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Por Liszt Vieira
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O Sono da Razão Produz Monstros (Goya)
O economista sueco Gunnar Myrdal, vencedor do Prêmio Nobel, foi indicado pela ONU para coordenar uma grande pesquisa sobre racismo nos EUA nos anos 40 do século passado. O resultado foi o livro “An American Dilemma: The Negro Problem and Modern Democracy”, publicado em 1944 com quase 1.500 páginas.
Entre os inúmeros levantamentos, estudos e análises, chamou a atenção de alguns observadores na época a afirmação de que os maiores racistas, os que mais discriminavam os negros no sul do EUA não eram os brancos ricos, mas sim os brancos pobres. A razão disso é que eles necessitavam da inferioridade dos negros para sua autoestima. Se os negros passassem a ter os mesmos direitos, os brancos pobres não se sentiriam mais superiores a ninguém, e isso os desesperava.
Ressalvadas as diferenças no espaço e no tempo, e respeitadas as devidas proporções, vimos algo parecido no Brasil durante o governo Lula que, com políticas sociais progressistas, diminuiu a desigualdade. A classe média viu os ricos ganharem dinheiro e se afastarem, enquanto os pobres aumentaram sua renda e se aproximaram. Esse sentimento de frustração está na raiz do preconceito da classe média contra Lula e o PT. No fundo, é a recusa da proposta de reduzir a desigualdade social. Para esses segmentos, o ideal é que os pobres continuem pobres para que eles permaneçam tranquilos, sentindo-se superiores.
É verdade que também a elite econômica recusa a redistribuição de renda para reduzir a desigualdade e apoia qualquer idiota que não se atreva a mudar o status quo. No atual governo Bolsonaro, essa situação foi agravada com a radical política neoliberal que se apropria do orçamento público, destinando a maior parte ao mercado financeiro e transferindo, assim, renda dos pobres para os ricos. As verbas para saúde, educação, pesquisa científica, cultura, meio ambiente são vistas como despesas improdutivas e não como investimento.
O fato de a popularidade de Bolsonaro continuar na faixa de 25 a 30% de apoio se explica por diversas razões. Uma delas é que o discurso do candidato e agora presidente se dirige não à razão, mas às emoções, ao preconceito arraigado, ao sentimento de frustração que se autoalimenta com ódio e repulsa aos que são considerados seres inferiores: mulheres, negros, gays, índios e, em estágios mais avançados de preconceito, intelectuais, judeus, imigrantes, estrangeiros etc.
Essas pessoas rejeitam o discurso baseado em fatos da realidade e só aceitam aquilo que querem ouvir. Esse é o segredo do sucesso da indústria de fake news gerenciada pela empresa Cambridge Analytica que manipulou as eleições do Brexit no Reino Unido em junho de 2016, de Trump nos EUA em novembro de 2016 e de Bolsonaro no Brasil em novembro de 2018. Por outro lado, é forçoso reconhecer que a razão crítica do iluminismo nem sempre levou à emancipação dos dogmas, e frequentemente foi incapaz de impedir a exploração e a submissão.
O avanço da extrema direita em várias partes do mundo mostrou o enfraquecimento da civilização iluminista baseada na razão e na ciência, muitas vezes impotentes para conter a avalanche de falsas notícias explorando o machismo, racismo, homofobia, misoginia, rejeição dos direitos humanos e a superstição pré-moderna que apoia teorias conspiratórias e rejeita a ciência, espalhando informações absurdas como terra plana e coronavirus criado em laboratório, por exemplo.
A derrota de Trump nos EUA foi um golpe forte nessa política de “pós verdade” baseada em fake news que, entretanto, ainda vigora no Brasil. Se é verdade que a negação da pandemia e a sabotagem da vacina foram políticas oficiais de governo ano passado, observamos que a necropolítica oficial do governo Bolsonaro se desmoralizou ainda mais este ano com o agravamento do número de casos e óbitos por Covid. O Brasil é o segundo país do mundo em número de mortes e candidato a ser campeão mundial com a reversão da tendência de aumento de óbitos nos EUA com o atual governo Biden.
O que não se enfraqueceu foi a política em curso de destruição ambiental no Brasil e no mundo. No caso brasileiro, a devastação ambiental foi agravada pelo ethos fascista de um governo que tenta sem cessar destruir os princípios e as instituições democráticas. O objetivo é “passar a boiada”, destruir os recursos naturais visando a lucro.
Já em 2010 o cientista brasileiro Carlos Nobre alertava que a cada hora 9 mil pessoas se somam à população mundial - que passou de 1,5 bilhão em 1.900 para mais de 7 bilhões hoje. Em cada hora, 4 milhões de toneladas de CO2 são emitidas, 1.500 hectares de florestas são derrubados no mundo, aumentando o efeito estufa, e 3 espécies entram em extinção. ( Planeta Sustentável - 28/05/2010).
No Brasil, segundo os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), tivemos na Amazônia em 2020 a maior alta de queimadas dos últimos treze anos, desde 2007 (Veja, 1/7/2020). Entre janeiro e agosto de 2020, quase 3,5 milhões de hectares do bioma amazônico queimaram e o desmatamento da Amazônia registrou aumento significativo em mais de 10% em relação ao ano anterior, configurando a taxa de desmatamento mais alta dos últimos 12 anos. No Pantanal, os incêndios devoraram 29% da sua cobertura, afetando seriamente a vida silvestre. No sul do país, tivemos números inéditos de área queimada nos Pampas.
As mudanças climáticas e a perda da biodiversidade já desencadearam um processo de destruição de recursos naturais que ameaça as condições de vida humana no planeta. Segundo Paul Crutzen - Prêmio Nobel de Química 1995 - já entramos em uma nova época geológica - o Antropoceno - em que o homem começa a destruir suas condições de existência no planeta. “A influência da humanidade no planeta Terra nos últimos séculos tornou-se tão significativa a ponto de constituir-se numa nova época geológica” (Paul Crutzen).
Em 2002, o historiador John McNeill alertou que a humanidade vem se aproximando perigosamente das “fronteiras planetárias”, ou seja, os limites físicos além dos quais pode haver colapso total da capacidade de o planeta suportar as atividades humanas. (Something New Under the Sun, McNeill, 2002). Os eventos climáticos extremos não cessam de confirmar sua advertência: secas, inundações, desertificação, falta d’água, temperaturas excessivas, desastres naturais, refugiados ambientais.
A situação é tão grave que já se fala na possibilidade de colapso da atual civilização. Afinal, a Terra conheceu 5 extinções em massa antes da que começamos agora a presenciar. A mais notória foi há 250 milhões de anos: começou quando o carbono aqueceu o planeta em 5ºC, acelerou quando esse aquecimento liberou metano, outro gás de efeito estufa, e quase destruiu toda a vida na Terra. Com exceção da extinção dos dinossauros, todas as extinções envolveram mudanças climáticas causadas por gases de efeito estufa (A Terra Inabitável, Uma História do Futuro, David Wallace-Wells).
Hoje, lançamos carbono na atmosfera a um ritmo 100 vezes mais rápido do que em qualquer época anterior ao início da industrialização. Metade do carbono lançado à atmosfera devido à queima de combustíveis fósseis foi emitido apenas nas últimas três décadas. Mantendo o atual padrão de emissões, chegaremos a mais de 4º C de aquecimento até o ano 2100. Isso significa que muitas regiões do mundo ficariam inabitáveis devido ao calor direto, à desertificação e às inundações. Pelas projeções das Nações Unidas, teremos 200 milhões de refugiados do clima até 2050. Outras estimativas são ainda mais pessimistas: 1 bilhão de pobres vulneráveis sem condições de sobrevivência (A Terra Inabitável, David Wallace-Wells).
O célebre cientista e divulgador naturalista britânico David Attenborough alertou que a humanidade enfrentará uma sexta extinção em massa neste século, se não abordar a mudança climática e a superexploração dos recursos do planeta. Em seu novo livro, A Life on Our Planet, Attenborough prevê um futuro de inundações, secas e acidez do oceano, caso a Terra não seja salva a tempo.
A civilização do combustível fóssil ameaça a sobrevivência humana no planeta. Produz calor letal, fome pela redução e encarecimento da produção agrícola, destruição das florestas por incêndios, esgotamento da água potável, morte dos oceanos, tufões, inundações, ar irrespirável, pragas, colapso econômico, conflitos climáticos, guerras, crise de refugiados.
Um Relatório da Convenção das Nações Unidas sobre a Diversidade Biológica (CBD), publicado em 16/9/2020, informou que a taxa da perda de biodiversidade não tem precedentes na história e as pressões estão se intensificando. O risco é o surgimento de novas doenças desconhecidas. À medida em que a natureza é degradada, surgem novas oportunidades para a disseminação de doenças devastadoras, como a Covid-19, alertou o Relatório. O documento denuncia ainda o gasto de cerca de US$ 500 milhões em subsídios governamentais concedidos nos últimos 10 anos para a produção de combustíveis fósseis, fertilizantes e pesticidas que contribuem para o declínio da biodiversidade. E destaca também o lançamento de 260 mil toneladas de resíduos plásticos nos oceanos.
O homem é o único animal que destrói seu habitat, o que coloca em questão sua racionalidade enquanto homo sapiens. Entre os fatores que causaram o colapso de civilizações, o primeiro deles é a destruição ambiental – o ecocídio, nos lembra escritor Jared Diamond, autor do famoso livro Colapso - Como as Sociedades Escolhem o Fracasso ou o Sucesso. Existe hoje uma a crescente campanha global para criminalizar o ecocídio e responsabilizar governos e corporações por negligência ambiental com o objetivo de salvaguardar nosso planeta (Carta Maior, 28/2/2021).
Os fatores para um possível declínio da humanidade estão visíveis: as mudanças climáticas, a degradação ambiental, as desigualdades econômicas e governos autoritários, cegos à razão e à ciência, e exterminadores dos direitos. O atual Governo brasileiro preenche todos esses requisitos, cumprindo promessa de Bolsonaro: “Vim para destruir, não para construir”. Trata-se de importante contribuição ao “capitalismo tardio” e seu perverso modelo neoliberal que não apenas exploram a maioria da população mundial, mas também ameaçam a sobrevivência humana na Terra.