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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

14
Nov23

De Olho nos Ruralistas detalha em novo dossiê a face agrária de Arthur Lira e seu clã em Alagoas - III

Talis Andrade

 

Licitações beneficiam negócios rurais do clã Pereira. (Cartografia: Eduardo Carlini/De Olho nos Ruralistas)

 

CONFLITOS COM INDÍGENAS E CAMPONESES: O LADO OCULTO DOS CLÃS LIRA E PEREIRA. NA CODEVASF, PRIMO DE LIRA GARANTE PALANQUE CONTRA OS CALHEIROS

A relação entre Codevasf e Arthur Lira vem de antes da entrada do primo Joãozinho na estatal. A companhia foi o veículo para o “tratoraço”, o braço agrário do orçamento secreto, que distribuiu R$ 3 bilhões em equipamentos superfaturados para os aliados do governo Bolsonaro.

Entre os beneficiários estava o município de Junqueiro, onde o pai de Joãozinho, conhecido pelo apelido “Prefeitão”, comandou por quatro mandatos. Seu sucessor foi o próprio filho, Fernando Pereira (PP), hoje deputado estadual. Joãozinho entrou na Codevasf um mês após estourar o escândalo.

Arthur e Joãozinho Pereira comemoram a entrega de tratores do orçamento secreto ao lado de Fernando Collor. (Foto: Facebook/Joãozinho Pereira)

 

Com a eleição de Lula, em 2022, Lira traçou uma nova estratégia para manter o fluxo de emendas parlamentares para sua base eleitoral. Enquanto os tratores e obras da Codevasf continuavam sendo entregues por Joãozinho, o presidente da Câmara fortaleceu as ações junto ao Consórcio Intermunicipal do Agreste Alagoano (Conagreste), comandado por dois aliados regionais — um deles, seu primo Teófilo Pereira.

“Todo o desenvolvimento foi feito na Câmara para que os consórcios recebam as emendas diretamente, sem passar mais pelos governos dos estados”, explicou o próprio Arthur Lira durante um evento de entrega de tratores e equipamentos agrícolas para prefeituras em 28 de junho, em Arapiraca (AL).

Por trás dos bois e tratores está a disputa política pelo controle de Alagoas, cujo governo está hoje em mãos do grupo político do senador Renan Calheiros (MDB), principal rival de Lira no estado.

Em 2022, o Conagreste criou um serviço consorciado de inspeção sanitária municipal (SIM) que prescinde da anuência da Agência de Defesa e Inspeção Agropecuária de Alagoas (Adeal). A operação beneficia os próprios negócios da família: o matadouro municipal de Campo Alegre, onde o frigorífico Dom Grill abate seus bois, é um dos estabelecimentos fiscalizados pelo SIM Conagreste.

 

TRUCULENTO, PRIMO DE LIRA COMANDA O INCRA E PROJETA A PREFEITURA DE MARAGOGI

Wilson César de Lira Santos é filho de Eliete de Lira Santos, uma das irmãs mais próximas de Benedito de Lira. Foi do tio — e não de Arthur — a indicação para que ele chefiasse o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em Alagoas. A esposa de César, Livia Costa Saleme, foi secretária parlamentar de Biu no Senado.

César Lira prestigia reeleição de Arthur na Câmara ao lado do primo Sérgio, prefeito de Maragogi. (Foto: Instagram/César Lira)

 

César Lira assumiu o órgão, em 2017, no governo Michel Temer. Seis anos depois, ele continua no cargo, mesmo enfrentando protestos de movimentos sociais e repetidas acusações de agressão.

De Olho nos Ruralistas ouviu diversos relatos de intimidação a camponeses protagonizados pelo primo de Arthur Lira. Inclusive com violência física. Em 10 de agosto de 2020, o camponês Gilvan Emidio da Silva, ex-presidente do Assentamento Prazeres, de Flexeiras (AL), participava de uma reunião, quando foi interrompido com empurrões e tapas por César Lira.

Enquanto se mantém no Incra, ele prepara terreno para disputar as eleições de 2024, substituindo outro primo. Em seu segundo mandato em Maragogi, Sérgio Lira (PP) tenta fazer de César seu sucessor na prefeitura de um dos principais destinos turísticos do litoral alagoano. O superintendente tem dado atenção especial ao município: em  sete anos, as ações do órgão cresceram 980% e mais de 500 títulos de terra foram distribuídos.

Ao mesmo tempo em que enfraquece os movimentos de luta pela terra, César reproduz outra prática comum da família: a entrega de serviços públicos em troca de apoio político.

 

ARTHUR LIRA APOSTA NO FILHO CAÇULA PARA CONTINUAÇÃO DA DINASTIA

Dentro da lógica coronelista, Arthur Lira prepara os filhos para a pecuária e a política, assim como fez seu pai. Arthurzinho, o mais velho, passa boa parte de seu tempo em Brasília, onde negocia verbas de publicidade através de sua agência, a Omnia360º.

Frigorífico Dom Grill promove leilões e vaquejadas dos clãs Lira e Pereira. (Foto: Divulgação/Dom Grill)

 

O caçula Álvaro, ou Alvinho, aparece quase sempre no pódio dos torneios realizados no Parque Arthur Filho. Apaixonado por cavalos e, como o pai, puxador de vaquejadas, ele acompanha de perto os negócios da família, dividindo o tempo entre as visitas ao pai e o dia a dia nas fazendas em Alagoas. Os dois jovens são fruto do relacionamento de Lira com Julyenne Lins e romperam relações com a mãe.

É em Alvinho que Arthur deposita as esperanças de perpetuar o clã político. Prestes a completar a maioridade, ele deve debutar na política ainda em 2024: ele quer disputar uma vaga de vereador em Maceió.

Para seguir os passos do pai, Alvinho conta com o apoio incondicional do clã Pereira. Nas redes sociais, ele exibe sua habilidade em cima do cavalo, durante provas de vaquejada disputadas no Parque Evânio Higino, em Campo Alegre. Ao fundo, em destaque, um balão exibe a logo do frigorífico Dom Grill — aquele dos contratos com prefeituras.

Seja dentro ou fora da vaquejada, a família Pereira patrocina Arthur Lira.

Dossiê revela a dimensão do império agropecuário dos clãs Lira e Pereira.

 

| Alceu Luís Castilho é diretor de redação do De Olho nos Ruralistas. |

| Luís Indriunas é roteirista e editor-assistente do observatório. |

Imagem principal (De Olho nos Ruralistas): dossiê revela faceta agrária de Arthur Lira e sua família em Alagoas.

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01
Out23

II - No campo brasileiro, a agricultura da morte

Talis Andrade

 

Camponeses mortos pela ditadura de 64

O Atlas do Agronegócio (2018) apresenta a posição de 5º lugar do Brasil no ranking de países com desigualdade ao acesso à terra, com 45% de sua área produtiva concentrada em propriedades com área superior a mil hectares, num total de apenas 0.91% de imóveis rurais. Com base no Mapa do Atlas da Agropecuária Brasileira/ImaFlora/GeoLab, a maior concentração de grandes propriedades (mais de 15 módulos fiscais) no total de terras privadas de cada Estado são em ordem decrescente: Mato Grosso do Sul, Goiás, Espírito Santo, Bahia, Rio Grande do Sul e Minas Gerais (ATLAS do agronegócio, 2018).

Os 66 mil imóveis declarados como “grande propriedade improdutiva”, em 2010, totalizavam 175,9 milhões de hectares (= 1,75 milhões de km²), representando 1/5 do território do país (ATLAS DO AGRONEGÓCIO, 2018), dados esses parecidos ao cálculo feito com base no Censo Agropecuário 2017 sobre a existência aproximada de 160 milhões de hectares de solo agrícola subutilizado ou sem uso e a necessidade de definir melhor o critério de produtividade, diante do debate sobre o limite entre terra produtiva/improdutiva e a pressão pela reforma agrária (DOWBOR, 2022).

A questão da subutilização de terras ganha reforço com a notícia de 24 de agosto de 2023 sobre a captação de investimentos nos primeiros anos de possível parceria entre o Banco do Brasil e Banco Mundial para o maior programa de produção sustentável de alimentos do planeta, desenvolvido pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA), prevendo intensificar a produção livre de desmatamento, podendo dobrar a sua área de produção pela conversão de até 40 milhões de hectares de pastagens de baixa produtividade e com aptidão para a agricultura, sem avançar no território preservado do país, com sequestro de carbono já nos primeiros anos. (https://revistarpanews.com.br/ministro-favaro-e-banco-do-brasil-alinham-estrategia-para-investimento-em-recursos-verdes).

O processo da ocupação e do uso da terra no Brasil está mais acelerado e vem progressivamente se integrando às cadeias globais de valor, muitas vezes em associação ao capital transnacional, visto que oito grandes corporações exploram o mercado de terras para produção de commodities e para especulação financeira. O avanço na expansão da fronteira agrícola se dá especialmente com o plantio da monocultura da soja no Cerrado, o bioma com os maiores índices de desmatamento no Brasil com estimativa de que 52% do bioma tenha sido degradado ou sofrido perda irreversível, seguido pela Caatinga. A concentração de terras em grandes propriedades é característica da região Centro-Oeste (ATLAS do agronegócio, 2018).7

A grilagem de terras de elevada quantidade de propriedades rurais sobrepostas a numerosas terras indígenas homologadas ou em fase de homologação pela FUNAI (Relatório De Olho nos Ruralistas) indica haver conexões políticas e corporativas, que chegam a personalidades centrais do capitalismo brasileiro e global a demonstrar que a globalização econômica, ao concentrar terras e capital, exclui a população e lhe nega os direitos humanos (CASTILHO, 2023).

A agricultura, a produção de alimentos e a fome avocam, necessariamente, a questão fundiária, e que, segundo Josué de Castro, nenhum fator é mais negativo para a situação de abastecimento alimentar do país do que a sua estrutura agrária feudal,com um regime inadequado de propriedade, com relações de trabalho socialmente superadas e com a não utilização da riqueza potencial dos solos (ANDRADE, 2003).

“A reforma agrária sempre é uma proposta para uma questão agrária declarada”, segundo Guilherme Costa Delgado (DELGADO, 2023). Após a Constituição Federal, com a política enveredando pela vertente neoliberal, foi sendo enfraquecido o controle da “função social” da terra, entre os anos 1999 e 2010 sob a ostensiva grilagem de terras públicas (DELGADO, 2012). A pauta da reforma agrária, ultrapassando os interesses da agricultura, pode ser revigorada com a proposta de que a terra deve cumprir uma função socioambiental, diante dos custos sociais da degradação do trabalho e do meio ambiente, da expansão agrícola, em face das mudanças climáticas, do cumprimento dos compromissos em tratados e convenções internacionais e atender a regra antidesmatamento da União Europeia e pela situação do Brasil como 6º país emissor de CO2 (DELGADO, 2010) e de destruição dos ecossistemas e apropriação crescente dos recursos naturais promovidas por setores econômicos e políticos dominantes, sobrando aos sem-terra apenas terras marginais (LEROY, 2001) e, por fim, aplicando os princípios constitucionais da atividade econômica, da política agrícola e fundiária e da reforma agrária.

Fábio Konder Comparato afirma que o acesso à terra é a base para outros direitos (COMPARATO, 2001). Milton Santos também defendia a reforma agrária no regime capitalista para solução da questão fundiária (SANTOS, 2007, pp. 53-54). Miloon Kothari, relator especial da ONU para moradia adequada, relaciona as dificuldades para concretizar esse direito com o fato de se considerar a moradia, a terra e a propriedade como produtos de comércio, e não como direitos humanos. A falta desse reconhecimento legal do direito à terra contribui para a fome e a insegurança alimentar, ou a pobreza extrema, pois a terra constitui o principal ativo que possibilita aos pobres das zonas rurais assegurar a subsistência (KOTHARI, ONU, 2008).

No que se refere à agricultura familiar, ela passou a integrar a pauta governamental a partir da década de 1990, com a Lei nº 11.326, de 2006 com alterações em 2011 (Lei nº 12.512), estabelecendo as diretrizes básicas para a formulação da Política Nacional de Agricultura Familiar e Empreendimentos Rurais (ATLAS, 2020). Essa agricultura possui um papel importante para a segurança alimentar nacional, por produzir grande parte do alimento destinado ao consumo humano no Brasil e, segundo a FAO, colaborar no combate à insegurança alimentar. Dados dos Censos Agropecuários 2006 e 2017 indicam que esse tipo de agricultura reúne o maior número de unidades produtivas no País e contribui com parcela significativa de empregos associados às atividades agropecuárias, artesanais e agroindustriais a ele vinculadas, no campo ou na cidade (ATLAS, 2020).8

A agricultura familiar representa uma importante estratégia para alcançar o desenvolvimento sustentável. A sustentabilidade e a segurança alimentar são conceitos multidimensionais, envolvendo dimensões socioeconômicas, culturais, políticas e ambientais levando ao desenvolvimento sustentável, que propõe o crescimento econômico e social baseado na utilização consciente dos recursos naturais, com preferência para o uso de recursos renováveis, e na valorização da cultura. Além do acesso ao alimento, a segurança alimentar abrange a sustentabilidade intersetorial (BENITES & TRENTINI, 2019).

A agricultura familiar é menos sensível às variações de preços do comércio internacional e permite a conservação dinâmica das sementes e matrizes rústicas (“crioulas”), que preserva o solo e os recursos hídricos, entre outros, possibilita garantir mais a segurança alimentar de todos e contribui para manter a riqueza do território (LEROY, 2001).

Para impulsionar a agricultura familiar na produção de alimentos, o Plano SAFRA 2023/2024 oferece aos produtores que investirem em alimentos básicos como arroz, feijão, mandioca, tomate, leite e ovos, entre outros, redução de 5% para 4% nas taxas de juros sobre os recursos que contratarem (AGÊNCIA BRASIL). Constitui investimento para a base da sociedade, que são os verdadeiros produtores, sendo a agricultura familiar um fator multiplicador (DOWBOR, vídeo Reels).9 Estes recursos para a agricultura familiar representam 21% dos recursos destinados para o agronegócio, um aumento significativo em comparação com os 9,7% de 2016. Existe necessidade, porém, de diminuir esta diferença no sentido de promover mais a agricultura familiar.

O agronegócio surgiu e seguiu em sentido contrário à política de desenvolvimento proposta pelo economista Celso Furtado nos anos 1960, cujas ideias continuam tendo seguidores. Entre estes, Rubens Sawaya entende que o país subdesenvolvido não tem o controle sobre os nódulos de bloqueio da cadeia de valor que permita a criação do fluxo dinâmico, como no caso da produção de soja, por estar subordinado aos nódulos tecnológicos sob domínio transnacional na produção de máquinas, equipamentos e insumos, e na comercialização dos produtos nos mercados mundiais (SAWAYA, 2020).

A análise de Furtado é atualmente defendida também em nível internacional por grupos, como nas propostas decoloniais10de Walden Bello, para serem adotadas ações na direção de uma desglobalização, não como retirada da comunidade internacional mas para “reorientar as economias da ênfase na produção para exportação para a produção para o mercado local”, por entender que “uma maior integração global por meio do comércio aumentou muito a desigualdade dentro dos países e, excluindo o caso excepcional da China, aumentou a desigualdade entre a população global de famílias e indivíduos”(BELLO, 2020).11

É essencial criar linhas de crédito, fortalecimento das pesquisas e políticas públicas para promover a agricultura familiar, a agricultura orgânica, a transição para a agroecologia, e outras formas de agricultura sustentável, buscando zerar a fome com uma política de abastecimento de alimentos oriundos de uma agricultura genuína, saudável e respeitosa da biosfera e integrada com a necessária logística de distribuição.

Valorizar uma produção agrícola direcionada para um sistema de alimentos que respeite a cultura local, livre da dependência dos agrotóxicos e dos interesses dos tradings do comércio internacional, tendo sua distribuição e seu consumo no espaço real e físico, dando relevância para as pessoas em seu contexto social.

Em linhas gerais, é necessário criar um novo paradigma para a agricultura priorizando a produção para o mercado local garantindo a soberania alimentar do país.


Referências:

AGÊNCIA BRASIL. Agricultura familiar terá juros mais baixos para produção de alimentos: Crédito rural terá R$ 71,6 bilhões no âmbito do Pronaf. 28/06/ 2023.

AGÊNCIA IBGE Notícias. Editoria: Estatísticas Econômicas: CABRAL, Umberlândia. Contas Econômicas Ambientais: “Em 2020, para cada R$ 1,00 gerado pela economia foram consumidos 6,2 litros de água”. 2/6/2023.

ANDRADE, Manuel Corrêa de, et al. Josué de Castro e o Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003.

ATLAS do Espaço Rural Brasileiro. Rio de Janeiro: IBGE, 2020. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/geociencias/atlas/tematicos/16362-atlas-do-espacorural-brasileiro.html?=&t=acesso-ao-produto.

ATLAS do agronegócio: fatos e números sobre as corporações que controlam o que comemos. Maureen Santos, Verena Glass (org.). RJ: Fundação Heinrich Böll, 2018.

BELLO, Walden. Never Let a Good Crisis Go to Waste. Amsterdã: TNI, 2020.

BENITES, Renata Guinato & TRENTINI, Flávia. Agricultura familiar sustentável: entre o desenvolvimento sustentável e a segurança alimentar. Revista de Direito Agrário e Agroambiental, Belém, v. 5, n. 2, p. 01-19, Jul/Dez. 2019.

BOMBARDI, Larissa Mies. Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia. São Paulo: FFLCH-USP, 2017, rev. 2019.

CASTILHO, Alceu Luís et al. Os Invasores: quem são os empresários brasileiros e estrangeiros com mais sobreposições em terras indígenas. De Olho nos Ruralistas. abril de 2023. Observatório do Agronegócio no Brasil. Sumário Executivo.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2001.

DECLARAÇÃO DA RESPOSTA AUTÔNOMA DOS POVOS À CÚPULA DA ONU SOBRE SISTEMAS ALIMENTARES+2”, 20/07/2023. https://foodsystemsf4people.org/

DELGADO, Guilherme Costa. Especialização primária como limite ao desenvolvimento. Revista UFRJ, v.1, n.2, p. 111-125, janeiro–abril e maio–agosto 2010. https://revistas.ufrj.br/index.php/dd/article/view/31914/18073

___________. Do “capital financeiro na agricultura” à economia do agronegócio: mudanças cíclicas em meio século (1965-2012). Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2012.

___________. Video: Arte, Ciência, Ética e a Reforma Agrária, mediação: Katia Marko e Leonardo Melgarejo, Brasil de Fato RS 20/7/2023.

DOWBOR, Ladislau. Resgatar a função social da economia: uma questão de dignidade humana. São Paulo: Elefante, 2022.

_________. Vídeo (reels), áudio original, 4/7/23.

FREDERICO, Samuel, «Agricultura científica globalizada e fronteira agrícola moderna no Brasil», Confins [Online], 17 | 2013, posto online no dia 18/3/ 2012, consultado em 26/8/2023. URL: http://journals.openedition.org/confins/8153.

KOTHARI, Miloon. ONU. Informe del Relator Especial sobre la vivenda adequada. Consejo de Derechos Humanos. Promoción y protección de todos los derechos humanos, civiles, políticos, económicos, sociales y culturales, incluido el derecho al desarrollo. A/HRC/7/16. ONU. 13 feb. 2008, p. 20-21. http://www.acnur.org

LEROY, Jean-Pierre. Por uma reforma agrária sustentável: a primeira página do Gênesis a escrever. In O desafio da sustentabilidade: um debate socioambiental no Brasil. Gilney Viana, Marina Silva, e Nilo Diniz (org.), São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001.

MARQUES, Luiz. O decênio decisivo: propostas para uma política de sobrevivência, Editora Elefante, 2023.

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. A mundialização da agricultura brasileira. Anais do 12º Coloquio Internacional de Geocrítica. Bogotá, 7-11 mar. 2012. http://www.ub.edu/geocrit/coloquio2012/actas/14-A-Oliveira.pdf

PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. Geografia da riqueza, fome e meio ambiente: pequena contribuição crítica ao atual modelo agrário/agrícola de uso dos recursos naturais. Revista Internacional Interdisciplinar Interthesis – PPGICH UFSC, v. 1, n. 1, p. 1-55, 2004.

PRIMAVESI, Ana. Agroecologia: Ecosfera, tecnosfera e agricultura. São Paulo: Livraria Nobel. 1997.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 4ª ed. Rio de Janeiro: Record. 2000.

SAWAYA, Rubens. Furtado: um sonho desfeito. In LACERDA. Antônio Corrêa de. (org.) Celso Furtado 100 Anos de Pensamento e Ação. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020.

SOARES, Wagner Lopes e PORTO, Marcelo Firpo de Souza. Uso de agrotóxicos e impactos econômicos sobre a saúde. Rev. saúde pública; 46 (2): 209-217, abr. 2012.

TRENTINI, Flavia e ROSIM, Danielle Zoega. A desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária e a propriedade produtiva: uma perspectiva jurisprudencial. Brasília: Revista de Direito Agrário e Agroambiental, 2016, v. 2, n. 1, Jan/Jun.


1 The Lancet, v. 393, n. 10.173, fev. 2019, apud Marques, 2023, p. 101.

2 O Pantanal brasileiro-boliviano-paraguaio e a área de cerca de 2 milhões de hectares do rio Araguaia são as duas maiores áreas continentais alagadas de todo o planeta e são vizinhas ao Cerrado, estando ameaçadas por pressão para construção de hidrovias e pelo agronegócio. Nos Cerrados nascem os mais importantes afluentes da margem direita do rio Amazonas (Madeira, Tapajós e Xingu), o Araguaia-Tocantins, os formadores do Paraguai, do Paraná, além do Orenoco e outros. “Guimarães Rosa chamava ‘os gerais’ (os cerrados) de ‘caixa d’água’”.

São mapas por regiões; biomas brasileiros, agrotóxicos mais vendidos; intoxicação por agrotóxicos de uso agrícola; casos de trabalho análogo à escravidão no agronegócio e pulverização aérea de agrotóxicos por cultivos.

4 Permitido no Brasil: no caso do herbicida Atrazina, quantidade 5 vezes maior (uso na cana de açúcar, milho e sorgo); do inseticida e acaricida Acefato, 10 vezes maior (uso no melão) e 20 vezes maior (uso nos citros; a soja é acrescida também com a soma de herbicida 2,4-D, inseticida Acefato e o temido Glifosato.

5 “Muitas vezes o agricultor é constrangido a aplicar o pacote tecnológico, que inclui o uso de agrotóxicos, para atender às exigências dos bancos”, afirma Denis Monteiro de Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). Dados do Banco Central, Bradesco e Itaú não aparecem entre agentes repassadores destas linhas de crédito “verdes”. Até fechar a reportagem, eles não responderam se ofertam crédito para agricultura orgânica. Destaque para Banco do Brasil, Banco da Amazônia, Banco do Nordeste e Santander como os principais repassadores de crédito para a produção orgânica.

6 Conforme Frederico, a agricultura científica globalizada, nova forma de organização do agronegócio brasileiro emergente na década de 1990, é caracterizada pela incorporação de novas tecnologias da informação ao campo e pela menor intervenção estatal. É transição de um período de forte intervenção estatal na agricultura, predominante desde a década de 1960, para uma maior regulação das empresas mundiais do comércio agrícola (tradings) e do uso mais intensivo dos insumos químicos, biológicos e mecânicos difundidos pelo paradigma da Revolução Verde.

7 O Cerrado tem 178 milhões de hectares como propriedade privada e 7% de sua área protegida. Dados do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) indicam, entre 2000 e 2015, a perda de vegetação no Cerrado de 236 mil km². Só de pastagens, passou para 90 milhões de hectares. A Caatinga está ameaçada também: 93,2% das terras correspondem a propriedades privadas, com apenas 2% do bioma protegido.

8 Do total de estabelecimentos agropecuários e aquicultores nacionais (5.073.324), 76,8% são agricultura familiar (3.897.408), com 23% do total da área em atividades agropecuárias; destes 1,4% são produtores sem área. Em 2017, a agricultura familiar: tinha 66,3% dos trabalhadores em atividades agropecuárias e 81% eram proprietários das terras.

O Plano Safra da agricultura empresarial terá o total de recursos de R$ 364,2 bilhões e o Plano Safra 2023/2024 para a agricultura familiar (PRONAF), a partir de 1º de julho de 2023, contará com o total de crédito rural de R$ 71,6 bilhões (34% mais que no período anterior). Outros R$ 6,1 bilhões irão sustentar ações (compras públicas, assistência técnica e extensão rural). Cf. o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, os agricultores familiares optantes por práticas sustentáveis, orgânicos, produtos da sociobioversidade, bioeconomia ou agroecologia terão ainda desconto nos juros, 3%/ano nas linhas de custeio e 4% nas de investimento.

10 Decoloniais são movimentos de decolonialidade, um caminho para resistir e desconstruir padrões, conceitos e perspectivas impostos aos povos subalternizados, sendo também uma crítica direta à modernidade e ao capitalismo. O pensamento decolonial é alternativa para dar voz e visibilidade aos povos oprimidos que durante muito tempo foram silenciados, como projeto de libertação social, político, cultural e econômico para dar respeito e autonomia aos indivíduos, aos grupos e movimentos sociais. https://www.politize.com.br/colonialidade-e-decolonialidade/

11 Walden Flores Bello, professor de Sociologia (Universidade de Nova York), pesquisador sênior visitante (Centro de Estudos do Sudeste Asiático, Universidade de Kyoto), Co-presidente do Focus on the Global South, com sede em Bangkok, autor de “Deglobalisation: Ideas for a New World Economy”. Focus on the Global South: https://focusweb.org/. Ideias similares eram defendidas por Milton Santos (SANTOS, 2000).

27
Mai23

Altamiro Borges: PF vai investigar golpista da CPI do MST

Talis Andrade

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Gregório, líder dos camponeses, preso e torturado no primeiro de abril do golpe militar de 1964 contra a reforma agrária. O golpe de Bolsonaro de 8 de janeiro pretendia repetir o horror, prendendo e assassinando os sem terra. A CPI do MST fazia e faz parte do golpe: prender e matar lideranças campesinas

 

PF vai investigar golpista da CPI do MST

 
 
Foto: MST
 
Por Altamiro Borges

A chamada CPI do MST – que visa esconder os podres dos agrotrogloditas, criminalizar os movimentos sociais e desgastar o governo Lula – já nasceu sob fortes questionamentos. Nesta terça-feira (23), a imprensa noticiou que Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), autorizou a Polícia Federal a dar continuidade às investigações sobre participação do deputado federal Tenente Coronel Zucco (Republicanos-RS), presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito, nos atos terroristas do fatídico 8 de janeiro em Brasília. 

Segundo matéria do site UOL, “o caso envolve a suspeita de patrocínio e incentivo aos atos golpistas no Rio Grande do Sul e em Brasília, após as eleições que deram a vitória ao presidente Lula contra Jair Bolsonaro (PL). O caso foi para o STF porque o deputado tem foro privilegiado. Em despacho, Moraes afirma que a notícia do suposto crime foi levada ao Ministério Público Federal, que decidiu enviar ao Supremo”. “Encaminhem-se os autos à Polícia Federal, para continuidade das investigações”, despachou o ministro do STF. 


Ligações com os agrotrogloditas


O tenente-coronel Zucco foi apontado no ano passado pela polícia gaúcha como apoiador de acampamentos e outras manifestações antidemocráticas. Em uma postagem feita pelo então deputado estadual em frente ao Comando Militar do Sul, ele incentivava a ida dos golpistas ao local. O parlamentar é um reacionário convicto, com fortes ligações com os agrotrogloditas – inclusive com aqueles que foram denunciados por explorar trabalho análogo a escravidão no Estado. O fascistoide é um inimigo declarado do MST, a quem chama de “terrorista” e de “grupo criminoso travestido de movimento social”. 

“Ele tem como bandeira o conservadorismo e estreou na política em 2018, ao ser eleito deputado estadual no Rio Grande do Sul. Conforme conta em seu próprio site, o convite veio de Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão. Na ocasião, ele recebeu 166.747 votos. Zucco é amigo de Tarcísio de Freitas. E é próximo do atual governador de São Paulo há mais de 30 anos. Os dois se conheceram na Academia Militar das Agulhas Negras, a escola de ensino superior do Exército Brasileiro”, descreve a reportagem do site UOL. 

Trabalho escravo e trabalho infantil

Já o imperdível site “De olho nos ruralistas” descreve nesta quarta-feira (24) outros crimes do deputado, o que retira qualquer legitimidade da chamada CPI do MST. Entre outras denúncias, ele comprova que “o tenente-coronel Zucco recebeu doação do fazendeiro Bruno Pires Xavier, condenado por manter 23 trabalhadores em condições degradantes em Mato Grosso; ele é apoiado pela Farsul, que minimizou o trabalho escravo em vinícolas e quer punições mais brandas para o trabalho infantil”. Vale conferir outros trechos da excelente reportagem: 
 
 
 
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“Antes de ser escolhido para presidir a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o deputado Tenente-coronel Zucco (Republicanos-RS) era uma figura desconhecida na política nacional. Eleito em 2022 com apoio do movimento armamentista Proarmas – na mesma chapa do ex-vice-presidente e atual senador Hamilton Mourão –, o militar gaúcho havia estreado na política quatro anos antes, ao conquistar uma vaga no legislativo estadual em 2018”. 

“Ex-chefe de segurança de Lula e Dilma, Luciano Zucco foi o deputado estadual mais votado no Rio Grande do Sul, em grande parte pelo engajamento direto de Mourão e de Jair Bolsonaro – com quem acompanhou a apuração de 2018, em sua casa no Rio de Janeiro. Mas sua ascensão política também contou com um personagem mais obscuro. Um dos principais financiadores de Zucco naquele ano foi Bruno Pires Xavier. Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o fazendeiro doou R$ 10 mil para a campanha do militar. Dona do Frigorífico Quatro Marcos, a família Xavier é alvo de diversas denúncias de crimes ambientais e trabalhistas. Ao todo, 324 trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão em imóveis rurais do grupo, durante cinco operações do Ministério Público do Trabalho (MPT)”. 

“Na Câmara, Zucco tenta honrar os compromissos com seus fiadores políticos. Em março de 2023, em meio ao escândalo de trabalho escravo nas vinícolas gaúchas, Zucco votou a favor da tramitação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que visa extinguir o MPT e a Justiça do Trabalho no Brasil. De autoria do ‘príncipe’ Luiz Philippe de Orléans e Bragança (PL-SP), o projeto contava com 66 assinaturas. O projeto envolveu também a Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul), aliada de primeira hora do deputado bolsonarista”. 

“O financiamento de campanha não é a única ponta que liga Luciano Zucco ao universo agrário e a violações trabalhistas. Durante a campanha para a Câmara, em 2022, o representante da ‘bancada da bala’ se aproximou da ala ruralista através da Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul). A relação teve início ainda em 2019, graças à proximidade de Zucco com Jair Bolsonaro... Em 2020, quando Zucco ainda era deputado estadual, a Farsul emitiu uma nota conjunta com outras entidades patronais atacando um projeto da deputada Luciana Genro (PSOL-RS) que previa impedir as atividades de empresas flagradas com trabalho infantil. Segundo o empresariado gaúcho, a punição traria reflexos negativos para o ‘ambiente de negócios’”.

 

05
Mai23

Qual é o real propósito da CPI do MST em investigar o movimento?

Talis Andrade
 
 
 
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Possível relator, Ricardo Salles ( o passa a boiada ) afirmou que se deve tratar o MST com "tolerância zero" em campanha para deputado federal em 2018

 

por Camila Bezerra /Jornal GGN

Se aprovada (e provavelmente vai), a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST) deve gerar bastante disputa ideológica na Câmara dos Deputados pelos próximos meses.

Isso porque a comissão, que deve somar 27 membros titulares e outros 27 suplentes, será composta apenas por deputados federais, cuja bancada é, em sua maioria, favorável ao ex-presidente Jair Bolsonaro.

Apenas o Partido Liberal (PL), sigla do ex-mandatário, elegeu 99 das 513 cadeiras da Casa na última eleição.

Relator

Deputado federal e ex-ministro do Meio Ambiente no governo de Jair Bolsonaro, Ricardo Salles (PL-SP) é o nome favorito à presidência da CPI do MST.

À imprensa, Salles afirmou que a CPI convocará os líderes de todos os estados para depor e, depois, que “irá fazer o caminho do dinheiro”, a fim de identificar os “financiadores” do movimento.

Salles defende ainda a discussão sobre a regularização fundiária do País, para tratar questões como terras indígenas, unidades de conservação, assentamento do Incra, entre outros.

 

Polêmicas

 

Ligado aos ruralistas, Salles, no entanto, tem um longo histórico de polêmicas que deveriam ser considerados antes da definição do seu nome como relator da CPI do MST.

Em 2018, enquanto candidato à Câmara, o ex-ministro pregava “tolerância zero contra o MST”, além de fazer alusões a armas de fogo e munições em um dos panfletos de campanha.

Este ano, o agora parlamentar afirmou que o MST “se disfarça de ONG para encher o bolso de dinheiro”, e que o objetivo de uma comissão seria investigar supostas ações terroristas dos trabalhadores, a quem descreve como bandidos e picaretas

 

Conflito de interesses?

 

Sócio de um empresário do agronegócio, Ricardo Salles negou ao Globo que ser presidente da CPI traria conflito de interesses, pois ele se compromete a técnica enquanto relator.

“Eu sou um dos que mais conhece o assunto na Casa e me comprometi com o presidente Arthur Lira e demais líderes a fazermos um trabalho sóbrio, respeitoso e técnico. Não haverá pirotecnia”, disse.

 

Alternativa

 

Quem também pode assumir a presidência da comissão é Luciano Zucco (Republicanos-RS), investigado pela Polícia Civil por incentivar atos antidemocráticos de bolsonaristas.

O parlamentar postou no Instagram uma foto de um ato antidemocrático em frente ao Comando Militar do Sul. O domumento da Polícia Civil foi encaminhado ao Supremo Tribunal Federal (STF).

 

Tiro no pé

 

Nesta terça-feira (2), o grupo de advogados, juristas e defensores públicos Prerrogativas informou que os trabalhadores convocados para depor na CPI terão assessoria jurídica.

Coordenador do grupo, o advogado Marco Aurélio de Carvalho está confiante com os resultados da CPI, pois acredita que a visibilidade e as discussões em torno do trabalho do MST serão uma oportunidade de desmistificar a ideia sobre o movimento dos trabalhadores e ainda de dar visibilidade às ações do MST.

“Não tenho dúvidas de que essa CPI será um tiro no pé da oposição. O MST mostrará ao país a importância da reforma agrária e da função social da propriedade. O MST tem a nossa solidariedade, a nossa admiração, o nosso respeito e o nosso irrestrito apoio”, disse Carvalho ao jornal Folha de São Paulo.

João Paulo Rodrigues, da direção nacional do MST, disse em entrevista ao Brasil de Fato que a CPI não tem um fato pré-determinado.

“O MST não tem convênio com o governo em nenhum estado. O movimento já demonstrou que é uma organização que produz alimentos saudáveis e por isso queremos essa reunião com o Lira para fazer um bom debate sobre o assunto”, continuou Rodrigues.

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02
Mai23

"É uma CPI de perseguição política ao MST"

Talis Andrade

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Terras sem povo, povo sem terra — Humanista

 

Coordenador nacional do MST, João Paulo Rodrigues avalia que comissão servirá de "palco para latifundiários" e tem objetivo de intimidar luta pela terra e paralisar políticas públicas do governo Lula no campo. CPI contra os sem terra manobra golpista da extrema direita

 

A criação de uma CPI na Câmara que investigue as ações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é encarada com preocupação por uma de suas lideranças. "Se ela acontecer, acredito que será violenta contra nós", afirmou em entrevista à DW Brasil João Paulo Rodrigues, coordenador nacional do movimento, durante evento da organização no sábado (29/04), na região central de São Paulo.

O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL) leu, na sexta-feira (27/04), o requerimento para abertura de CPI proposta pelo deputado Tenente Coronel Zucco (Republicanos-RS) e com apoio da FPA (Frente Parlamentar da Agropecuária). Para que a comissão seja de fato instalada é preciso que os blocos partidários indiquem seus representantes. A tendência é que nomes da bancada ruralista tenham predominância no colegiado.

A iniciativa no Congresso para avaliar a estratégia do MST acontece após uma série de ocupações pelo país durante o mês de abril, como as ocorridas em uma fábrica da empresa Suzano, na Bahia, e de uma área da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), em Pernambuco. Os atos não foram bem recebidos no governo Lula. O atual ministro da Agricultura, Carlos Fávaro (PSD), chegou a comparar a atuação dos sem-terra com os atos golpistas de 8 de janeiro.

João Paulo Rodrigues afirma que o embate com setores do governo é normal diante da expectativa criada dentro do MST após a vitória lulista. "O governo é nosso. O que nós achamos é que já são quase 120 dias da posse e estamos esperando que nossas pautas sejam respondidas o quanto antes. A luta pela terra exige urgência, porque queremos ter terra, crédito e produzir comida."

 

Guilherme Henrique entrevista João Paulo Rodrigues 

 

DW Brasil: Como avalia a criação da CPI na Câmara dos Deputados contra o MST e como ela pode atingir o movimento?

João Paulo Rodrigues: Nós estamos preocupados. É uma CPI de perseguição política ao MST e totalmente desnecessária. Não há fato e nem objeto definido do que ela vai investigar. É uma CPI preventiva sobre o que o movimento vai fazer no futuro. É um instrumento importante do Congresso, isso não se discute.

Mas, da forma como esse mesmo Congresso está atuando contra o MST, é perigoso, porque está servindo de perseguição. Será nossa quinta CPI e nossa preocupação não se dá por aquilo que fazemos, mas porque essa comissão servirá de palco para a direita e para os latifundiários nos atacarem.

 

Há desinformação sobre o papel do MST?

Eles sabem o que nós fazemos e por isso nos atacam. Há consciência do nosso trabalho. É a Frente Agropecuária, que sabe que o MST está no caminho certo para a democratização da terra, e por isso precisam nos deter. Por que não atacam o movimento sindical?

O ataque é no MST, porque eles sabem da importância pública que o movimento conquistou e que coloca medo no agro. Nós criamos a capacidade de dialogar com a sociedade e mostrar o que o agro faz de errado. E por isso eles não podem deixar barato.

 

Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, você disse que o MST vai contestar a CPI no Supremo Tribunal Federal caso ela avance no Congresso. Como isso pode ser feito e sob qual argumento?

Nós estamos reafirmando a necessidade de um debate público antes da CPI sobre a função social da propriedade no Brasil, que é o nosso argumento nesse caso. O direito à propriedade na Constituição de 1988 está ligado a um direito de preservação ambiental, bem-estar, de garantia às leis trabalhistas e à produtividade.  O MST nunca ocupou nenhuma fazenda que esteja atuando dentro desses requisitos.

O MST ocupa propriedades flagradas com trabalho escravo, que são devedoras da União, que desmatam ou ocupam terra pública, como é o caso da Suzano. Então, nós estamos muito tranquilos sobre nossa atuação. O problema é que nós não podemos achar que só vale a nossa compreensão das coisas. Os parlamentares no Congresso, o Judiciário, todos precisam entender que a função social da terra é tão importante quanto o direito à propriedade.

 

A base do governo na Câmara é suficiente para barrar ou ser atuante na CPI?

Ainda estou na perspectiva de que ela não aconteça. Se ela acontecer, acredito que será uma CPI violenta contra nós, que vai tentar intimidar a luta pela terra, mas que também tem como objetivo perseguir e constranger o governo Lula, para que a atual gestão não realizar nenhum tipo de política pública no campo.

 

Qual o saldo da Jornada de Lutas e das ocupações ao ocorridas ao longo de abril?

É positivo, porque deixou claro que nós estamos na luta pela reforma agrária. Não se pode existir dúvida de que esse é o objetivo do MST e em suas ações. Além disso, mostrou que o movimento tem autonomia em relação ao governo e o governo em relação ao movimento. É bom para não misturar as duas coisas.

Outro ponto é que mobilizamos nossa base social para que todos estivessem inseridos na luta. Agora, a verdade é que saímos da jornada sem nenhuma conquista econômica do governo, que não anunciou nada para nós até agora. Ainda assim, o balanço político é positivo.

 

Como é relação com o governo Lula? As críticas às ações em Suzano e na Embrapa surpreenderam?

O MST está acostumado a esse embate. O que nos preocupa é quando o governo ou setores do Congresso acham que o movimento não é mais uma organização de luta pela terra, mas uma grande cooperativa de produção de comida. É também. Mas o nosso foco principal continua sendo a luta pela terra.

 

O MST espera algo do governo Lula?

Claro, o governo é nosso. O que nós achamos é que já são quase 120 dias da posse e estamos esperando que nossas pautas sejam respondidas o quanto antes. A luta pela terra exige urgência, porque queremos ter terra, crédito e produzir comida. Essa é a nossa vontade que precisa avançar.

Governo é que nem feijão: só funciona na pressão. E o governo sabe disso. Para que uma conversa com Lula vire política pública demora meses, às vezes anos, porque o Estado é feito para não atender os pobres. Pressionar esse sistema é uma forma de tentar avançar.

 

Como vê o futuro do MST?

O MST precisa estar atento a um novo período, que é de atualização. Como fazer ocupação? Como explicar para a sociedade melhor o que nós fazemos? Antes demorava 24 horas para sair na imprensa uma ocupação nossa. Agora é tudo online, e às vezes não dá tempo de nós explicarmos os motivos de uma determinada ação.

O MST vai precisar cuidar mais desse diálogo e a jornada nos mostrou isso. E acredito que o MST precisa unificar e comunicar melhor a ideia de que produção, cooperativa, agroindústria e ocupação são ações que estão juntas. Não há outro jeito. É um esforço na construção de uma narrativa política na sociedade que não criminalize a ocupação de terra e nem coloque o MST como uma grande ONG produtora de comida.

 

As ocupações vão continuar?

Isso é a vida do movimento. Hoje mesmo nós tivemos duas ocupações: uma no Rio Grande do Norte e outra na Bahia. Tem terra e pessoas sem-terra, nós vamos agir. Agora, o que não há é uma grande jornada marcada para as próximas semanas. O MST não pretende anunciar grandes operações, mas também não vai ficar parado. A rotina do movimento de ocupar latifúndio improdutivo vai seguir. 

 

Quais são as estratégias do MST contra a escalada de violência no campo?

Esse é um tema que nos deixa preocupados e apreensivos, porque tem muito fazendeiro armado no Brasil. A única forma de lidarmos com isso é fazer com que toda e qualquer ocupação seja feita dentro do campo da democracia e constituição. Não pode ser clandestina.

A lei está do nosso lado, no que já falei sobre a função social da terra, e nós temos que denunciar e mostrar os ataques sofridos. O país não pode se transformar em um grande pavio pólvora com conflitos sociais a todo momento.

 

02
Mai23

'EXAGERO' E 'REALIDADE RÚSTICA': LEIA O QUE ESCREVEM DESEMBARGADORES E JUÍZES AO INOCENTAR PATRÕES ACUSADOS DE TRABALHO ESCRAVO

Talis Andrade
 
 
 
Sorriso Pensante-Ivan Cabral - charges e cartuns: Charge: Trabalho escravo

Tribunal com mais casos do tipo, TRF-1 inocentou 99,52% dos acusados de submeter pessoas a condições análogas à escravidão.


HÁ QUASE 18 ANOS, uma operação de auditores fiscais do trabalho resgatou 43 pessoas da fazenda de Marcos Nogueira Dias, o Marcão do Boi, na zona rural de Abel Figueiredo, no Pará. O fazendeiro era conhecido como um dos mais ricos do sudeste do estado. Segundo a denúncia do Ministério Público Federal, o MPF, os trabalhadores bebiam água fétida, comiam carne podre de vacas que morriam no parto, não tinham salário e recebiam bebida alcoólica como pagamento. Eles também tinham que comprar produtos de higiene superfaturados do patrão e eram submetidos a jornadas exaustivas “em sol escaldante”, inclusive nos feriados e fins de semana. 

Era evidente a condição de trabalho degradante e análoga à escravidão, de acordo com o MPF. Mas, para o desembargador Olindo Menezes, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, o TRF-1, essas circunstâncias não eram degradantes, mas apenas comuns ao trabalho rural, que tem “o desconforto típico da sua execução, quase sempre braçal”, e não se caracterizavam como algo que “rebaixa o trabalhador na sua condição humana”. 

Seus argumentos convenceram os outros desembargadores da 4ª turma do TRF-1 a absolver Marcão do Boi em 2019. Ele chegou a ser condenado a cinco anos de prisão pela Vara Federal de Marabá. O juiz Fábio Ramiro, relator convocado que analisou o recurso na segunda instância, propôs aumento da pena para seis anos, mas o voto do desembargador Menezes mudou o rumo do processo. 

Ele alegou que o caso deveria ser melhor analisado, pois muitas denúncias de condições análogas à escravidão tinham como base apenas os levantamentos feitos pelos fiscais do Ministério do Trabalho, que “são muito ardorosos e, normalmente, feitos por pessoas que não têm a menor noção do que é um trabalho no meio rural. Os exageros, em muitos casos, são evidentes”, justificou, pedindo mais tempo para decidir seu voto.

Quando se manifestou, alguns meses depois, o desembargador Menezes votou pela absolvição de Marcão do Boi. Para o magistrado, as denúncias mencionadas na sentença, como os alojamentos insalubres, a falta de água potável, a comida podre “devem ser vistos dentro da realidade rural brasileira”, em que os patrões “não raro” também se submeteriam a tais condições, na visão de Menezes. O fazendeiro, contudo, já havia informado que só ia ao local onde os trabalhadores estavam “a cada trinta ou sessenta dias”. Era a sua defesa para alegar não ter conhecimento das condições precárias. 

Muitos operadores do direito, argumentou ainda o desembargador, “se contentam com os desconfortos mais comuns do trabalho rural para dar por configurado o trabalho análogo ao de escravo” quando seriam na verdade situações “comuns na realidade rústica brasileira” sem “gravidade intensa que implique a submissão dos trabalhadores a constrangimentos econômicos e morais inaceitáveis”. Marcão do Boi morreu em 2021, executado por pistoleiros, sem nunca ter sido preso pelo caso. 

Argumentos assim são recorrentes nas manifestações do desembargador. Encontrei ao menos outros quatro processos em que o magistrado votou pela absolvição do acusado, relativizando a denúncia por conta do lugar ou do tipo de trabalho realizado. As condições no meio rural, como em carvoarias ou em fazendas de café, segundo ele, são “duras pela própria natureza da atividade” e, por isso, não devem ser confundidas com trabalho análogo à escravidão. 

“A condenação somente se justifica em casos graves e extremos, sem razoabilidade, quando a violação aos direitos do trabalho é intensa e persistente, alçando-se a níveis gritantes”. 

Não era o caso de trabalhadores de uma carvoaria submetidos pelo acusado a exaustivas 12 horas diárias de trabalho. Na interpretação de Menezes, tratava-se apenas de uma jornada “um pouco acima daquela prevista em lei, e realizada como forma de aumentar a produtividade”, como afirmou em um processo de 2013. 

Em processo de 2011, como os trabalhadores ficaram poucos dias submetidos à situação degradante justamente pela ação de resgate do Ministério Público do Trabalho, o desembargador minimizou a denúncia. No entendimento dele, como os trabalhadores ficaram menos de 30 dias nas condições descritas na denúncia, não havia justificativa para “imputação de trabalho escravo”. 

Menezes ainda considerou favorável aos trabalhadores quando o empregador deixou de pagar R$ 40 por cada alqueire roçado – uma medida que, no Pará, equivale a cerca de 2,5 campos de futebol – para pagar R$ 25 a diária. Segundo o magistrado, o acusado teria constatado que levaria vários dias para executar o trabalho e entrou em acordo com relação ao novo valor. “O que parece ter constituído um benefício para os trabalhadores e não um malefício, como quer fazer parecer a acusação”.

Considerando apenas o salário bruto, o magistrado ganha quase R$ 1,2 mil por dia, inclusive quando não trabalha, como em feriados e fins de semana. Seu salário mensal fixo é de R$ 35,4 mil, mas devido a algumas gratificações e benefícios como auxílio alimentação, nesse mês de março, ele recebeu, já com os descontos, R$ 37,4 mil. 

Procuramos o desembargador Menezes por meio da assessoria de imprensa do TRF-1 e informamos os números de todos os processos analisados, bem como os trechos que destacamos nesta reportagem, para que ele pudesse se manifestar. O magistrado, contudo, não respondeu a nenhum dos seis questionamentos.

Vale ressaltar que, juridicamente, não existe a figura do trabalho escravo, mas sim a do trabalho em condições análogas à escravidão, já que, a nível oficial, a escravidão acabou com a Lei Áurea, em 1888. No entanto, o Intercept tomou a decisão de usar a expressão, entendendo que a imposição de um regime de trabalho degradante, com jornadas exaustivas e sem o devido pagamento salarial não pode ser chamada de outra forma, senão de trabalho escravo.

Para o desembargador Olindo Menezes, trabalhadores que recebiam água fétida, carne podre e não tinham salário não estavam em situação degradante. Foto: José Alberto/STJ

 

A culpa é da vítima 

Segundo Lívia Miraglia, coordenadora da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, a falta de sensibilidade com processos como esses se explica porque o Judiciário é majoritariamente elitista, branco e masculino. 

“As pessoas que trabalham nesse poder estão muito distantes da realidade dos brasileiros que são submetidos à condição de trabalho análoga à escravidão. Há um espelhamento maior do Judiciário com os empregadores julgados do que com os trabalhadores”. 

A clínica coordenada por Miraglia, junto com o Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública, também da UFMG, traçou um raio-x das ações judiciais de trabalho escravo. O levantamento de quase 1.900 ações iniciadas entre 2008 e 2019 constatou que o TRF-1 é o tribunal federal que mais absolve os acusados de trabalho análogo à escravidão na segunda instância – apenas 0,48% deles foram condenados. Dos 293 empregadores condenados por juízes da primeira instância, o tribunal absolveu 254, o equivalente a 86,7%. 

Abrangendo os estados da Amazônia Legal, um área de intenso conflito agrário, o TRF-1 tem o maior número de acusados por trabalho análogo à escravidão – 1.943, quase sete vezes mais que a quantidade de acusados no TRF-3, que aparece em segundo lugar. Já o Pará, estado de Marcão do Boi, tem o maior número de empregadores incluídos na lista suja do trabalho escravo – 152 pessoas.

A impunidade, segundo Miraglia, leva os empregadores a concluírem que compensa submeter pessoas à situação degradante. “A falta de punição impede a perspectiva de mudar esse cenário no presente e no futuro, porque o crime continuará sendo praticado”. 

O próprio fazendeiro Marcos Nogueira Dias entrou na lista duas vezes quando estava vivo. Três anos depois dos 43 trabalhadores serem resgatados em Abel Figueiredo, 11 pessoas foram libertadas em outra fazenda dele, dessa vez localizada em Rondon do Pará. 

Mapeei ao menos 17 processos em que magistrados do TRF-1 absolveram acusados de submeter pessoas a trabalho escravo em suas decisões. Oito deles têm manifestação do desembargador Menezes, mas também aparecem na lista outros nomes, como o do juiz Leão Aparecido Alves, que atuou como relator convocado em alguns processos em segunda instância – para ele, a solução do problema, nesses casos, parece caber às vítimas.

 

Para Fachin, é inconstitucional usar a região como critério para caracterizar um trabalho como degradante.

Em uma ação de 2009, ele votou pela absolvição do réu porque, entre outros argumentos, não foi apresentado teste para comprovar que a água era imprópria para consumo. Além disso, escreveu que “os trabalhadores não estavam impedidos de ferver a água a ser por eles consumida”. 

Em outro processo, de 2011, ele concordou com a decisão do juiz de primeira instância que absolveu o réu. Para os magistrados, o trabalho degradante e a jornada exaustiva só indicam que o trabalhador foi submetido à condição análoga à escravidão se ele for vítima de violência ou efetivamente privado de liberdade por meio de agressões ou ameaças. De outra forma, é livre para “abandonar o local e buscar melhores condições de trabalho”.

Procurado por meio da assessoria da justiça federal de Goiás, o juiz Alves respondeu que seu voto foi acompanhado nos dois processos, por unanimidade, pelos demais integrantes da Terceira Turma do TRF-1, resultando em decisões unânimes. Com relação ao processo de 2009, ele argumentou, entre outras coisas, que os trabalhadores “nunca foram constrangidos ou ameaçados e não se consideravam escravos” e que “os tribunais têm decidido que o simples descumprimento de normas de proteção ao trabalho não é conducente a se concluir pela configuração do trabalho escravo”.

Sobre o processo de 2011, ele disse que as testemunhas não relataram “o uso de violência contra os trabalhadores pelo empregador ou prepostos ou a presença de segurança armada na fazenda, tampouco noticiaram a existência de servidão por dívida ou o impedimento de deslocamento dos trabalhadores”. O magistrado acrescentou ainda que “condena quando há prova acima de dúvida razoável, e, em sentido oposto, absolve quando inexistem provas aptas a expurgar a dúvida razoável”.

Existe, de fato, um entendimento consolidado no meio jurídico de que o trabalho escravo se caracteriza pela privação de liberdade por meio de violência para forçar a permanência da vítima contra a sua vontade. A falta de provas de que as pessoas se sentiam como escravas, aliás, é um dos argumentos que se repetem para absolver os réus em todos os tribunais, de acordo com levantamento de que Miraglia participou. Nas 26 decisões analisadas, os magistrados alegaram que o consentimento da vítima afastaria o delito praticado.

Para a pesquisadora, esse entendimento só comprova quão distantes desembargadores e juízes estão da realidade de um trabalhador, por estranharem que ele não abandone o local de trabalho quando se percebe explorado ou, ainda, que não tenha ciência do crime a que é submetido. “Parece uma situação fácil de ser resolvida. Se não está bom, basta ir embora. É o que essas pessoas fazem nas situações que lhes incomodam. Mas, para muitos brasileiros que precisam de qualquer coisa para sobreviver, não é bem assim”.

No seu voto a favor da condenação de Marcão do Boi, o juiz e relator convocado Fábio Ramiro citou a sentença do juiz de primeira instância para caracterizar o trabalho degradante como “aquele que priva o trabalhador de dignidade, que o desconsidera como sujeito de direitos, que o rebaixa e prejudica, e, em face de condições adversas, deteriora sua saúde”. Segundo o magistrado, a coação moral pode ser mais efetiva que a força física para manter a vítima em condição análoga à escravidão, principalmente quando o empregador lhe impõe dívidas, impedindo seu desligamento do serviço.

112 condenações em mais de 10 anos

De acordo com o raio-x das ações judiciais, as equipes de fiscalização resgataram mais de 20 mil trabalhadores de 2008 a 2019 e mais de 2,6 mil empregadores foram acusados por trabalho análogo à escravidão, mas apenas 112 foram condenados definitivamente – os magistrados absolveram, em primeira instância, quase metade dos acusados por falta de provas. A maior pena de prisão, após o processo transitado em julgado, foi de 11 anos e seis meses.

Mesmo assim, há quem afirme em suas decisões que há exagero nas leis trabalhistas. É o caso da desembargadora Cláudia Cristina Cristofani, do TRF-4. Assim como o desembargador Menezes, ela enfraquece as denúncias usando o mesmo argumento de serem características do meio rural. Em um processo de 2013, do qual foi relatora, a magistrada afirmou que as condições de alimentação e alojamento dos trabalhadores eram precárias, “quando considerados os padrões, elevados e irrealistas, requeridos pelas normas trabalhistas” e que “o empregador rural se vê obrigado a reduzir custos, a fim de manter um lucro cada vez menor”. Por isso, disse no seu voto pela absolvição do acusado, não era “razoável dar relevância criminal ao fornecimento de condições de trabalho idênticas às condições de habitat da localidade em que a atividade estava sendo prestada”. 

Procurada por meio da assessoria de imprensa do TRF-4, a desembargadora não se manifestou.

Em 2021, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux reconheceu a repercussão geral de um pedido de recurso extraordinário do MPF para debater o acórdão do TRF-1 que absolveu Marcão do Boi. Os procuradores querem o reconhecimento das condições retratadas nos autos como degradantes e afirmam que a absolvição “pode estimular o empregador rural, proprietário de fazenda no interior, a cada vez mais tratar os seus empregados de forma desumana”. O relator do processo no STF é o ministro Edson Fachin, que defende ser “inconstitucional a diferenciação regional dos critérios para caracterização do trabalho como degradante”. 

 

Se a água era imprópria para consumo, ‘os trabalhadores não estavam impedidos de ferver’.

O procurador-geral da República Augusto Aras concorda com a tese de Fachin. “A efetivação dos princípios da dignidade humana, da erradicação da pobreza e da redução das diferenças econômicas e sociais direciona-se no sentido de proteger o padrão de vida e as condições de trabalho minimamente satisfatórias nas diversas regiões brasileiras, de modo a equalizar a situação do trabalhador em todas as localidades do país”, disse o PGR, em fevereiro de 2022, em sua manifestação no processo.

O procurador também recomendou o restabelecimento da sentença de prisão de Marcão do Boi pelo crime previsto no artigo 149 do Código Penal, ou seja, por submeter pessoas a trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas, sujeitá-las a condições degradantes e à restrição de locomoção. Mas quando tudo isso aconteceu, já era tarde demais para o fazendeiro ser punido pelo rigor da lei.

Correção: 3 de abril, 17h06
Uma versão anterior deste texto falava em fiscalizações feitas pelo Ministério Público do Trabalho. O órgão correto é o Ministério do Trabalho.

Correção: 10 de abril, 10h28
Corrigimos a comparação de um alqueire roçado a campos de futebol de acordo com o alqueire do Norte.

30
Abr23

INDÚSTRIA DA GRILAGEM PATROCINA CPI DOS SEM TERRA

Talis Andrade
lápis de memória: Bancada da bala
 
 
 

Deputados das Bancadas do Boi e da Bala realizam CPI contra camponeses, quilombolas, pequeno agricultor, populações ribeirinhas

CPI dos Sem Terra vai investigar os ricos ladrões de terras da União, dos povos indígenas, dos quilombolas? Não. Vai investigar sim os pobres camponeses, os que plantam alimentos para ser vendidos nas feiras. Vão investigar os camponeses que foram presos e torturados no golpe militar de 1964, que instalou uma ditadura que durou 21 anos. Vão investigar os sem terras perseguidos pelos governos Temer e Bolsonaro, perseguidos pela extrema direita, pela supremacia branca, pela Casa Grande colonial, nazi-fascista.

CPI vai favorecer os latifundiários nacionais e estrageiros, que têm a proteção da Bancada da Bala, das chacinas da Polícia Militar, das empresas de segurança, da campagada, dos pistoleiros de aluguel. Os grileiros pagam os assassinartos de defensores dos direitos humanos, de ambientalistas, de lideranças sindicais, de líderes comunitários.

Os latifundiários tocam fogo nas florestas, envenenam os rios e promovem o contrabando de madeira nobre, pedras preciosas, ouro, minérios estratégicos, produtos florestais, plantas medicinais. A grilagem patrocina o tráfico de pessoas, o trabalho escravo, a construção de aeroportos clandestinos, o contrabando de armas e drogas. 

A partir deste vídeo é possível entender mais a fundo de que maneira o crime de grilagem de terras públicas na Amazônia se desenvolve, desde o momento da invasão da terra até a aprovação de anistia para os invasores.

29
Abr23

CPI do MST não, CPI do MGT sim, que até estrangeiros roubam terras e mais terras no Brasil para derrubar a Floresta (vídeo)

Talis Andrade

SOBREPOSIÇÕES CONECTAM TERRAS INDÍGENAS AO CAPITAL ESTRANGEIRO

 

Empresas nacionais e estrangeiras estão em 1,2 milhão de hectares de terras indígenas

 

 

A GRILAGEM TEM MAIS TERRAS

QUE TODOS OS MST

 

Levantamento inédito do observatório De Olho nos Ruralistas identificou 1.692 fazendas com incidência em território indígena; por trás das sobreposições estão gigantes do agronegócio, indústria armamentista e investidores dos cinco continentes

Por Bruno Stankevicius Bassi

 

 

No Dia dos Povos Indígenas, um novo estudo joga luz sobre um dos principais obstáculos à efetivação dos direitos dos povos originários. Produzido pelo núcleo de pesquisas do observatório De Olho nos Ruralistas, o relatório “Os Invasores: quem são os empresários brasileiros e estrangeiros com mais sobreposições em terras indígenas” revela, de forma inédita, o nome de pessoas físicas e jurídicas por trás de 1.692 casos de sobreposição de fazendas em territórios delimitados pela Funai.

Entre os grupos multinacionais ligados a fazendas incidentes em Terras Indígenas (TIs) figuram subsidiárias e sócios de alguns dos principais grupos do agronegócio, como Bunge, Amaggi, Bom Futuro, Lactalis, Cosan, Ducoco e Nichio. Entre os setores econômicos, produtores de grãos, carne, madeira, açúcar e etanol e frutas são os principais responsáveis pelas sobreposições.

O estudo mostra ainda a participação de bancos e fundos de investimento na pressão econômica contra as TIs. Itaú (por meio da subsidiária Kinea) e Bradesco são os principais nomes da lista, seguidos por XP, Gávea Investimentos, IFC e Mubadala.

As conexões com o poder econômico não param por aí. Entre os casos abordados no relatório, há conexões diretas com o crime organizado. Das relações próximas de latifundiários no Amazonas com a Cosa Nostra, na Itália, a um ex-garimpeiro ligado ao maior contrabandista de diamantes do mundo.

“É o capital nacional e internacional, legal ou ilegal, que assina a violência”, afirma o diretor do observatório, Alceu Luís Castilho. “O planeta que olha para o Brasil a cobrar a preservação da Amazônia é o mesmo planeta que precisa conhecer melhor quem financia as destruições”.

Clique aqui para baixar o relatório na íntegra. Abaixo, o vídeo sobre o dossiê:

RELATÓRIO TRAZ DETALHES DE SOBREPOSIÇÕES NOS ESTADOS

Mapas do relatório mostram sobreposição de 222 mil hectares no Amazonas.

 

Ao longo de seis meses, uma equipe multidisciplinar composta por jornalistas, geógrafos, historiadores e um especialista jurídico se debruçou sobre as informações de imóveis rurais cadastrados e certificados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), obtidos a partir de três bases de dados: o Sistema de Gestão Fundiária (Sigef), o Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR) e o Sistema Nacional de Certificação de Imóveis (SNCI). A partir da lista inicial, foi realizado o cruzamento com os metadados de cobertura e uso do solo da plataforma MapBiomas – Coleção 7, com dados disponíveis até 2021, de modo a obter as informações sobre a destinação econômica das áreas sobrepostas.

Ao todo, as sobreposições em terras indígenas englobam 1,18 milhão de hectares, uma área do tamanho do Líbano. Desse total, 95,5% estão em territórios pendentes de demarcação. Os dados também mostram que 18,6% da área sobreposta são utilizados para a produção agropecuária. Deste total, 55,6% são ocupados por pasto e outros 34,6% por soja.

Esse avanço se deu ao custo da preservação ambiental. A partir do cruzamento das sobreposições com os dados de satélite do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), foi identificado o desmatamento de 46,9 mil hectares entre 2008 e 2021, considerando apenas as áreas de incidência em TIs.

O relatório aponta ainda a existência de uma correlação direta entre as sobreposições e os dados de conflitos e mortes de indígenas, com destaque para os territórios dos povos Kanela/Timbira, no Maranhão; Guarani Kaiowá e Terena, no Mato Grosso do Sul; e Pataxó na Bahia.

Todas as informações fundiárias utilizadas no relatório estão, a partir de hoje, disponibilizadas ao público interessado em desbravar esse enorme volume de informações. A base de dados completa com as 1.692 sobreposições pode ser acessada aqui.

 

SOBREPOSIÇÕES CONECTAM TERRAS INDÍGENAS AO CAPITAL ESTRANGEIRO

A invasão aos territórios indígenas no Brasil é sistêmica. Embora grande parte dos conflitos e da violência se concentre na ponta local —  garimpeiros, madeireiros e pistoleiros a mando de latifundiários —, é nos centros de poder do agronegócio, dito “moderno”, que se concentram os lucros desse modelo agroexportador.

Realizando uma pesquisa qualitativa a partir dos dados fundiários do Incra, De Olho nos Ruralistas identificou a origem do capital de 156 indivíduos e corporações dentre os titulares das 1.692 sobreposições em TIs. De empresas multinacionais com sede em outros países a investidores estrangeiros, foi possível traçar conexões econômicas em catorze países, abarcando os cinco continentes.

Os casos incluem desde países vizinhos, como Paraguai e Bolívia, base de operações para dois empresários brasileiros que emigraram nos anos 2000, até a Nova Zelândia, do outro lado do mundo.

Dentro do Brasil, o fluxo do capital também possui uma tendência clara, migrando do Sul e Sudeste do país até as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. O Paraná lidera o levantamento, sendo o lar de 43 indivíduos ou empresas com sobreposições em TIs. O estado é seguido por São Paulo, com 34 fazendeiros identificados. O movimento emula as bandeiras do século 18: os proprietários rurais saem do Sul em direção às regiões Centro-Oeste, Nordeste e Norte. Ou melhor: não saem. No “bandeirantismo” das sobreposições, quem viaja é o capital.

| Bruno Stankevicius Bassi é coordenador de projetos do De Olho nos Ruralistas. 

23
Nov22

De Juliana Dal Piva: Em luta pela terra sem mal

Talis Andrade

Notícias da UFSC

 

por Elaine Tavares

Juliana Dal Piva é uma jovem jornalista que, fugindo da média, já descobriu o segredo da pirâmide proposto pelo teórico Adelmo Genro Filho. Ou seja, que é do singular que se vai ao universal. Pois é o que ela faz no excelente livro de reportagem “Em luta pela terra sem mal”, editado pela Multifoco, do Rio de Janeiro. Nesse trabalho, Juliana conta as histórias dos indígenas Guarani que foram e ainda são escravizados na famosa região da “media luna”, na Bolívia, lugar que frequentou os noticiários brasileiros há algum tempo quando os fazendeiros de lá tentaram derrubar Evo Morales, por não concordarem que um índio fosse o presidente do país. E ainda mais um índio que queria fazer uma reforma agrária, colocando em risco a concentração de terra da região.

A Bolívia é um país onde a luta e a rebelião são históricas, assim como a ação da direita é truculenta e atrasada. Desde a proclamação da República, com a guerra de independência, dos 65 presidentes que governaram o país apenas 29 foram eleitos de forma democrática, assim como muitos ditadores foram derrubados por rebeliões populares. Agora, com Evo Morales, a situação ficou mais explosiva, pois ele é o primeiro indígena a governar a Bolívia e com uma proposta participativa popular. Por conta disso a oposição é violenta e as mudanças, pelo menos na área da “media luna” tem sido muito lentas, uma vez que mesmo o ministro responsável pela reforma agrária já foi até seqüestrado pelos fazendeiros da região, como bem conta Juliana no seu livro. As histórias são de arrepiar, não só no que diz respeito ao trato dos latifundiários com homens do governo, mas aos indígenas e outros trabalhadores que se levantem em luta contra a escravidão e a servidão a que estão submetidos pelos fazendeiros.

“Os agressores a tiraram da camioneta e amarraram-na pelos pés e mãos a um poste, ao lado do local onde o grupo foi atacado. Ali esteve por mais de uma hora debaixo de chuva. `Os homens queriam levar-me ao monte para me estuprar e as mulheres queriam me matar´, conta a jornalista Tanibu Estremadoiro”. Essa é uma narrativa que poderia ter se passado em 1540, quando os espanhóis e portugueses andavam por aí buscando ouro e matando índios que consideravam “sem alma”. Mas não, ela é uma das histórias de indígenas sendo golpeados, escravizados e por vezes, até mortos, nas imensas fazendas bolivianas em pleno século XXI.

Qual é o “negócio do Jair”? Juliana dal Piva responde

A reportagem de Juliana vai trazendo todas essas histórias, dando nome e sobrenome para uma gente que é considerada apenas estatística na grande imprensa. Ela vai desvelando cada denúncia, mostrando a situação das famílias que, ou aceitam a escravidão ou são jogadas na estrada, como sacos de batatas. Juliana mostra ainda a fala dos fazendeiros, dos governantes, tudo muito claro e sem retoques. E, com o desvendamento da escravidão Guarani a repórter coloca a nu todos os interesses que sempre estiveram em jogo na grande batalha travada entre os fazendeiros e o governo de Evo Morales. A decisão de se fazer a reforma agrária, a idéia de plurinacionalidade, a revolução cultural, os indígenas assumindo sua identidade, sua força, sua voz. É um documento precioso, porque traz também a visão dos “vencidos”, coisa rara no jornalismo atual.

Em busca da terra sem mal é  uma reportagem carregada de beleza no texto. É a narrativa de uma jornalista que foi até onde as coisas acontecem e que toma posição. Mas isso não se dá com discursos ou palavras vazias. Ela faz aquilo que Antônio Olinto já ensinava: “Na descrição dos fatos está a mais poderosa das opiniões”. Juliana descreve, conta as histórias, abre espaço para a voz dos indígenas escravizados, dos camponeses sem terra. Faz aparecer a informação, o número, a estatística, mas também dá concretude para as pessoas. O leitor consegue ver a figura narrada, a saga dos indígenas, primeiros donos dessas terras que hoje são obrigados a viver como escravos. Juliana fala também da luta, dos personagens que seguem batalhando para que tudo isso mude, para que as comunidades possam ter sua terra, viver sua cultura e encontrar enfim, aquilo que diz o mito Guarani: a terra sem males, onde haja paz, abundância e alegria.

A narrativa do livro que o IELA lança nas Jornadas Bolivarianas é uma janela para a nova Bolívia, é um espaço de compreensão dos conflitos que afloram com mais força agora que os indígenas já perceberam que podem e devem elevar sua voz. O trabalho de Juliana é igualmente uma porta aberta para o bom jornalismo, para a narrativa poderosa, impressionista, comprometida.

 

06
Jul22

As crianças sequestradas e adotadas ilegalmente por militares durante a ditadura brasileira

Talis Andrade

Livro relata sequestros de crianças durante a Ditadura militar | Quarta Capa  por Elisa Dinis | iG

 

Por BBC

 

Sequestrada assim que nasceu, Rosângela Paraná diz que sua certidão de nascimento foi falsificada — Foto: Arquivo pessoal

Sequestrada assim que nasceu, Rosângela Paraná diz que sua certidão de nascimento foi falsificada — Foto: Arquivo pessoal

Seu autor, o jornalista Eduardo Reina, diz que todos os casos foram escondidos, ocultados e negados ao longo dos últimos 40 anos.

A descoberta, realizada pelo, será revelada no livro Cativeiro Sem Fim, que ele lança pela editora Alameda, com apoio do Instituto Vladimir Herzog.

"Até agora, identifiquei e comprovei 19 casos de sequestros e/ou apropriação de bebês, crianças e adolescentes durante a ditadura no País", afirma o jornalista.

"Todos guardam semelhanças com crimes desse tipo ocorridos na Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai e Bolívia durante períodos de repressão militar."

Dos 19 casos identificados até agora, 11 são ligados à guerrilha do Araguaia, movimento guerrilheiro de oposição ao regime que ocorreu entre o final da década de 60 e 1974 na Amazônia. "As vítimas são filhos de guerrilheiros e de camponeses que aderiram ao movimento. Era o segredo dentro do segredo", diz Reina.

Esses 11 casos, conforme descobriu o jornalista, foram realizados entre 1972 e 1974. Um dos casos reportados no livro é o de Juracy Bezerra de Oliveira. Quando ele tinha 6 anos, foi retirado de sua família pelos militares. Por engano.

"Pensavam que ele era Giovani, filho do líder guerrilheiro Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão", conta o pesquisador. "Em comum com Giovani, Juracy tinha a pele morena, a idade aproximada e o nome da mãe biológica, Maria."

Juracy foi levado de sua família aos seis anos, por engano — Foto: Divulgação/Eduardo Reina

Juracy foi levado de sua família aos seis anos, por engano — Foto: Divulgação/Eduardo Reina

 

Conforme apurou o jornalista, Juracy foi levado para Fortaleza pelo tenente Antônio Essilio Azevedo Costa. Acabou registrado em cartório com o nome do militar como seu pai biológico. "O nome da mãe, entretanto, foi mantido: Maria Bezerra de Oliveira", conta Reina.

Ele viveu em Fortaleza até completar 20 anos. Depois voltou ao Araguaia em busca da mãe verdadeira. "Juracy também teve o irmão mais novo - Miracy - levado por outro militar. O sargento João Lima Filho foi com Miracy para Natal. Anos depois, Juracy e a mãe fizeram buscas pelo menino. Não foi encontrado", relata o autor do livro.

"A mágoa que tenho deles, dos militares, é de terem me tirado da minha família biológica. Hoje em dia meus irmãos têm terra, gado. Eu tenho nada. O Exército tinha prometido me dar meio mundo e fundos. E não deu", desabafa Juracy.

Mas Giovani, o filho do Osvaldão, também teria sido encontrado pelos militares. Na operação que terminou com a morte da mulher do guerrilheiro, Maria Viana, os militares encontraram e levaram Giovani e Ieda, outra filha dela.

"Eu tinha seis anos. Quando cheguei no nosso barraco tinha acontecido isso. Eles tinham matado minha mãe e carregado o irmão meu, mais minha irmã, que sumiu também", relata Antônio Viana da Conceição, filho de Maria e irmão de Giovani e Ieda - que nunca mais foram encontrados.

 
Eduardo Reina percorreu mais de 20 mil quilômetros em busca dos personagens sequestrados pelos militares — Foto: Divulgação/Eduardo Reina

Eduardo Reina percorreu mais de 20 mil quilômetros em busca dos personagens sequestrados pelos militares — Foto: Divulgação/Eduardo Reina

 

Pesquisa

 

Em entrevista à BBC News Brasil, o jornalista Eduardo Reina conta que estuda o tema há pelo menos 20 anos. "Mas não conseguia deslanchar pela falta de provas e testemunhos concretos", diz ele. Em 2016, decidiu ir a campo em busca de relatos concretos e de documentos.

"Percorri mais de 20 mil quilômetros em território brasileiro em busca dos personagens sequestrados pelos militares ou seus familiares. Acessei milhares de documentos militares, oficiais ou secretos. Tive acesso a muitos documentos considerados secretos no período de ditadura no Brasil", enumera.

"Nesse período, realizei mais de uma centena de entrevistas. Li mais de 150 livros sobre a ditadura, além de teses de doutorado e dissertações de mestrado, artigos acadêmicos, matérias de jornais. Pesquisei mais de 4 mil edições dos jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo, O Globo e Estado de Minas à procura de matérias sobre o tema, além de outras leituras de papers e documentos."

Depois de muita checagem e cruzamento de informações, Reina conclui que ao menos os 19 casos relatados no seu livro são reais.

Reina procurou as Forças Armadas mas elas não quiseram se manifestar sobre os casos identificados. "Instituições envolvidas mantêm a posição de negação. Assim como se nega a prática da tortura e do assassinato nos porões do DOI-CODI, nas bases militares, nos quartéis e nas prisões", diz o jornalista.

"A divulgação desses 19 crimes hediondos, que não prescrevem, deve ser feita para que a história da ditadura do Brasil seja contada sob o olhar de todos os envolvidos. E tomara que a comunicação desses sequestros de bebês, crianças e adolescentes pelos militares leve outras pessoas a revelarem o que sabem e novos casos possam ser identificados."

A reportagem da BBC News Brasil também solicitou esclarecimentos às Forças Armadas, por meio da assessoria de comunicação do Ministério da Defesa. Até o fechamento desta reportagem, entretanto, eles não se posicionaram.

Rio Araguaia na região onde guerrilha de mesmo nome se organizou na época da ditadura — Foto: Divulgação

Rio Araguaia na região onde guerrilha de mesmo nome se organizou na época da ditadura — Foto: Divulgação

 

 

Camponeses

 

Entre novembro de 1973 e o início de 1974, seis filhos de camponeses aliados aos guerrilheiros do Araguaia teriam sido sequestrados, segundo informações descobertas por Reina. José Vieira, Antônio José da Silva, José Wilson de Brito Feitosa, José de Ribamar, Osniel Ferreira da Cruz e Sebastião de Santana. "Eram todos jovens, adolescentes que trabalhavam na roça para o sustento de suas famílias. Foram enviados a quartéis", conta o jornalista.

José Vieira é filho de Luiz Vieira, agricultor que foi morto pelas forças militares durante a guerra no Araguaia. José foi preso junto com o guerrilheiro Piauí, então subcomandante do Destacamento A, em São Domingos do Araguaia.

"Sai de lá com o Piauí. Ele era o comandante dos guerrilheiros. Eu fiquei lá e a tropa chegou e me cercou. Soube que eu tinha ido lá para falar com minha mãe. Mas antes de minha mãe chegar em casa, a tropa cercou. Aí me pegaram. Eu mais ele, o Piauí", descreve Vieira.

Piauí, apelido de Antônio de Pádua Costa, ex-estudante de Astronomia da UFRJ, é listado como um dos guerrilheiros "desaparecidos", após ser capturado no inínicio de 1974. A essa altura, o Exército havia enviado milhares de soldados para caçar os cerca de 80 guerrilheiros que se esconderam na mata no sul do Pará. Segundo o relatório da Comissão da Verdade, setenta deles foram mortos ou executados na selva.

O nome de Vieira, nascido em 1956, está registrado em documentos do Centro de Informações do Exército (CIE) junto com os nomes dos outros cinco filhos de camponeses sequestrados pelos militares entre o fim de 1973 e o início de 1974. Era a fase mais grave de repressão à guerrilha do Araguaia.

"Inicialmente, Vieira ficou preso e foi torturado na base de Bacaba, erguida no km 68 da Transamazônica. Depois foi levado para o quartel general do Exército em Belém do Pará; onde passou um mês e 12 dias. Depois foi para a 5ª Companhia de Guardas, no bairro de Marambaia, também em Belém. Na sequência foi transferido para Altamira", narra Reina.

José Vieira é filho de agricultor morto pelas forças militares durante a guerra no Araguaia; ele foi preso e depois incorporado ao Exército — Foto: Divulgação/Eduardo Reina

José Vieira é filho de agricultor morto pelas forças militares durante a guerra no Araguaia; ele foi preso e depois incorporado ao Exército — Foto: Divulgação/Eduardo Reina

 

Foi ali que ele acabou incorporado ao Exército. Tornou-se soldado em 5 de março de 1975, serviu no 51º Batalhão de Infantaria de Selva, conforme aponta seu certificado de reservista.

Um garimpeiro chamado Dejocy Vieira da Silva, que mora em Serra Pelada no Pará, conta que foram 11 as crianças sequestradas naquela época. Eram filhas de guerrilheiros com camponesas e filhos de camponeses que aderiram à guerrilha do Araguaia. Dejocy esteve inicialmente com os comunistas do PCdoB. Depois, durante combate na selva com militares, levou tiro. Sobreviveu, mas ficou com sequelas. Então se bandeou para o lado do major Sebastião Curió e passou a ajudar o Exército.

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Na foto, Lúcia Maria de Souza, conhecida como Sônia e Osvaldo Orlando da Costa, o famoso Osvaldão, ambos guerrilheiros no Araguaia

 

Dejocy confirma a existência de ordem para sequestrar e desaparecer com os filhos dos guerrilheiros e de camponeses. Afirma se lembrar da história do sequestro de Giovani, filho do líder dos guerrilheiros, Oswaldão. Não presenciou o crime. Diz que foram realizadas em segredo as operações de sequestro dos filhos de guerrilheiros e de lavradores. "Fizeram tudo às caladas", diz o garimpeiro-guerrilheiro.

O sequestro de bebês, crianças e adolescentes filhos de militantes políticos ou de pessoas ligadas a esse grupo tinha como objetivo difundir o terror entre a população; vingar-se das famílias; interrogar as crianças; quebrar o silêncio de seus pais, torturando seus filhos; educar as crianças com uma ideologia contrária à dos seus país, além da apropriação das vítimas.

 

 

Em busca dos pais biológicos

 

Para Eduardo Reina, um "caso emblemático" do modus operandi dos militares é o de Rosângela Paraná. "Ela foi pega assim que nasceu, no Rio Grande do Sul ou Rio de Janeiro. Acabou entregue a Odyr de Paiva Paraná, ex-soldado do Exército pertencente a tradicional família de militares. Seu pai - Arcy - foi sargento; e seu tio-avô Manoel Hemetério Paraná, médico que chegou ao posto de major e ex-superintendente do Hospital Geral do Exército em Belém do Pará", conta o jornalista.

"Odyr manteve relações de trabalho, através de prestação de serviços, com o ex-presidente da República e general Ernesto Geisel. Foi seu motorista por algum tempo no Rio de Janeiro. Também trabalhou na Petrobras e Ministério de Minas e Energia", prossegue.

Foi somente em 2013, após uma discussão em família, que Rosângela descobriu que havia sido sequestrada. "Sua certidão de nascimento é falsificada, foi registrada em 1967 em cartório no bairro do Catete, no Rio. O documento aponta 1963 como ano de seu nascimento", conta Reina. "A certidão apresenta como local de nascimento um imóvel numa rua no bairro do Flamengo. Mas levantamento em cartório demonstra que a casa citada na certidão pertence a autarquia de previdência dos servidores públicos desde 1958."

Rosângela segue em busca de seus pais biológicos. Debilitada física e emocionalmente, ela conversou com o autor do livro. "Hoje vivo na angústia de não saber quem sou, quantos anos tenho, e sequer saber quem foram ou quem são meus pais. Todos se negam terminantemente a falar sobre esse assunto. Só desejo saber quem sou, e onde está a minha família. Acredito que esse direito eu tenho, depois de sofrer tantos anos. Hoje só sei que sou um ser humano que nada sabe sobre seus pais. Desejo Justiça", diz ela.

"A família Paraná fez um pacto de silêncio para que não se fale o nome dos pais biológicos ou de onde a bebê veio", conta Reina. "Odilma, irmã de Odyr, o pai adotivo já falecido, confirma apenas que Rosângela foi adotada e que a mãe 'era uma baderneira'."

Reina comenta que o objetivo de seu trabalho "é puramente jornalístico e histórico". "Dar voz àqueles que foram esquecidos à força, invisibilizados pela história e pela mídia. Contar a verdadeira história da ditadura no Brasil, no período entre 1964 e 1985, sem filtros ou pendências de narrativa."

"É mostrar a verdade. Mostrar a realidade. Mostrar a história de pessoas que foram jogadas no buraco negro da história do Brasil. De pessoas que foram usadas pelas forças militares na ditadura. Mostrar as histórias de pessoas que vivem num cativeiro sem fim."

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