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Pregar a revolução com palavras e música é uma coisa, Vargas. Fazer a revolução é outra coisa, eu diria, se soubesse em 1972 os acontecimentos de 1973.
por Urariano Mota */Vermelho
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– Eu gosto de Caetano Veloso – Alberto fala. – Ele tem umas coisas boas.
– Boas?! – Vargas se exalta. – Ele é o melhor compositor da música brasileira…. – “de todos os tempos”, ele ia dizer. Hoje percebo que se conteve com uma modéstia do Barão de Itararé, que ia se chamar de Duque, mas baixou o título para Barão. E continuou Vargas: – É o melhor! Caetano Veloso é o melhor compositor do tempo da revolução.
Olho em volta e percebo que nas mesas vizinhas se faz um silêncio. Todos nos escutam, concluo. Assuntos de música popular, no Brasil, são os que mais despertam interesse depois do futebol. Mas na ditadura falar na altura da voz de Vargas, usando a palavra “revolução”, é demais. Nelinha lhe toca o braço e sussurra “cuidado”. Ele sorri:
– Tranquilo, minha santa. Estou falando de cultura.
– Estamos falando sobre música, não tem problema – Alberto fala.
– E tudo é revolucionário, não é? – Vargas completa. – O cinema de Glauber é revolucionário, a juventude é revolucionária, tudo é revolucionário. Menos Chico Buarque.
Todos riem. Ocorre o que às vezes se chama brincar com o perigo. Zombar do abismo. Mas na hora o que me ocorre é o cometimento de uma injustiça.
– Eu não acho – falo. – Chico, para mim, é o melhor compositor de música popular brasileira hoje. Ele tem uma poesia que não tem Caetano. Chico é de fazer música, não é de dar espetáculo. Caetano é escandaloso, entende?
– A revolução é um escândalo! – Vargas quase grita. Alberto ri, Nelinha sorri para o companheiro, que se vê estimulado. – Chico é o compositor de Carolina, Januária na janela. É o poeta dos olhos verdes das meninas. Isso é revolucionário? Preste atenção: a música de Chico é o passado. Ele é um compositor de 1960 pra trás.
– Olhe… – eu queria dizer, se compreendesse então, que Chico ligava a tradição à música de 1970, assim como Paulinho da Viola fez essa ligação como samba. Mas há um tempo em que possuímos o sentimento, mas não encontramos as palavras, que ainda não nos chegaram pela experiência. Então arquejo, como um náufrago, diante da catilinária. – Olhe, você quer poesia melhor que … – e tento cantarolar “se uma nunca tem sorriso, é pra melhor se reservar…” – que “a dor é tão velha que pode morrer”, hem? – E baixo a voz: – Chico é a esquerda do futuro.
– Ele não é nem do presente – Vargas responde. – Que dirá do futuro. Preste atenção, muita atenção: “sei que um dia vou morrer de susto, de bala ou vício”. Escutou? Esta é a música de agora, dos jovens revolucionários de hoje.
– Isso não é de Caetano. É de Gil, Torquato e Capinam – falo.
De Gil? – Vargas responde. – Não importa. Está no disco de Caetano. Ele fez da música um hino revolucionário. Isso é o que importa.
– Hum, sei – falo, mas ainda não sei. Vou do rosto de Vargas até Nelinha, sigo para Alberto, retorno a Vargas. – É bom também – admito, a fórceps.
Olho para Vargas e me pergunto “será bom mesmo?”, e o que vem a ser o conteúdo da pergunta eu não me digo nem quero ver. Se eu soubesse na noite o que soube depois, eu diria “esta música é o anúncio da morte”. Esse ritmo alucinante, à caribe, é enganoso e leviano. Pregar a revolução com palavras e música é uma coisa, Vargas. Fazer a revolução é outra coisa, eu diria, se soubesse em 1972 os acontecimentos de 1973. Mas ainda ali, percebo agora, eu seria injusto até a estreiteza e maledicência. Então os artistas não podem expressar o sentimento que corre na gente? Então é justo acusar de leviano, de traidor da revolução, quem escreve como homem poético o homem prático? Só a raiva, no que tem de embrutecedora, verá a canção da luta armada no Brasil dessa maneira. Se assim fosse justo e real, o que dizer de Lorca, de Víctor Jara, até mesmo de Neruda? Então eu, que de nada sabia, escuto Vargas cantarolar “estou aqui de passagem, sei que adiante um dia vou morrer de susto, de bala ou vício”. E para ser mais preciso, em meio à intuição do horror, se põem acordes do frevo lá na Dantas Barreto. Meus olhos correm do rosto de Vargas, vão até a barriga de Nelinha, tão desamparada me parece na tormenta. Me dá uma vontade à beira do irreprimível de acariciar o fruto que virá no temporal. Vargas, que é vigilante insone da mulher, flagra o meu olhar nesse instante. Mas o macho vigia da sua fêmea é derrubado pela humanidade que pressente nessa ternura solidária. Assim sei, assim soube, porque a sua voz baixa o tom, e me fala como a um camarada, um irmão de jornada:
– Companheiro, desculpe. Pensamos diferente, mas você é um companheiro. Estamos juntos, não importa o que fazem de nós. O companheiro me desculpe.
– Que é isso, rapaz? Não foi nada. – Comovido pela gravidez de Nelinha e pelo descobrimento do Vargas que vem, fico embargado. E como sempre, tento corrigir a emoção com uma frase que me salve: – Eu também gosto de Caetano Veloso.
– Eu também gosto de Chico Buarque de Holanda. – Vargas me responde e sorri: – Que revolucionário.
– Sim – falo – Mas não na forma, na altura de um Caetano.
Todos gargalhamos. Então Alberto puxa desafinado, à sua maneira desafinado, “Apesar de você”. E mesmo com os sons do frevo que se aproxima, cantamos juntos “amanhã vai ser outro dia, amanhã vai ser outro dia”.
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* Do romance “A mais longa duração da juventude”
Thaline Karajá, Bruno Gagliasso, Caio Prado e Zélia Duncan estão entre os 30 intérpretes da música-protesto.
Para leitores pensantes
Mais uma vez, a música, a poesia, viram arma contra a ignorância.
Neste sábado (17) foi lançado o clipe do ‘Hino’ ao Inominável, com letra de Carlos Rennó e música de Chico Brown e Pedro Luís.
Assista:
A canção relembra quatro anos de atrocidades vividas sob governo Bolsonaro (o inominável) e de descalabros ditos por ele.
Crimes cometidos, frases e ações que teriam rendido impeachment em qualquer país sério.
Charge do Duke que entrou pra história,
assim como a frase disparada por Bolsonaro
quando perguntado sobre os mortos por Covid-19 no Brasil.
O clipe tem participação de vários artistas, como já tinha acontecido, em agosto, com a carta pela democracia no Brasil, que também reuniu gente do calibre de Fernanda Montenegro, Milton Nascimento, Chico e Caetano.
Desta vez, temos Wagner Moura, Bruno Gagliasso, Lenine, José Miguel Wisnik, Chico César, Zélia Duncan, Marina Lima e Professor Pasquale, dentre vários outros. A lista é grande.
Dá raiva assistir a esses 13 minutos de clipe, mas é importante relembrar, ainda mais agora, que estamos às vésperas das eleições.
Como diz a mensagem na página oficial do clipe:
“Sem a memória dos crimes de hoje, não teremos justiça amanhã. Esquecer, jamais. ‘Hino’ ao Inominável foi feito pra isso: pra lembrar pra sempre o que vivemos nesses anos sob a gestão do mais tosco dos toscos, o mais perverso dos perversos, o mais baixo dos baixos, o pior dos piores mandatários da nossa história. E, no presente, colaborar pra que o inominável não seja reeleito.”
Dá para checar na internet todas as frases ditas por Bolsonaro e relembradas nesta música. Ele não tem vergonha de dizer atrocidades, muitas vezes diz em vídeo, repete depois em áudio, não está nem aí, literalmente, para o decoro.
Até as 21h40 deste sábado, o clipe completo já tinha mais de 100 mil visualizações, 25 mil curtidas e mais de 1.800 comentários. Mais explicações sobre ele na página do YouTube:
“Com letra de Carlos Rennó e música de Chico Brown e Pedro Luís, a canção – autoironicamente intitulada de “hino” – é apresentada por trinta intérpretes num vídeo do Coletivo Bijari com 13:40 na versão integral (…) Na íntegra, são 202 versos, mais o refrão, contra o ódio e a ignorância no poder no Brasil. Porém, apesar dele – e do que, e de quem e quantos ele representa – a mensagem final é de luz, a luz que resiste”.
Essa mensagem final, com um quê de otimista, está no refrão:
“Mas quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?”
Leia a seguir a letra de Carlos Rennó na íntegra:
“Sou a favor da ditadura”, disse ele,
“Do pau de arara e da tortura”, concluiu.
“Mas o regime, mais do que ter torturado,
Tinha que ter matado trinta mil”.
E em contradita ao que afirmou, na caradura
Disse: “Não houve ditadura no país”.
E no real o incrível, o inacreditável
Entrou que nem um pesadelo, infeliz,
Ao som raivoso de uma voz inconfiável
Que diz e mente e se desmente e se desdiz.
Disse que num quilombo “os afrodescendentes
Pesavam sete arrobas” – e daí pra mais:
Que “não serviam nem pra procriar”,
Como se fôssemos, nós negros, animais.
E ainda insiste que não é racista
E que racismo não existe no país.
Como é possível, como é aceitável
Que tal se diga e fique impune quem o diz?
Tamanha injúria não inocentável,
Quem a julgou, que júri, que juiz?
Disse que agora “o índio está evoluindo,
Cada vez mais é um ser humano igual a nós.
Mas isolado é como um bicho no zoológico”,
E decretou e declarou de viva voz:
“Nem um centímetro a mais de terra indígena!,
Que nela jaz muita riqueza pro país”.
Se pronuncia assim o impronunciável
Tal qual o nome que tal “hino” nunca diz,
Do inumano ser, o ser inominável,
Do qual emanam mil pronunciamentos vis.
Disse que se tivesse um filho homossexual,
Preferiria que o progênito “morresse”.
Pruma mulher disse que não a estupraria,
Porque “você é feia, não merece”.
E ainda disse que a mulher, “porque engravida”,
“Deve ganhar menos que o homem” no país.
Por tal conduta e atitude deplorável,
Sempre o comparam com alguns quadrúpedes.
Uma maldade, uma injustiça inaceitável!
Tais animais são mais afáveis e gentis.
Mas quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?
Chamou o tema ambiental de “importante
Só pra vegano que só come vegetal”;
Chamou de “mentirosos” dados científicos
Do aumento do desmatamento florestal.
Disse que “a Amazônia segue intocada,
Praticamente preservada no país”.
E assim negou e renegou o inegável,
As evidências que a Ciência vê e diz,
Da derrubada e da queimada comprovável
Pelas imagens de satélites.
E proclamou : “Policial tem que matar,
Tem que matar, senão não é policial.
Matar com dez ou trinta tiros o bandido,
Pois criminoso é um ser humano anormal.
Matar uns quinze ou vinte e ser condecorado,
Não processado” e condenado no país.
Por essa fala inflexível, inflamável,
Que só a morte, a violência e o mal bendiz,
Por tal discurso de ódio, odiável,
O que resolve são canhões, revólveres.
“A minha especialidade é matar,
Sou capitão do exército”, assim grunhiu.
E induziu o brasileiro a se armar,
Que “todo mundo, pô, tem que comprar fuzil”,
Pois “povo armado não será escravizado”,
Numa cruzada pela morte no país
E num desprezo pela vida inolvidável,
Que nem quando lotavam UTIs
E o número de mortos era inumerável,
Disse “E daí? Não sou coveiro”. “E daí?”
“Os livros são hoje ‘um montão de amontoado’
De muita coisa escrita”, veio a declarar.
Tentou dizer “conclamo” e disse “eu canclomo”;
Não sabe conjugar o verbo “concl…amar”.
Clamou que “no Brasil tem professor demais”,
Tal qual um imbecil pra imbecis.
Vigora agora o que não é ignorável:
Os ignorantes ora imperam no país
(O que era antes, ó pensantes, impensável)…
Quem é essa gente que não sabe o que diz?
Mas quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?
Chamou de “herói” um coronel torturador
E um capitão miliciano e assassino.
Chamou de “escória” bolivianos, haitianos…
De “paraíba” e “pau de arara” o nordestino.
E diz que “ser patrão aqui é uma desgraça”,
E diz que “fome ninguém passa no país”.
Tal qual num filme de terror, inenarrável,
Em que a verdade não importa nem se diz,
Desenrolou-se, incontível, incontável,
Um rol idiota de chacotas e pitis.
Disse que mera “fantasia” era o vírus
E “histeria” a reação à pandemia;
Que brasileiro “pula e nada no esgoto,
Não pega nada”, então também não pegaria
O que chamou de “gripezinha” e receitou (sim!),
Sim, cloroquina, e não vacina, pro país.
E assim sem ter que pôr à prova o improvável,
Um ditador tampouco põe pingo nos is,
E nem responde, falador irresponsável,
Por todo ato ou toda fala pros Brasis.
E repetiu o mote “Deus, pátria e família”
Do integralismo e da Itália do fascismo,
Colando ao lema uma suspeita “liberdade”…
Tal qual tinha parodiado do nazismo
O slogan “Alemanha acima de tudo”,
Pondo ao invés “Brasil” no nome do país.
E qual num sonho horroroso, detestável,
A gente viu sem crer o que não quer nem quis:
Comemorarem o que não é memorável,
Como sinistras, tristes efemérides…
Já declarou: “Quem queira vir para o Brasil
Pra fazer sexo com mulher, fique à vontade.
Nós não podemos promover turismo gay,
Temos famílias”, disse com moralidade.
E já gritou um dia: “Toda minoria
Tem de curvar-se à maioria!” no país.
E assim o incrível, o inacreditável,
Se torna natural, quanto mais se rediz,
E a intolerância, essa sim intolerável,
Nessa figura dá chiliques mis.
Mas quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?
Por vezes saem, caem, soam como fezes
Da sua boca cada som, cada sentença…
É um nonsense, é um caô, umas fake-news,
É um libelo leviano ou uma ofensa.
Porque mal pensa no que diz, porque mal pensa,
“Não falo mais com a imprensa”, um dia diz.
Mas de fanáticos a horda lamentável,
Que louva a volta à ditadura no país,
A turba cega-surda surta, insuportável,
E grita “mito!”, “eu autorizo!”, e pede “bis!”
E disse “merda, bosta, porra, putaria,
Filho da puta, puta que pariu, caguei!”
E a cada internação tratando do intestino
E a cada termo grosso e um “Talquei?”,
O cheiro podre da sua retórica
Escatológica se espalha no país.
“Sou imorrível, incomível e imbrochável”,
Já se gabou em sua tão caracterís-
Tica linguagem baixo nível, reprovável,
Esse boçal ignaro, rei de mimimis.
Mas nada disse de Moise Kabagambe,
O jovem congolês que foi aqui linchado.
Do caso Evaldo Rosa, preto, musicista,
Com a família no automóvel baleado,
Disse que a tropa “não matou ninguém”, somente
“Foi um incidente” oitenta tiros de fuzis…
“O exército é do povo e não foi responsável”,
Falou o homem da gravata de fuzis,
Que é bem provável ser-lhe a vida descartável,
Sendo de negro ou de imigrante no país.
Bradou que “o presidente já não cumprirá
Mais decisão” do magistrado do Supremo,
Ao qual se dirigiu xingando: “Seu canalha!”
Mas acuado recuou do tom extremo,
E em nota disse: “Nunca tive intenção
(Não!) De agredir quaisquer Poderes” do país.
Falhou o golpe mas safou-se o impeachável,
Machão cagão de atos pusilânimes,
O que talvez se ache algum herói da Marvel
Mas que tá mais pra algum bandido de gibis.
Mas quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?
E sugeriu pra poluição ambiental:
“É só fazer cocô, dia sim, dia não”.
E pra quem sugeriu feijão e não fuzil:
“Querem comida? Então, dá tiro de feijão”.
É sem preparo, sem noção, sem compostura.
Sua postura com o posto não condiz.
No entanto “chega! […] vai agora [inominável]”,
Cravou o maior poeta vivo, no país,
E ecoou o coro “fora, [inominável]!”
E o panelaço das janelas nas metrópoles!
E numa live de golpista prometeu:
“Sem voto impresso não haverá eleição!”
E praguejou pra jornalistas: “Cala a boca!
Vocês são uma raça em extinção!”
E no seu tosco português ele não pára:
Dispara sempre um disparate o que maldiz.
Hoje um mal-dito dito dele é deletável
Pelo Insta, Face, YouTube e Twitter no país.
Mas para nós, mais do que um post, é enquadrável
O impostor que com o posto não condiz.
Disse que não aceitará o resultado
Se derrotado na eleição da nossa história,
E: “Eu tenho três alternativas pro futuro:
Ou estar preso, ou ser morto ou a vitória”,
Porque “somente Deus me tira da cadeira
De presidente” (Oh Deus proteja esse país!”).
Tivéssemos um parlamento confiável,
Sem x comparsas seus cupinchas, cúmplices,
E seu impeachment seria inescapável,
Com n inquéritos, pedidos, CPIs.
Não há cortina de fumaça indevassÁvel
Que encubra o crime desses tempos inci-vis
E tampe o sol que vem com o dia inadiÁvel
E brilha agora qual farol na noite gris.
É a esperança que renasce onde HÁ véu,
De um horizonte menos cinza e mais feliz.
É a passagem muito além do instagramÁvel
Do pesadelo à utopia por um triz,
No instante crucial de liberdade instÁvel
Pros democráticos de fato, equânimes,
Com a missão difícil mas realizável
De erguer das cinzas como fênix o país.
E quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?
Mas quem dirá que não é mais imaginável
Erguer de novo das ruínas o país?
Gilberto Gil, quando fala, compõe. Ele compõe enquanto fala, ele é músico à procura da letra, o que fica mais claro quando reitera palavras, expressões, na busca. Refrão e degrau para o movimento seguinte
Um dos gênios baianos do mundo, um dos gênios brasileiros portanto, Gilberto Passos Gil Moreira completou 80 anos. Estamos todos de parabéns por sua vida fecunda. Creio que não será excessiva a lembrança de uma complicada entrevista que ele me concedeu no Recife, há 15 anos. Vamos ao texto escrito e gravado.
As dificuldades de um repórter! Esta entrevista foi feita a duras penas com o então Ministro da Cultura, Gilberto Gil, em fevereiro de 2007, mas merece ser relida também por revelar os ossos do ofício, e o périplo que é gravar em alguns minutos as opiniões de um superstar-ministro.
A entrevista que vão ler durou somente 17 minutos. Mas isso não foi conseguido com facilidade, nem foi construído em 17 minutos. O compositor, cantor, músico, agitador cultural, então ministro Gilberto Gil, pelo cerco e pelo assédio da imprensa, pela corte que lhe segue, pela roda de pessoas excitadas com a sua presença, pela quantidade de fotos e imagens que a todo minuto lhe tiram, pelos interesses econômicos, financeiros, culturais que o envolvem, que o desejam a todo instante, o senhor Gilberto Gil é um pop star. Com a diferença, em relação ao mundo pop, que o star é um homem que pensa, que teoriza, é um pop culto, e que está no poder político. Todos lhe sorriem. Todos lhe são simpáticos. Todos querem tocá-lo na aura, se possível com volta de algo mais concreto que a luz mística.
Esta entrevista ocorreu na noite do sábado 10.2.2007. Era o último dia do Ministro da Cultura no Recife, onde chegara para a Feira Música Brasil. Ainda que houvesse acertado dois dias antes, e só o deus Mu Dança sabe que forças intestinas arranquei para isso, por várias vezes pensei desistir. Não fosse a minha mulher, eu teria desistido da entrevista. Fugido, corrido. Aos meus desabafos, enquanto caminhava ao longo de um préstito real, sufocado, quando eu dizia, “vou desistir”, a senhora Francesca era mais prática, como sói acontecer com todas as mulheres de indivíduos desastrados: “Você fez o mais difícil. Não pode mais desistir”. E por isso eu segui, com o mesmo sentimento dos que seguem a caminho da primeira viagem de avião. Talvez na porta, um segundo antes do voo, eu pudesse desistir, pensava. E por isso eu seguia e fui.
Entendam a razão. Quando o Ministro e Compositor desceu do palco no qual respondera a perguntas de um auditório, ao me acercar dele, recebi cotoveladas, discretos empurrões, golpes elegantes no ventre, passagens bloqueadas com ares de acaso. Todos cometidos pela elite cultural e artística. As pessoas educadas, finas, se agridem com etiqueta. Impossível não lembrar de O Anjo Exterminador. Com a diferença de que, agora, todos podiam sair e não queriam. Desejavam todos estar em torno, bem próximos, e o inimigo era quem pensasse igual e à sua maneira. Todos queriam estar perto, conversar, receber um olhar, um incentivo, sair na foto com o Ministro, que vem a ser a mesma pessoa do compositor mundialmente famoso. Senti-me sob constrangimento por ser um, mais um dos que lhe sorriem, que procuram ser simpáticos, úteis, camaradas. Tão íntimos somos, não é? Em resumo, o escritor que lhes fala era mais um dos que adulavam o pop star. O sorriso deles, o ar prestimoso, obsequioso, era o meu. Eu os censurava e os repetia. Que imagem, meus amigos. Isso não foi nem era o meu espelho inesquecível.
“Eu vou desistir, eu vou…”. A simpática assessora Nanan Catalão me concedeu: “Você tem um máximo de 20 minutos”. Certo. Mas onde? Iremos para algum lugar sossegado, uma reserva de paz nessa agitação? – A realidade tem a perversão de não ser conforme o nosso desejo. Eu não sabia que o mundo pop está acostumado a conversas sob luzes e câmeras e público ao redor. Para reforço do “eu vou desistir”, o compositor sentou-se em um banquinho, bem à vista de todos, à entrada do teatro. Um círculo de circo se abriu em torno de nós dois. Ficamos em uma arena. “Aqui mesmo”, Nanan apontou. Passei então a sorrir. Tiravam fotos do ministro, e se não houver uma segura edição, haverá um sujeito barbudo, perdido, a pensar em uma delas, “virei papagaio de pirata”. Aquele papagaio que aparece no ombro do pirata, bem sabem, no rótulo do Ron Montilla. Mas fotos não revelam pensamentos, podem apenas revelar caras assustadas, a sorrir. Menos mal. Ao trabalho. Já que chegaste até aqui…
Entre as minhas habilidades de repórter a pior delas é trabalhar com o gravador. Bom, eu estava com uma só fita cassete, cassete, isso mesmo, de uma entrevista com padres sobre a crise da Igreja em Pernambuco. Não havia outro remédio, eu deveria gravar por cima. Certo. Mas o que fazer com meu roteiro prévio, com a pesquisa feita durante todo o dia, em que alinhavei perguntas, intervenções, ditos espirituosos, que seriam ditos em sala fechada, eu e Gilberto Gil, quem sabe durante a noite inteira? “A sua vez é agora”, eu ouvi de Nanan. Era agora ou nunca, e eu não conseguia mais ler as perguntas anotadas em razão da miopia. Perguntas inúteis, naquela hora e circunstância. Então vamos, eu me disse, com uma resolução dos náufragos, se é que os náufragos têm alguma resolução. Notei então que a fita no gravador estava no fim – pelo menos à minha vista pareceu. E procurei, enquanto o Senhor Ministro esperava, achar o miserável e misterioso caminho por onde a fita seria retirada. Olhei para a minha mulher, e a sua cumplicidade me fez achar o caminho. Descobri, mudei o lado da fita. Muito bem, apertei a tecla vermelha. Gravando. Pergunto então ao compositor Gilberto Gil como foi o seu exílio em Londres, quando expulso pela ditadura. Ele me responde com um solo maravilhoso, a cantar em inglês. Que momento, que privilégio, eu me disse, e a fita parou de rolar, porque atingira o fim! Perdi a música. Um amigo então, o DJ e músico Tales, repôs a fita no lugar. E me avisou, gentil: “Está gravando”.
Não toquei mais no gravador, e por isso pude ver, ouvir e prestar atenção à pessoa do artista. Gilberto Gil, quando fala, compõe. Ele compõe enquanto fala, ele é músico à procura da letra, o que fica mais claro quando reitera palavras, expressões, na busca. Refrão e degrau para o movimento seguinte. Certo, dirão, isso é comum a toda e qualquer pessoa. Sim, mas observem esse trecho da entrevista: “Pedir pra fazer outro sucesso, depois outro sucesso, depois outro sucesso, o mesmo sucesso outra vez”, para concluir, “eu não quero”. Isso escrito não permite ouvir as modulações e melodia que ele imprime na voz. O ritmo, enfim. Quando ele se referiu a Paulo Francis, houve um trecho em que deu uma entonação ao adjetivo “inaceitáveis”, que procurei dar uma pálida ideia com um ponto de exclamação seguido de reticências. Ainda assim, se torna inaudível, na escrita. Direi então que o adjetivo “inaceitáveis” veio como uma ênfase, um trecho de um coco cantado por Jackson do Pandeiro. Percebem? Nele houve uma divisão silábica, que além da interpretação já é música. Inacei-táveis!… Diferente no entanto de Jackson, que era “esse jogo não é um a um, se o meu time perder eu mato um, é encarnado-preto-e-branco, é encarnado-e-preto”, para quem as coisas, os fenômenos se definiam por oposição, o que é típico da formação de um homem do povo, de modo diferente o compositor Gilberto Gil compõe. Tem idas e vindas a sua fala, sem jamais chegar a uma definição que não admita nuances. Para ele não existe A ou B, para ele, sempre, as coisas são A e B ao mesmo tempo. Por vezes pode chegar à metafísica, mas é metafísica agradável, que guarda uma dialética, se nos expressamos à sua maneira. Ele poderá dizer, por exemplo, que as coisas não existentes existem, e completar, para maior espanto, que o não existente é o que existe. Formulação ina-cei-tável em Jackson do Pandeiro.
Essa maneira, dizendo melhor, esse conteúdo de expressão, porque nele a forma é sempre o conteúdo, leva-o a evitar os substantivos mais simples, como se fossem primitivos, toscos, poderia ser pensado. Mas não. Isso é tático, quando não estratégico. Ou ambos, para escrever à sua maneira. Vocês irão ver nesta entrevista como ele se refere a uma parcela do público brasileiro que admirava o Tropicalismo. Em nenhum momento ele dirá que eram jovens militantes da luta armada, do foco. Ou melhor, dirá isso de outra maneira, por um método de aproximação. E no entanto, saibam, isso não é descoberta desses dias. Eu mesmo conheci jovens que aliavam sua prática de combate à ditadura a palavras do tropicalismo. Contrários ao mundo dos olhos claros, de Carolina e Januária na janela, do Chico Buarque daqueles anos, naquele tempo. E eram típicos, digamos assim, esses bravos militantes. Daí, também, que nessa busca Gilberto Gil crie neologismos, em mais de uma oportunidade. Ele está compondo, sempre. Como vocês verão, agora.
Desta vez é à vera. Gravando
(Vozes, murmúrios, de outra entrevista, palavras ao fim, de Gil: “Manda um beijão pra ele….”.)
Urariano Mota entrevista Gilberto Gil
Urariano Mota – Em 1969, você e Caetano foram expulsos do Brasil pela ditadura militar. Como é que você vê hoje, quando deu a volta por cima, primeiro com sua música, depois politicamente, porque é um ministro do governo. Que lembranças lhe dão o golpe de 1964?
Gil – Das lembranças que a gente tem normais, do passado. Com as boas e más lembranças do passado. Com a recordação dos bons momentos e dos maus momentos, do que os bons momentos fizeram de mal à minha vida, do que os maus momentos fizeram de bem à minha vida … (Ri) Tudo isso.. (E faz um gesto amplo, circular, com os braços.)
UM – Depois, quando saiu do Brasil, você compôs “Aquele abraço”.
Gil – Foi… Eu fiz já aqui no Brasil ainda, saindo. Na semana que eu estava indo embora, eu gravei. Na véspera de eu ir embora, eu gravei.
UM – “Alô, alô Realengo”… Paulo Francis, de quem a gente nunca pode dizer que era um amor de pessoa, ele chegou uma vez no Pasquim…
Gil – Não, até que um amor de pessoa a gente pode dizer. A gente pode dizer que talvez ele não fosse uma pessoa do amor. (Risos) Que ele era amável, em tudo. Mas renitente com esse exercício irrestrito da amorabilidade. Ele tinha coisas das quais ele não queria mesmo gostar e não queria que aquelas coisas fossem aceitáveis, que eram pra ele inaceitáveis!…
UM – Ele chegou uma vez a te elogiar num artigo no Pasquim, quando escreveu mais ou menos assim, “o Gil poderia estar mais do que rico depois de ‘Aquele abraço’, mas ele não é homem de repetir a fórmula que deu sucesso”.
Gil – Eu nunca fiz música pra, pra…
UM – Tocar no rádio?
Gil – Não, pra estabelecer uma linha de montagem, ou estabelecer uma reprodução do mesmo modelo, pra explorar os filões de mercado, coisa desse tipo nunca foi preocupação minha. Eu gosto de fazer sucesso, eu gosto de vender disco também, tudo, mas não, por exemplo, eu gosto de fazer sucesso, mas não gosto de fazer os mesmos sucessos duas vezes, por exemplo. (Risos) Eu não gosto muito. (Risos.) Pedir pra fazer outro sucesso, depois outro sucesso, depois outro sucesso, o mesmo sucesso outra vez, eu não quero. (Risos)
UM – Você esteve aqui no Recife em 67, passou dois meses, travou contato com o pessoal do Teatro Popular do Nordeste…
Gil – Com Leda Alves, Hermilo Borba Filho…
UM – Como foi essa sua passagem pelo Recife?
Gil – Ah, um mês eu fiquei aqui, aí eu conheci Teca Calazans, eu conheci Geraldinho Azevedo, eu conheci Marcelo do Quinteto Violado, conheci Toinho do Quinteto Violado, os meninos, conheci tanta gente, conheci Carlos Fernando, conheci tanta gente…
UM – Visitou Caruaru?
Gil – Fui a Caruaru. Ainda hoje eu fui a Caruaru com Fernando Lyra, que me recebeu em Caruaru, daquela vez, há 40 anos, enfim. Naquela época Carlos Fernando me levou pra Zona da Mata, me levou pra Nazaré da Mata, me levou pra os lugares todos, eu andei por tudo isso aqui. E ali o centro era o Teatro Popular do Nordeste, o TPN, era, toda a noite eu me apresentava lá, durante pelo menos duas semanas eu fiquei lá cantando, toda noite, e ali iam os músicos, e ali apareceu o percussionista, o nosso querido Naná Vasconcelos, que era baterista da banda da Aeronáutica naquela época.
UM – E você gravou Pipoca Moderna, não foi isso?
Gil – Gravei… Eu na verdade eu não gravei. Pipoca Moderna eu pus a gravação, abri meu disco Expresso 2222 com a gravação da Banda de Pífanos de Caruaru, que eu tinha feito em um gravadorzinho como este seu (aponta para o meu pré-histórico gravador da Sony), com Carlos Fernando, na época em que nós fomos a Caruaru. Há 40 anos. E eu pus essa música na abertura do disco Expresso 2222. Mais tarde Caetano fez uma letra para o Pipoca Moderna, e aí ele próprio gravou, e outros artistas gravaram Pipoca Moderna, como canção, cantada. Mas a primeira publicação dela foi feita através do disco Expresso 2222 com uma gravação doméstica da Banda de Pífanos de Caruaru.
UM – Você tem uma coisa interessante, que é como você une o popular à vanguarda. Como é que é isso?
Gil – Em todo o mundo a gente faz isso. Cada um tem o seu modo de fazer. O Chico faz isso, o Caetano faz isso, os Beatles faziam isso na Inglaterra, Bob Dylan fez isso nos Estados Unidos. Muita gente faz isso, é uma prática que se tornou comum, os artistas não querem ficar isolados, em um segmento só, confinados a um determinado só único mundo musical, música é um trânsito permanente entre… Todos nós tivemos música clássica em nossa infância, ouvimos Bach, ouvimos Beethoven, ouvimos isso, ouvimos aquilo, somos influenciados por esses contextos, e ao mesmo tempo temos a música da rua, a música de nossas cidades, a música de nossas feiras, de todos os lugares. Enfim, queremos misturar tudo isso, queremos fazer com que esses espaços dialoguem, uns com os outros, não é? Então eu tenho o meu modo de fazer isso. Às vezes, antigamente, por exemplo, naquela época aqui, eu peguei duas cirandas, utilizei excertos dessas cirandas, não é?, e complementei com canções que eu fiz. É o caso do Pé da Roseira, é o caso da Barca Grande, é… (Canta)
Isso é uma ciranda. (Canta)
Também é uma ciranda. E no entanto essas cirandas viraram trechos iniciais de canções mais longas que eu fiz. Há muitas maneiras.
UM – Villa-Lobos fazia isso.
Gil – Fazia isso também. Bartók fazia isso, Bach, não é?
UM – Você é um compositor que sem alarde, ou como se dizia naquela época, “sem dar bandeira”, você é um compositor muito político. Pelo que eu lembro da juventude da época, na ditadura militar, eu lembro que o movimento tropicalista era relacionado a determinada linha de combate clandestino. Você faz essa relação? Por exemplo, tinha ala da esquerda que era do lado de Chico Buarque, tinha ala da esquerda que era do Tropicalismo, você vê isso?
Gil – Acho que sim. Acho que era. As pessoas associavam sua política, seu compromisso… (tosse) a determinados campos, na própria política e no campo estético também. Então o Tropicalismo estava ligado às correntes mais … mais audaciosas, mais, que predicavam uma ruptura maior, que predicavam uma ruptura de um convencionalismo estético, artístico, e etc., e também político, não é? Nós gostávamos das correntes políticas mais autônomas, mais abertas, menos subordinadas a linhas programáticas clássicas.
UM – Quando você diz que pegava uma linha política mais aberta, menos amarrada a programas tradicionais, eu lembro que a sua trajetória de diálogo com a esquerda nem sempre foi ausente de conflitos.
Gil – Foi tangencial sempre. (Riso) Eu nunca mergulhei em nenhuma corporação, em nenhuma unidade da política das esquerdas, porque eu sempre fui uma coisa que o Partido Comunista naquela época costumava classificar como “linha auxiliar”. (Riso) Eu ajudava, mas eu não era propriamente um …
UM – Era um aliado?
Gil – Eu era um aliado. Eu tinha esse trabalho tangencial, onde nos pontos onde havia tangenciamento entre meu processo e o processo deles, a gente caminhava junto. Nos outros, eu ia solto.
UM – Você sabe o que ocorreu com Geraldo Vandré?
Gil – Não tenho tido notícias recentes dele… Notícias até tenho, não tenho tido contatos recentes com ele. Os últimos contatos que eu tive com Vandré já vão alguns anos atrás. Ele se envolveu num processo de mais reclusão, de mais afastamento…
UM – Esquizofrenia, parece.
Gil – É o que dizem dele. Ele teve o conjunto das questões dele, teve esse aspecto também de uma problematização psiquiátrica também. De formas que ele descontinuou um pouco o trabalho, propriamente. Vandré não deu continuidade ao trabalho dele.
UM – Você chegou a ser parceiro dele.
Gil – Muito, em algumas canções. Umas quatro ou cinco fizemos.
UM – Como estão hoje as suas relações com Caetano Veloso?
Gil – Isso é fácil. As mesmas de sempre. (Riso)
UM – As relações de amizade são ótimas.
Gil – São ótimas. As relações de convívio, nem tanto… por causa dos descaminhos, os nossos caminhos cruzam pouco hoje, porque eu estou com o Ministério, eu viajo muito, estou muito fora… (Tosse) do Brasil, fora do Rio, e tal. Então são muito poucas as oportunidades de sentar, conversar, conviver. Outro dia, a última vez em que nós estivemos juntos foi numa situação muito auspiciosa, que era um show dele em Porto Alegre, eu tinha ido a Porto Alegre para uma atividade ministerial, e havia um show de Caetano naquela noite em Porto Alegre. E eu fui, e depois do show, além de ter tido esse momento extraordinário de poder assistir a um show dele, ainda saímos juntos pra noite porto-alegrense depois.
UM – Fumaram o cachimbo da paz.
Gil – Fumamos … Não, não, o cachimbo da paz já está. A paz nunca deixou de existir entre nós. Mas nós pudemos conviver durante algumas horas numa forma como a gente não vinha podendo conviver.
UM – Agora, a pergunta que eu venho guardando desde o começo: se você não fosse um homem negro, que artista você seria?
Gil – Eu não faço a menor idéia. (Risos.) Eu não faço a menor idéia. Eu não teria essa sestrosidade rítmica que eu tenho, isso é uma coisa que eminentemente muita gente tem, outras raças, outros contextos étnicos propiciam, mas a vivência negra, da cultura negra… e quando eu digo raça, digo nesse sentido, de mais no sentido da cultura, de ser negro culturalmente negro me dá uma relação com a música, com o ritmo, com o mundo religioso, com tudo enfim que eu não teria não sendo negro, e portanto não seria o artista que eu sou. Seria outro. Outra pessoa. (Riso e sorriso.)
UM – E se você não fosse músico, o que você seria?
Gil – Arquiteto, talvez.
UM – Nada a ver com administração de empresas.
Gil – Não, porque eu me formei em administração de empresas, mas na verdade o campo de aplicação do meu talento mesmo, o campo de interesse da minha expressividade interior, etc. , se não na música se daria mais proximamente de uma coisa como Arquitetura.
UM – Seria ligado à arte de qualquer maneira.
Gil – É isso o que eu quero dizer. Mais do que administração. Ainda que eu goste de administração, tanto que eu fiz administração, e tanto que eu tentei aproveitar o que aprendi na formação, no campo prático, criei minha própria empresa, e coisas desse tipo. Me interessei por esse lado do empresarial, eu fui sem dúvida alguma muito estimulado pela formação da universidade.
UM – Eu visitei seu site oficial, e pude ver que você nasceu em Salvador, mas teve uma infância rural.
Gil – Nasci em Salvador circunstancialmente, em uma família que já habitava, que já morava no sertão. Ituaçu. Minha mãe veio pro parto em Salvador, porque era de família de lá, meu pai também, minha mãe ainda viva, está com 93 anos agora, meu pai já é falecido, mas eram ambos de Salvador, tinham ido pro sertão e casaram e foram pro sertão. Na hora em que nasceu o primeiro filho, voltaram para Salvador, porque era lá que as famílias deles estavam. Então era mais seguro, mais aconchegante… (Faz um gesto a indicar que está na hora de encerrar)
UM – Só uma última pergunta. Não existe um Gil. Existem Gis. Há muitas imagens físicas, fases, variações na sua vida…
Gil – Isso é comum a todos os seres humanos. Não existem indivíduos. Existem divíduos, como diz Gilles Deleuze. (Ri.) Ninguém é um. Todos nós somos muitos, somos múltiplos.
UM – Muito obrigado, Ministro.
Há uma unidade na obra toda. E o trabalho de montagem foi então o fundamental. Mas é o olhar de uma pessoa que conhecia a entrevistada, como a filha, que permitiu que isso acontecesse
por Celso Marconi
Há dias que estava pensando em assistir à série “O canto livre de Nara Leão” e resolvi fazer isso ontem no meu novo computador. E fiz vendo os cinco episódios em continuação. Não quero analisar o trabalho da equipe da Globo, pois como não acompanho as séries que eles apresentam, apenas sei do bom nível que é considerado inclusive “o padrão global”. O que mais me interessa é o aspecto político. Como estaria sendo apresentada culturalmente essa excepcional artista brasileira Nara Leão?
Quero declarar que tive um prazer muito grande na imagem e na expressão que a série me colocou para ver. Em vários momentos, me senti revivendo minha própria vida. Como vivi na luta cultural como jornalista e com posição ideológica clara desde os anos 50 do século passado, uma figura como Nara Leão me faz reviver o tempo. E cada situação da sua vida faz parte da minha vida. Bossa Nova. Tropicalismo. Chico Buarque. Roberto e Erasmo. Tenho a impressão de que foi a presença da filha Isabel Diegues na coordenação da série que a transformou num documento não só da maior importância cultural, mas também dos mais prazerosos de ser assistido.
É importantíssima a presença física da artista na série. Certamente, as muitas entrevistas apresentadas não foram feitas com o intuito de fazer parte de uma série, mas foram bem aproveitadas e assim o espectador tem então uma continuidade. Há uma unidade na obra toda. E o trabalho de montagem foi então o fundamental. Mas é o olhar de uma pessoa que conhecia a entrevistada, como a filha, que permitiu que isso acontecesse. E também a sensibilidade criativa dessa filha.
A melhor entrevista feita especificamente para a série é certamente da atriz Marieta Severo, que foi amiga da Nara durante os dois anos em que viveram na França. Como a atriz Marieta Severo diz, se aproximavam muito por necessidade emocional. Estavam vivendo lá os dois casais por impedimento político durante a ditadura de 64. E Marieta Severo se mostra alguém de bem conhecer uma amiga. Uma grande atriz de teatro, vivendo convivendo com outros artistas como Nara, Chico e Cacá. Aspectos da personalidade de Nara são revelados, buscando mostrar a mulher integral que Nara Leão foi. Cantora e pessoa consciente.
De certa forma, Nara Leão assumiu na sua vida cultural política uma posição que artistas como um Caetano também fizeram. E Nara talvez por questão de temperamento e por condição socieconômica pôde viver e expressar, e então mudar de posição do ponto de vista artístico sem mudar de ideologia. Nara fez Bossa Nova como musa, mas não se prendeu ao movimento como muleta. Passou para cantar samba. Cantou canções românticas de Chico Buarque. E interpretou músicas da Jovem Guarda com a mesma criatividade. Não quis nunca ser uma funcionária da interpretação musical. Se pode dizer que fez isso porque tinha condições econômicas, mas muitos quanto mais têm riqueza menos se libertam. A posição de Nara foi declaradamente inteligente e honesta.
Pessoalmente, só encontrei uma vez Nara Leão, numa ocasião de um show que aconteceu no Geraldão no Recife, não me lembro bem como. A verdade é que ela estava dando uma coletiva na ocasião, e eu comecei uma conversa grande após. Então ela me disse não poder demorar mais, embora gostasse de participar dessa conversa, pois havia me achado parecido com “um grande amigo meu” (dela). Certamente, nenhum dos que aparecem na série da Globo.
Olinda, 20. 03. 22
Ainda sobre a série de Nara Leão
A gente sabe que a empresa Globo de comunicação, desde que foi criada, vem servindo para criar em nosso país uma consciência negativa e de submissão. Até mesmo quando estava em vigor a ditadura de 64 e nesse período principalmente. Mas nem sempre um produto deles pode ser desprezado como negativo. Uma série como essa tem a necessária garra de realização para mostrar o outro lado da nossa vida, mesmo dentro desse período. E a vida de uma mulher como Nara Leão é capaz de representar esse lado de importante resistência que vivemos na segunda metade do século XX. E a série consegue ser tecnicamente correta.
Que sequência magnífica temos quando é apresentada a crônica de Carlos Drummond de Andrade em defesa da liberdade de Nara Leão. Naquela época, eu não era muito simpatizante de Drummond, e claro que pela sua posição pessoal de ligação com o pessoal do poder. E nem mesmo sou grande leitor de Drummond, embora hoje o considere como todo mundo um maravilhoso poeta. Mas o que penso que deve ser realçado é o aproveitamento que conseguiram fazer da crônica. Mesmo hoje a emoção é demais presente.
Outro aspecto que deve ser destacado da série é a entrevista com Chico Buarque. Ela foi montada de maneira muito inteligente. Por exemplo, quando Chico fala sobre quando conheceu o apartamento de Nara, e então vem a declaração da própria cantora. Cria-se um elo entre os dois de forma correta e dinâmica. Chico Buarque inclusive mostra a importância que a cantora teve no seu sucesso como compositor. O trabalho criado pelos realizadores da série levou em conta não a sequência em si, mas como ela seria importante para a sua continuidade na história.
Também conseguiram manter uma narrativa dinâmica e muito explícita nas situações com Erasmo e Roberto Carlos. E até a simples declaração de Bethânia dizendo que Nara era namoradeira ganha um sentido dinâmico na série. Talvez tenha faltado mais empenho na última sequência em que aparece Roberto Menescal.
Enfim, claro que a cultura brasileira não está morta e certamente no próximo ano voltará a brilhar.
Olinda, 20. 03. 22
por Gustavo Krause
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“Estou aqui de passagem – alerta Caetano – sei que adiante um dia vou morrer de susto, de bala ou vício”. Seja como for, o Homem é o único animal que tem consciência de sua própria finitude, fonte de angústia que se manifesta de várias formas.
Não abandona, porém, a luta inglória pela sobrevivência e, neste sentido, ensina o filósofo francês Luc Ferry: “Apender a viver, aprender a não mais temer em vão as diferentes faces da morte, ou, simplesmente superar a banalidade da vida cotidiana, o tédio e o tempo que passa”.
Trata-se de um sério desafio, especialmente, quando as trombetas da guerra não cessam de anunciar a nossa fragilidade existencial.
Inconformado, o ser humano segue a busca improvável da imortalidade. No alvorecer do século XXI, pensadores transumanistas, bioconservadores e bioprogressistas desbravam novos horizontes ao manejar a NBIC (Nanotecnologia, Biologia, Informática, Ciências Cognitivas – Inteligência Artificial e Ciências do Cérebro).
Polêmico, Alexandre Laurent, autor de A morte da morte (Barueri: Manole, 2018) argumenta com o crescimento expressivo da longevidade (200 anos no fim do século XXI) para afirmar: “A morte é um problema a resolver e não uma realidade imposta”.
À afirmação que o homem híbrido ou o pós-humano são possibilidades, prefiro, as dúvidas de Harari, expressas na obra Homo Deus: uma breve história do amanhã (Ed. SCHWARTZ. São Paulo, 2016): “1. Será que os organismos são apenas algoritmos, e a vida apenas processamento de dados? 2. O que é mais valioso – a inteligência ou a consciência? O que vai acontecer à sociedade, aos políticos e à vida cotidiana quando os algoritmos não conscientes, mas altamente inteligentes nos conhecerem melhor do que nós mesmos?”
Atualmente, a Humanidade enfrenta quatro persistentes ameaças: fome, pestes, guerras e aquecimento global. “Pela primeira vez na história – escreve Harari – morrem mais pessoas que comeram demais do que de menos; mais pessoas morrem de velhice do que de doenças contagiosas; e mais pessoas cometem suicídio do que todas as que, somadas, são mortas por soldados, terroristas e criminosos”.
Aí percebemos a armadilha da insignificância. O ser humano perde relevância em distintas situações; a luta pela vida em tensão doentia; a luta contra a guerra, vítima, por atacado, da tecnologia do assassinato.
Neste cenário, o poder despótico manipula pessoas em massa. Na sequência das vertiginosas mudanças, serão usadas como chips do Dataísmo – a religião dos dados, uma configuração de poder com efeito explosivo em que algoritmos eletrônicos decifrem e superem os algoritmos bioquímicos.
O jornal francês Libération traz uma longa entrevista nesta segunda-feira com Caetano Veloso, que explica as motivações estéticas e ideológicas de seu último disco, Meu Coco
O jornal francês Libération traz uma longa entrevista nesta segunda-feira (3) com Caetano Veloso. Aos 79 anos, o compositor e cantor baiano continua "convincente" em seu último disco, Meu Coco, assinala o Libé, que se interessou pelas motivações estéticas e ideológicas do novo álbum.
"Ele é capaz de associar em uma mesma canção tambores de maracatu, nuances de bossa-nova, arranjos de jazz, guitarras de rock e pitadas de pop. Outra característica típica da obra de Caetano é sua capacidade de sublimar o Brasil sem dar o menor sinal de nacionalismo", destaca o jornal francês.
Para o jornalista Jacques Denis, que entrevistou o cantor por telefone, Caetano é um homem "decididamente conectado ao nosso tempo, sem dúvida preocupado com o passado". "O mais carioca dos baianos cultiva com esplendor a arte do paradoxo, permanecendo, apesar dos anos, este pensador tropicalista que pretendia revolucionar a música popular brasileira ao colocá-la em contato com os ecos do mundo", avalia o crítico.
"Além de cantar as virtudes do samba, com alguns experts do gênero, o compositor brasileiro sabe elevar a voz contra os excessos populistas de Jair Bolsonaro (...) Com Caetano, tudo é possível (...) Em seu labirinto estilístico, nunca nos perdemos, somos todos guiados por esta voz única", escreve o jornalista.
Na entrevista, Caetano evoca suas influências, que vão das conversas com João Gilberto à poesia concreta de Augusto de Campos. Ele explica, sobretudo, que o samba marca seu posicionamento estético.
Sobre a forte conotação política do disco Meu Coco, o baiano diz que as redes sociais propiciaram o surgimento da atual onda de extrema direita e aberrações políticas da pior espécie, como o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, além de Donald Trump e Victor Orbán, na Hungria. Mas Caetano está convencido de que apesar das fake news propagadas nas redes, e que sustentam esse movimento internacional ultraconservador, "essas ideias podres não conseguirão mudar o senso da história".
Contrariamente a alguns artistas que preferiram se afastar do debate político desde a eleição de Bolsonaro, Caetano afirma que continua conectado ao mundo e à criação artística. Ele diz que respeita quem não quer interferir no debate público, embora sua natureza seja diferente. Por isso, ele gravou Não Vou Deixar, a canção mais explicitamente política do novo disco, na qual se dirige diretamente ao presidente do Brasil.
por José Ribamar Bessa Freirea /Taqui Pra Ti
“Só a poesia possui as coisas vivas. O resto é necropsia”
(Mário Quintana)
Quem está tentando matar a poesia no Brasil? Para identificar os autores de tais ações foi criada na Câmara de Deputados a CPI da Poesia, que tem o poder de convocar até os mortos. No entanto, como seu foco abrange narrativas literárias e outras formas de expressão artística, indo além do ato poético em si, talvez devesse se chamar a CPI da Poética. De qualquer forma, sua presidente, a deputada federal Joênia Wapixana (Rede/RR), intimou várias testemunhas, advertindo que os mentirosos podiam sair dali presos.
O primeiro depoente vivo foi o cartunista e poeta Ziraldo, 88 anos, criador na época da ditadura militar de uma cor denominada Flicts, que servia de vacina contra a tristeza e a depressão e era o encanto das crianças. Ele fez um histórico da quadrilha poeticida cujo comandante, nascido em 1955 em Glicério (SP), odiava versos, uivava e latia cada vez que via um poeta vivo. O seu lema era “Ódio a Ode”. Perseguia ferozmente o Flicts, ameaçando-o com uma “arminha”, quando então exibia cor e esgar estranhos. Por isso, foi apelidado de Grrrr-au-au.
Convocado do céu, onde reside há quase dois anos, o cantor João Gilberto, inventor da bossa nova e celebrado no mundo inteiro, confirmou à CPI que Grrrr-au-au abominava aquilo que ignorava. O comandante da quadrilha nunca havia ouvido uma música sua, não decretou luto oficial por sua morte, limitando-se a comentar: “Parece que era uma pessoa conhecida”. Citou Caetano Veloso que na ocasião se manifestou chocado com o tom de desprezo e a ignorância de Grrrr-au-au. No final, o depoente indagou à presidente se podia cantar “Chega de Saudade”.
– Não. Quem tem que cantar aqui é o MC Reaça – interrompeu aos berros o Pit Bull Rachadinha, que nem era membro da CPI, mas sugeriu que fosse convocado do inferno, onde reside, o autor do Proibidão do Grrrr-au-au para quem “as feministas merecem ração na tigela e minas de esquerda tem mais pelo que cadela”. Instaurou-se uma balbúrdia e a sessão foi suspensa.
O idiota e os bocós
Os trabalhos foram retomados com o depoimento de um vizinho de João Gilberto no céu. Era o poeta e cronista Aldir Blanc, vascaíno doente, coautor de A Cruz do Bacalhau, morto em decorrência do Covid-19, sem que houvesse qualquer manifestação da então fugaz secretária de cultura Regina Duarte, emudecida também diante das mortes do escritor Rubem Fonseca, do cantor Moraes Moreira, do ator Flavio Migliaccio e do teatrólogo Jesus Chediak.
Aldir, autor de Mestre Sala dos Mares e O Bêbado e a Equilibrista, chutou o pau-da-barraca ao traçar o perfil do chefe da quadrilha com aquele estilo que desenvolveu em sua coluna nos semanários O Pasquim e Bundas:
– O Grrrr-au-au nunca leu um único soneto em sua vida e queixou-se dos livros “que têm excesso de palavras”. Taxou as publicações com impostos altos, mas eliminou a tributação para a compra de armas. Quando se apropriou da cor verde-amarela foi para enganar os incautos e trouxas e, dessa forma, disfarçar a sua baba gosmenta, o seu olhar alucinado de cachorro doido, como no poema de Zeca Baleiro. Declarou guerra à literatura, alegando que o Brasil tem que deixar de ser um país de maricas. Destilou preconceitos homofóbicos ao afirmar que quem gosta de poesia é gayzinho. Chamou de idiotas as pessoas que em razão da pandemia até hoje ficam em casa escutando música e lendo poemas.
Em seguida, a CPI quis ouvir o poeta Manoel de Barros, vindo do Pantanal do Olimpo, a toca de Zeus. O relator Mário Juruna indagou se a poesia merecia ser exterminada como pregava o Imbrochável Grrrr-au-au e se era mesmo diversão de “idiotas”.
– Bocó é um que gosta de conversar bobagens profundas com as águas. Bocó é aquele homem que fala com as árvores e com as águas como se namorasse com elas – respondeu o poeta.
– Mas afinal, o que é poesia? – perguntou o relator.
– Todas as coisas cujos valores podem ser disputados no cuspe à distância servem para poesia. Quando as aves falam com as pedras e as rãs com as águas, é de poesia que estão falando. Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira. A linguagem da poesia força a realidade a se manifestar, escava suas profundezas e traz à tona as situações fundamentais da condição humana, como queria Alfred Doblin. Por isso ela é odiada pelo Grrrr-au-au.
O outro capitão
O último a depor nesta primeira etapa da CPI foi o ator estadunidense Robin Williams, que reside hoje no andar de cima, mas viveu na tela o papel do professor de literatura no filme “Sociedade dos Poetas Mortos”. Ele declarou que rompeu com o autoritarismo do colégio tradicional, uma espécie de “escola sem partido”, combatendo seu caráter castrador e repressivo. Seu depoimento forneceu elementos para a CPI dimensionar a poesia:
– Nós não lemos e escrevemos poesia porque é algo bonitinho, mas porque somos membros da raça humana, existe um poeta dentro de cada um de nós – ele disse.
Confessou ainda que orientou seus alunos a escreverem poemas, lidos em um clube secreto que funcionava numa caverna perto da escola. Lá, escondidos da repressão, promoviam saraus de poesia. O diretor, que estudou na mesma cartilha de Donald Trump, demitiu o professor e mandou-o recolher seus pertences na sala de aula. Ali, ele recebe uma homenagem dos estudantes, que sobem nas carteiras da sala seguindo a lição de rebeldia contra a autoridade burra, saudando-o e reconhecendo sua liderança: “Captain, my captain”. Esse era o “outro capitão”, o capitão inteligente.
– É simples assim – disse o professor aos membros da CPI. Um manda e os outros desobedecem. Ordens que atentam contra a espécie humana não devem ser cumpridas.
A CPI da Poesia vai ouvir ainda inúmeros poetas e músicos: Drummond, Manuel Bandeira, João Cabral, Castro Alves, Luiz Gonzaga, Pixinguinha, Clementina de Jesus, Patativa do Assaré, Cecília Meirelles, Adélia Prado. Cora Coralina, os poemas eróticos de Hilda Hilst e tantos outros. Drummond vai dizer por que perguntou em A Flor e a Náusea: “Crimes da terra, como perdoá-los?” e explicar se existe ódio sadio expresso nos versos: “Meu ódio é o melhor de mim, com ele me salvo e dou a poucos uma esperança mínima”. Qual a diferença deste para o ódio do Grrrr-au-au?
Serão convocados poetas amazonenses, entre eles Thiago de Mello para saber se continua cantando no escuro, além de Luiz Bacellar, Elson Farias, Aldizio Filgueiras, Dori Carvalho, Luiz Pucu, que devem se pronunciar sobre as ameaças à Zona Franca feita por Grrrr-au-au com o objetivo de impedir que a CPI da Poesia identifique os autores do poeticidio.
Por último, a CPI ouvirá poetas indígenas, entre eles Eliane Potiguara, Graça Graúna, Zélia Puri, Ailton Krenak, Davi Kopenawa, Dauá Puri, Ademário Payayá, Cristino Wapixana, Tapixi Guajajara e Daniel Munduruku que acaba de se apresentar para uma vaga na Academia Brasileira de Letras (ABL). Eles dirão se o poema abaixo de Miguel Panemaxeron Surui está mesmo anunciando o fim dos latidos de Grrrr-au-au e do pesadelo vivido pelo Brasil.
Passam os anos, passa a vida
Passa o tempo, passam as coisas,
Passam perto de mim as pessoas,
Passa dentro de mim o amor.
Por que isso comigo se passa,
Se já nem sei mais quem sou?
P.S. 1 – O ódio de Grrrr-au-au aumentaria se soubesse que no sábado (22) foram lançados dois novos livros. De manhã Pequenas conquistas perdidas com 45 crônicas do poeta Dori Carvalho. E logo onde? Nada menos que no Amazonas, que ele sonha deixar sem uma árvore em pé. E à tardinha, no Rio, o romance Morte Certa de Dau Bastos, professor de literatura na UFRJ.
P.S. 2 – Este texto se inspirou numa conversa telefônica com meu amigo Guillermo David, diretor nacional de Coordenação Cultural da Biblioteca Nacional da Argentina. Ele está relendo Guimarães Rosa e eu revisitando Julio Cortazar. “Os que amam a literatura estão salvos porque têm onde se refugiar nesses tempos sombrios” – ele disse. Daí a ideia de que a poesia é uma vacina de esperança.
O traficante de drogas Rene Luiz Pereira, que levou à prisão o doleiro Carlos Habid Chater, que levou à prisão o doleiro Alberto Youssef
“Tempo, tempo, tempo, tempo
Quando o tempo for propício
Tempo, tempo, tempo, tempo”
(Caetano Veloso)
“O tempo é o senhor da razão”. A famosa frase, empunhada em momentos distintos por Fernando Collor de Mello e Ullysses Guimarães, ora poderia ser dita pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao ver reconhecidas, pelo Supremo Tribunal Federal, a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba e a suspeição do ex-juiz Sergio Moro, tantas vezes alegadas por sua defesa técnica.
Enfim, tais teses encontraram uma situação de tempo e terreno adequados para que o Supremo Tribunal Federal decidisse decidir sobre elas. Há, contudo, acusados que ainda aguardam a mesma sorte, pois jamais foram analisados seus argumentos defensivos que questionam a competência da 13ª Vara Federal Criminal para julgamento de toda a operação “lava jato”.
A fixação da competência da 13ª Vara Federal de Curitiba para a apreciação de fatos ocorridos na Petrobras é, juridicamente, inexplicável. Não há respaldo nas regras processuais penais, inexiste decisão do Supremo Tribunal Federal que a tenha analisado a fundo e a chancelado. Como tantas pessoas podem ter sido julgadas e condenadas por um juiz de Curitiba, por fatos alegadamente ocorridos no Rio de Janeiro, em São Paulo ou Brasília, sem qualquer conexão com o Paraná? Nada mais incompreensível.
A verdade é que a fixação da competência em torno do então juiz Sergio Moro foi fabricada, jurídica e midiaticamente, de modo que sua manifesta incompetência se soma à sua suspeição.
Um magistrado não pode decidir o que deseja julgar. Não pode ressuscitar uma colaboração premiada já arquivada para se autoproclamar o juiz da causa. Não pode inventar alegadas prevenções ou conexões. Da mesma forma, não pode se apegar aos casos que estão sob sua incumbência, ao ponto de omitir das instâncias superiores a identidade de investigados com foro por prerrogativa de função. Não pode ferir o sigilo de conversas entre advogados e clientes. Não pode dar recomendações ao Ministério Público. Não pode.
Tudo isso — e muito mais que essas linhas não comportam no momento — foi visto na origem da operação “lava jato”, antes mesmo de ela receber esse nome [1]. Todos os argumentos foram expostos, sem sucesso, em alentadas exceções de incompetência e de suspeição, Habeas Corpus e apelações, a evidenciar que Sergio Moro não poderia permanecer como o juiz único das ações, forçadamente aglomeradas sob o argumento de que se relacionavam às “fraudes na Petrobras”, e, ainda mais grave, que ele não ostentava a imparcialidade que se espera de um magistrado.
Apesar de “um processo sem regras” não ser um processo, como afirmou recentemente o ministro Gilmar Mendes, fato é que os tribunais superiores não se aprofundaram nas discussões sobre a fixação da competência para o início da “lava jato”. É como se a competência da 13ª Vara Federal de Curitiba para julgamento de casos da Petrobras fosse uma espécie de “premissa”. Uma ideia fabricada pelo juízo, ampliada pela mídia e facilitada pelo fato de a “lava jato” configurar um emaranhado de maxiprocessos, de difícil compreensão.
Um episódio retrata bem o que aqui se afirma. Nos idos de maio de 2014, quando eclodiu a fase ostensiva da “lava jato”, com a prisão de Paulo Roberto Costa, sua defesa apresentou uma densa petição (Reclamação nº 17623/PR) na qual sustentava, entre outros argumentos, a incompetência do juízo de Curitiba. O ministro Teori Zavascki proferiu decisão liminar, por meio da qual suspendeu os inquéritos e ações penais sob a atribuição de Sergio Moro, determinou que fossem colocados imediatamente em liberdade todos os investigados/acusados e ordenou a remessa imediata dos autos ao Supremo Tribunal Federal [2], o que possibilitaria a análise minuciosa da operação.
O que um juiz de primeira instância deve fazer diante de uma decisão de um tribunal superior? Cumpri-la, decerto. Não foi o que Sergio Moro fez. Escancarando sua suspeição, o “juiz herói” preferiu enviar um ofício ao ministro Teori Zavascki solicitando “esclarecimentos sobre o alcance da decisão” [3]. Disse que sua dúvida consistia no fato de, entre os réus, haver doleiros e um traficante internacional de drogas que poderiam fugir do país.
Alberto Youssef financiava o tráfico de drogas e foi inocentado pela dupla Moro/Dallagnol, por falta de provas
Aquele era ainda o início da “lava jato”. A revista Veja publicou matéria com a foto de um contêiner repleto de cocaína e a chamada “STF manda soltar acusado de tráfico internacional de drogas. Juiz federal Sergio Moro alertou para risco de fuga e questionou se até René Luiz Pereira deveria ser libertado — ele é acusado de enviar cocaína à Europa” [4]. A reportagem fazia referência ao ofício de Sergio Moro, que não se encontra disponível na página do Supremo Tribunal Federal, mas foi intensamente reproduzido na imprensa. A associação do discurso de guerra à corrupção ao de guerra às drogas surtiu efeito.
O ministro Teori Zavascki reconsiderou sua decisão [5], mantendo a liberdade de Paulo Roberto Costa, mas determinando que as prisões e os demais atos decisórios da “lava jato” fossem mantidos até que fossem analisados os processos, tudo “sem prejuízo da imediata remessa dos procedimentos àquela Corte”. O ofício de Sergio Moro, portanto, funcionou, na prática, como uma espécie de pedido de reconsideração, ou de recurso, e a decisão do ministro surpreendeu até mesmo o procurador da República Deltan Dallagnol, que afirma em seu livro: “Até hoje, esse foi o único Ministro do Supremo que vi voltar atrás em razão de um ofício de um juiz” [6]. Pudera: a iniciativa de Moro não tem previsão legal e fere de morte a imparcialidade que se espera de um julgador.
Nunca se saberá que fatores levaram o falecido ministro a recuar em sua decisão. Apenas se sabe que o não recuo poderia ter mudado consideravelmente o curso da “lava jato” para vias mais legais e, assim, evitado toda uma sorte de consequências que não se restringem aos processos daquela vara criminal e que tiveram profundo impacto no país.
Em 10 de junho de 2014, no julgamento de uma questão de ordem apresentada na ação penal 871, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela permanência, naquela corte, somente dos casos que envolvessem investigados com foro por prerrogativa de função e devolveu à 13ª Vara Federal os demais procedimentos relacionados à “lava jato” [7]. Naquela ocasião, os ministros apenas se debruçaram sobre a alegada usurpação de sua própria competência.
Ocorre que o retorno à origem de diversas ações penais agrupadas com o sugestivo título “lava jato”, autorizado pelo ministro Teori Zavascki, foi interpretado pela imprensa e pelo Ministério Público como um reconhecimento da competência de Sergio Moro para julgamento daquelas causas. Uma análise equivocada, pois nunca houve qualquer manifestação do STF sobre os diversos argumentos defensivos que questionavam a competência de Curitiba para a estrepitosa operação.
O próprio procurador da República Deltan Dallagnol reconheceu que o ministro Zavascki não afastou expressamente os argumentos defensivos em torno da incompetência do juiz Sergio Moro, ao afirmar em seu livro:
“O mais interessante é que a passagem do caso ao Supremo, que parecia péssima, revelou-se benéfica. Quando a Lava Jato chegou ao STF, os advogados de defesa passaram a protocolar uma série de petições alegando falhas que deveriam anular a investigação, sustentando que o caso não deveria estar em Curitiba e pedindo a libertação dos réus, apostando todas as suas fichas em uma decisão favorável. Contudo, o tiro saiu pela culatra. Embora o Min. Teori não tenha afastado expressamente todas essas objeções, a devolução do caso para Curitiba afirmava, de forma implícita, que não existia nenhuma ilegalidade flagrante. Isso não fechou por completo as portas para a anulação do caso, mas a operação saiu moralmente fortalecida perante os tribunais” [8].
De fato, o ministro Teori não “fechou por completo as portas para a anulação do caso” — ou, melhor dizendo, dos casos reunidos sob o título “lava jato” —, na medida em que jamais colocou as objeções das defesas sobre a competência originária da 13ª Vara Federal de Curitiba em votação. Isso não foi uma pauta. Não à toa, ele fez questão de deixar claro, em julgados posteriores, que a referida decisão proferida na AP 871/PR, em 2014, não envolveu a “análise sobre a competência de qualquer juízo de primeiro grau” [9]. Isso porque, repita-se, o debate havia se concentrado na existência de investigados com foro por prerrogativa de função, nada mais.
Já em 2015, no Inquérito 4130, o ministro Dias Toffoli suscitou uma questão de ordem que foi apontada, recentemente, pelo Ministro Fachin como “o ponto de partida do processo de definição de parâmetros à determinação da competência da 13ª Vara Federal de Curitiba, por força da conexão”. É preciso esclarecer a abrangência disso.
Segundo Fachin, tal julgamento, realizado em 23/9/2015, teria firmado o entendimento segundo o qual a competência da 13ª Vara Federal de Curitiba “seria restrita aos fatos relacionados a ilícitos praticados em detrimento da Petrobras S/A”. Desse modo, casos não relacionados àquela empresa mereceriam ser desmembrados, entendimento que ora foi, acertadamente, aplicado às ações penais do ex-presidente Lula.
Com efeito, a QO 4130 marcou, pela primeira vez, o que poderia, ou não, ser considerado objeto da operação “lava jato” e remeteu os autos para São Paulo. Prevaleceu o entendimento segundo o qual os fatos referentes ao Ministério do Planejamento, imputados a uma senadora da República, não possuíam relação com a Petrobras e, por isso, não deveriam ser julgados por Sergio Moro. Os argumentos sobre a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba, para julgamento da própria operação, não foram, nem precisariam ser, objeto da questão de ordem, pois o cerne da discussão era a ausência de relação do caso com a própria “lava jato”.
Não à toa, Dias Toffoli afirmou, na ocasião: “Não há relação de dependência entre a apuração desses fatos e a investigação de fraudes e desvios de recursos no âmbito da Petrobras, a afastar a existência de conexão (artigo 76, CPP) e de continência (artigo 77, CPP) que pudessem ensejar osimultaneus processus“.
Da mesma forma, as demais decisões citadas pelo ministro Fachin como precedentes do Supremo Tribunal Federal (HC 198.081, PET 8090 STF, PET 6727 STF, RCL 17.623) evidenciam o pacífico entendimento daquela corte sobre o fato de que, se o caso não for relacionado à Petrobras, não pode ser julgado pela 13ª Vara Federal de Curitiba, mas não respondem aos questionamentos sobre a competência daquela única vara para julgamento da operação “lava jato”.
Em síntese, pode-se dizer que, até o momento, as decisões do Supremo Tribunal Federal que reconheceram a incompetência do juízo foram proferidas em dois contextos: em casos cujas investigações tiveram início no âmbito da “lava jato”, mas, por algum motivo do caso concreto, prevaleceu o entendimento de que não diziam respeito a crimes relacionados à Petrobras; ou nos casos de foro por prerrogativa de função, cujos autos subiram, total ou parcialmente, para julgamento naquela corte. Tais decisões não enfrentaram — nem precisariam enfrentar — os argumentos que questionavam a competência da 13ª Vara Federal de Curitiba para julgar casos ocorridos no âmbito daquela empresa e que levam em conta a narrativa sobre a origem das investigações.
A competência da 13ª Vara Federal de Curitiba virou uma espécie de mantra repetido em diversas ocasiões, sem maior aprofundamento. O que se verifica, pelas datas das decisões iniciais no Supremo Tribunal Federal, é que elas foram proferidas após a deflagração oficial da “lava jato” (ocorrida em 2014), de modo que a competência do juízo único foi sendo firmada no calor das divulgações pela imprensa, e das discussões judiciais, sobre prisões preventivas, buscas e apreensões, conduções coercitivas. Em pouco tempo, a “lava jato” alcançou uma grandiosidade tal que dificultou — e dificulta — que se reconheça a incompetência originária daquele juízo.
As recentes decisões proferidas nos Habeas Corpus relacionados aos processos do ex-presidente Lula acendem uma luz de esperança para que os ministros do Supremo Tribunal Federal, um dia, possam se debruçar sobre os argumentos defensivos que sempre apontaram a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba para julgamento de toda a operação “lava jato”. A oração que fica é a de que, nesse momento tão propício ao debate, essa análise seja, apenas, uma questão de tempo. Haja fé.
* As reflexões deste artigo são decorrentes da dissertação de mestrado defendida pela autora, em fevereiro de 2019, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), intitulada “Um olhar constitucional e processual penal sobre a fixação da competência nas fases iniciais da ‘Operação Lava Jato’ e uma análise crítica dos maxiprocessos e da instrumentalização da opinião pública”. Sob novo título, o estudo está no prelo para publicação em livro.
[1] Alguns desses vícios de origem foram bem detalhados no recente artigo “Como se constrói a parcialidade do juiz: a culpa não é do Mané! Ou é?”, de Antônio Acir Breda, Roberto Lopes Telhada, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, José Carlos Cal Garcia Filho, Juliano Breda, Daniel Müller Martins e Edward Rocha de Carvalho. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-abr-14/opiniao-constroi-parcialidade-juiz e no artigo https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/incompetencia-geral-e-irrestrita/ de Letícia Lins e Silva.
Olavo de Carvalho abriu uma queixa-crime em reação à minha coluna no Blog da Boitempo. A petição jurídica é um documento de autoconfissão da miséria intelectual que assola nosso país. É disso que é feita essa empáfia bélica baseada na retórica das armas: a covardia
Olavo de Carvalho abriu uma queixa-crime contra mim por calúnia, difamação e injúria baseando-se em uma coluna, publicada aqui no Blog da Boitempo, na qual eu o apresento como “ideólogo de Bolsonaro”. A queixa baseia-se na suposta afirmação de que Olavo não tem diploma universitário. Diz ela:
“O querelado, num revezamento macabro, em tese, com outros mercenários, incautos ou subservientes aos podres poderes populistas bolivarianos, aduzem com ênfase que; o Mestre Olavo não teria curso reconhecido, como se isso nos impedisse de admirar Jô Soares, Silvio Santos, Pelé, Ronaldo Fenômeno, Santos Dumont e tantos outros gênios em suas áreas.”1
A petição é um exemplo estético-jurídico do tosco brasileiro, que testemunha o rigor textual que encontramos nas argumentações de Olavo de Carvalho, pois na coluna em questão eu afirmava justamente que:
“O fato de que ele não tem nenhuma formação regular, como uma graduação em ciências humanas, nem mestrado nem doutorado, não deveria ser um empecilho, afinal existem muitos bons pensadores que vieram de fora do sistema universitário ou permaneceram em sua periferia.”
Christian Dunker, “Olavo de Carvalho, o “ideólogo de Bolsonaro”, contra o professor Haddad”, Blog da Boitempo, 15 out. 2018.
Ou seja, a paranoia de Olavo o faz repetir meu argumento em sua própria queixa, como que a antecipar uma crítica que eu não fiz, mas que quiçá o atormenta. Isso é o que se chama de falta de rigor. Em filosofia, rigor é critério de método, seja na precisão, seja na compreensão, interpretação e crítica de textos. Em vez disso, abundam termos desqualificativos como “mercenário” e “bolivariano”, assim como a típica “humildade” que coloca a si próprio ao lado de… “Ronaldo Fenômeno”. A comparação é simples: Olavo estaria para a filosofia assim como Santos Dumont está para a aviação. Complemento: Eike Batista e os donos da JBS “não têm formações acadêmicas basais”. Só faltou dizer: “o Palmeiras não tem mundial, e daí?”
Mas o que declaro aqui em primeira mão é que Olavo de Carvalho perdeu o processo que movia contra mim, como perdeu todos os sete outros processos que foram julgados até aqui. Vai ter que pagar advogado, custas e tudo mais. Estes foram os termos da juiz que que me deu ganho de causa:
“Mostra-se incompatível, com o pluralismo de ideias (que legitima a divergência de opiniões), a visão daqueles que pretendem negar, aos meios de comunicação social (e aos seus profissionais), o direito de buscar e de interpretar as informações, bem assim a prerrogativa de expender as críticas pertinentes.”
Posso traduzir para você, Olavo, aqui no nosso cantinho da verdade, em síntese quase dialética entre seu estilo e o meu: chupa que é de uva, senta que é de menta.
Mas voltemos à causa. Argumentei, no referido artigo, que o problema não estava na ausência de diploma, mas na irrelevância da produção de Olavo, segundo critérios quantitativos que valem para qualquer pesquisador e que qualquer leitor pode verificar por si mesmo em bases informáticas de dados que contam quantas vezes a obra de alguém é mencionada por outros, indicando sua consequência ou importância para aquela área. O livro O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota foi citado 39 vezes por especialistas; O imbecil coletivo, apenas 28 vezes; e O jardim das aflições, 36 vezes – na maior parte dos casos como exemplos da ascensão do novo irracionalismo brasileiro. Para ter uma base de comparação, Paulo Freire, que o governo quer destituir como patrono da educação é, atualmente, o autor brasileiro mais citado, com 342.711 menções. Marilena Chaui, uma das autoras preferencialmente atacadas por Olavo, e que tem idade comparável à dele, possui 24.095. Ou seja, leia com atenção, agora por extenso: vinte e quatro mil e noventa e cinco trabalhos a mencionam como fonte fidedigna de pesquisa.
A petição jurídica de Olavo é um documento de autoconfissão da miséria intelectual que assola nosso país. Dele passo agora a extrair os termos vexatórios da peça jurídica a que fomos expostos:
O conjunto da obra é um exemplo maiúsculo do tosco brasileiro na área do marketing jurídico. O autointitulado “maior pensador do Brasil” tinha a seu dispor vários argumentos. Ele poderia ter dito que a contagem de citações é um índice muito tecnocrático, mas aparentemente ele não conseguiu entender a crítica e transformou isso em uma “contagem de palavras” ou de livros publicados. Ele poderia ter dito, ainda, que a quantidade de menções refletiria simplesmente aquilo que já sabíamos: todos os universitários, não só os brasileiros, estão envolvidos nesta grande conspiração vermelha que tomou conta do mundo. Ele poderia ter mostrado textualmente como a Escola de Frankfurt defende a erotização das relações entre mãe e filho, contrariando ao que objetei em minha crítica. Mas, em vez disso, o “vacilão” escolhe partir para a intimidação jurídica. Ou seja, confessa assim que seus argumentos não são suficientes e se acovarda no plano das ideias. Arrega como arregou no desafio lançado por Débora Diniz para que ele viesse debater no Brasil. É disso que é feita esta empáfia bélica baseada na retórica das armas: a covardia.
O ideólogo de Bolsonaro xinga e esperneia, mas quando é confrontado no texto apela para o papaizinho jurídico. Perdeu na bola, grita e recorre à justiça. O parecer do Ministério Público comenta da seguinte maneira a queixa de Olavo:
“Não há como cogitar, portanto, que o querelado, ao proferir suas críticas, estivesse no afã de atingir a honra objetiva do querelante.”2
Será que se poderia dizer o mesmo das afirmações alopradas de Olavo, do tipo:
“Pegue um garoto alfabetizado pelo método socioconstrutivista e aplique-lhe um enema de Jacques Lacan na faculdade. Ele vira o Christian Donkey.”
Parece que depois da “mamadeira de piroca”, o “enema de Lacan” tornou-se o novo fetiche da fixação anal que tomou conta do governo.
A prática compulsiva de processos jurídicos é uma espécie de compensação sintomática, como que levar a sério o que o outro diz para ocultar sua própria inconsequência com a própria palavra. Isso ocorre com Olavo, isso ocorre com Bolsonaro: a cada semana digo algo diferente e oposto no Twitter e tudo bem. No meio da confusão, ninguém paga a conta. Essa inconsequência com as palavras é a cláusula de isenção para o programa eleitoral de Bolsonaro e suas sucessivas inequidades discursivas no governo. Quando alguém responde na mesma moeda, ou um pouco menos, a pessoa se sente ofendida e processa seu opositor. O acusacionismo tomou conta do país e, com ele, os acusões. Quando sua filha, Heloisa Arribas, denunciou o descaso e abuso sexual sofrido na infância, a resposta de Olavo foi a mesma: processar e acusar a própria filha.
É essa nuvem contagiosa e imbecilizante que estamos enfrentando. Olavo de Carvalho processou Daniel Tourinho Perez, professor de filosofia da UFBA, porque este mostrou como ele não sabe ler Kant. Processou Gilberto Dimenstein quando este apresentou dados sobre sua suspeita situação econômica. Pede dinheiro aos discípulos para despesas médicas e o emprega em despesas jurídicas. Morando fora do Brasil, esconde-se da réplica jurídica, mas foi surpreendido por Caetano Veloso que o processou de volta, em solo americano, tendo em vista o uso ofensivo de expressões como: “delinquente travestido”.
O sistema discursivo de Olavo de Carvalho, cujo único interesse é estar assimilado ao poder conferido pelo presidente e seus filhos, baseia-se em projetar nos outros aquilo que ele mesmo está a praticar. Calunia a honra dos generais, acusando-os de conspiradores. Difama professores brasileiros, como corruptores e ignorantes. Injuria a honra de adversários, recorrendo a palavrões e ofensas. Ao agir assim, cria-se uma espécie de balbúrdia calculada. O efeito “briga de marido e mulher” equaliza fatos e argumentos estimulando a sensação de incerteza que faz cada qual reforçar seus próprios preconceitos e estereótipos. Ao fim e ao cabo, Olavo acusa um, acusa outro, e se mostra mesmo um “acusão”.
Não posso mais que refazer a pergunta que coloquei lá atrás em minha primeira coluna aqui no Blog da Boitempo, desde meus debates com Rodrigo Constantino, discípulo de Olavo: o que aconteceu com a direita brasileira que ela se tornou incapaz de argumentar? É certo que desde então o número de deslocamentos nesse campo da direita aumentou: Reinaldo Azevedo mudou de postura, Villa experimentou um solavanco de deslealdade, Pondé ensaia uma abertura de conversa com a democracia, e até Lobão parece ter largado a Vida Bandida.
Será que só você, Olavo, continuará na covardia em vez de defender seus pontos de vista a céu aberto como um verdadeiro filósofo?
Notas
1 Processo 1000175-60.2019.8.26.0050 conforme Petição Inicial ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: Vara do Juizado Especial Criminal. Grifos nossos.
2 Juizado Especial Criminal do Foro Central da Capital, auto 1000175-60.2019.8.26.0050.
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