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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

03
Set23

O chororô dos super-ricos e seus sabujos

Talis Andrade

Para taxar o 0,001% dos brasileiros que acumulam centenas de bilhões em fundos e paraísos fiscais… quanta comoção! Dinheiro sai da economia e não gera empregos, só endividamento. Mas a reação quer imputar aos pequenos a culpa dos tubarões

20
Jul23

Retórica vazia versus interesses de classe

Talis Andrade

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Quando a democracia degenera em fascismo (parte 3)

 

por Pete Dolack

 

Por que isso é tão crucial? Porque o fascismo é uma ditadura imposta em benefício dos grandes capitalistas industriais e financeiros. Em seu nível mais básico, o fascismo é uma ditadura estabelecida e mantida com terror em nome do grande capital. Tem uma base social, que lhe dá o apoio, assim como possui os esquadrões do terror, mas que está muito mal desencaminhada porque a ditadura fascista opera decisivamente contra os interesses de sua própria base social. Militarismo, nacionalismo extremo, criação de inimigos e bodes expiatórios e, talvez o componente mais crítico, uma propaganda raivosa que intencionalmente suscita pânico e ódio enquanto disfarça sua verdadeira natureza e intenções sob a capa de um falso populismo, estão entre os elementos necessários.

Apesar das diferenças nacionais que resultam em grandes diferenças nas aparências do fascismo, a sua natureza de classe é consistente e bem conhecida. O grande capital é invariavelmente defensor do fascismo, não importa o que a retórica de um movimento fascista contenha; ademais, ele é invariavelmente o beneficiário. Instituir uma ditadura fascista não é uma decisão fácil, mesmo para os maiores industriais e banqueiros que podem salivar com os lucros potenciais. Pois, mesmo que seja para beneficiá-los, esses grandes empresários estão renunciando parte de sua própria liberdade, pois não controlarão diretamente a ditadura; é uma ditadura para eles, não por eles.

É apenas sob certas condições que as elites empresariais recorrem ao fascismo – como se sabe, alguma forma de governo democrático, sob a qual os cidadãos “consentem” com a estrutura governante, é a forma preferida e muito mais fácil de manter. Se os trabalhadores começam a retirar o seu consentimento – começando a desafiar seriamente o status quo econômico – vem uma “crise” que pode trazer o fascismo. A incapacidade de manter ou expandir os lucros, como pode ocorrer durante um declínio acentuado no “ciclo de negócios” ou uma crise estrutural, vem a ser uma outra dessas “crises” que fomentam o fascismo.

Nenhum movimento fascista pode ter sucesso sem que uma base considerável esteja convencida de que os de esquerda devem ser detidos a qualquer custo. E que a única maneira pela qual ocorre um místico retorno da extrema-direita ao passado que está pendurado à sua frente pode ser realizado sem que seja imposto pela força; as oposições, ademais, devem ser reprimidas com violência. Esta parte da equação, infelizmente, está muito presente nos Estados Unidos, como demonstra tristemente a trajetória inabalável de Donald Trump. O desejo de Donald Trump de ser um ditador fascista é óbvio – e isso deveria ser inconfundível para qualquer pessoa de esquerda; entretanto, nem sempre, infelizmente, é assim: frequentemente, ainda não se leva Donald Trump e sua base a sério ou, pior, alguns são mesmo seduzidos pelas canções de sereia de Trump.

Certa vez, participei de um respeitado programa de rádio ambiental em que se discutia os planos do governo Trump para revisar o Acordo de Livre Comércio da América do Norte, no qual mostrei essa minha visão. Fui, então, rudemente interrompido e tratado da maneira pouco condescendente por outro convidado, o proeminente chefe de uma organização não-governamental de Washington. Ele pretendia me “corrigir”, alegando que os consultores comerciais de Donald Trump dizem que querem acabar com os tribunais secretos que as corporações usam para derrubar leis e regulamentos do governo.

Donald Trump estava no poder há mais de um ano e, a essa altura, a guerra total de seu governo contra os trabalhadores e seus esforços extenuantes, visando permitir que as corporações saqueassem e poluíssem sem o peso dos regulamentos, estava em pleno andamento. Além disso, o documento de política comercial do governo havia sido divulgado – esse era o assunto que se estava abordando – e não havia nada ambíguo sobre sua intenção de desmantelar os padrões trabalhistas, de segurança, saúde ou ambientais mantidos por outros países.

A retórica vagamente esquerdista de Donald Trump era apenas para exibição, uma manobra transparentemente óbvia para atrair eleitores que tinham muito boas razões para deplorar os chamados acordos de “livre comércio” e muitas outras políticas que prejudicaram os trabalhadores enquanto permitiam que os empregos fossem transferidos para outro continente. Os alemães na República de Weimar também tinham motivos de sobra para estar fartos, mas essas óbvias mentiras nazistas tornaram-se inconfundivelmente mentiras quando Hitler eliminou aquelas tropas de assalto que acreditavam na retórica esquerdista da “Noite das Facas Longas”. Mussolini também usou essas táticas.

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O passado de Trump e De Santis não confundem

Quatro anos de Donald Trump na Casa Branca – quatro anos de ataques totais aos trabalhadores e ao meio ambiente, trapaças incompetentes e mentiras sobre a pandemia de Covid-19, permissões para que todos os misantropos realizarem as suas fantasias antissociais mais detestáveis– não poderia ser mais claro. Donald Trump continua sendo uma personificação da ameaça do fascismo.

E quanto ao seu principal rival na indicação presidencial do Partido Republicano? De Santis – ou De Satan como já foi apelidado – claramente também tem aspirações de se tornar um ditador fascista. O governador não tem um apoio popular fanático como Donald Trump, mas parece bem mais provável que obtenha um forte apoio de industriais e financistas do que Trump, dando seu sucesso em reduzir o Legislativo da Flórida a uma repartição que passou a usar o seu carimbo. De Santis também pode estar governando por decreto, considerando como os legisladores entregam a ele o que ele deseja.

O registro aqui dispensa apresentações para quem está prestando atenção. Mas vamos “destacar” alguns de seus feitos. Ele está travando uma guerra de terra arrasada contra as comunidades LGBT, negando sua humanidade e proibindo na medida do possível até mesmo discutir os interesses dessas comunidades, impondo proibições draconianas do aborto (as mulheres sempre destituídas de direitos e reduzidas a máquinas de bebês sob o fascismo), removendo unilateralmente do cargo oficiais eleitos que ousam discordar dele, proibindo livros, encobrindo a história, usando imigrantes como adereços descartáveis a serviço do nacionalismo e do nativismo e oferecendo bônus a policiais para se mudarem para a Flórida, muitos dos quais foram acusados de atos criminosos, inclusive domésticos tais como roubo, sequestro e assassinato.

Tão cruel é o estado policial que DeSantis está tentando criar e tão hostil é a tentativa de apagar a escravidão e o racismo da história que a associação dos pretos americanos, NAACP (National Association for the Advancement of Colored People) emitiu um aviso de viagem para que afro-americanos evitassem o estado.

Embora seja indiscutivelmente verdade que um partido fascista independente não vai tomar o poder nos Estados Unidos em um futuro previsível, não é verdadeiramente necessário que ele surja. Os dois principais candidatos a um dos dois partidos que se alternam no poder, os republicanos, têm aspirações a serem ditadores fascistas e há uma base considerável de republicanos prontos para isso.

Pouca ajuda do outro partido, os Democratas, está disponível, já que a oposição de “centro-esquerda” (na verdade, trata-se de uma oposição de “centro-direita” à extrema direita) é derrotada repetidamente, sua incapacidade de enfrentar a direita ou de montar qualquer oposição efetiva não é apenas o produto de estar em dívida com o dinheiro corporativo e a ideologia do “excepcionalismo americano”, mas o beco sem saída intelectual do liberalismo. (Estou usando a terminologia norte-americana aqui; os leitores do resto do mundo podem substituir “liberal” por “social-democrata”.)

O liberalismo norte-americano e a social-democracia europeia estão presos por um desejo fervoroso de estabilizar um sistema capitalista instável. Eles são prejudicados por sua crença no sistema capitalista, o que significa, hoje, uma crença na austeridade para os trabalhadores e nos subsídios para a pilhagem corporativa e financeira, não importa os belos discursos que façam.

Quando Bill Clinton, Barack Obama, Jean Chrétien, Justin Trudeau, Tony Blair, Gordon Brown, François Holland, Gerhard Schröder, José Luís Rodríguez Zapatero e Romano Prodi caem de joelhos diante de industriais e financistas, quando cada um desses líderes implementa rapidamente a austeridade neoliberal apesar de liderar a suposta oposição de “centro-esquerda” aos partidos conservadores que defendem abertamente a dominação corporativa, há algo mais do que fraqueza pessoal em ação. E esse histórico lamentável – Bill Clinton, por exemplo, foi o “presidente republicano” mais eficaz que os EUA já tiveram. Ele deu uma abertura para que os demagogos de extrema direita passassem a ofertar cantos de sereia, os quais caem bem em certa esquerda e, assim, enganam os demais.

No entanto, posso entender facilmente por que tantos americanos, não apenas liberais, mas também de esquerda, votam nos democratas como um movimento tático, argumentando que um democrata no poder, particularmente na Casa Branca, oferece mais espaço de manobra. Embora eu pessoalmente não tenha estômago para votar nos democratas, certamente entendo essa votação tática como uma questão de sobrevivência, especialmente porque cada governo republicano é pior que o anterior.

Mas seria útil se os eleitores democratas pressionassem seus titulares de cargos para realmente tentar implementar algumas das coisas que desejam, em vez de lhes dar um passe livre. E uma estratégia diferente do usual encolhimento do Partido Democrata, o qual não deveria significar um primeiro encolhimento e, depois, mais encolhimento.

Deixando de lado o voto – e votar deveria ser a coisa menos importante que se faz numa democracia – o fascismo só pode ser detido por um movimento de massas, que o confronta diretamente. E isso significa levar a sério o perigo, em vez de rir da ignorância de Donald Trump, Jair Bolsonaro e de seus seguidores cegos. O fascismo nunca é motivo de riso, como a contagem dos corpos deixada por seu cortejo fúnebre na história deveria deixar tudo claro, muito claro.

Pete Dolack é jornalista e escritor. Autor, entre outros livros, de It’s Not Over: Learning From the Socialist Experiment and the Systemic Disorder blog

Tradução: Eleutério F. S. Prado.

Publicado originalmente em Blog Systemic Disorder.

08
Jul23

A economista que desmascarou a “austeridade”

Talis Andrade

 

Clara Mattei sustenta: “Falta de recursos” é armadilha ideológica. Dinheiro, os Estados criam o tempo todo. Corte de serviços públicos visa disciplinar as maiorias, forçando-as a aceitar qualquer trabalho

 

A professora e escritora Clara Mattei é objetiva: já no título de seu mais recente livro ela fala da conexão direta entre austeridade econômica e o fascismo. Em The Capital Order: How Economists Invented Austerity and Paved the Way to Fascism (ainda sem título em português – em tradução livre: “a ordem do capital: como os economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo”) ela destrincha essa relação. O livro será lançado no Brasil ainda este ano pela editora Boitempo.

Mattei foi a convidada do Brasil de Fato Entrevista desta semana. Ela contou sobre o processo para elaboração da obra, que é fruto de dez anos de estudo. Italiana radicada nos Estados Unidos (ela é professora de Economia na The New School for Social Research, em Nova Iorque), a pesquisadora cita personagens como Benito Mussolini, Donald Trump e a atual primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, como frutos políticos de um caminho trilhado com apoio na lógica da austeridade econômica.

“Para o capitalismo funcionar, a maioria das pessoas deve estar desempoderada, precarizada e dependente do mercado. E é isso que a austeridade faz. Tira recursos da maioria das pessoas, que ganham dinheiro através de um salário, e entrega a uma minoria, cuja riqueza vem de patrimônios e rendas”, afirma ela, que destaca que a alternativa a esse sistema passa pela organização das pessoas em suas comunidades locais.

 

José Eduardo Bernardes

entrevista Clara Mattei

 

A senhora passou dez anos escrevendo o livro que nasceu da sua tese de doutorado. Como e quando decidiu se aprofundar neste assunto?

Tudo começou quando estava vivendo os anos de grande austeridade de Mario Monti, na Itália. Ele chegou ao poder após a crise da dívida soberana em nosso país e estava estudando e vivendo na pele, assim como a maioria das pessoas no mundo ainda vive hoje, os efeitos da austeridade, a redução de verbas para a educação e saúde pública. Vi as pessoas na Itália ficarem cada vez mais pobres a olhos vistos. Era um país em que não tínhamos pessoas morando na rua e as ruas estavam ficando cheias de gente. Não havia moradia.

 

Mas você passou dez anos pesquisando e procurando material em arquivos, certo?

Sim, é um trabalho em economia histórica e política. É baseado em fontes primárias e na reconstrução do passado através de uma nova perspectiva, analisando material que ainda não havia sido publicado. O tipo de debate sobre austeridade que estava ocorrendo na mídia, na política pública e até entre movimentos de esquerda era muito insatisfatório porque era muito apolítico.

Transformaram a austeridade em uma ferramenta técnica para gerir a economia e a discussão era se a austeridade estava ou não funcionando para equilibrar o orçamento e promover crescimento. Era um debate sem solução. E não muito útil para entender por que a austeridade continuava emergindo mesmo que claramente não estivesse gerando crescimento, nem ajudando a resolver a questão da dívida.

Então o estudo histórico é muito importante porque nos dá uma análise com perspectiva de classe que estava ausente no debate econômico contemporâneo, que era muito tecnocrático. A tentativa era então olhar para o que aconteceu 100 anos atrás e mostrar como a austeridade tem uma clara lógica política que visa manter todos nós em uma situação de precariedade, de dependência do mercado, desempoderando assim a população para que o sistema se proteja e mantenha a ordem do capital, que é o título do livro: A ordem do capital, para se manter intacto. 

Se olharmos para a história, isso só é visível porque aconteceu em um momento em que o capitalismo foi muito contestado depois da Primeira Guerra, e assim realmente vemos como a austeridade operava como uma contraofensiva usada pelas elites para impedir qualquer alternativa ao nosso sistema.

 

Na apresentação do livro, você fala sobre várias crises econômicas e políticas em países do mundo todo, já que essas crises e essa austeridade são intrínsecas à nossa sociedade moderna. Nos últimos anos, mais uma vez vimos uma crise do neoliberalismo no mundo todo, algo que já se dizia no início do século passado. Esse modelo econômico não é o mais adequado, certo?

Sim, com certeza. Estamos em outro momento em que as pessoas não acreditam no sistema, penso eu. Aliás, é por isso que a austeridade voltou com força total. Não só no Brasil. Eu moro nos Estados Unidos e o motivo pelo qual o Federal Reserve, o [equivalente ao] Banco Central, está aumentando a taxa de juros é porque a maioria das pessoas não está voltando ao trabalho.

Muitos trabalhadores estadunidenses, 46 milhões, em 2022, largaram seus empregos porque estão cansados da exploração e porque veem que o sistema não trabalha para eles e sim para uns poucos que enriquecem constantemente. Então é nessa situação que a austeridade deve voltar para nos convencer que, na verdade, estamos enganados e não existe outra saída a não ser através do sacrifício dos trabalhadores e, em última instância, do corte de salários para atrair a confiança dos investidores.

 

E o capital parece tentar se reestabilizar e se preservar o tempo todo. Mesmo diante de uma crise, os bancos, o sistema inteiro, e até os governos liberais, ainda tentam protegê-lo.

Com certeza. Mas acho que existe aí uma mensagem de esperança que surge quando levamos a História a sério: o capital não é fixo, não é algo dado e não é uma coisa, não é um objeto. É uma relação social e se traduz em uma maioria que aceita sua condição e aceita sua condição de vender sua capacidade por um salário.

A relação social não é de maneira alguma estática. É dinâmica e pode ser subvertida. É dinâmica e pode ser subvertida. Então a realidade é que a ordem do capital é muito frágil. E é por isso que a austeridade é tão cara a ela, porque a protege de todas essas demandas de transformação social que vão surgindo.

A mensagem aqui é que precisamos saber como a classe dominante opera para preservar um sistema injusto. Precisamos parar de idealizar o capitalismo como um sistema que pode ser reformado e que tem flexibilidade para incorporar nossas necessidades, e perceber que o capitalismo tem limites rígidos. É um sistema que só cresce e produz para gerar lucro e isso requer austeridade.

A tese central aqui é que a austeridade não é uma exceção no capitalismo, não é algo que só se vê nas etapas neoliberais, começando nos anos 80. Ela é muito mais intrínseca à longa história do capitalismo. Está no DNA do sistema exatamente porque, para o capitalismo funcionar, a maioria das pessoas deve estar desempoderada, precarizada e dependente do mercado. E é isso que a austeridade faz. Tira recursos da maioria das pessoas, que ganham dinheiro através de um salário, e entrega a uma minoria, cuja riqueza vem de patrimônios e rendas. (continua)

14
Fev23

A tutela militar e seus limites

Talis Andrade

 

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Os nexos, ao longo do desenvolvimento capitalista brasileiro, entre tutela militar e relações com as classes populares em democracias liberais restritas

 

por Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida /A Terra É Redonda 

Dois aspectos adquirem enorme importância na atual crise política brasileira: uma forte expansão do neofascismo que até deixa saudades de quando, uns cinco anos atrás, discutimos sobre a existência de uma onda conservadora no Brasil;  o debate sobre a tutela militar quase cai na boca do povo.

Inevitável não é, mas, pelo que temos visto e vivido, é bastante provável que, especialmente no caso de uma intensificação das contradições internas à formação social brasileira e um aprofundamento da crise econômica mundial em um jogo geoestratégico complicadíssimo, este país constitua um cenário bastante favorável ao crescente entrelaçamento – e mesmo à fusão – da forte presença política dos militares com o avanço do neofascismo.

Este artigo, longe de abordar a questão em toda a sua complexidade, o que implicaria levar em conta, por exemplo, dimensões corporativas específicas das Forças Armadas, centra o foco, de modo ainda bastante genérico, nas relações, ao longo do desenvolvimento capitalista brasileiro, entre tutela militar e as classes populares em democracias liberais restritas.

 

Passado e presente da tutela militar

 

Segundo diversos estudiosos, a tutela militar se constituiu com a formação do Estado independente a partir de 1822-24 e jamais se foi. Até porque, apesar do debate, não temos um conceito suficientemente claro de tutela militar, deixo, neste momento, de discuti-la no interior de formações sociais pré-capitalistas e apenas registro uma dúvida teórica que, no Brasil atual, tem imediatas implicações políticas: a distinção qualitativa entre o Estado escravista moderno e o Estado burguês não deveria ser mais considerada ao falarmos de uma bicentenária tutela militar?

Creio que, se traçarmos esta linha de continuidade muito direta, corremos o risco de legitimar posições que, de um modo ou de outro, justificam a proeminência militar na política contemporânea com a referência a um passado mítico de um povo apático, inclusive em razão de determinações raciais, e, portanto, incapaz de se conduzir. Centro o foco no período marcado pela presença de um Estado nacional brasileiro cuja existência coincidiu com a da forma de governo republicana ao longo de 121 anos de História.

Mesmo assim, assinalo um problema: a questão da tutela militar no Brasil se escancara a céu aberto quando se trata de democracias liberais de massas, pois, em se tratando de ditaduras militares, corre-se o sério risco (não a inevitabilidade) de ficar a meio caminho do truísmo e da redundância. O que, ironicamente, não impede que, nas constituições ditatoriais brasileiras, artigos mais diretamente relacionados com o papel das Forças Armadas lhes atribuem um papel mais subalterno ao Executivo. Já as Cartas Magnas das duas democracias liberais de massas neste país, 1945-1964 e desde 1989, trazem o registro da tutela militar: artigos no.177 e 142 das Constituições de 1946 e 1988, respectivamente.

Estranho país no qual a simples aceitação da democracia é acompanhada do aviso constitucional de que as Forças Armadas estão de olho e prontas para agir. Neste texto, centro o foco em alguns aspectos das relações entre o ramo militar da burocracia do Estado brasileiro e a Presidência frente às lutas das classes populares.

 

Transição de capitalismo e lutas político-ideológicas

 

No período 1945-1964, militares atuavam em todas as frentes de disputa a respeito da política de Estado. O principal eixo da discórdia girava em torno da implementação de políticas necessárias ao desenvolvimento nacional brasileiro, o que, de tão genérico, beirava o consensual. Em termos objetivos, estava em disputa a continuidade da política de desenvolvimento capitalista industrial (dependente) implementada durante a Era Vargas (1930-45). Em torno desta é que se manifestavam interesses e variantes ideológicas contraditórios no interior da classe dominante, entre camadas da classe média e segmentos do aparelho estatal em um período marcado, do início ao fim, pela ascensão política das classes populares.

Comparados aos atuais 38 anos do regime atual, os 19 daquela democracia foram de prender o fôlego.

As contendas não se limitaram aos debates orais e escritos dentro e fora dos partidos políticos, no parlamento, na imprensa e, ao longo dos anos 1950, na intelectualizadíssima Revista do Clube Militar. Beiraram as vias de fato quando, na undécima hora, o general Lott liderou o famoso “golpe da legalidade” (11/11/1955) que assegurou a posse da dupla Kubitschek e Goulart, legitimamente eleita mas contestada pelos adversários civis (udenistas) e militares adeptos do candidato derrotado, general Távora.

Questionamento da vitória eleitoral, longe de invenção tucana, foi fortíssimo em relação a dois importantíssimos presidentes brasileiros: Vargas, em 1950, e Kubitschek em 1955, quando o general Lott deu o “golpe da legalidade”, sem falar no risco de confronto armado produzido pelo veto dos três ministros militares à posse do vice-presidente João Goulart na esteira da renúncia de Jânio Quadros. Enfim, em todas as eleições presidenciais do período, houve sempre um militar (em 1945, dois) entre os candidatos mais votados.

Nestes breves 19 anos de vida, ocorreu formidável ascensão das lutas operárias e também, a partir de 1955, o ingresso promissor das ligas camponesas na luta política. E, no frigir dos ovos, esta ebulição sociopolítica desembocou na montagem de um capitalismo industrial dependente que deixou para traz o debate sobre a vocação agrária da economia brasileira. Neste processo, os conflitos no interior do ramo militar da burocracia de Estado foram decisivos. O que justifica o recurso à noção de tutela militar.

 

Lutas de trabalhadores e transição transada

 

A crise da ditadura militar foi marcada por uma extraordinária presença das lutas operárias e populares que até hoje deixam registros nos nomes de partidos, movimentos e entidades de representação corporativa de trabalhadores e segmentos da classe média, produção cultural, sem falar nas atividades que, perdidas na memória, requerem pesquisa. Houve momentos em que pessoas de classe média, ao encherem o carro de compras no supermercado, reservavam um pouco delas para doarem ao fundo de greve.

Todavia, essas lutas que encantaram boa parte do mundo não conseguiram dirigir o processo de transição. Um dos resultados da transição transada – expressão do saudoso Florestan Fernandes – é a Constituição Cidadã com este famoso artigo 142. Ela mal completou 35 dias e ocorreu forte intervenção do Exército na cidade de Volta Redonda para reprimir a greve dos trabalhadores da Companhia Siderúrgica Nacional (o chamado Massacre de Volta Redonda). Cinco anos depois, a empresa foi privatizada. Tropas do Exército também atuaram contra a greve dos Petroleiros em maio de 1995 (governo FHC), com impactos importantíssimos para as lutas dos trabalhadores neste país. E, expressando a virada das relações sociais, as operações de GLO, estritamente de acordo com o famoso artigo 147, foram transmitidas de governo a governo. Ou seja, a atual democracia (restrita) brasileira nasceu com o selo da tutela militar.

 

A tutela e seus limites

 

Durante o interregno Temer, no bojo da reafirmação da hegemonia da grande finança, pari passu com as derrotas das classes populares, liquidou-se o que restava da “herança varguista” e,  em meio à crise do sistema partidário, a cena política foi inflada de agremiações reacionárias e conservadoras ligadas a setores da burguesia interna rural e urbana. E um grupo de generais passou a intervir ostensiva e simploriamente na implementação de políticas estatais, como a econômica, externa, cultural, de costumes e eleitoral.

Neste último caso, bloqueou a candidatura Lula e se envolveu diretamente na de Jair Bolsonaro. Estas políticas foram apresentadas como racionais, voltadas para a defesa da lei e da ordem e a regeneração nacional, o que implicaria profundo combate à corrupção. E, no geral, receberam apoio entusiástico do conjunto da classe dominante brasileira, amplos setores da classe média e todos os grandes meios de comunicação.

Com o mesmo apoio, então bem mais emocionado e com maior penetração nas classes populares, emergiu a candidatura vitoriosa de Jair Bolsonaro e se configurou uma relação entre militares e política que, salvo melhor juízo, não tem precedentes na história deste país.

Estabeleceu-se um governo fascista profundamente atentatório à democracia liberal, atrelado ao financismo, voltado para a exportação de bens primários e refratário a políticas de desenvolvimento industrial e de apoio à pequena produção rural e urbana. O modo de exercício da hegemonia do capital financeiro levou à defesa objetiva, sob o nome de responsabilidade fiscal, de uma política econômica de aspectos genocidas, atentados constantes à democracia liberal, política internacional desastrada e política sanitária catastrófica, sempre com o envolvimento do referido grupo predominante no interior das Forças Armadas.

O que seria uma simples disputa eleitoral abriu a espaço para, na ausência de qualquer inimigo real ou potencial, um surto de descoordenação nos (e entre os) diversos segmentos do ramo repressivo do Estado (Forças Armadas, Polícias Militares, Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal). E o centro do palco foi ocupado personagens movidos à violência cega e formulações simplistas quase sempre expressadas por meio de escasso repertório de xingamentos idiotizastes. Aguardemos as pesquisas sobre a inserção social dos que vandalizaram a Praça dos Três Poderes.

Se, mesmo nos casos clássicos, a ascensão de fascismos passou pela impregnação (e posterior comando) do aparato repressivo do Estado, a ascensão do bolsonarismo, cujo líder já foi declarado nada afeito à carreira castrense, mas é admirado pela base da tropa, sinaliza o risco de preocupante mutação da tutela militar no Brasil.

 

02
Dez22

A linguagem e o autoengano bolsonarista

Talis Andrade

 

Por Jair de Souza

O povo brasileiro está vivenciando um momento crucial para a história de toda a humanidade. O porvir dos embates que estão se desenrolando em nosso país vai ser também, em grande medida, determinante para o desenlace da luta global contra o ressurgimento do nazismo.

A análise da evolução histórica do capitalismo nos mostra que o fascismo é um dos recursos extremos ao qual as forças do grande capital apelam em seus intentos de aniquilar a resistência popular em períodos de sérias crises existenciais para esse sistema de exploração social. As peculiaridades adotadas pelo fascismo sofrem variações em função das especificidades presentes em cada povo, região ou momento em que o mesmo aparece.

No Brasil da atualidade, em razão de seu acentuado caráter racista, o fascismo apresenta-se com uma faceta mais afinada com o nazismo hitlerista do que com a vertente mussoliniana com a qual despontou na Itália. E, precisamos dizê-lo sem subterfúgios, em nossas terras tupiniquins, o nazismo se incorporou adotando as formas típicas do bolsonarismo. Para que não subsista nenhuma dúvida, o bolsonarismo é, sim, a feição com a qual a mais extremada corrente ideológica do grande capital se impôs em solo brasileiro. Portanto, para todos os efeitos práticos, um bolsonarista pode e deve ser equiparado a um nazista.

Porém, analogamente ao que sucedeu quando o movimento comandado por Adolf Hitler começou a ganhar expressão na Alemanha, é a inoculação virulenta de um ódio cego e doentio contra certos grupos humanos o que também dá o tom na aglutinação das forças da podridão bolsonarista no Brasil. Por aqui, a herança do colonialismo acentuou o ódio de classe a o acoplou à perfeição ao ódio de raça, uma vez que, entre nós, ser pobre e ser negro são quase que sinônimos.

Os pilares da ideologia bolsonarista, assim como os de sua inspiradora alemã, não se sustentam na verdade. No entanto, a essência de sua existência mentirosa jamais é admitida. Em contraposição a suas principais características efetivas, o bolsonarismo costuma adotar palavras e explicações inteiramente opostas aos objetivos práticos que persegue com tenacidade. Em outras palavras, é a hipocrisia que permeia, norteia e prevalece em tudo o que diz respeito ao bolsonarismo. Para melhor expressar este fenômeno, vamos dar umas breves pinceladas em alguns dos principais pontos desta nefasta maneira de ver e sentir o mundo.

Reconhecidamente, os bolsonaristas estão entre os maiores entreguistas que nossa pátria já produziu. Todos eles odeiam a mera possibilidade de imaginar que o Brasil se torne uma nação livre, independente e soberana. Segundo eles, nosso país e nosso povo deveriam se manter inteiramente subjugados ao domínio e aos interesses das grandes potências do capitalismo ocidental, em especial, dos Estados Unidos. Ultrapassando inclusive os desígnios de Donald Trump, os bolsonaristas cultivam irrestritamente a ideia do “America First” (“Os Estados Unidos em primeiro lugar”). O acolhimento do termo América em referência exclusiva aos Estados Unidos é outro ponto que reforça o nível de sua submissão ideológica a seus mentores estadunidenses.

Assim, já se tornou habitual na gestão bolsonarista de governo isso de vestir a camiseta amarela da seleção, cantar o hino nacional, gritar loas a nossa pátria, ao passo que o petróleo e nossas principais riquezas naturais vão sendo entregues a grupos capitalistas estrangeiros.

Não obstante serem notórios por seu elevado grau de depravação, a começar pelo de seu expoente máximo, por sua falta de apego à moralidade ou à ética, os bolsonaristas gostam de se apresentar como paladinos da defesa das tradições familiares e dos bons costumes. Porém, basta fazer uma sondagem pelos buscadores da internet para constatar que quase todos os casos recentes de podridão moral têm como protagonistas gente marcadamente associada ao bolsonarismo. Apesar disto, eles persistem na afirmação de que estão engajados numa guerra sem quartel em defesa da família, da moral e dos bons costumes.

No tocante à religião, o bolsonarista é um típico inimigo de tudo o que a figura de Jesus simboliza. Se o nome de Jesus está intrinsecamente ligado à justiça, à solidariedade, à fraternidade, à paz e ao amor, a motivação que impulsa os bolsonaristas vai em sentido diametralmente oposto. Os bolsonaristas vivem em função do ódio, da opressão, da guerra, da injustiça e do egoísmo. Se em seu legado de vida Jesus nos ensinou a repartir o pão e a amparar os mais necessitados, os bolsonaristas, por sua vez, cultuam a diabólica teologia da prosperidade, ou seja, aquela ideologia com a qual seus adeptos se aferram a seus mesquinhos interesses egoístas. Em outras palavras, não existe nenhuma possibilidade de ser seguidor de Jesus tendo por base essa desumana maneira de pensar.

Nos últimos tempos, vem-se evidenciando que a base de apoio do bolsonarismo político está constituída majoritariamente por seguidores de igrejas que se dizem cristãs, tanto de denominações evangélicas como católicas. Como admitir que um cristão de verdade seja também um bolsonarista convicto? Há uma contradição insuperável nessas duas categorias. Assim como ninguém pode servir a Deus e ao diabo ao mesmo tempo, não existe nenhuma possibilidade de se estar bem com Jesus e com o bolsonarismo. O bolsonarismo sintetiza a perversidade contra a qual Jesus sempre lutou.

Nenhuma pessoa em sã consciência refutaria que os postulados da famigerada teologia da prosperidade vão inteiramente na contramão de tudo o que Jesus sempre pregou em sua vida. Aqueles que se atrevem a fazer a defesa do bolsonarismo por meio do nome de Jesus sabem que estão agindo sorrateiramente para inculcar nos mais incautos valores que têm muito mais a ver com a maldade inerente ao capitalismo selvagem, com a essência do nazismo, ou seja, do bolsonarismo.

Portanto, não devemos permitir que nenhum bolsonarista possa se valer da manipulação para impor interesses que atentam contra o conjunto de nossa nação. Nosso povo aspira a um mundo de justiça, de solidariedade, de amparo aos mais carentes, de amor e de paz. Para contribuir com a luta no rumo desses objetivos, devemos travar uma forte batalha contra os preconceitos do nazismo e de sua versão brasileira, o bolsonarismo. Por mais que faça uso deturpado da linguagem, o bolsonarismo se caracteriza pela maldade que lhe é intrínseca.

Todos os que nos interessamos pelo estudo da linguagem temos clareza do poder que as palavras exercem sobre nossa própria mente. Muitas vezes, elas são empregadas com o propósito de autoengano, buscando justificar um posicionamento em favor de causas que sabemos não serem dignas. Em vista disto, cabe a cada um de nós desmascarar a hipocrisia praticada pelos bolsonaristas na tentativa de suavizar sua consciência diante das atrocidades induzidas por suas práticas malignas.

Quem perdeu a eleição quer mandar em Lula

 

Militar golpista passa dos limites

 
 
Nikolas do time golpista. Prometendo que Bolsonaro, quatro anos parado, "na hora certa irá agir". Esse Ferreira precisa explicar que ferro promete para o povo livre e democrata. Basta de ameaça de guerra civil, de golpe sangrento. Ditadura nunca mais talisandrade.blogs.sapo.pt/tag/sangreira
 
Nikolas Ferreira 
@NikoIasFerreira
Estamos confiantes que na hora certa o capitão irá agir, quem mais está com o nosso Presidente? 
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Meu nome não é Jhonny 
@RodineiCosta7
E revoltante ver essa cena !!!
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03
Set22

O grande capital e a corrupção bolsonarista

Talis Andrade

Patrimônio da família Bolsonaro: Compra em dinheiro vivo desperta suspeitas, diz Maierovitch

 

Por Jair de Souza

Qualquer pessoa com algum conhecimento sobre a vida política brasileira já sabia de longa data, bem antes das eleições de 2018, que Bolsonaro e sua família jamais poderiam servir de paradigma de honestidade para ninguém. Por isso, não há nada a estranhar nas recentes revelações que trazem ao conhecimento público as mais de uma centena de transações imobiliárias realizadas pelo ex-capitão e sua família nos últimos anos.

É espantoso saber que cinquenta e uma dessas negociatas foram realizadas com pagamento em dinheiro vivo, em espécie. Em sã consciência, alguém poderia considerar como normal e acima de suspeita que uma compra de um imóvel valorado em milhões de reais seja efetuada com o uso direto de papel moeda? Bem, quem sabe, talvez, em uma situação excepcional, poderia ser. Mas, neste caso, estamos falando de cinquenta e uma operações. É um pouquinho diferente. Concordam?

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Fazendo uma comparação com o ocorrido com o ex-presidente Lula, já tem gente dizendo que Bolsonaro está se mostrando como o presidente mais corrupto de toda nossa história republicana. Como Lula foi condenado e mantido em prisão por 580 dias em função de um apartamento no Guarujá cujo valor de venda não superava os 2,2 milhões de reais, e as transações imobiliárias suspeitas da família bolsonarista ultrapassam em mais de dez vezes esse valor, até que esta argumentação que sustenta que estamos diante do maior corrupto da nação não está tão fora de propósito.

Além do mais, está inteiramente provado legalmente que o badalado tríplex que serviu para a condenação de Lula não era de sua propriedade. E, por sua vez, a intensa varredura feita em todas as contas de Lula e sua família, no Brasil e no exterior, não conseguiu descobrir um centavo sequer que pudesse ser caracterizado como fruto de atividades ilícitas. Em vista disto, todos os processos e acusações que tinham sido abertos contra Lula foram anulados e desconsiderados pelo STF. Como William Bonner se viu forçado a reconhecer: Lula não tem nenhuma pendência com a Justiça.

No entanto, o principal propósito deste texto não é ressaltar o elevadíssimo nível de corrupção pessoal de Bolsonaro e sua família. Mesmo que isto seja um fato que vai se tornando mais e mais visível para todos a cada dia, quero demonstrar que os mais angustiantes problemas do país se encontram muito além da questão da moralidade ou ética pessoal do governante de turno.

Em um artigo publicado aqui neste blog em junho do ano passado, eu busquei deixar claro que o tema da corrupção pessoal dos governantes quase nunca pode ser tido como a razão principal para explicar os descalabros sociais de um país como o Brasil. O que eu procurei mostrar naquele momento é que, em sociedades de classes antagônicas como a nossa, a verdadeira corrupção se consume naqueles mecanismos que permitem que a transferência de renda de uns setores sociais a outros seja executada da maneira mais eficaz possível.

Isto que acabei de mencionar é importante para que não venha a predominar a conclusão de que, se conseguíssemos eliminar os vícios de corrupção pessoal presentes em Bolsonaro e sua família, poderíamos resolver os problemas da nação sem necessidade de alterar as regras de funcionamento atualmente em vigor. No caso brasileiro, bastaria substituir a figura asquerosa e desonesta de Bolsonaro por outra mais limpinha e de bons modos, como a de Simone Tebet, por exemplo, para que o país entrasse nos eixos de um bom rumo.

Porém, como já tentei explicar no texto anterior, a distribuição da renda produzida em uma determinada sociedade vai depender da correlação de forças existente entre as diferentes classes que a disputam. A troca de nomes no comando com a manutenção das condições vigentes na atualidade, significa que a parcela que vinha sendo apropriada pela família bolsonarista, simplesmente, iria ser adicionada ao bolo correspondente ao grupo daqueles que se beneficiam com as políticas que o governo do miliciano vem levando a cabo.

Por exemplo, a mera retirada de Bolsonaro e sua família da repartição do botim não vai implicar que a renda gerada pela Petrobrás passará a atender as necessidades do povo em seu conjunto. O mais provável é que isso até contribua para elevar o montante relativo a juros e dividendos que vai para o pequeno grupo de pessoas que detêm a maioria das ações privadas da Petrobrás, em detrimento dos interesses do restante da população. Portanto, sem alterar as bases de funcionamento de nossa empresa petroleira e sua política de preços, não vai fazer muita diferença para o povo em termos concretos que o presidente da nação seja uma pessoa honesta e menos desbocada. Vai ser preciso trazer a empresa de volta à sintonia com os interesses nacionais

Como é sabido, o ministro Paulo Guedes ganhou centenas de milhões de reais ao se aproveitar dos ganhos que sua empresa offshore pôde auferir em razão de medidas tomadas por ele mesmo em sua função de ministro. E, é bom ressaltar, os ganhos desse ministro não são, de modo algum, os mais expressivos nessa modalidade. Assim que, não há nenhuma probabilidade de que este tipo de problema seja eliminado tão somente com a substituição da figura deplorável que hoje ocupa o cargo presidencial por outra algo mais palatável em termos pessoais.

De igual maneira, de nada vai adiantar para as maiorias se o novo chefe de governo for comedido, honesto e respeitador das leis, mas não se empenhar em mudar o atual modelo de taxação que isenta de pagamento os grandes capitalistas agroexportadores, os rentistas que ganham de seus dividendos, e que continue privilegiando a arrecadação de impostos pela taxação dos bens de consumo e não pelo nível de renda

Portanto, embora seja muito válido denunciar com veemência toda a podridão que as práticas criminosas e corruptas da família bolsonarista representam, é preciso apontar para mudanças que não se limitem a uma substituição pura e simples de figuras de aspecto repugnante por outras de melhor aparência.

Sem que se altere a essência do sistema que sustenta o quadro de apropriação de renda prevalecente no momento, o nível de desigualdade social, a pobreza aguda e a fome não vão desaparecer.

Quase metade do patrimônio em imóveis do presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL) e de seus familiares mais próximos foi construída nas últimas três décadas com uso de dinheiro em espécie, de acordo com levantamento patrimonial realizado pelo UOL. No UOL News, o jurista Wálter Maierovitch, colunista do UOL, fala sobre o tema

As declarações de bens e renda da família Bolsonaro entregues ao TSE mostram que o presidente e seus filhos não têm o costume de guardar dinheiro vivo em casa. De 1998 até as eleições deste ano, apenas o vereador Carlos Bolsonaro informou à Corte ter guardado 20 mil reais em espécie por ao menos oito anos, apurou o Estadão. O UOL revelou ontem que o clã Bolsonaro comprou 51 imóveis de quase 19 milhões de reais, em valores corrigidos, com dinheiro vivo. Tales Faria

Novas denúncias detalham o funcionamento do suposto esquema de rachadinha em gabinetes legislativos de filhos de Jair Bolsonaro. Segundo um ex-funcionário da família, o sistema de corrupção era operado por Ana Cristina Valle, ex-esposa de Bolsonaro.

Veja a matéria completa no UOL: https://uol.page.link/if7b7 Quase metade do patrimônio em imóveis do presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL) e de seus familiares mais próximos foi construída nas últimas três décadas com uso de dinheiro em espécie, de acordo com levantamento patrimonial realizado pelo UOL. Desde os anos 1990 até os dias atuais, o presidente, irmãos e filhos negociaram 107 imóveis, dos quais pelo menos 51 foram adquiridos total ou parcialmente com uso de dinheiro vivo, segundo declaração dos próprios integrantes do clã. As compras registradas nos cartórios com o modo de pagamento "em moeda corrente nacional", expressão padronizada para repasses em espécie, totalizaram R$ 13,5 milhões. Em valores corrigidos pelo IPCA, este montante equivale, nos dias atuais, a R$ 25,6 milhões.

Reinaldo Azevedo: A "Imobiliária Família Bolsonaro" e o crime

 

17
Fev22

“A verdade e o nazismo”, por Nelson Werneck Sodré

Talis Andrade

 

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Nelson Werneck Sodré (Arquivo/Marizilda Cruppe/29-9-1998)

“Além da brutalidade, o nazismo produz também uma grave alteração semântica: ‘a verdade será a mentira e a mentira consagrada como verdade”, aponta um dos maiores historiadores do Brasil

O artigo que publicamos a seguir foi escrito e publicado por Nelson Werneck Sodré, como introdução ao livro “Vida e Morte da Ditadura – 20 Anos de Autoritarismo no Brasil”. Sodré era um grande amigo do HP. Como apontou Carlos Lopes, nosso diretor de Redação, ao fazer uma introdução a um de seus artigos, “ele foi um dos homens mais ilustres que já nasceram em nosso país. Historiador, crítico literário, foi um dos intelectuais mais ativos e profícuos do Brasil”.

Recentemente, e em bom momento, o site “Opera”, numa grande colaboração ao debate atual sobre o ressurgimento do nazismo, trouxe à tona e publicou essa preciosidade formulada por um dos maiores intelectuais brasileiros.

Nelson Werneck Sodré foi a alma do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) – órgão do Ministério da Educaçãoque congregou, a partir de meados da década de 50, o que havia de melhor na intelectualidade brasileira, nomes como Álvaro Vieira Pinto, Ignácio Rangel, Roland Corbisier, Guerreiro Ramos e ele próprio. Seu ponto de coesão era a formulação de um pensamento nacional, isto é, um pensamento que correspondesse às necessidades do país e que servisse ao desenvolvimento nacional – vale dizer, à superação dos entraves a esse desenvolvimento.

Neste texto, escrito em 1984, Werneck trata um tema que parecia superado, mas que, infelizmente, voltou a ser extremamente atual no Brasil: o fascismo. “O nazismo, financiado pelo Ocidente, isto é, pelo imperialismo, nascera da crise econômica e financeira, mobilizando politicamente o capital, a aristocracia militar e a pequena burguesia em pânico diante da ascensão dos trabalhadores”, apontou o general. “Além da brutalidade, o nazismo produz também uma grave alteração semântica: ‘a verdade será a mentira e a mentira consagrada como verdade”, diz Sodré.

“O nazismo, em qualquer de suas formas – e as hitlerianas, particularmente – espreita a verdade com vigilância ofídica. Para isso, está aparelhado com os múltiplos recursos da técnica – a escuta telefônica, a violação de correspondência, a censura aos meios de divulgação – e a riqueza do aparelho repressivo e policial, absoluto em suas ações, agindo acima das leis e de qualquer respeito pela criatura humana”, prossegue o historiador.

O mundo capitalista passa atualmente por uma profunda crise, que teve o sua plenitude nos grandes centros financeiros em 2008, espalhando-se depois por todo o planeta. É nesse contexto, somado à transição da hegemonia mundial, atualmente em curso, cujos protagonistas são a China e os EUA, que o fascismo ressurge e ameaça novamente a Humanidade. Analisar as suas raízes e as causas que propiciaram o surgimento dessas forças, como fez Nelson Werneck, nos ajuda a compreender alguns fenômenos que estão a ocorrer hoje no mundo e no Brasil. Boa leitura:

S.C.

 

A VERDADE E O NAZISMO

 

por NELSON WERNECK SODRÉ

A partir de 1933, quando o nazismo se instalou na Alemanha, Brecht não cessou de peregrinar, sempre com o avanço nazista em seu encalço: de Berlim a Viena, de Viena a Copenhague, de Copenhague a Helsínqui, de Helsínqui aos Estados Unidos, para uma pausa relativamente longa. Nesta última etapa, nem lhe faltou, para denunciar a expansão nazista, a fúria macartista, com os inquéritos que fizeram tantas personagens válidas deixarem o país. Tratava-se, para ele, de viver e de combater: sua arma seria o teatro. O longo exílio lhe proporcionou experiências inapagáveis. Suas peças dessa época serão naturalmente polêmicas. Elas colocam temas novos, que ele retomará adiante, para aprimorar. Daí a heterogeneidade do que produziu nesse período.

Uma daquelas peças marca bem a época, de um lado, e a etapa do teatro de Brecht, de outro lado. Iniciada em 1931, quando o nazismo era apenas tenebrosa ameaça, e terminada em 1935, com o nazismo na plenitude do poder, Cabeças redondas, cabeças pontudas representará a sátira crua ao nazismo. Não é das melhores peças de Brecht, naturalmente, mas das mais interessantes, como forma de ação política. O nazismo, financiado pelo Ocidente, isto é, pelo imperialismo, nascera da crise econômica e financeira, mobilizando politicamente o capital, a aristocracia militar e a pequena burguesia em pânico diante da ascensão dos trabalhadores. A peça, refletindo a conjuntura, será uma alegoria. É situada no imaginário reino de Jahoo, onde os ricos proprietários, temendo a revolta dos camponeses endividados, apelam para os serviços de um homem providencial, Iberin.

“O nazismo, financiado pelo Ocidente, isto é, pelo imperialismo, nascera da crise econômica e financeira, mobilizando politicamente o capital, a aristocracia militar e a pequena burguesia em pânico diante da ascensão dos trabalhadores”

Trata-se de esconder a realidade da crise e de suas causas materiais, substituindo-a por um mito. O homem providencial sabe que o povo é pouco afeito a abstrações e, para desviá-lo do caminho, é preciso apontar-lhe um inimigo concreto, palpável, próximo, de sua área de conhecimento. Assim, operando como doutrinador, apresenta ao povo um falso antagonismo: entre as pessoas de cabeça redonda e as pessoas de cabeça pontuda, acusando a estas, em propaganda alicerçada na frenética, furiosa e sistemática repetição, de responsáveis pela crise que o reino atravessa. Orienta, canaliza, concentra, pois, nos cabeças pontudas as frustrações, o rancor profundo, o ódio acumulado de uma classe média empobrecida e até de uma classe trabalhadora arrasada pelo desemprego. Assim, essas classes são desviadas da ação reivindicatória.

Brecht mostra como todos, sem distinção de classe, passam a esperar de Iberin a satisfação de tudo: que atenda a locadores e locatários, patrões e empregados, proprietários e assalariados, vendedores e consumidores, que baixe e levante os preços, que emita e acabe com a inflação, que aumente e reduza os tributos. Que, em suma, estabeleça a conciliação onde reina o antagonismo e estabeleça, principalmente, a ordem, isto é, que ninguém se queixe. Claro está que os cabeças pontudas pagarão altíssimo preço por esses milagres todos: são exilados, presos, torturados, privados do trabalho, assassinados. O maior milagre desse reinado de cabeças redondas é de ordem semântica: o nazismo será apelidado de democracia; a espoliação dos que possuem pouco será chamada desenvolvimento; a impostura será conhecida como cultura; a verdade será a mentira e a mentira consagrada como verdade. É a degradação da linguagem.

Essa degradação é denunciada por Brecht no manifesto que dirige aos intelectuais de seu país, em 1934. Com a ascensão nazista, esses intelectuais dividem-se em dois grupos: o primeiro é constituído pelos que são atirados ao exílio – e entre eles está Brecht – como forma de negação do nazismo; a Alemanha perde os seus melhores artistas e cientistas; o segundo é constituído por aqueles que baixam a cabeça e tudo aceitam. Aceitando tudo, para sobreviver, fingem-se de surdos, quando Brecht os interpela com as “Cinco dificuldades para escrever a verdade”. Como a verdade é sempre concreta e, mais do que isso, fundamento das mudanças, ela é perseguida como inexpiável culpa pelo nazismo, que pretende bani-la e se escuda na mentira. Os que ousam escrever ou dizer a verdade são cabeças pontudas: o regime os massacra.

Brecht dá o seu recado, apesar de tudo: aquele que quer combater a mentira e a ignorância deve vencer, no mínimo, cinco obstáculos: é preciso a coragem de proclamar a verdade, quando ela é sufocada e banida; a inteligência para reconhecê-la, quando a escondem sistematicamente; a arte de fazer dela uma arma manejável; a capacidade para escolher os que a podem tornar eficaz; a habilidade para fazê-la inteligível. Tais dificuldades, para serem transpostas, exigem devotamento, abnegação, renúncia. O nazismo, em qualquer de suas formas – e as hitlerianas, particularmente – espreita a verdade com vigilância ofídica. Para isso, está aparelhado com os múltiplos recursos da técnica – a escuta telefônica, a violação de correspondência, a censura aos meios de divulgação – e a riqueza do aparelho repressivo e policial, absoluto em suas ações, agindo acima das leis e de qualquer respeito pela criatura humana.

"Como a verdade é sempre concreta e, mais do que isso, fundamento das mudanças, ela é perseguida como inexpiável culpa pelo nazismo, que pretende bani-la e se escuda na mentira”

O cristianismo deixara à vítima o direito de dizer: “eu sou a verdade”, confundindo-a sempre com a bondade. Brecht explica, objetivamente, que os bons são vencidos não pela bondade mas pela debilidade, conforme já destacou alguém. É preciso – frisa ele – que a verdade seja eficaz. Ela não pode ser sempre e fatalmente associada à derrota. A verdade vencida – nota ele – é débil virtude. Por que não deve ser sempre vinculada à derrota? Porque está nos fatos. Apontar esses fatos, no nível de interesse e de compreensão de cada agrupamento, é uma forma de cultura, sem dúvida. Mas é, também, uma forma de trabalho. A certa altura, Brecht assinala como tão simplesmente mostrar que tudo se transforma – e pode ser transformado, consequentemente – constitui extraordinário encorajamento e esclarecimento para os oprimidos.

E com isso assusta os opressores, porque lhes anuncia o fim que se aproxima. Em fases de ascensão nazista, aqueles que lidam com ideias – e só por isso são suspeitos, como malfeitores – frequentemente buscam enganar a si mesmos, antes de enganar os outros, concentrando seus esforços e simulando que são profundos e heroicos, na valorização do supérfluo, do secundário, do formal. Claro está que as verdades vulgares – dois mais dois são quatro, a chuva cai de cima para baixo, e que tais – são fáceis de dizer e, além disso, fáceis de aceitar, dispensando demonstração. Mas não afetam minimamente o poder opressor, como as questões semânticas, as dúvidas formais, as polêmicas puramente éticas. É preciso – e aqui voltamos a Brecht – escolher as verdades e situá-las no conjunto, isto é, na realidade dada. Escolhê-las e situá-las importa em conferir-lhes eficácia. As verdades ineficazes são inúteis.

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Queima de livros patrocinada pelos nazistas

 

Mas a eficácia está relacionada com a comunicação e a comunicação está relacionada à clareza. Os que se filiam ao timbre aristocrático do conhecimento, os que proclamam que a sua arte ou a sua ciência – aquela destacadamente – deve ser esotérica, porque o conhecimento fácil é vulgar e plebeu, enfileiram-se entre os que voltam as costas à verdade, desprezando sua eficácia. Os formalistas, os pretensos vanguardistas, os que se presumem originais somente porque diferentes, os que se apresentam como portadores do novo apenas pela negação do passado, enfileiram-se entre os que não amam a verdade, ou não têm as qualidades para superar os obstáculos que ela encontra para ser afirmada. A mentira tem disfarces fascinantes, por vezes, mas tem as pernas curtas e deixa logo ver a sua verdadeira face através dos véus fantasiosos com que se enfeita.

O nazismo não é apenas e não pode ser explicado apenas como explosão de barbárie, atraso e violência. É nazista, em essência, todo esforço em manter pela violência aquilo que não tem condições de viver pelo debate e pela aceitação livre. Ele não surge das ideias, mas de condições objetivas. Para manter-se – e para manter as condições objetivas que o geraram e alimentam – precisa do controle das ideias, entretanto. Todos os disfarces o favorecem, por isso, particularmente aqueles que permitem a confusão entre a verdade e a mentira. Esta, como representação do poder mantido pela violência, apresenta-se sempre com uma linguagem afetada, simulando nobreza, elegância, superioridade, sofisticação, quando apenas se caracteriza pela vulgaridade, pela imprecisão e pela generalidade vazia dos chavões e lapalissadas. A linguagem da verdade é dura, seca, precisa, contundente. Ligada ao processo, mais do que aos fatos, mas deixando-os a nu, ela é rica e comunicativa, definida e nítida. No fim de contas, como Brecht dizia, todo homem é responsável pelo inumano que entrava o seu avanço.

É nazista, em essência, todo esforço em manter pela violência aquilo que não tem condições de viver pelo debate e pela aceitação livre”

Nas épocas da treva, em que o nazismo, em euforia, porque tudo pode, supõe que tudo lhe é permitido, afrontando, com desprezo, crenças, convicções, direitos, como se não existissem, é realmente difícil dizer a verdade, esclarecer que não estamos divididos em cabeças redondas e cabeças pontudas, mas em opressores e oprimidos, afortunados e desafortunados, privilegiados e desprotegidos. E que não é bom para uns o que é bom para outros, nem indiferente tudo aquilo que pertence ao homem. Não há propaganda, por colorida, insistente e fantasiosa que seja, capaz de ocultar essa verdade elementar, de que as demais derivam. Os Iberin, com seus mitos e sua condição de homens providenciais, como Hitler e seus seguidores e imitadores, ou aqueles apenas disfarçados de homens comuns, como se apresentam por vezes – quando o nazismo clássico e modelar ficou desmoralizado e é preciso ressuscitá-lo sem camisa e sem fuehrer – os Iberin são meros instrumentos.

Parecem timoneiros da História – e são o seu lixo. Há meio século, Iberin – isto é, Hitler – ascendeu ao poder, em um grande país. Meio século: um instante na História! Nem os seus restos se sabe hoje onde se encontram. Supor que a tenebrosa aventura, numa etapa tão diversa, possa ser reproduzida, sob disfarces estabelecidos, inclusive, pela confusão semântica que busca degradar valores, é perigosa aventura. Está claro que ela, em suas tentativas e reproduções vulgares, causa desastres, crimes, sofrimentos. Há meio século, também, Brecht lançou o seu manifesto sobre a verdade, depois de ter elaborado a alegoria dos homens de cabeça redonda, dos homens de cabeça pontuda. Naquele momento, o manifesto não teve eco. Mas é dele que a cultura, hoje, trata, depois de ter enterrado os que propunham encabrestá-la. Os povos sobrevivem aos desastres, crises, sofrimentos, na medida em que sabem distinguir a verdade, afirmá-la e amá-la, como condição fundamental para o seu avanço e felicidade. A liberdade acabou sempre por enterrar os seus opressores.

Com potencial incalculável, governo oferece Eletrobrás de graça, afirma Roberto D’Araújo

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08
Dez21

Mais uma história de injustiça e perseguição

Talis Andrade

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Como juiz federal, antes de comandar a Lava Jato e destruir a engenharia nacional, trazendo prejuízos bilionários ao Brasil, Sérgio Moro já mostrava sua atuação política e profundamente antipopular ao liderar uma operação judicial que perseguiu implacavamente agricultores familiares e servidores públicos

 

Por Isaías Dalle

 

O sol mal havia dado as caras quando dona Marli ouviu ruídos na porta de sua casa, antes de a campainha tocar. Viaturas da Polícia Federal, vistas pela fresta da janela, deram a entender que aquele 24 de setembro, em 2013, não seria um dia normal de trabalho. A agricultora familiar, que se preparava para mais uma jornada de cuidados com a plantação de arroz e produção de leite, foi obrigada a receber em sua casa federais fortemente armados, que passaram a vasculhar gavetas e armários. Dona Marli sairia de sua casa, uma das residências que compõem o assentamento Pontal do Tigre, em Querência do Norte, Paraná, direto para a prisão. Apesar de os policiais não terem encontrado nada que a incriminasse.

Ela não conseguia entender o que estava acontecendo. E não poderia mesmo. Aquela truculência era a face pública e midiática de uma operação que estava correndo, havia dois anos, sob segredo de justiça. Nem ela nem os demais 10 indiciados naquele dia haviam sido informados sobre as acusações que pesavam contra si: formação de quadrilha e desvio de dinheiro público. Acusações que seriam arquivadas tempos depois por absoluta falta de provas.

O episódio deixou marcas difíceis de apagar. Além de dona Marli, outras oito pessoas, entre agricultores familiares e funcionários da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), todas trabalhadoras, foram vítimas de prisões coercitivas determinadas pelo então juiz federal Sérgio Moro. E a merenda das crianças de escolas públicas do estado do Paraná, assim como as refeições que eram servidas em entidades como a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) e creches foram interrompidas durante parte da investigação. E nunca mais foram as mesmas em quantidade e variedade. Até 2012, a Conab e a agricultura familiar forneciam alimentos a 220 cidades no Paraná. Hoje, o número caiu para 15 municípios.

O assentamento em que vive e trabalha dona Marli e sua família, assim como outros daquela região no noroeste do Paraná, que serviam alimentos orgânicos para programas sociais, ficaram impedidos de continuar fornecendo sua produção. Depois do fim das investigações, em 2019, o Brasil já se encontrava sob o governo Bolsonaro, e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) foi seriamente enfraquecido.

Era por intermédio do PAA, criado em 2003 pelo governo Lula, que prefeituras e governos estaduais passaram a adquirir pelo menos 30% da comida que serviam em seus programas diretamente da agricultura familiar. Livre de agrotóxicos e orgânica. Por sua vez, com parte de sua produção tendo destino certo, mais apoio técnico e facilidade de acesso a financiamento por intermédio do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), as famílias do campo, organizadas em cooperativas, conseguiam plantar, colher e comercializar com previsibilidade e escala econômicas, experimentando melhora de vida.

O gênio do mal por trás de toda essa injustiça foi Sérgio Moro. Ele havia dado a ordem para as prisões coercitivas e batizou o inquérito de Operação Agro Fantasma. Hoje candidato a Presidência da República, Moro costuma dizer que só prende gente poderosa e sempre com provas. Duas mentiras. Sobre a existência de provas contundentes, já se sabe a falsidade de seus métodos no episódio da prisão e condenação ilegal do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

No caso dos agricultores familiares do Paraná também há fortes evidências de perseguição e prisão abusiva. Foi a própria pupila de Sérgio Moro, a juíza Gabriela Hardt, quem proferiu sentença absolvendo os acusados, por absoluta falta de irregularidades. Substituta de Moro, que deixou a Operação Agrofantasma para assumir outra ficção jurídica, a Operação Lava Jato, Hardt foi obrigada a reconhecer que o inquérito conduzido pelo juiz federal era furado e cheio de inconsistências.

No caso da Operação Agrofantasma, os perseguidos são todos trabalhadores. Dona Marli, junto com o marido Jaime, costumava obter renda familiar de R$ 6 mil reais por mês em 2013. Sua lida era dura, como continua sendo. Uma de suas tarefas, que desempenha com muito gosto, é de processar o leite produzido graças a um pequeno rebanho livre de alimentos com agrotóxico, e dele fazer a alegria de muitas crianças, com bebidas achocolatadas e iogurtes.

O inquérito e as prisões coercitivas se basearam na suposição de que as cooperativas de agricultura familiar da região, cadastradas no PAA, não entregavam os produtos previstos e, em suposto conluio com funcionários da Conab, que cuidava da distribuição, usavam o dinheiro que sobrava para benefício próprio. Não há, nas peças acusatórias, menção a somas encontradas em contas bancárias ou em espécie. Uma das linhas de apuração, presente em trechos de interrogatórios transcritos pelo Ministério Público Federal, e acolhidos pelo então juiz Sérgio Moro, é de que um determinado produto previsto para entrega era substituído por outros.

“Essa substituição acontecia. Muitas vezes, em lugar de alface era entregue couve, por exemplo”, explica o advogado Diorlei dos Santos, contratado pelas cooperativas para a defesa dos acusados. “A colheita de um produto apresentava problema, por causa de questões climáticas, e as cooperativas entregavam outro semelhante, na mesma quantidade e valor, para evitar desabastecimento ou que os produtos colhidos estragassem”, diz Santos, que hoje é procurador no Paraná.

Nos documentos do inquérito, há outras “evidências” colhidas pelos investigadores. Numa das passagens, os inquiridores acusam uma Apae e associações de pais e mestres de escolas da região de não possuírem balanças para checagem da quantidade de alimentos. Noutra, uma funcionária de escola, encarregada de receber os produtos, diz não lembrar qual a quantidade exata de ovos recebidos dois anos antes da audiência em que foi interrogada. Segundo o juiz Sérgio Moro e seus auxiliares, estariam nesses detalhes as provas de atuação fraudulenta da “quadrilha”.

Dona Marli se recorda dos tempos em que o PAA passou a fazer parte da vida dela e de outros agricultores. “Eu sempre lembro quando no primeiro programa, e isso eu fico toda arrepiada quando eu falo, lá em 2004, e aí a gente já empacotava o leite e fazia o iogurtezinho de forma artesanal… A gente não tinha maquinário ainda, e eu era empacotadora de leite. E eu fui levar minha menina no prézinho, ela estava com 3 aninhos, e eu cheguei lá, e as crianças, que saem de casa às 5 da manhã, o pessoal que sai das ilhas, desceram do ônibus correndo e ficaram todas enfileiradinhas perto do panelão. Eu fui lá ver. Era o chocolate com leite”, conta ela, em entrevista à Focus Brasil. “Era o leite que a gente fornecia pra escola”, diz Marli, revivendo a grata surpresa que sentiu naquele instante. “Imagina, uma criança com 3 anos de idade, que sai de uma ilha, e pega o barco, vem pra cidade, e chega às 7 e meia na escola e tem um copo de leite pra tomar. Então tu imagina a maravilha que é isso. Ali eu pensei: a gente vai fazer isso chegar em todas as escolas da região”.

Hoje, 17 anos depois daquela primeira entrega, a Cooperativa de Comercialização e Reforma Agrária Ltda. (Coana), que congrega os agricultores do Assentamento Pontal do Tigre, tem estrutura de agroindústria e produz, entre outros alimentos, o arroz e o leite da marca própria Campo Vivo. Faz também ginseng exportado para países da Europa.

A filha de dona Marli, Luiza, tem 20 anos, e trabalha lá. Ela pensa em cursar Psicologia. A irmã mais velha, Luana, 24 anos, é advogada formada na Universidade Federal do Paraná, com o apoio dos programas educacionais do MST. O mais velho, Luan, 31 anos, é engenheiro agrônomo. A família é outra faceta de um caso bem-sucedido de reforma agrária. Todos permanecem no campo, inclusive os jovens, em virtude das oportunidades de vida.

Essa saga familiar ligada à reforma agrária teve início em 1985, quando Marli, ainda adolescente, chegou pela primeira vez a um acampamento do MST, também no Paraná. “Foram mais de 10 anos embaixo de barraca de lona”, recorda. “Uma luta sofrida que nós temos, passando fome, passando miséria. A gente passou coisas que, quando eu começo a contar, nem acredito. Tudo o que a gente faz, e o que a gente fez, é pensando na melhora de vida. E não só pra gente, mas uma melhora de vida pra sociedade. Aí chega um bando de policial, com uma acusação, procurando carro de R$ 80 mil, dinheiro, escritura de terra... E ainda chega no final e diz: ‘pra senhora tem uma preventiva’. Fui presa porque disseram que eu era uma ameaça à ordem pública”, relata, com amargura.

Foram 39 dias em que Marli ficou presa, até que a defesa conseguisse a soltura. No segundo dia, na carceragem em Maringá, eclodiu uma rebelião. Ela e outras quatro presas passaram a rebelião refugiadas em um espaço de dois metros quadrados, sem janelas.

Valmor Bordin era gerente de operações da Conab do Paraná quando foi preso coercitivamente pela Operação Agrofantasma. Em seis dias de detenção, o vegetariano ingeriu uma comida na cadeia que o levou ao hospital e a uma cirurgia no intestino, por causa de infecção. Ao todo, enfrentou 13 acusações, incluindo inquéritos administrativos abertos pela Conab. Foi inocentado em todas, após anos de batalha. Trabalhava há mais de três décadas na empresa estatal. Pelo salário em vigor na Conab em 2013, um gerente de área recebia R$ 9 mil.

Numa das peças de acusação, a Procuradoria da República no Paraná interpreta frases de uma testemunha como evidência de crime. Acolhida por Moro, a acusação denota o caráter político da investigação: “Valmor tem muito poder político dentro da Conab e há uns 7 anos exerce a Gerência de Operações no Paraná. Valmor seleciona todos os servidores que podem ir a campo fiscalizar os projetos do PAA pessoalmente (...) e que não sabe por que motivo Valmor faz esse tipo de coisa, só sabe que Valmor é do PT e tem força política”.

A peça toda é repleta de erros gramaticais e não traz uma única informação sobre valores em dinheiro, seja em espécie ou depósitos bancários, que justifique a acusação de desvio de dinheiro imputada a Valmor e ao restante da “quadrilha”. Mesmo assim, e ainda após sua internação hospitalar, um novo pedido de prisão foi expedido. Só não foi a cabo devido aos reais problemas de saúde do então gerente da Conab. Valmor foi reintegrado à empresa, mas perdeu o cargo e a gratificação correspondente.

“Totalmente desnecessário, descabido”, diz o servidor sobre as prisões coercitivas e o processo todo. “Mantive contato com a Polícia Federal e o Ministério Público, insisti para ser ouvido, nunca concordaram em colher meu depoimento antes da prisão”. Valmor manteve rápido diálogo com a Focus, por meio de um aplicativo de mensagens que considera seguro, e não quis gravar entrevista. Ele fez questão de destacar que a Controladoria Geral da União (CGU) e o Tribunal de Contas da União (TCU) também concluíram que não houve irregularidades nos contratos firmados entre a Conab, as cooperativas e as entidades beneficentes e escolas que consumiam os alimentos produzidos.

“A maioria das testemunhas de acusação arroladas foi de agentes da Polícia Federal, que já tinham convicção formada”, destaca o advogado Diorlei dos Santos. “Esse é o tipo de inquérito que é altamente injusto com os possíveis réus, porque se é um inquérito policial em que se exerce o contraditório, se os investigados são ouvidos, não havia como virar ação penal. Por isso, quando você quer usar o sistema para perseguir alguém, você pode usar o inquérito em sigilo. O acusado não pode se defender”, critica.

Para Diorlei, que compartilha a mesma opinião de Valmor, Moro e seus auxiliares na operação miravam, no fundo, o bem-sucedido PAA criado pelo governo Lula. O caso revela, uma vez mais, o hoje candidato do Podemos como manipulador das leis e dono de uma índole persecutória.

Não é Havana, nem Caracas são as ruas de São Paulo/Brasil.
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01
Dez21

Divisão do trabalho, propriedade e escravidão

Talis Andrade

 

Por Gilvander Moreira

Como acontecem as relações sociais em uma sociedade capitalista? A ideologia dominante diz que no capitalismo há liberdade. Qual? Para quem? Na realidade, no capitalismo, a tríade “divisão do trabalho, propriedade privada capitalista e escravidão” tecem relações sociais escravocratas que causam superexploração da dignidade humana e de toda a natureza. Vejamos! “A linguagem é tão antiga quanto a consciência – a linguagem é a consciência real, prática, que existe para as outras pessoas e que, portanto, também existe para mim mesmo; e a linguagem nasce, tal como a consciência, do carecimento, da necessidade de intercâmbio com outras pessoas” (MARX; ENGELS, 2007, p. 34).

Iniciada na divisão do trabalho na família, a divisão do trabalho transformou o mundo da produção e o mundo das relações sociais. Com a divisão do trabalho, dividem-se as famílias na sociedade ficando opostas umas às outras, estabelecendo a distribuição desigual do trabalho e do seu produto. Assim, se cria, na família, de forma embrionária, a noção de propriedade, em que mulher e filhos passam a ser coisas/escravos do homem. A noção de propriedade diz respeito ao poder de dispor da força de trabalho alheia. Assim, divisão do trabalho, propriedade e escravidão constituem a tríade que sustenta a sociedade capitalista. Leia mais in Jornalistas Livres

23
Nov21

O touro dourado e a economia do boi

Talis Andrade

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A história do capitalismo mostra que moeda nacional forte é desdobramento de economia doméstica forte, não o contrário

 

por Leda Paulani /A Terra É Redonda

No início dos anos 1990, com os ventos neoliberais soprando fortemente por aqui e a alta inflação brasileira quase virando hiperinflação, o governo Fernando Collor/Itamar Franco, sob o comando econômico de Fernando Henrique Cardoso (FHC), resolveu que, junto com a transformação do Estado em Judas a ser malhado não só no sábado de aleluia, seria bom pegar carona na estabilização monetária que o Plano Real prometia e transformar o Brasil em “potência financeira emergente”. FHC, tornado presidente, foi o padroeiro da proposta.

Três décadas depois, o touro de isopor (mau gosto estético à parte) postado à frente da B3, no desolador centro de São Paulo, em meio à economia catatônica, à desvalorização descontrolada da moeda nacional, ao ressurgimento do fantasma inflacionário e a mais de 100 milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar, coloca-se como o símbolo irretocável do fracasso daquele projeto. O artista que assina a obra atirou no que viu e acertou no que não viu.

São camadas de contradições que se escoram no corpo do animal, que buscou reproduzir o ícone plantado em Wall Street, a Meca do capital financeiro. O ouro que o faz brilhar, fulgindo poder e vigor, é só o véu que encobre o frágil interior de isopor. Os bilhões negociados dia-a-dia nas bolsas do velho prédio da rua 15 de Novembro contrastam com o cenário urbano degradado e com as intervenções que rapidamente apareceram, estampando no objeto: “Fome”, “taxar os ricos”… e não devem parar por aí.

A história do desenvolvimento capitalista mostra que uma moeda nacional forte é o desdobramento necessário de uma economia doméstica forte. No século XIX, a Inglaterra impôs a libra (e o padrão-ouro) a todo o mundo capitalista pela fo               rça e dinamismo tecnológico de sua economia. Ao final da Segunda Guerra, na conferência de Bretton Woods, os Estados Unidos impuseram o dólar como padrão monetário internacional graças à pujança de sua gigante economia, beneficiada pela própria guerra.

Os planejadores brasileiros dos anos 1990 resolveram inverter a equação e parir uma economia forte de uma moeda “forte”. Para o regozijo de seus patrocinadores, o Real nasceu valendo mais que o dólar, mais exatamente US$ 1,149. Hoje vale US$ 0,178 e a economia forte ficou na promessa. A “potência financeira emergente” e o protagonismo do capital financeiro produziram uma moeda forte de fancaria, que arruinou a economia brasileira e botou o país nas piores posições na divisão internacional do trabalho.

Hoje somos pagadores de renda de todos os tipos e produtores de bens da indústria extrativa, que detonam nossas riquezas naturais, e de bens do agronegócio, de baixo valor agregado e alto valor de destruição ambiental. O boi é um dos protagonistas dessa decadência sem apogeu e pode se associar à moeda forte como símbolo do que nos tornamos. Quase um século depois, voltamos à situação completamente subalterna pré-1930, e isto em plena era da evolução irrefreável da indústria 4.0, que se desenvolve a uma velocidade estonteante.

Os governos democráticos e populares que passaram por aqui neste meio tempo não foram determinados o suficiente para quebrar o círculo absolutamente vicioso da poupança externa no qual nos meteu a economia da moeda forte. Tentaram e conseguiram, numa velocidade surpreendente, melhorar a distribuição da renda. Não mexeram, porém, nos mecanismos mais profundos que reproduzem uma distribuição ainda mais desigual de riqueza e continuaram a desenvolver socialmente o país sob os mesmos marcos institucionais do poder, do benefício e do protagonismo do capital financeiro.

Nos primeiros anos da década de 2010, apesar do relativo sucesso inicial em enfrentar a crise financeira internacional de 2008, suas consequências começaram a deitar por terra as conquistas sociais obtidas. Em plena ascensão da extrema-direita no mundo, ao bulício econômico seguiu-se a inquietação política e acabou no golpe de 2016, numa dose ainda mais envenenada da política da moeda forte e do boi e, finalmente, no bolsonarismo que nos assola.

Por razões até agora um tanto obscuras, mas que fortunas em paraísos fiscais talvez ajudem a explicar, o Banco Central, numa reviravolta espetacular, executou, a partir de maio de 2020, uma manobra estranha à cartilha que até então pautava a condução da política monetária e derrubou as taxas de juros a níveis incompatíveis com a inflação esperada e o risco-país. Mais que isso, manteve tal postura, mesmo com os arranques de preços de alimentos, energia e combustíveis, que foram ficando cada vez mais evidentes. A desvalorização superlativa do câmbio foi o resultado inexorável. O prolongado soluço terminou em maio deste ano e a política monetária vai voltando a passos rápidos ao seu curso de sempre.

No contexto ora vivenciado, com a economia prostrada pela crise – que já dura sete anos –, agravada pela pandemia, os eventuais benefícios dessa “correção” inusitada da taxa de câmbio foram completamente superados por seus desdobramentos no plano da inflação, que é maior, lembre-se, no grupo dos alimentos, atingindo com força total as famílias que têm aí o gasto maior de sua parca renda. A situação vem gerando miséria e desespero num país com mais de 30 milhões de desocupados (desempregados, desalentados e subutilizados, numa população economicamente ativa de cerca de 100 milhões).

As famílias mais pobres (sustentadas em 2020 pelo auxílio emergencial) vão perdendo a condição mínima de vida, deixando de ter um teto, pois não conseguem mais pagar o aluguel e saem povoando as grandes cidades brasileiras com suas barracas, convertendo muitas das vias públicas em espaços que não ficam nada a dever a campos de refugiados… refugiados que são da guerra que lhes move o Estado teocrático, dirigido por fundamentalistas de mercado.

Enquanto isso, a economia do boi se beneficia agora não só da alta mundial dos preços das commodities, mas também do preço inflacionado da verdadeira moeda forte, e sem pagar um centavo a mais de imposto por isso. A economia do boi alimenta parte expressiva do mundo enquanto produz internamente desesperança, penúria e fome.

A simples volta da política monetária ao seu curso usual desmanchará os malfeitos? Difícil dizer que sim. Combinada com a manutenção do teto de gastos, a elevação abrupta da taxa de juros (tudo indica que vai aumentar muito de velocidade até medos do próximo ano) desestimulará ainda mais o investimento privado e, com os investimentos públicos inviabilizados, afundará de vez a economia em seu estado de letargia e junto com ela o número de empregos.

Ao mesmo tempo a manutenção da instabilidade política recorrentemente produzida pelo próprio governo, sobretudo em ano eleitoral, tornará ínfimos os ganhos em termos de redução da taxa de câmbio e, portanto, do comportamento da inflação – que evidentemente não é inflação de demanda, mas inflação derivada de choques de preços, com destaque para o preço da divisa, resultante da genocida política econômica de Guedes-Bolsonaro.

Tudo isso indica que a política da moeda forte, que resultou na política do boi, erigiu o touro dourado da rua 15 de Novembro: reluzente por fora e oco por dentro. Reluzente porque o ouro dos bilhões negociados dia-a-dia no mercado financeiro continua a dar as cartas e a produzir bilionários rentistas (vide as descaradas conversas de nossas autoridades monetárias, em tempos de BC “independente”, com banqueiros e outros personagens macabros do mundo financeiro).

Oco por dentro, porque, graças à moeda “forte”, que se manteve indevidamente apreciada por longuíssimos períodos, essa política atuou como praga a devastar o tecido produtivo do país. Agora, que nem sequer na aparência reluz mais, ficamos mesmo só com a economia do boi, e, mesmo assim, até que chineses e europeus percam de vez a paciência com a ruína ambiental que produz.

Quem paga o preço do contínuo desacerto nacional – preço, diga-se, cada vez mais elevado – é o povo brasileiro… mas quem se importa? Constituído em sua maioria por pobres e negros, sempre foi visto como fator de produção descartável, com cuja reprodução os mandatários do poder e da acumulação capitalista nunca tiveram que se preocupar. Sem elogio aqui àquele ritual bárbaro, trata-se de uma espécie de farra do boi às avessas, em que a população é perseguida e massacrada pelas consequências de uma política que, pretendendo produzir economia forte por meio de moeda forte, produziu mesmo foi um boi cada vez mais feroz.

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