milícias e ataca o povo.”
O repórter do jornal tenta dizer que parece ter acontecido o contrário: as mortes tão elevadas de moradores e a de apenas um policial ocorreram porque “a polícia trabalha com a lógica do confronto”. Turnowski diz que não: “No Jacarezinho o que se viu foram criminosos atirando para matar policiais.” O repórter não parece satisfeito ainda e pede imagens dessa perseguição dos policiais por bandidos. Turnowski retruca: “Mais do que imagens eu tenho os blindados todos perfurados, tiros nos helicópteros e o policial morto.” E detalha: diz que para atravessar o “beco de entrada” no Jacarezinho, onde foi atingido na cabeça o policial que depois morreu, “percurso que você faz em um minuto andando, levamos uma hora e meia”, porque “houve uma resistência muito forte”.
Turnowski explica também para O Dia o fato de a operação que comandou ter sido chamada de Exceptis, ou seja, exceção, que, para muitos, é uma zombaria, uma ironia em relação à determinação do ministro do STF, Edson Fachin, de proibir as incursões policiais em áreas das comunidades durante a pandemia, deixando aberta apenas a possibilidade de ações “excepcionais”. Disse que o nome em latim não era uma zombaria, mas, ao contrário, “uma demonstração de respeito”. Teria sido uma operação excepcional, urgente, comandada pela Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), que estariam sendo usados pelos bandidos no Jacarezinho para o tráfico de drogas.
De início, a polícia espalhou a versão de que o policial morto na operação tinha descido de um blindado para remover obstáculos montados pelos moradores para impedir a passagem dos veículos. Não é verdade. Por duas razões: uma, os blindados, popularmente conhecidos como “caveirões”, não circulariam pelas vielas do Jacarezinho, simplesmente porque não cabem nelas – qualquer investigação mínima demonstra isso. Eles foram usados fora do perímetro da operação: ou para levar policiais até essa área, ou para recolher feridos ou mortos carregados pelos policiais de dentro das moradias para esse perímetro limite, de onde foram levados, depois, para hospitais da região. De modo geral, como mostraremos adiante com laudos oficiais, os moradores foram mortos e arrastados de dentro de residências e levados para os caveirões por policiais, em sacolões especiais, como mostram inúmeras imagens dos jornais.
A outra: o policial que morreu – e tinha um currículo de realizações, diga-se – não era maluco de tentar retirar, com suas próprias mãos, os obstáculos ao avanço dos blindados. Para isso precisaria de máquinas, retroescavadeiras, tratores, por exemplo.
Esses obstáculos ainda estavam nos seus locais no início de julho, ao final desta reportagem. São vários. Três são os que obstruem as principais entradas para a comunidade. Um está na entrada sudoeste pelas margens do rio Jacaré que a limita ao morro do Jacarezinho pelo sul. Quem vem da zona sul, pela rua Alvares de Azevedo, entra à direita, logo após o pontilhão sobre o rio. Essa é a via por onde os policiais, depois de descer dos blindados, entraram – a pé, segundo os moradores. É uma pista asfaltada chamada de rua do Rio; do outro lado do Jacaré, é a avenida Guanabara que margeia o rio.
Outro caminho é pelo alto, cruzando a travessa Jerusalém, que limita a área da comunidade ao norte. A esse ponto se pode chegar por uma pista larga, no sentido norte-sul, a oeste de um terreno de antiga fábrica da General Electric (GE). Chega-se então à comunidade num ponto próximo à sede do Azul, o time de futebol dos moradores, que utiliza um campo existente no terreno da companhia americana.
Essa entrada pelo norte e pelo alto é a oficial. Tem uma saudação: aos visitantes da “comunidade do Jacaré”, a placa diz, confundindo o morro do Jacarezinho com o do Jacaré, mais ao sul. Essa entrada pelo alto deveria, supostamente, ser a preferida dos policiais, uma vez que a Cidade da Polícia fica a uns 300 metros dali, logo mais ao norte. Trata-se de um conjunto de nove prédios, que, de acordo com a Wikipédia, “abriga 15 delegacias especializadas, a Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), cinco órgãos da chefia de Polícia Civil e cerca de três mil agentes”. Agentes de cinco dessas delegacias participaram da operação.
E o terceiro caminho para acessar a comunidade é pelo leste, a partir da Cidade da Polícia, pela antiga Avenida Suburbana, hoje avenida dom Hélder Câmara. De carro, para-se antes de outro pontilhão sobre o rio Jacaré. E indo para o oeste, passa-se em frente a um Ciep, escola secundária da época do ex-governador Leonel Brizola. Passa-se também por um caminho que cruza os trilhos da Central do Brasil. E chega-se a uma pequena ponte e daí, finalmente, à rua do Rio.
Estes três caminhos, até a conclusão dessa reportagem, estavam fechados para veículos mais largos como o “caveirão”: ou por barreira de trilhos de aço enterrados no asfalto; ou por blocos móveis formados por pedaços de trilhos concretados em barris metálicos ou mesmo diretamente em caixas de concreto. Dessas três entradas deve-se destacar duas como improváveis. Uma, a que vai do norte para o sul, do alto para baixo, começando a partir da travessa Jerusalém. A razão para o corte: os policiais entrariam na comunidade por uma de duas ruelas, quase em fila única, sujeitos a ataques dos dois lados. A outra entrada improvável é a pelo sudeste do Jacarezinho, que teria até um espaço para estacionamento dos caveirões, à margem do rio, ao lado do Ciep. Mas esta também deve ser descartada, porque exporia os policiais a uma caminhada de quase um quilômetro até a comunidade. Num barzinho a poucos metros dos trilhos da central, o dono, um nordestino que abre seu negócio às quatro horas da madrugada, lembra-se bem do dia 6 de maio, quando, às seis horas, começou a ouvir muitos tiros que vinham de longe, diz apontando para o oeste. “Não foi por aqui que eles passaram”, diz categoricamente.
No sacolão, um dos mortos vai para o camburão
2. Os fatos já divulgados que desmentem o chefe da operação
A operação começou às seis da manhã do dia seis de maio e às sete já haviam sido mortos pela polícia dezesseis moradores
As conclusões do chefe da polícia fluminense devem ser examinadas à luz dos fatos já sabidos. De início, os próprios registros policiais já existentes. A delegacia de homicídios registrou, com informações dos policiais, os locais e os horários das ações nas quais morreram os 27 moradores. A operação começou às seis horas da manhã de 6 de maio e foi até o meio-dia. Em uma hora, às 7, haviam morrido 16 moradores. Mas não pelo confronto entre os bandidos e os heroicos policiais no perigosíssimo beco de entrada no Jacarezinho descrito pelo chefe de polícia, o qual em condições normais se percorreria “em um minuto, andando”.
Para quem quer saber da verdade, o resumo de Turnowski sobre uma “batalha do beco” mais esconde do que revela. A disposição do chefe de polícia para esconder fica mais evidente pelo fato de ter sido imposto um sigilo oficial de cinco anos sobre a documentação da operação, logo após o pedido da TV Globo para acesso às informações sobre as incursões da polícia civil em comunidades do Rio desde a decisão do STF do ano passado, de proibi-las. O argumento usado por Turnowski foi o de que a divulgação desses dados poderia “comprometer futuras ações estratégicas dos órgãos de segurança”, além de colocar “em risco a vida de policiais”.
A polícia não tem um mandato aberto para fazer o que bem entende. Não pode, obviamente, sair invadindo casas, matando gente a torto e a direito. Há regras, leis para regular suas ações. O Ministério Público é o órgão oficial legalmente encarregado de analisar as operações policiais. E pediu, através do promotor de Justiça do Rio, Alexandre Cardoso, em ofício a Turnowski, já no dia 11 de maio, cinco dias após a operação, portanto, que lhe enviasse, “na íntegra, sem qualquer edição”, “as filmagens aéreas da operação policial”.
Três semanas mais tarde, em 1º de junho, o MPRJ só havia recebido da Polícia Civil praticamente o que fora divulgado para a imprensa logo após a Exceptis. O MPRJ pediu, então, com prazo de dez dias, e citando como base a lei estadual 8.928 do ano passado, que regulou o assunto, que a polícia enviasse, ainda mais, “a justificativa da operação, o seu planejamento operacional e o relatório final da investigação”. O governo estadual decretou então o sigilo oficial dos documentos da operação por cinco anos. O Ministério Público, que tem acesso aos dados sob sigilo, anuncia para breve um pronunciamento. Apesar disso, as informações foram surgindo.
O jornal O Globo divulgou em 11 de maio o resumo de um relatório oficial da polícia sobre os 27 moradores mortos – com foto, idade e “ficha criminal” de cada um. É um documento espantoso para ser o resultado de uma operação chefiada por uma delegacia batizada de DPCA, ou seja, de proteção à criança e ao adolescente. Os mortos eram, no geral, muito jovens: três tinham menos de vinte anos – um deles era menor, com 16, outro tinha 18, e o outro, 19 (todos adolescentes, segundo a definição da Organização Mundial da Saúde); 13 estavam na faixa dos 20 anos; 8, na dos 30; e apenas 3 na dos 40 – um com 41, outro com 43, e o terceiro com 49. Pelas imagens e pelas idades se percebe que eles estão no padrão de vítimas ou de confrontos com a polícia, ou, o que é mais grave, de execuções pela polícia brasileira no seu estilo geral de combate ao tráfico de drogas. São geralmente jovens e, na grande maioria, pretos ou pardos; vêm de famílias pobres; e moram em áreas urbanas nas quais a polícia atua a seu bel prazer, derrubando portas, apoiada em mandados judiciais amplos e extravagantes, expedidos por juízes que jamais as autorizariam para áreas de gente mais rica e com mais poder.
Onde se deu, no Jacarezinho, a grande batalha vencida gloriosamente pela polícia como diz seu comandante Turnowski? O bairro abriga uma comunidade com cerca de 40 mil moradores, uma fração da população da Rocinha, mas maior do que a de 85% das cidades do País. Está pregado na face sul do morro do mesmo nome, tendo como limite nessa direção o rio Jacaré. Ao norte, no alto, é limitada por uma enorme propriedade hoje ocupada apenas por guardas do terreno onde funcionou, entre 1920 e 2007, uma fábrica da empresa americana GE.
Ao beco da batalha a que se refere Turnowski a polícia chegou pela entrada sudeste do Jacarezinho, para quem vem da zona sul, a partir da avenida Alvares de Azevedo. Há, como diz o relatório da polícia, um “pontilhão” sobre o rio Jacaré e duas pistas asfaltadas nas margens do rio, a que se chama rua do Rio, do lado da comunidade, e avenida Guanabara, do outro lado, onde hoje estão galpões e algumas fábricas, como a Owens Illinois, grande fabricante global de produtos de vidro, e a Farmoquímica, do ramo de medicamentos.
O relato do chefe de polícia está em desacordo com a cronologia dos fatos apresentada pela própria polícia. Duas mortes estão registradas às 6h, logo no início da operação, descritas como tendo ocorrido “em local indeterminado”, o que é estranho, pois nos registros da polícia sobre esse evento, além das duas vítimas, constam a presença de dois policiais e as apreensões de uma submetralhadora e uma pistola. Mais duas mortes ocorrem dez minutos depois, às 6h10, uma no chamado Campo do Abóbora, na margem sul do rio, e a outra na Darci Vargas, ruela interna, na parte centro-leste do Jacarezinho, ambos os pontos próximos do beco de entrada que os policiais teriam atravessado em uma hora e meia de terrível batalha. Mais dois mortos estão registrados em dois becos, um no Beco da Síria e outro no Beco da Zélia. Mais dez moradores foram tidos como mortos ou perto ou na rua do Areal em três registros: 1) duas mortes entre sete e oito horas, em local próximo ao “pontilhão” que passa sobre o rio; e mais oito, todas registradas como sendo às sete da manhã, na rua Areal, mas em dois blocos, um de sete pessoas e mais um, com uma pessoa apenas. A rua do Areal é, portanto, o centro da batalha a que se refere Turnowski.
O Jacarezinho: embaixo, o Rio Jacaré; no alto, o terreno da GE. E nenhum espaço para o verde que se vê em bairros como Maria da Graça, no alto à esquerda, e Jacaré, embaixo à direita
3. Duas visitas à região do Areal
As provas oficiais de que a polícia matou e arrastou para fora de suas casas pelo menos dez moradores
Nossa reportagem foi em busca da rua do Areal com ajuda técnica, mas primeiro por conta própria. Percorremos o limite sul da comunidade do Jacarezinho, pela rua do Rio, em toda a sua extensão, em dois sentidos: 1) chegando do sul pelo pontilhão da Álvares de Azevedo e indo para o leste; 2) chegando do norte pela avenida dom Hélder Câmara e andando no sentido oeste pela margem do rio. Nessa caminhada contamos na rua do Rio duas dúzias de vielas, caminhos estreitos que uma pessoa de braços abertos praticamente interrompe.
Chegamos à rua do Areal pela rua do Rio, num domingo, perguntando pela localização da rua em que teriam sido mortos vários moradores no dia 6 de maio. A primeira constatação foi a de que a rua Areal não é propriamente uma rua: é uma viela, como muitas. Já na sua entrada, um morador confirmou que o local era aquele mesmo, mas advertiu que era melhor não prosseguir. O repórter apresentou desculpas, mas foi em frente. Não andou mais que dez metros, no entanto. Um menino, com aparência de não mais que 15 anos, com uma arma de cano longo, ordenou que parasse. O repórter argumentou que estava apenas tentando identificar o local no qual teriam ocorrido várias mortes no dia 6 de maio. O menino não quis conversa; mandou o repórter voltar. Apenas acrescentou referindo-se à polícia: “Se eles voltarem aqui não vai sobrar nenhum.”
O repórter também viu nesse domingo – com muita gente animada, muito som nas duas margens do Jacaré – uma banca vendendo o que lhe pareceram pequenas embalagens de drogas. A conclusão: o massacre parece não ter mudado muita coisa no Jacarezinho; o tráfico de drogas continua, e o menino armado que o interrompeu pode estar no lugar de outro morador, mais velho, já morto.
Voltamos à rua do Areal a partir de documentos de ação comandada pelo chefe da Delegacia de Homicídios da Capital, o delegado Moyses Gomes, a partir das 10h30 da manhã do dia 6 de maio. A essa altura, como se vê na tabela apresentada, a operação já estava no fim: 23 das 27 mortes de moradores já tinha ocorrido. O delegado mandou para a área do Areal uma perita criminal qualificada, com grau de doutora, Ariana Santos. Ela foi, como escreve em seus relatórios, para “realizar exames no local, descrevendo com a verdade e todas as circunstâncias, o que encontrar”. Nossa reportagem obteve os seis relatórios que ela produziu, a partir de seis incursões – às 10h30, 11h, 11h30, 12h, 12h40 e 13h20.
Um exame atento desses seis documentos ilumina aspectos centrais da operação da polícia do Rio e revela que ela foi muito diferente de um confronto feroz de heroicos policiais contra pérfidos bandidos. A nosso ver, a doutora Santos até que procura valorizar o que parece ter sido, de fato, um confronto armado realmente forte entre policiais e moradores do Jacarezinho, supostamente traficantes, nas proximidades da viela do Areal. Ela repete essa conclusão, com o mesmo texto e as mesmas fotos na introdução de todos os seus seis laudos. Em todas essas aberturas, ela coloca um trecho referente ao “Deslocamento pela Comunidade”. E mostra, em todos, uma mesma viela com trechos de seu piso cobertos de cápsulas de balas e com sinais nas paredes que ela identifica como sendo provas de confronto, ou seja, de que balas foram disparadas de lados opostos. Mas não há referência a qualquer sinal de sangue, ou de mortes. Ela diz que se trata de uma conclusão ampla inicial e que não recolheu material para detalhar o laudo, como, por exemplo, amostras das cápsulas de balas de diversos calibres visualizadas, tendo em vista o clima “belicoso no local”, pois, “durante a presença da equipe pericial, se ouviam disparos de tiros e granadas”. E conclui esta parte repetindo em todos os seis laudos: “Dessa forma ateve-se o Perito apenas aos locais de morte violenta apresentados para os exames.”
Resumindo, as perícias da doutora Ariana mostram que ações que resultaram em pessoas feridas – e mortas – ocorreram em seis endereços diferentes, nos quais foram examinados nove locais, sete apartamentos residenciais (com áreas entre 30 m2 e 60 m2), mais uma laje – a cobertura de um imóvel –, e uma área não definida. Em todos os locais periciados foram constatadas manchas de sangue e, na maioria deles, “componentes de munição e marcas de impacto de projéteis”. As manchas de sangue, frequentemente, foram identificadas como produzidas pelo arraste de corpos de feridos no sentido das saídas das residências. Num dos casos, a perita descreve uma mancha na parede do quarto de um morador “com um padrão de projeção de sangue” que “ocorre quando há lesão arterial, ou seja, manchas de formato elíptico, acompanhadas de um escorrimento característico formado pela projeção de sangue das artérias, em função dos movimentos de sístole e diástole cardíacos”.
Os relatórios também apontam que em todos os apartamentos foram encontrados sinais de pessoas feridas, que, no total, seriam ao menos dez. No entanto, “vestígios compatíveis com a ocorrência de confronto” só foram encontrados em três dos sete apartamentos periciados.
A perita repete em todos os laudos que o local das ocorrências não foi preservado, como manda a lei. O que significa que os corpos dos mortos não estavam nos locais quando foi realizada a perícia e que objetos podem ter sido retirados ou movidos. Daí, inclusive, a incerteza quanto ao número de feridos em cada local. Em todos os relatórios consta a afirmação de que “devido a área estar conflagrada com a ocorrência de tiros e granadas” próximos ao “perímetro de segurança”, a autoridade policial de plantão determinou que “os exames fossem acelerados com prejuízo para as análises periciais da cena do crime”. Assim, “a determinação conclusiva” dos eventos “deverá ser obtida pela junção de outros dados presentes na competente investigação policial e nos demais laudos periciais a serem emitidos”.
A rua do Areal: o terrível beco no qual o chefe de polícia imaginou uma heróica batalha de seus soldados
O Ministério Público do Rio de Janeiro é o órgão encarregado oficialmente de apurar os desmandos ocorridos. Colocou um legista para acompanhar o exame dos cadáveres pela polícia. E contratou um serviço técnico criado pelo governo de São Paulo, independente da polícia, para avaliar a operação. No início de julho, para a revista CartaCapital, um porta-voz do MPRJ declarou que está mantendo o sigilo das informações que já possui e anunciou para breve o resultado oficial de sua investigação.
O primeiro resultado independente da polícia foi apresentado pelos hospitais que receberam as vítimas da operação: o chefe Turnowski diz que eles foram levados feridos para serem socorridos e os hospitais dizem que os 27 já chegaram mortos, três com os rostos dilaceradas, com aparência de terem sido executados com um tiro no rosto; e três, eviscerados – com os corpos separados das vísceras. No depoimento de um dos seis presos na operação, durante a audiência de custódia, que é realizada com a presença da ouvidoria publica para atestar as condições do acusado, um rapaz declarou, em vídeo, que “um policial” quis colocar a sua “cara” “na tripa” de “um moleque morto.”
Os bons tempos: operárias e operários na fábrica de General Electric do Jacarezinho
4. O Jacarezinho negro, vermelho e cinzento
E suas mutações
Vista do alto, em toda a sua extensão, a área da comunidade do Jacarezinho tem o formato do que os geômetras chamariam de um grande paralelogramo, um retângulo com cerca de um quilômetro de altura no leste e no oeste, por dois de largura nos lados sul e norte; e torcido, de modo que a margem leste fica mais alta. O que distingue o Jacarezinho com essa forma, nas imagens do Google Earth, por exemplo, são suas habitações, construídas de forma a ocupar praticamente todo o espaço disponível além das ruelas estreitas, dos becos mais estreitos ainda que saem delas e nos quais estão as entradas das moradias que completam a ocupação do solo disponível. Praticamente não existem quintais; não se veem nem mesmo modestas áreas verdes, como no vizinho bairro de Maria da Graça, mais a noroeste.
Tanto o bairro como a comunidade são antigos. As estações ferroviárias dos dois locais são do final do século 19; mas a de Maria da Graça se modernizou, e hoje está conjugada com uma linha de metrô, enquanto a do Jacarezinho espera mudanças que por sua vez esperam uma urbanização da área da comunidade.
Ela é considerada “a favela mais negra do Brasil” por razões históricas. Seus primeiros habitantes seriam negros que teriam fugido das condições de vida dos bairros que ainda hoje mantêm os nomes derivados das usinas de produção de açúcar com trabalho escravo: Engenho Novo, Engenho de Dentro e Engenho da Rainha.
Nos livros sobre a história do Rio, até parte do século 19 a área onde é hoje o Jacarezinho era parte do chamado “sertão”, que incluía toda a zona oeste e a zona norte da atual cidade. Os índios sobreviventes da invasão portuguesa tinham sido, em grande parte, ou mortos ou confinados em aldeias pelos religiosos da Companhia de Jesus, ou haviam recuado mais para o norte do atual estado do Rio, para Campos dos Goytacazes, uma referência aos combativos indígenas da região.
A população da cidade do Rio de Janeiro, a essa altura, era formada basicamente por uma elite de portugueses e seus descendentes, dedicados às tarefas de administração e ao comércio, e uma maioria de negros empregados em trabalho escravo. O Rio era o principal porto de entrada para os negros capturados pelos portugueses na África – estima-se que perto de 2 milhões, entre 1700 e 1810. E o trabalho escravo nas plantações de cana e nas usinas de produção de açúcar em terras de latifundiários distribuídas pela Coroa portuguesa tinha ativa participação da própria igreja católica, através de uma espécie de braço empresarial, a Companhia de Jesus.
Dois desses empreendimentos dos jesuítas merecem destaque em nossa história: o Engenho Velho, de 1645, e o Engenho Novo, de 1707. Eles são marcos para a ocupação do sertão do Rio e, em particular, do Jacarezinho.
O Engenho Velho fica no centro de um círculo, que se pode formar no mapa da atual cidade do Rio, a partir de locais mais conhecidos, indo do Estácio para o Rio Comprido, depois para a Tijuca, o Maracanã e a Praça da Bandeira. O Engenho Novo foi construído depois, alguns poucos quilômetros para o norte e alguns quilômetros para o oeste. Ficava perto da Floresta dos Pretos Forros – nomeada por abrigar negros foragidos da escravidão – e também da nascente do rio Jacaré, ambos os locais ao norte do Maciço da Tijuca. E as sesmarias, as áreas cedidas pela Coroa portuguesa aos jesuítas para a produção do açúcar, por eles próprios ou por meio de arrendatários, eram grandes: iam desses locais, nas bordas do maciço da Tijuca, até o mar, onde hoje está a Refinaria de Manguinhos.
A produção de açúcar no estado, as exportações do produto e a importação de escravos africanos pelo seu porto dominam o panorama da cidade do Rio da primeira metade do século 17. Os engenhos se multiplicaram: de 60, em 1629, passam para 110 em 1639. E os séculos 19 e 20 trazem novas e grandes transformações:
em 1808, fugindo de Napoleão Bonaparte, que ocupa a Península Ibérica, a família real portuguesa transfere a Corte para o Rio;
na economia do país, o cultivo da cana-de-açúcar dá lugar à agricultura cafeeira;
em 1822, o Brasil torna-se formalmente independente de Portugal e das leis do império que proibiam a instalação de indústrias no País;
e, mais ainda, em 1930, uma revolução liderada por Getúlio Vargas chega ao governo e elabora um programa de construção de empresas estatais que seriam estratégicas para a industrialização do País e que ao longo das três décadas seguintes dariam origem à Companhia Siderúrgica Nacional, de Volta Redonda, à Petrobras e à Eletrobras.
As transformações urbanas são grandes. Na última década do século 19 tem início no Rio o serviço do transporte urbano por bondes elétricos na área central da cidade. Bondes em trilhos, ainda puxados por tração animal, chegam a Copacabana em 1892, em Ipanema em 1915 e no Leblon em 1918. O adensamento da população de trabalhadores e pobres em geral, no centro da cidade, se dá com a formação de habitações precárias, com as favelas e os cortiços.
A criação das linhas de trens urbanos a partir da estação Central do Brasil, como a que em 1895 se estendeu a Maria da Graça e Jacarezinho, abre as portas para a ocupação do sertão carioca. E em 1920, a modernização pareceu se concretizar com a construção de uma grande fábrica da GE, vizinha à comunidade, ao norte do vale do Jacaré; e de várias outras fábricas na área plana da margem sul do rio.
As primeiras grandes lutas dos moradores da comunidade foram para impedir sua remoção do local. Dois políticos brasileiros famosos se destacam com posições opostas em relação ao reconhecimento do direito dos moradores em relação à área do Jacarezinho:
a favor, Getúlio Vargas, que foi presidente do Brasil entre 1930-1945 e 1950-1954 e governou, quando a cidade ainda era a capital da República, do Palácio do Catete, hoje um museu, no centro do Rio, e onde ele se suicidou com um tiro no peito;
e contra, Carlos Lacerda, jornalista inflamado, dono do jornal Tribuna da Imprensa, que moveu implacável campanha de denúncias contra Vargas, sofreu um atentado atribuído à guarda pessoal do presidente e cuja exploração pelos militares levou Vargas ao suicídio. Lacerda se transformou então no principal político do Rio, primeiro como deputado federal e depois como governador eleito do recém-criado Estado da Guanabara, em 1960, depois da transferência da capital da República para Brasília.
Os pontos de vista em disputa para solução dos problemas das comunidades podem ser resumidos em dois editoriais de jornais do Rio na época. Um, do Jornal do Brasil, que defendia a demolição do bairro e sua reconstrução em outro local com o argumento de que nele “milhares de homens, mulheres e crianças viviam em condenável promiscuidade” e “em desesperada necessidade de intervenção pelas autoridades da cidade”. E o outro, de O Jornal, que destacava os números do bairro – 7 mil barracos, 35 mil moradores, cerca de 600 empreendimentos comerciais – que precisavam ser urgentemente incorporados à cidade.
Logo após sua eleição para governador, Lacerda adotou uma nova postura. Passou a dizer que a tese da erradicação das favelas tinha sido uma “loucura” de sua juventude e em um comício no Jacarezinho anunciou um plano para sua completa urbanização. No entanto, após o golpe militar de março de 1964 que ele apoiou e do qual se julgava o grande líder civil, caiu em desgraça. Foi cassado pelo Ato Institucional nº 5, de 1968, que fechou o Congresso, cassou ministros do STF, muitos políticos e instalou dezenas de inquéritos policiais militares que ampliaram as operações de repressão para as mais diversas instituições do País, atingindo centenas e centenas de pessoas.
No Jacarezinho, houve uma reação popular especial após o AI-5. Em torno de lutas por iluminação, esgotamento sanitário, ensino, saúde e graças a algumas melhorias conseguidas nessas áreas, formou-se na comunidade, a partir de eleições para as associações de moradores, um grupo liderado por Irineu Guimarães, que se dizia “um comunista convicto” e era um sapateiro que foi muito além dos sapatos. Seu trabalho atraiu o filósofo e cientista social português Boaventura Souza Santos que foi viver por três meses no Jacarezinho em 1970 e acabou escrevendo nos EUA, em Yale, quatro anos depois, uma tese de doutorado que lançou no Brasil em 2010 como livro, O direito dos oprimidos. Nela trata “de um sistema jurídico não oficial relativamente autônomo de prevenção de conflitos” conduzido sob a liderança de Irineu. No lançamento do livro, Irineu já estava morto, o País tinha saído da ditadura militar para um regime de governos democráticos, mas transformações sociais mais amplas não tinham sido feitas. A industrialização do País com base no capital estrangeiro não tinha ido longe. No Jacarezinho, por exemplo, em 2010, a GE fechou suas portas. E, na comunidade, pobre como antes, as drogas se tornaram um negócio fornecedor de emprego e renda.
Boaventura e Irineu: o filósofo veio aprender com o militante sobre o direito dos oprimidos
Na política, os tempos ainda iam se tornar mais soturnos. Em 2018 foi eleito presidente da República o ultraconservador Jair Bolsonaro. Ele deu parabéns à polícia do Rio pela operação no Jacarezinho cujos resultados, segundo ele, “a mídia e a esquerda” tinham deturpado, colocando no mesmo plano, “como vítimas, cidadãos comuns e criminosos”.
O batuque da meninada, esperança de dias melhores
*Publicado no “Manifesto Jornalismo - caderno especial VIII - agosto de 2021”
A proximidade do dia 7 de setembro e a promessa de protestos bolsonaristas por todo o Brasil deixam os democratas de cabelo em pé. Manifestações da ultra-direita já estão programadas e prometem acirrar o clima de confronto e desrespeito às instituições republicanas, mais propriamente ao Judiciário, com foco no Supremo Tribunal Federal (STF), e ao Legislativo, com o risco até de ataques físicos ao Congresso Nacional. A coisa piora na medida em que o próprio presidente da República anuncia, irresponsavelmente lampeiro, seu apoio a esses atos insurrecionais e promete estar presente em, pelo menos, dois deles, em Brasília e São Paulo.
Infelizmente, os arreganhos golpistas e a realização de atos antidemocráticos em nosso país não se limitam a elementos folclóricos como Sérgio Reis, Eduardo Araújo, o véio da Havan, Batoré ou Amado Batista. Nem abrange apenas o universo de generais vetustos como os que escamoteiam sua falta do que fazer nas quermesses emboloradas dos clubes militares. Temos outro elemento, muito mais deletério, a compor o cenário pré-ditadura em que o Brasil perigosamente se encontra. Estamos falando dos policiais militares, uma categoria hoje majoritariamente em pé de guerra pelo bolsonarismo e contra a democracia.
Em todo o País, as PMs constituem, hoje, um risco e uma ameaça, às vezes velada, outras não. É o caso dos militares paulistas: todo dia um comandante de batalhão rompe com o bom senso e convoca seus pares aos atos do próximo dia 7. De nada adiantam punições, como a imposta pelo governador João Dória, que afastou o comandante da PM de Sorocaba, bolsonarista convicto e participante declarado do ato pró-Bolsonaro e contra o STF. Ato contínuo, mais três oficiais convocaram a tropa para as manifestações, praticamente com as mesmas palavras de ordem. Não estão nem aí.
Este quadro de SP está longe de ser exceção. De norte a sul, a Polícia Militar é hoje um berço de insurretos e um contingente com o qual Bolsonaro conta para transformar o Brasil na ditadura dos seus sonhos. Isto, junto com os insanos à paisana que ele armou ao flexibilizar o comércio de armas de fogo e equipar seu exército civil para a guerra. No Rio de Janeiro, em Minas Gerais, em Pernambuco ou na Bahia, em termos de PM bolsonarista, muda apenas o local. Exemplos saltam aos olhos e comprovam que, na hora de defender as instituições, essas forças de segurança são, infelizmente, os elementos menos confiáveis para a população que lhe paga o salário.
O Brasil tem cerca de 416 mil policiais militares (números de 2019, contra 425 mil de 2014), dos quais 100 mil são de São Paulo, onde está o maior contingente militar da América Latina. Um exército hoje dedicado às ideias de um louco que o agrada com benesses salariais e prestígio. Isto faz da PM, veladamente como instituição, o suporte do bolsonarismo e do seu “mito”, junto com uma parcela significativa das Forças Armadas, esta com seus líderes maiores inclusos. A PM, entende Bolsonaro, é o seu grande apoio armado operacional para o golpe que, ele acredita, virá.
Vinculadas, formalmente, aos governos dos estados, as corporações da Polícia Militar são, no momento, a grande preocupação dos governadores. Essa semana, eles se reuniram para tratar do perigo real que assola o Brasil, que é a ruptura do regime democrático a partir de uma escalada golpista comandada a partir do Palácio do Planalto, com o possível suporte técnico e bélico de suas próprias forças policiais. Sabem os chefes de governo que se trata de um problema grande que eles terão que enfrentar, e logo. Se já não for tarde.
Entidades do movimento negro como Educafro, Uneafro Brasil, Movimento Negro Unificado e Marcha de Mulheres Negras de São Paulo, lançaram o manifesto "SP Antirracista com Boulos", em apoio à candidatura do psolista que disputa o segundo turno das eleições em São Paulo.
"Nós, população negra organizada, mulheres negras, pessoas faveladas, periféricas, LGBTQIA+, que professam religiões de matriz africana, quilombolas, pretos e pretas com distintas confissões de fé, moradoras e moradores da cidade de SP, manifestamos nosso apoio à candidatura de Guilherme Boulos e Luiza Erundina e à urgência em derrotar o PSDB genocida e o bolsonarismo na cidade de São Paulo", diz trecho do manifesto.
Para derrotar o PSDB e o Bolsonarismo em São Paulo
eleger Boulos e Erundina
Nós, população negra organizada, mulheres negras, pessoas faveladas, periféricas, LGBTQIA+, que professam religiões de matriz africana, quilombolas, pretos e pretas com distintas confissões de fé, moradoras e moradores da cidade de SP, manifestamos nosso apoio à candidatura de Guilherme Boulos e Luiza Erundina e à urgência em derrotar o PSDB genocida e o bolsonarismo na cidade de São Paulo.
2020 é um ano que ficará marcado na história como aquele da avassaladora pandemia de corona vírus, que até agora custou 170 mil vidas brasileiras e que em São Paulo, sob a gestão de Covas, matou mais de 14 mil pessoas, grande maioria nas periferias desassistidas da cidade. Mas é preciso lembrar que este ano também será lembrado como aquele em que milhões de pessoas ao redor do mundo forçaram um aprofundamento do debate público sobre o combate ao racismo sistêmico e suas consequências sociais. Um caminho sem volta foi aberto e futuros governos terão que diversificar racialmente secretariados e ministérios, reconhecer a competência política e profissional de lideranças negras e femininas para atuação em diversos níveis.
O PSDB de Bruno Covas representa o projeto político genocida praticado há décadas por governos tucanos seja no nível municipal, seja nos momentos de dobradinha com governos estaduais, como é o caso agora, com Covas-Dória. Foi nesta gestão de Covas que a cidade de São Paulo presenciou, silenciosamente, o assassinato de 12 adolescentes vitimados pela ação violenta da polícia em repressão ao um baile Funk em Paraisópolis, há um ano. A aliança macabra entre Covas e Dória faz nosso povo sofrer, seja no espelhamento das políticas de segurança pública que fazem da guarda municipal tão violenta quanto a PM, sobretudo covarde no trato com pessoas em situação de rua e trabalhadores ambulantes, seja também nas políticas da assistência social, na precarização e terceirização de serviços públicos, na desvalorização do funcionalismo, nas politicas privatistas e de diminuição do estado de direito. O PSDB é germe do bolsonarismo que contaminou o país e que fez da população negra, mais uma vez, o principal alvo. Precisamos derrotá-los!
Neste segundo turno das eleições municipais em São Paulo, temos em Boulos e Erundina a possibilidade de virar o jogo e eleger uma gestão municipal comprometida com a vida do povo negro, que estabeleça como prioridade o enfrentamento ao racismo em suas mais diferentes expressões e intersecções. Para tanto, Boulos e Erundina devem caminhar lado a lado com os movimentos negros e periféricos, e reconhecer o movimento negro de São Paulo como força política consistente que é. É muito importante a criação de canais de diálogo, participação e construção real e por dentro, do próximo governo. A população negra organizada deve compor a gestão dos serviços públicos e da máquina pública a partir de pessoas negras orgânicas desses movimentos e suas pautas e reivindicações devem ser acolhidas.
A partir deste compromisso público junto às pautas dos movimentos negros, também sinalizadas em documentos orientadores da Coalizão Negra por Direitos e da Convergência Negra, convocamos todos aqueles que estão comprometidos com a luta antirracista, periférica, e de valorização da cultura popular a eleger Boulos e Erundina 50, e construir um amanhã preto, periférico e popular para a cidade de São Paulo!
BBC News Brasil - E a abolição da escravatura no Brasil?
Luciana Brito -Depois que os EUA aprovaram a abolição, em 1865, os jornais de lá passaram a cobrir quase que diariamente a situação no Brasil, que tinha recebido muito mais negros traficados. Eram 400 mil nos Estados Unidos e quase cinco milhões aqui. Chamava atenção que o Brasil conseguisse arrastar a escravidão por tanto tempo.
Mas os diplomatas e políticos brasileiros se justificavam dizendo que aqui a escravidão era branda, que não havia conflito de cor. Outra justificativa comum era: "vamos chegar na abolição, mas estamos fazendo isso de maneira pacífica, porque aqui não tem guerra".
O Brasil acabou com a escravidão e entrou no pós-abolição com esse mito de "não temos conflito racial como nos Estados Unidos". E outros mitos como "o negro aqui não trabalha, é preguiçoso". Aí foram criminalizadas as atividades negras pela lei da vadiagem, do Código Penal de 1890. Não tinha nada lá falando sobre negro, mas a capoeira era crime, o candomblé era crime. Ficar na rua, algo comum para as pessoas negras libertas que não tinham emprego ou tinham empregos informais, era crime.
Então, depois da abolição, o Brasil não criou leis claramente segregacionistas, mas encontrou formas igualmente perversas de lidar com a população negra, que transformaram o racismo em algo não dito.
A educação para sobreviver numa sociedade racista a partir do não dito deixou mais difícil para pessoas negras se organizarem em torno de um inimigo visível.
Raramente uma pessoa negra no Brasil tentou entrar num restaurante e ouviu "preto não entra aqui". Nós sabemos, e vivenciamos isso, que aqui você ouve "as mesas estão todas ocupadas". Você entra em uma loja e não é expulso, mas a vendedora lhe ignora. Quem não lhe ignora é o segurança.
Nós não tivemos uma formação, desde a infância, na qual somos treinadas e treinados para perceber o racismo no momento em que ele está acontecendo, sem ser nomeado.
Isso faz com que vejamos coisas como o avô de Ágatha (Félix, de 8 anos, morta por tiros de fuzil de um policial militar em 2019) dizendo a jornalistas na porta do IML (Instituto Médico Legal): "Ela fazia inglês, ela fazia balé, ela era boa aluna".
Porque ele acredita que a família fez tudo certo. Nesse pacto civilizatório brasileiro, nessa ideia da família de bem, é preciso dizer "ela não merecia", como se fosse uma questão de merecimento.
Somos treinados, inclusive as pessoas negras, para que, quando vemos corpos negros na televisão sendo arrastados pela delegacia ou as chacinas nas comunidades, pensemos: "ali era marginal, e marginal tem que morrer".
O Brasil foi resolvendo seu problema racial assim: com muita força policial, muita repressão e sem falar abertamente do conflito. E construímos uma identidade nacional como uma democracia racial pacífica, acreditando que o problema racial é um problema do outro.
O nosso olhar, sobretudo o da grande imprensa, sobre o conflito nos EUA, continua sendo esse: "Olha que absurdo o policial branco que matou o negro". Mas dizendo subliminarmente, pelo silêncio, que no Brasil não tem isso.
BBC News Brasil - Mas ao mesmo tempo em que falamos do racismo estrutural nos EUA como um dos fatores que provocaram a onda de protestos, no Brasil, estudos mostram que 75 a cada 100 pessoas assassinadas no Brasil são negras, inclusive em intervenções policiais. Estatisticamente, negros também têm menos escolaridade, menor renda e menos acesso à saúde, assim como lá. É possível dizer, mesmo subliminarmente, que "no Brasil não tem isso"?
Luciana Brito - É cada vez mais difícil sustentar esse discurso.
Mas sempre tem alguém que usa um argumento do tipo: "Lá nos Estados Unidos o policial que matou o homem negro foi branco, mas aqui no Brasil não há essa dicotomia, porque os policiais também são negros".
Esse é o nó que o mito da democracia racial dá nas nossas cabeças.
Eu vi um vídeo de um policial branco nos EUA atacando uma jovem negra. A superior do policial, também uma mulher negra, interrompe a ação dele, o empurra violentamente para longe da menina e o repreende na frente dos colegas.
No Brasil, essa mulher ou esse homem negro, quando veste a farda, é capaz de abater uma pessoa negra, e é racismo mesmo assim. Porque, aqui, o policial negro é treinado pelo Estado para achar que todas as pessoas que se parecem com ele são criminosas. Quando está de farda, ele perde a identidade racial. Ganha uma espécie de selo de qualidade. Vira o "negro de bem".
O racismo no Brasil é mais ardiloso. A população negra é maioria, mas é confundida como um inimigo que faz parte da sua vida, mas que não é declarado.
Por exemplo, não são todas as famílias negras que se identificam com a dor da família de Ágatha ou de João Pedro. Ou mesmo de Miguel. Elas pensam: "Poxa, que má sorte aquela criança estar ali".
Aí vêm os argumentos: "Ah, mas estava ali fazendo o quê?" ou "Ah, foi um acidente". Todos esses "poréns" solapam uma realidade que grita, que é o fato de que essas pessoas estão sendo abatidas por serem negras, por serem consideradas menos cidadãs. Menos seres humanos.
As pessoas no Brasil até aceitam dizer: "É porque era pobre". Parece que é mais aceitável atribuir determinadas desigualdades à pobreza do que ao racismo.
BBC News Brasil - Como a classe influencia a percepção sobre o racismo no Brasil?
Luciana Brito - É interessante pensar que os ganhos que a população negra teve, fruto de conquistas do movimento negro, como a Lei de Cotas Raciais e a PEC das Trabalhadoras Domésticas, mexeram nas estruturas da sociedade brasileira e criaram uma reação violenta. E foram leis que se relacionam muito à formação de uma classe média negra no Brasil.
As trabalhadoras domésticas passaram a ter direitos trabalhistas, os filhos de muitas entraram nas universidades, ou elas mesmas encontraram outras possibilidades de emprego — eu tenho hoje colegas que foram trabalhadoras domésticas. E aumentaram as possibilidades para a juventude negra através da educação universitária.
Essa possibilidade de que negros pudessem transitar, em maior quantidade, pra outra classe social, incomodou muito as estruturas do racismo brasileiro. Porque a diferença de classe social no Brasil se estrutura na raça.
Só que para uma pessoa negra — e aí falo da minha própria experiência e dos meus amigos — transitar para a classe média significa apenas que você acessa os bens de consumo da classe média. Você mora legal, tem carro bacana, seu filho vai para escola particular, mas você continua emaranhado no racismo estrutural.
Quando entro em uma loja de creme de cabelo, o segurança ainda me segue. Quando eu vejo uma criança como Ágatha ou João Pedro serem alvejados, isso me afeta diretamente, porque tenho uma criança com aquelas características. Eu tenho medo de meu marido dar um passeio na rua à noite sozinho.
Além disso, o restante da minha família não é classe média. Eu sou a única. É por isso que dizemos que não há saída individual para sair desse racismo, embora muitas pessoas negras acreditem que isso é possível.
Mais uma vez, as páginas criminais invadiram o noticiário político e atingiram o governo federal com o bangue-bangue entre grupos paramilitares. No último dia 9, Adriano da Nóbrega, ex-Bope, um dos capitães milicianos, foi morto pela Polícia Militar da Bahia, em flagrante desrespeito a qualquer protocolo em casos semelhantes.
Aliás, no Brasil de hoje, quais são os protocolos?
Na agressão aos alunos de escola na Zona Oeste, em São Paulo, a PM não obedeceu aos PROTOCOLOS ou é LENDA que eles existem. Em Paraisópolis também não cumpriram os PROTOCOLOS. E o tiro contra Cid Gomes, governador do Ceará? Apesar de sua atitude não ser a mais adequada, Cid é parlamentar e líder de importante partido político, nada justifica o ocorrido.Esses episódios, inclusive, mostram o descontrole, um indicativo de que as milícias estão por trás da morte de Adriano. E embora não existam provas definitivas sobre o envolvimento da família Bolsonaro nesse crime, o Ministério Público carioca afirma que há um nível de envolvimento.
Vejamos:
Adriano é apontado como chefe da milícia Escritório do Crime, investigado por ligações com o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) e de seu motorista Anderson Gomes.
Condecorado por Flávio Bolsonaro com a medalha Tiradentes na Alerj em 2005, e defendido por Bolsonaro em plenário, quando deputado em 27 de outubro de 2005, Adriano tinha mãe e esposa empregadas no gabinete do então deputado estadual. E sim, aponta o Ministério Público, elas participavam do esquema de “rachadinha”.
É essa figura que foi assassinada em operação da Polícia Militar baiana, que teve um ano de duração, envolvendo trabalhos de inteligência e cooperação entre os Estados e autoridades, conforme divulga a imprensa, para resultar na morte de uma testemunha, no mínimo, bombástica. Não tardou, obviamente, para o crime ser tachado de queima de arquivo.
Em seu Twitter no último sábado (15.02.2020), o governador Rui Costa (BA) afirmou que “o Governo do Estado da Bahia não mantém laços de amizade nem presta homenagens a bandidos nem procurados pela Justiça. A Bahia luta contra e não vai tolerar nunca milícias nem bandidagem. Na Bahia, trabalhamos duro para prevalecer a Lei e o Estado de Direito”.
Nesta terça-feira (18.02.2020), com intuito de questionar a perícia da polícia baiana, Flávio Bolsonaro postou nas redes sociais um vídeo com a imagem de um cadáver atribuindo-o a Adriano; o que foi prontamente desmentido pelo secretário de Segurança Pública da Bahia, Maurício Barbosa, que afirmou: “as imagens não foram feitas nas instalações oficiais do Instituto Médico Legal. Então, nós temos a clara convicção de que isso é para trazer algum tipo de dúvida, de questionamento, a um trabalho que ainda não foi concluído”.
A questão central é que, apesar de um ano de descalabro, o governo Bolsonaro vem aumentado sua aprovação como atestam três pesquisas de diferentes institutos realizadas em dezembro, janeiro e fevereiro.
II. Os dadosAcompanhem os números:
Em dezembro de 2019, pesquisa Datafolha registrava elevação de um ponto percentual na aprovação (soma de bom e ótimo) do governo Bolsonaro que passava de 29% em agosto para 30% em dezembro. Essa pesquisa também trazia o ranking de aprovação dos ministros: Sérgio Moro (Justiça) com 53% de aprovação, Damares Alves (Direitos Humanos e da Família) com 43%; Paulo Guedes (Economia) com 39%; Abraham Weintraub (Educação) com 34%; e Ernesto Araújo (Relações Internacionais) com 33%.
No final de janeiro, pesquisa da CNT-MDA apontava crescimento da avaliação positiva do governo Bolsonaro de 29,4% em agosto de 2019 para 34,5% em janeiro de 2020. A popularidade de Bolsonaro, por sua vez, passava de 41% de aprovação (em agosto) para 47,8%, enquanto a desaprovação (soma de ruim e péssimo) caia de 53,7% para 47%.
Na última quinta-feira, 13 de fevereiro, VEJA, o folhetim da direita brasileira publicou a pesquisa VEJA/FSB revelando que 50% dos brasileiros aprovam a forma como o presidente governa o Brasil ante 44% que a desaprovam. Em agosto, o índice era de 44% de aprovação ante 46% de desaprovação. Já o governo Bolsonaro conta com 36% de aprovação superando a desaprovação em torno de 31%.Apesar da credibilidade nula de VEJA, os dados dialogam com o crescimento da aprovação de Bolsonaro, registrado nas pesquisas anteriores.
O fato é que, pela primeira vez, desde a redemocratização, um líder de extrema-direita conta com 50% de aprovação popular. Um índice alto, considerando os escândalos que envolvem a família e o governo Bolsonaro, embora muito aquém dos 82% de aprovação conferidos, em 1971, ao então ditador Emílio Garrastazu Médici.
Naquele momento, em plena euforia do “milagre brasileiro”, o país apresentava 11,9% de crescimento, triplicando sua dívida externa e aumentando brutalmente a concentração de renda.
Importante registrar que Lula superou Médici, tornando-se o presidente mais popular da história do Brasil, com 87% de aprovação no final do seu segundo mandato em 2010. Dilma, por sua vez, em março de 2013, alcançava 79% de popularidade.
III. A imprensa
Sim, a imprensa está cobrindo os escândalos que surgem envolvendo a família Bolsonaro (vide o caso Adriano, Queiroz etc.) ou membros do atual governo (vide o escândalo envolvendo Fabio Wajngarten, secretário da SECOM, suspeito de conflito de interesses, após repassar dinheiro público a emissoras de TV e agências de publicidade clientes de sua empresa).
Sim, a imprensa (Rede Globo à frente) também vem fazendo grande esforço para separar a figura do ministro Paulo Guedes da figura do presidente da República, como se a agenda econômica fosse menos autoritária que as demais agendas do atual governo.
Aliás, os gráficos do Manchetômetro mostram a diferença de tratamento:
IV. A questão
Como Bolsonaro vem aumentando seus índices de aprovação após as trágicas mudanças na Previdência? Redução dos direitos trabalhistas? Venda da Petrobrás? Desemprego a 11,9% em 2019? Informalidade a 41%? Trabalho precário e uberizado conforme excelente reportagem “A vida sobre uma bicicleta” que publicamos em Carta Maior?
Não estamos questionando a validade dessas pesquisas de opinião – VEJA/FBS, CNT-MDA ou Datafolha –, comportamento comum a bolsonaristas sempre que contrariados. Tampouco pretendemos insinuar que a imprensa trata o atual governo da mesma forma como tratou os governos petistas: eles estão longe disso.
O que propomos é apenas uma reflexão, para além das respostas prontas.
Não é mais possível atribuir os 50% de apoio simplesmente à polarização e ao antipetismo.
O que estamos presenciando, para além da batalha política – que eles venceram, quebrando as regras, mas venceram –, é a consolidação de um movimento cultural conduzido por uma extrema-direita reacionária que equivocadamente se proclama conservadora.
Fossem conservadores os bolsonaristas jamais entregariam o patrimônio nacional como fazem. Aliás, eles conseguem ser piores que os integralistas de outrora que, inspirados no fascismo italiano e no catolicismo de extrema-direita, perseguiam judeus e comunistas, denunciando-os aos órgãos de segurança de Vargas, enquanto bradavam, hipócritas, “a união de todas as raças e todos os povos” em suas marchas.
E não custa lembrar: as primeiras vítimas de Hitler e dos discursos inflamados de Goebbels foram os comunistas, os socialistas, os sindicalistas. Foi sobre os cadáveres da esquerda, primeiramente, que os nazistas conquistaram apoio da burguesia alemã, indispensável para governarem a miserável Alemanha de Weimar.
Estranhamente as entidades de classe estão se colocando contra a criação do juiz das garantias, e reforçando uma cultura do magistrado que investiga e depois condena. Em última analise, a figura do juiz que perde a condição de ser imparcial
Em tempos de punitivismo exacerbado e populismo penal, o criminalista Alberto Zacharias Toron protagonizou um dos grandes momentos da advocacia no último ano.
Sua vitória teve repercussão em outras esferas além da Justiça. Ganhou contornos sociais e virou tema de discussão de bares, em programas jornalísticos e nas redes sociais. Mas, sobretudo, preservou as garantias do réu no sistema penal.
Durante o julgamento de agravo regimental no HC 157.627, Toron demonstrou que o réu tem o direito de se defender e de rebater todas as alegações com carga acusatória. Portanto, deve apresentar as alegações finais só depois do delator. E provou, ainda, que os direitos de seu cliente — o ex-presidente da Petrobras Aldemir Bendine — foram violados. A tese do criminalista foi vencedora e a sentença do então juiz Sergio Moro anulada.
Sobre a vitória de Toron, se convencionou dizer que foi o primeiro grande golpe sofrido pelo consórcio formado a partir da 13ª Vara Federal em Curitiba. Para o criminalista, no entanto, o ponto mais marcante do caso foi a defesa do Habeas Corpus como instrumento de controle do devido processo legal.
Em entrevista à ConJur, além de falar sobre o caso, Toron prevê que o punitivismo pode se tornar ainda mais intenso no país e diz acreditar que o ex-presidente Lula foi vítima de lawfare, tese defendida pelo advogado Cristiano Zanin.
ConJur — O pêndulo da Justiça brasileira atingiu o ápice do punitivismo e agora está se movimentando em direção ao garantismo? Alberto Toron — Acho que dá para ser mais punitivista. E corremos o risco de nos tornarmos um país muito mais punitivo. Basta dizer que o próximo passo é o sujeito ser condenado por um júri e já sair preso. Isso remonta ao Código de Processo Penal de 1941 em sua versão original. Na época, quando condenada em primeira instância, a pessoa já saia presa se não tivesse hipótese de fiança. Voltamos a uma situação que era muito característica do Estado Novo [governo Getúlio Vargas, de 1937 a 1946], em que a regra era prender após o julgamento em primeiro grau. Hoje, a desculpa de que o julgamento pelo júri é um julgamento de órgão colegiado legitimaria a prisão do acusado. Só que se esquece de, pelo menos, duas coisas: a primeira é que, embora não sejam tão comuns as anulações do julgamento do júri pelo tribunal, são muito comuns as modificações na pena. Isso pode sujeitar o réu desde o começo a um regime fechado mesmo com a perspectiva de o tribunal diminuir a pena ou determinar um regime menos grave. Isso é um erro, sobretudo debaixo de uma Constituição como a nossa, que, mal ou bem (e eu acho que bem), ainda garante a presunção de inocência até o trânsito em julgado. Temos também o aumento de pena máxima para 40 anos. Isso é uma coisa que já havíamos superado ao estabelecer 30 anos de penas máximas.
Então, acho que o cenário caminha para mais punitivismo. A diferença é que, quando a “lava jato” começou a ser executada, houve uma espécie de deslumbre. Um delírio punitivo. Todos aplaudindo e acreditando que agora era a hora e a vez dos ricos irem para a cadeia. Isso sem atentar que se estava criando um caldo de cultura da violência estatal. E só agora, passados mais de cinco anos dessa operação, os tribunais passaram a acordar para o tipo de manifestação popular que se fez em torno do aplauso à "lava jato", que tem característica fascista.
Existiu a busca de um consenso extraprocessual junto ao povo e à mídia para legitimar decisões que não se equilibravam no Direito. E agora, sobretudo em 2018 e 2019, os tribunais acordaram para coisas como o delator não pode falar junto com o delatado nas alegações finais. As cortes passaram a acordar para exigir uma coisa que se chama devido processo legal.
Acho que pode ser mais punitivo, mas também é possível os tribunais exercerem o seu poder para impedir abusos e impor a aplicação da lei de forma escorreita e impedir penas excessivas e absurdos.
ConJur — E quais seriam os ingredientes desse caldo de cultura de violência estatal? Alberto Toron — O principal ingrediente é a percepção que as pessoas têm da realidade a partir do que elas veem e ouvem na mídia. A ideia de que vivemos no país da impunidade. Só que o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo. A crença de que a impunidade existe para os ricos também não é totalmente verdadeira. Estamos vendo que os ricos também vão para a cadeia. Não por acaso, há uma explosão de deputado tenente, deputado capitão, deputado major, deputado coronel. As pessoas votam em vozes que representam a possibilidade de ter leis mais duras. Elas querem o endurecimento do sistema penal que muitos acreditam que é frágil. Esse caldo do punitivismo é formado em grande parte pela distorção da realidade.
Um exemplo eloquente é o da tragédia de Mariana [MG]. A acusação expressa na denúncia do Ministério Público dizia que, quando a barragem rompeu, a onda de lama levou a tudo e todos matando 19 pessoas. No entanto, a denúncia falava do crime de inundação e a prática de 19 homicídios triplamente qualificados.
Quando li aquilo, vi que estava errado. O que se teve ali é uma inundação qualificada pelo resultado. Impetrei um Habeas Corpus arguindo a falta de justa causa para as 19 acusações autônomas de homicídio triplamente qualificado e o TRF-1, por 3 a 0, acatou nosso pedido e trancou a ação penal nessa parte.
Dias depois eu vejo o fato noticiado no Jornal Nacional. Primeiro mostraram as mães e as mulheres chorando a perda dos seus entes queridos. Depois contaram a história dizendo que "apesar disso, o tribunal tirou da denúncia do MP os homicídios" e, por fim, entrevistaram um procurador da República dizendo que a defesa fez um malabarismo e encontrou brechas nas leis antigas. E acabou!
Não tiveram a preocupação de ouvir o outro lado. A realidade é que o tribunal reconheceu que a denúncia era inepta. Ela estava errada. E o povo não sabe disso. O povo que assistiu àquela edição do JN deve ter achado uma sacanagem. A impressão que fica é que a empresa tinha se livrado por conta da astúcia de advogados e não porque o promotor denunciou errado.
A contraface disso aconteceu agora em Paraisópolis [favela na zona oeste de São Paulo], quando nove pessoas morreram por conta de uma ação, no mínimo, inadequada da Polícia Militar. A PM alega que estava perseguindo uns caras de moto e foi recebida a tiros. Quando fugitivos vão de encontro a uma multidão, a polícia deveria parar a perseguição. Os policiais não pararam porque estavam pouco se lixando para o que iria acontecer com aquelas pessoas pobres que estavam ali. Esse é o caldo de cultura da violência. Eles sempre têm uma história bonita para contar sobre como foram recebidos a tiros e tinham que agir dessa maneira. Vivemos em um permanente caldo de cultura da violência. Sobretudo, a violência estatal.
ConJur — Essa cultura da violência representa uma ameaça às prerrogativas da advocacia? A situação piorou? Alberto Toron — A situação é pior. O advogado atualmente é uma espécie de bola da vez para ter sua atividade criminalizada. O advogado e o político. Outro dia pegamos um caso aqui de um sujeito que havia sido intimado para depor como testemunha. Essa pessoa já havia sofrido busca e apreensão em casa e no escritório, e já havia sido alvo de pedido condução coercitiva. Ou seja, ele não era uma testemunha. Era, no mínimo, um investigado. A burla de etiquetas de querer ouvi-lo como testemunha e não investigado é um artifício para forçá-lo a falar sob pena do falso testemunho. Obtivemos o Habeas Corpus para que ele não fosse ouvido. E quando a delegada foi fazer o relatório, escreveu que os “advogados obstruíram a Justiça quando ganharam a liminar”. Estão confundindo o trabalho legítimo da advocacia com a própria obstrução de Justiça.
Outra coisa que me preocupa é essa ideia de enxergar nos honorários do advogado uma forma de lavagem de dinheiro. Se o advogado recebe honorários fruto do seu trabalho e declara esse valor, não existe margem para dizer que isso é lavagem de dinheiro e tentar incriminar o advogado. Veja o que aconteceu no caso João de Deus. Eles o asfixiaram de tal maneira, com tantas precatórias pelo país afora, que eu estava pagando para trabalhar. E fui praticamente expulso do caso. Essa estratégia do Ministério Público de asfixiar o réu para impedi-lo de até mesmo pagar honorários é muito ruim. Tira do cidadão o próprio direito de defesa e, por via transversa, quando se incrimina os honorários do advogado, também se limita a ação da advocacia.
ConJur —Qual a sua opinião sobre a lei contra o abuso de autoridade que entrou em vigor neste ano? Alberto Toron — Era uma necessidade, e lamento que artigos importantes dela tenham sido vetados, como a questão dos vazamentos. Acredito que esta lei traduz a necessidade de um equilíbrio entre a possibilidade de ação dos órgãos repressivos e, por outro lado, o respeito as garantias dos cidadãos. Melhor isso do que nada.
ConJur — O que o senhor acha do posicionamento de entidades de classe de juízes que questionam a criação do juiz das garantias? Alberto Toron — Boa parte dos estados já tem esse juiz. São Paulo tem há mais de 30 anos. Isso é um avanço positivo. Alguns são contra porque acreditam que isso seria algo contra a “lava jato”. Isso é de uma ignorância atroz. Olha o modelo de São Paulo instalado na gestão do desembargador Bruno Affonso de André (1915-2015), de saudosa memória. Esse sistema deveria ser adotado pela Justiça Federal para garantir a imparcialidade do juiz que julga. Estranhamente as entidades de classe estão se colocando contra e reforçando uma cultura do magistrado que investiga e depois condena. Em última analise, a figura do juiz que perde a condição de ser imparcial.
ConJur — Como o senhor enxerga a resolução do CNJ que fixa regras para os magistrados nas redes sociais? Alberto Toron — Esse é um tema muito delicado porque esbarra na liberdade de manifestação da qual os juízes também podem usufruir. Só que no caso da magistratura existe um problema muito sensível, ligado à atividade deles. O trabalho do magistrado perpassa todo o tecido social e isso reclama uma espécie de imparcialidade do juiz. E, se ele se manifesta nas redes sociais, passa a não poder decidir os casos que lhe são submetidos. Acho correta a decisão do CNJ.
ConJur — O senhor acredita que os mecanismos existentes para fiscalizar o Ministério Público funcionam bem? Alberto Toron — Tenho dúvidas em dizer que eles são eficazes hoje.
ConJur — Existe espaço para a advocacia puramente criminal com a consolidação do modelo de força-tarefa? E com a consolidação do instituto da delação? Alberto Toron — No velho sentido? Existe sim. Muitas vezes a pessoa não é culpada e não quer fazer acordo. Eu vi isso claramente no caso do Aldemir Bendine. Fizeram uma acusação contra ele usando todo o Código Penal para forçá-lo a fazer uma delação. É o que os americanos chamam de “overcharging”. Uma acusação excessiva. Ele não quis fazer a delação. Fizemos a defesa dele e foi absolvido de 90% dos crimes que foi acusado. Isso é expressivo. Então, existe espaço para advocacia tradicional. E eu sou um representante dela.
ConJur — A sua vitória no STF no caso Bendine foi um dos grandes momentos da advocacia de 2019. Fale um pouco sobre a experiência desse caso. Alberto Toron —Eu não dava muita bola para a questão das alegações finais, por acreditar que era uma coisa óbvia. O acusado que sofre uma delação tem o natural direito de se contrapor a uma acusação, inclusive a que venha do delator, não só do Ministério Público. Eu achava o tema uma obviedade e não acreditava que os tribunais fossem se contrapor a isso. O grande tema não é exatamente a anulação determinada pelo Supremo Tribunal Federal. Para mim, o grande tema dessa história é o resgate do Habeas Corpus como instrumento de controle do devido processo legal.
O que nós vimos aí é que, para o cerceamento do direito de defesa prevalecer, basta que os tribunais aleguem que esse tema não deve ser tratado pela via do Habeas Corpus. O réu estava preso quando o STJ alegou a mesma coisa, e o ministro Luiz Edson Fachin tentou sepultar a discussão, levando o agravo regimental para o Plenário Virtual, em que o advogado não pode intervir. Isso só foi desconstruído quando o ministro Gilmar Mendes levou o caso para o Plenário presencial. E quando eu fiz, depois, a sustentação oral. Aí foi possível expor o absurdo. Nessa história, o mais importante, para mim, foi o resgate do Habeas Corpus do que propriamente o reconhecimento da nulidade.
ConJur — Como foi a sua experiência na Justiça Eleitoral? Alberto Toron — Minha experiência foi muito rica. Aprendi muito com os juízes daquela corte e olhei um pouco papel do juiz e pude entender melhor as dificuldades do exercício da magistratura. Conheci uma Justiça que, apesar das dificuldades, cuida de prover ao magistrado excelentes auxiliares. O tribunal também dispunha de departamentos técnicos excepcionais. Votei muito vencido em algumas coisas por conta de um posicionamento mais liberal, mas nem por isso me senti desprestigiado.
ConJur — O que o senhor acha da lei da ficha limpa? Alberto Toron — Eu sempre fui contra. Acredito que quem deve fazer a peneira sobre quem deve se candidatar é o povo e o voto. Acho uma lei autoritária e profundamente equivocada.
ConJur — O ministro Luís Felipe Salomão, do TSE, defende uma quarentena efetivas para juízes se candidatarem a cargos eletivos. O que o senhor acha dessa proposta? Alberto Toron —Acho uma proposta boa porque desvincula o magistrado de posturas populistas e muitas vezes eleitoreiras. É importante garantir que o juiz possa ser candidato, mas não pelo que ele fez quando estava na magistratura. Às vezes, alguns adotando uma postura de prender muito para ficar famoso e se candidatar.
ConJur — A discussão em torno da "lava jato" tem alguns temas chaves. Um deles é o lawfare. O senhor acredita que o ex-presidente Lula foi vítima da utilização do direito como instrumento de perseguição? Alberto Toron —Acho. O fato de o Lula ter sido julgado com a velocidade que foi no caso do tríplex escancara que quiseram tirá-lo do páreo eleitoral para favorecer um candidato. E pior. O juiz que o julgou se tornou ministro do concorrente vencedor. Isso escancara o uso do Direito como instrumento de perseguição política.
Recentemente, uma procuradora da República propôs absolvição sumária do Lula, da Dilma, do Mantega e de outros do caso conhecido como “quadrilhão do PT”. Essa procuradora alegou que a denúncia oferecida pelo ex-PGR Rodrigo Janot instrumentalizava a criminalização da política, que não é outra coisa que não usar o Direito Penal para perseguir políticos.
ConJur — Como foi defender a lei da anistia na Corte Interamericana de Direitos Humanos? lberto Toron — Fui nomeado perito em leis para falar sobre a legislação incidente em torno do caso do Vladimir Herzog [1937-1975], para explicar as razões de não ser possível processar os torturadores no Brasil, como definiu o Supremo Tribunal Federal. Eu falei sobre o julgamento da ADPF 153, quando se julgou constitucional a lei da anistia. Expliquei que essa lei não era uma farsa, mas resultado de muito debate. Levando em conta que os pactos firmados pelo Brasil em que crimes como tortura são imprescritíveis, a subscrição dos pactos internacionais foram posteriores aos crimes. E, sendo posterior, não podem retroagir para abarcar coisa do passado sob pena de violência a um princípio cardeal de nosso ordenamento penal e constitucional, que é a irretroatividade da lei penal mais gravosa. Foi basicamente para isso que eu fui investido na condição de perito.
Eu só aceitei essa posição por entender que o Brasil assumiu que essas pessoas, e não apenas o Herzog, foram mortos por agentes do Estado. O país, além de reconhecer o crime, também indenizou a família dessas pessoas. Por isso, me senti moralmente confortável em mostrar do ponto de vista jurídico que não era possível processar esses facínoras.
Também queria dizer que o caso Herzog foi determinante para que eu optasse pelo Direito. Meu plano era estudar engenharia, mas diante daquela injustiça e violência, me senti motivado a estudar Direito.