Quando o Brasil vai ter a coragem de realizar uma marcha pelos desaparecidos durante a ditadura militar? No Uruguai 200 detidos desaparecidos. No Brasil 434 vítimas morreram ou desapareceram
Desaparecidos no Brasil
Porto Alegre foi sede da Operação Condor, que fez desaparecer os presos das ditaduras do Cone Sul (Brasil, Chile, Argentina Uruguai).
Porto Alegre dos porões da ditadura. Da tortura. Os porões do delegado Pedro Seelig, um serial killer.
Nunca mais didatura. Nunca mais tortura. Nunca mais desaparecidos
Esse é o ponto, este mais que esse; nosso é o tremor. Este é o ponto, um espanto análogo a quando avisam:Aqui passa o Trópico de Capricórnio, Aqui termina o Brasil, Aqui acaba a Polôniaetc. Aqui, exatamente aqui, você não vê, mas não duvida do enunciado dir-se-ia sagrado, vindo de um deus dos limiares. Como um sol ele irradia, como um rei é que decide história, destino —
aqui você pode respirar, aqui podemos nos casar, aqui o fascismo não mete o nariz. Eis que passamos a ser nada, nossa sombra ficou do outro lado. Acuado pelo inimigo que avança, alguém sempre tira a própria vida. Agora conheceremos o que é vida.
Pois assim como tremo se me sei bem em cima do meridiano ou da fronteira, este é o ponto em que me quedo, o ponto de virada, de intelecção, a terra à vista de um problema e seu contorno. Ah o verdadeiro, o autêntico problema — que frêmito raro se o encontramos.
Ela venceu o festival nacional de Portugal e agora precisa de ajuda para garantir sua passagem para o mundial
por Maria Lígia Barros /Brasil de Fato
Dois anos foi o tempo que passou entre o momento em que a recifense Carol Braga, de 29 anos, declamou um poema seu pela primeira vez e a sua vitória no campeonato nacional português de slam poetry - na tradução livre, batalha de poesia. Agora, com vaga garantida na Grand Poetry Slam Coupe du Monde - a Copa do Mundo da Poesia Slam -, ela parte para um novo e maior desafio, competindo com outros países e outros idiomas. Mas, para chegar na França, onde o evento será realizado em maio, a poeta precisa de ajuda.
A organização do campeonato irá custear sua passagem de Lisboa até Paris; no entanto, Carol está no Brasil desde setembro do ano passado. Por conta disso, precisa custear sua ida de Recife a Portugal. A poeta abriu uma vaquinha online para conseguir pagar a viagem através de financiamento coletivo, e os interessados podem contribuiratravés deste link.
“Vi que todas as pessoas eram voltadas para a poesia – eu nunca tinha tido tanto contato com gente que escrevia e performava poesia. Nunca tinha lido um poema meu em voz alta até março de 2020. Estava todo mundo lendo e eu me senti confortável de ler pela primeira vez, e as pessoas ficaram super emocionadas”, relembrou.
Carol já conhecia a arte do slam antes mesmo de se mudar, de assistir pela internet a também pernambucana Bell Puã, do Slam das Minas, declamar seus textos. “Eu fiquei chocada. Pensei: ‘nossa, mas isso é lindo, é muito forte’. Quando vi pela primeira vez em Portugal, pessoas angolanas inclusive, eu me identifiquei muito. Foi uma descoberta de mim mesma, de como a poesia pulsava, e de que falar sobre determinados assuntos também pode ser poesia”, contou.
Formada em Jornalismo e em História, Carol Braga sempre teve o hábito de escrever. O gosto pela poesia e pela sua interpretação foi descoberto há dois anosmaria, quando migrou para Portugal para fazer doutorado na Universidade de Coimbra. Recém-chegada em outro país e sem conhecer ninguém, ela procurou na cidade atividades em que tinha interesse. Foi assim que encontrou um grupo de ativismo literário, a Secção de Escrita e Leitura da Secção Académica de Coimbra (Sesla), e resolveu participar de uma reunião.
contou.
Em outubro de 2020, só sete meses depois desta primeira experiência, Carol estava ganhando o festival local da cidade de Leiria. Em razão da vivência da época, o tema que mais permeia sua produção é a experiência de ser imigrante. Foi com um poema sobre esse assunto, o ‘Despejo’, que Carol ganhou o 7º Festival Nacional de Poesia e Performance Portugal SLAM, em junho de 2021. “Agora mesmo estou sem margens / muito estrangeira para voltar para casa / mestiça demais para estar aqui / Mas é tão ruim assim não pertencer / No final a gente cria essa ilusão globalizada de que não pertencemos porque não temos terra / E quem não tem terra para morar não é fértil”, recitou ela na final do evento.
Com esse texto e a vitória, Carol garantiu não só o acesso à Coupe du Monde, como também a publicação do seu primeiro livro: o ‘Minha raiva com uma poesia que só piora’, lançado em dezembro do ano passado pela editora Urutau. “Eu já tinha publicado [minhas poesias] em antologias, mas nunca tinha publicado um livro só meu. Todos os meus poemas de slam estão nele, então ele tem o ritmo de slam”, disse.
O bárbaro assassinato de Moise Kabagambe faz a ponte entre dois fracassos civilizacionais. Aperta o nó entre Brasil e Congo, enredados há séculos na violência escravista que moldou os dois países. Atualiza a encruzilhada em que a selvageria se impõe e a humanidade se esvai no precipício.
Moise e sua família fugiram da guerra e da fome, mas depositaram suas esperanças na cidade errada. No Rio de Janeiro, a bestialidade se alastra como metástase, por fora e por dentro do aparelho de estado. Indícios apontam o envolvimento de milicianos e seus bate-paus no suplício do refugiado congolês.
Na sua gênese, essas máfias impunham a lei do mais forte em lugares esquecidos, inclusive (ou principalmente) pelas autoridades. O tumor foi cevado, as células cancerígenas se desprenderam do foco original e chegaram às areias do cartão postal. Já se nota um padrão: Moise é a terceira pessoa morta por espancamento em menos de um mês na orla da Barra da Tijuca.
Um policial militar “opera” irregularmente o quiosque onde Moise trabalhava em troca de migalhas; a família do rapaz diz ter sido intimidada por dois PMs; uma testemunha da execução conta ter pedido ajuda a dois guardas municipais, que a ignoraram. A polícia levou mais de uma semana para prender os criminosos, mesmo tempo que demorou para o quiosque do crime ser interditado.
Prefeito e governador só se manifestaram quando já pegava mal ficar calado. Autoridades federais continuam em silêncio, ainda que a tragédia tenha ocorrido na rua onde o presidente da República tem uma casa. Talvez por isso mesmo.
No livro “Coração das Trevas”, de Joseph Conrad, sobre a brutalidade colonial no Congo sob domínio belga, tornou-se célebre a frase de um personagem para definir as atrocidades que presenciou contra os congoleses: “O horror, o horror…”. A expressão se encaixa de maneira trágica no martírio de Moise e no que o Rio de Janeiro e o Brasil se transformaram: “O horror, o horror…”
Para Mauro Lopes, a formação de 5 mil comitês populares decidida pelo PT pode mudar o espírito da campanha de Lula. Boric fez assim no Chile e fez a diferença. Natália Bonavides diz que as prioridades das pautas do PT no Congresso também serão debatidas nos comitês populares. "Nós temos lutado muito pra ser resistência neste momento difícil pelo qual o país passa. É chegada a hora de fazermos a travessia e abrirmos as alamedas, portas e caminhos pra derrotar este governo de fome, desemprego e mortes, e, com esperança e luta, enfim construirmos o Brasil Feliz de Novo! Simbora!", conclama a deputado do Rio Grande do Norte.
Escreve Mauro Lopes:
Uma das maiores críticas aos governos do PT de um ponto de vista da esquerda é o afastamento das bases populares do partido ao longo dos governos Lula e Dilma, com uma tendência forte à “burocratização” e profissionalização dos quadros do partido em diferentes instâncias governamentais. Além disso, houve uma crescente concentração do poder interno no partido nas mãos dos parlamentares -que tem mandato passou a ter mais voz e decisão.
Há olhares distintos para estas críticas, mas elas estão presentes mesmo na direção do PT. O próprio diretor de comunicação da Fundação Perseu Abramo (FPA), Alberto Cantalice, da direção nacional do partido,reconhece“uma certa burocratização que enfrentamos a partir do momento que fomos governo”.
Pois o partido prepara-se para retomar a tradição das origens, da íntima conexão e inserção nos meios populares, de maneira vida e capilarizada.
É o que decidiu o encontro virtual dos Setoriais do Partido dos Trabalhadores, em 24 de janeiro, com Lula e Gleisi e quase 3.500 militantes do PT. A principal decisão do encontro foi criar, até abril, cinco mil comitês populares em todo o país, em conjunto com movimentos sociais e outros partidos do campo progressista, como PSOL e PCdoB . O objetivo é estabelecer uma dinâmica de conversas presenciais, olho no olho, multiplicadas aos milhares e, quem sabe, aos milhões.
O mesmo movimento fez a campanha de Gabriel Boric e foi decisivo para sua vitória.
Quem testemunhou a iniciativa foiJeferson Miola, quando estava em Santiago como enviado especial do 247: “No início de dezembro a campanha de Gabriel Boric definiu a estratégia ‘Un millón de puerta a puertas por Boric’. Consistia numa convocatória militante e, ao mesmo tempo, um desafio arrojado de levar as propostas de Boric aos lares de 1 milhão de chilenos e chilenas.”A campanha “Un millón de puerta a puertas por Boric” foi tão bem sucedida que, ao final das eleições, a meta havia sido superada: mais de 1,2 milhão de casas visitadas.
A experiência de comitês populares ou a ideia de “visita de casa em casa” não é nova, nem foi a campanha de Boric que a inventou. É uma estratégia centenária, que precedeu em muito as redes sociais. O PT nos primeiros tempos e movimentos sociais lançaram mão dela, inúmeras vezes.
Mas o fato é que a campanha de Boric é o exemplo mais recente e vívido de sua efetividade. Elas hermanas y hermanoschilenos têm uma longa tradição. Veja que impressionante a organização e capilaridade da campanha de Boric, bairro a bairro, rua a rua:
Com as redes sociais, a estratégia dos comitês e visita porta a porta pode estabelecer uma teia de diálogos, sustentação e mobilização inéditas.
Os trabalhadores estão vivendo um período de trevas no Brasil. Aumento assustador do desemprego, arrocho brutal de salário, retirada selvagem dos direitos trabalhistas. A pandemia do novo coronavírus, confirmada em março de 2020, só agravou um cenário que já era sombrio.
Por sua postura negacionista e criminosa diante da Covid-19, que resultou até final do ano passado em mais de 600 mil mortes e milhões de sequelados, Jair Bolsonaro hoje é tratado como genocida nos fóruns mundiais. O Brasil virou um pária internacional em todos os terrenos – sanitário, econômico e social.
Cenas de pessoas pegando ossos em açougues e comida em latas de lixo ou dormindo nas calçadas retratam a dramaticidade do período. O país, que já havia retornado ao “Mapa da Fome” no governo do golpista Michael Temer, agora bate recordes em vários índices de miséria. São 116,8 milhões de brasileiros com insuficiência alimentar – ou seja, que não sabem se farão mais de uma refeição ao dia; destes, 19,1 milhões passam literalmente fome – um aumento de 54% no número de famélicos em relação a 2018.
Diante desse quadro adverso, os trabalhadores não desistem e resistem. A luta por vacina para todos, pelo auxílio emergencial de R$ 600, por políticas públicas de incentivo à economia e à geração de emprego, entre outras demandas, norteia na atualidade a atuação do sindicalismo e dos movimentos sociais.
Para vingar, elas são emolduradas pela bandeira do Fora Bolsonaro. Ou o Brasil se livra desse presidente fascista, ou ele mata o país com sua necropolítica e seu desprezo aos trabalhadores! É urgente derrotar o vírus e o verme!
Mais de 400 mil vidas poderiam ser salvas
Todos os fóruns internacionais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e as Nações Unidas (ONU), apontam o Brasil como uma das piores nações do planeta no enfrentamento ao novo coronavírus. Com 212 milhões de habitantes e mais de 600 mil mortos pela Covid-19, o país ocupa o segundo lugar no trágico número de óbitos – ficando atrás apenas dos Estados Unidos, que tem uma população de 330 milhões de pessoas e quase 700 mil mortos no final de outubro.
Em terceiro lugar aparece a Índia – com 1,38 bilhão de habitantes e 450 mil óbitos no mesmo período. Por acaso, essas três nações gigantes estiveram sob o comando de governantes negacionistas, de típicos fascistas – Donald Trump, Jair Bolsonaro e Narendra Modi.
Apesar de ser reconhecido mundialmente pela excelência das suas campanhas de vacinação e pelo trabalho heroico do Sistema Único de Saúde (SUS), o Brasil se atrasou criminosamente na compra dos imunizantes. Vários estudos científicos – como o chefiado pelo epidemiologista Pedro Hallal, pesquisador da Universidade Federal de Pelotas (RS) – confirmam que mais de 400 mil vidas poderiam ter sido salvas caso a vacina fosse aplicada no tempo certo.
Além da demora na imunização, o país presenciou cenas macabras de hospitais sem oxigênio e sem aparelhos de respiração, de pessoas sendo intubadas sem os remédios e anestésicos necessários, de valas comuns em cemitérios, de planos privados de saúde tratando seus pacientes como cobaias humanas – relembrando os campos de concentração nazista. [continua]
[Em 2016, uma foto do americano Johnny Miller na Cidade do Cabo, na África do Sul, viralizou nas redes sociais e ganhou destaque na imprensa. A imagem, produzida com o uso de um drone, mostrava o impressionante contraste entre a vizinhança rica e branca de Lake Michelle, formada por mansões milionárias à beira de um lago, e a comunidade pobre e negra de Masiphumelele, onde 38 mil pessoas vivem em barracos e se estima que até 35% da população esteja infectada com HIV ou tuberculose. A partir da atenção gerada por essa fotografia, Miller criou o projeto "Unequal Scenes" (Cenas Desiguais), e já viajou para oito países retratando, a partir do alto, com o uso de drones ou helicópteros, como a desigualdade de renda se expressa na arquitetura e na organização urbana das cidades. Entre eles, está o Brasil. Em entrevista à repórter Thais Carrança, da BBC News Brasil, ele falou sobre as cenas de desigualdade que viu pelo mundo. Confira no vídeo]
Alain Rouquié é um dos mais reconhecidos especialistas da América Latina na França. Em um novo livro, “L’Appel des Amériques” (O apelo das Américas, em tradução literal) ele faz um relato dos mais de 50 anos de suas pesquisas sobre a região. “A situação atual do Brasil é um exemplo da incerteza da democracia”, diz o cientista político e diplomata.
Alain Rouquié, de 82 anos, começou a se interessar pela América Latina em meados dos anos 1960. O atual presidente da Casa da América latina de Paris foi embaixador da França em El Salvador, México e Brasil e tem mais de 20 de livros sobre o subcontinente, entre eles o Brasil do século 21, publicado em 2006.
No “L’Appel des Amériques”, publicado pela editora Seuil, ele tenta responder a uma pergunta que sempre lhe fazem: Por que e como escolheu dedicar toda a atividade profissional, como cientista político e embaixador, à região que chama de extremo ocidente? Mas ele ressalta que não fez uma autobiografia.
“Não é um livro de memórias. Não gosto de contar a minha vida porque não é interessante. É um relato de aprendizagem”, diz. “Muito cedo, descobri que as sociedades que me atraíam não eram as sociedades fechadas, homogêneas. Ao contrário! Eram os mundos plurais, com coexistência cultural e étnica, como na América Latina", conta.
A região continua sendo objeto das reflexões de Alain Rouquié que faz, na segunda parte do livro, um balanço da situação atual. A democracia e seu oposto, a ditadura militar, e o desenvolvimento são questões centrais na região e no trabalho do cientista político latino-americanista. Desde sua primeira viagem à Argentina, nos anos 60 quando vários golpes de estado ocorreram, ele viu que “o papel dos militares era muito importante” e se dedicou a estudar “por que eles intervinham”.
«L'appel des Amériques», d'Alain Rouquié.Éditions du Seuil
Democracia faz parte da cultura política latino-americana
Na américa Latina, “havia democracia antes de ter povo”, aponta Rouquié, lembrando do processo de independência dos vários países da região. “A democracia faz parte da cultura política latino-americana. Até os ditadores falam de democracia, de melhorar, de aperfeiçoar a democracia”, salienta.
“Mas a democracia é uma coisa muito complicada, sobretudo para os que pensam que têm o direito de ser dirigentes. A democracia é uma incerteza. Uma eleição séria, sem resultado incerto, não é democrática. Isso significa uma grande fragilidade”, afirma.
Para Rouquié, outro fator que fragiliza a democracia no subcontinente é a desigualdade.
“A América Latina é uma das regiões mais desiguais do mundo, e o crescimento das desigualdades vai contra a estabilidade democrática. Isso eu aprendi na América Latina”, diz, ressaltando, no entanto, que "a democracia está retrocedendo no mundo inteiro”.
Brasil
Alain Rouquié conhece muito bem o Brasil, onde foi embaixador de 2000 a 2003. O país é tema de um de seus livros: “O Brasil no século 21”, publicado pela editora Fayard em 2006. Segundo ele, a situação brasileira hoje “é um exemplo da incerteza da democracia, da incerteza que é a base do sistema eleitoral”.
“O que aconteceu no Brasil foi uma cruzada contra o PT porque o PT podia ganhar outra vez” resume o presidente da Casa da América Latina, analisando que o sistema eleitoral brasileiro, que não admite partidos majoritários e favorece a corrupção, também fragiliza a democracia no país.
Julgava que a língua ia facilitar a comunicação, mas já esbarrou muitas vezes com o preconceito: desde recusarem-se a falar com ela em situações profissionais por causa do seu sotaque a acusarem-na de ter vindo “roubar maridos”. Quinto episódio da série Nada contra, mas... Testemunhos na primeira pessoa para ver sem preconceitos e sem "mas"
Quando as pessoas percebem que é brasileira, Samara sente a pressão aumentar. “Você não pode errar, não pode ter algum comportamento ou vestir-se de uma maneira porque vão julgar-te por isso”. E não só. Pelo sotaque também. Depois de seis anos em Portugal, Samara “ainda” tem um sotaque carregado, uma aparente contradição a julgar pelos comentários que lhe são dirigidos. “O português não considera o português do Brasil uma língua.”
Samara já foi chamada à atenção no trabalho porque um cliente não gostou de ver expressões brasileiras escritas nos emails. Expressões como “por gentileza”. “Eu não tinha sido mal-educada, mas eles perceberam que eu sou brasileira e implicaram comigo”. A sua avaliação já veio com uma nota para melhorar o português europeu.
Ultrapassada a barreira da língua, surgem outros preconceitos. Samara ainda estava a estudar quando começou a procurar emprego e recorda duas entrevistas em que foi posta de lado por ser uma mulher brasileira. “Estava esperando uma resposta e o suposto empregador chegou ao pé de mim e disse que não me poderia contratar porque não sabia como se iria controlar ao meu lado. E eu pensei, como assim, controlar-se?”
Da segunda vez, uma posição numa seguradora foi-lhe negada por receio de que Samara acabasse por “seduzir os clientes”. A imagem de sedutora já foi tantas vezes associada a ela que deixou de ligar. “Uma vez eu saí do trabalho para ir comprar um café e, no meio do caminho, uma pessoa percebeu que eu era brasileira e me chamou de puta. Uma amiga minha que é portuguesa ouviu e perguntou: 'Não vai fazer nada?'. Eu não, já estou acostumada”.
Samara Washington não respondeu ao insulto, mas há conversas que não quer deixar de ter. Com os portugueses, sobre os seus preconceitos. E sobre o verdadeiro contributo dos imigrantes para as contas da Segurança Social. Em 2019, a Segurança Social obteve um saldo positivo de 884,4 milhões de euros com os imigrantes.
“Pode ser um assunto, maçante, batido. As pessoas dizem que já chega de falar disto. Mas não chega. Porque se a gente não fala, as pessoas nunca vão saber como é que é.”
JOÃO BATISTA E MARIA FLORINDA DOS SANTOS saíram do interior do Rio Grande do Sul e chegaram em Foz do Iguaçu em 1969 com um filho no colo e outro na mão. Compraram um alqueire de terra no bucólico bairro Três Lagoas para plantar hortaliças e criar porcos e galinhas. De repente, se viram rodeados de bordéis naquele que seria o maior centro de diversão adulta da tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina.
A nova zona de prostituição foi instalada a 400 metros de um ponto de ônibus na margem sul da BR-277. Era um efeito colateral da mega obra da usina hidrelétrica de Itaipu, usada pelos generais como símbolo do “milagre econômico”. A antiga zona da cidade havia sido removida pelos militares para dar lugar a um conjunto de casas para os operários, e os bordéis foram realocados para o pacato bairro rural, na época ocupado por produtores de milho. No pico das obras, Itaipu contava 40 mil empregados – 12 mil deles solteiros.
João e Maria estavam na margem sul da rodovia. João tinha oito filhos do primeiro casamento e nove com Maria. Mas, segundo Júlia, filha do casal, ele teria mais quatro com garotas de programa das boates – nenhum deles reconhecidos pelo pai. “É o que a gente sabe, pode ser mais”, admite Júlia, que tinha cinco anos quando a zona começou a se instalar. A família viveria um estranho paradoxo. De um lado, João tinha filhos com as trabalhadoras do sexo; de outro, Maria acolhia e cuidava dos filhos das garotas de programa que trabalhavam na zona.
Um levantamento inédito feito pelo Intercept (Mauri König) mostra que a história de João e Maria não é a única. As obras de Itaipu fizeram a população de Foz do Iguaçu explodir: subiu de 35 mil em 1975 para 140 mil habitantes em 1984, datas do início das obras e do início das operações da usina. No mesmo período, cresceu também o nascimento de crianças sem o nome do pai no registro. Naquela década, o cartório de registro civil de Foz do Iguaçu anotou o nascimento de 4.280 crianças vivas e 134 natimortas sem paternidade definida – números pelo menos cinco vezes maior do que na década anterior às obras da usina hidrelétrica. (Continua)
Não estamos habituados com essa ave, o condor, embora seja a maior ave voadora do mundo. Ela pode ser encontrada ao Norte, na Venezuela e Colômbia, com mais frequência na região andina, podendo esporadicamente estar no sudoeste do Brasil, até a Terra do Fogo, na Argentina. Um típico símbolo da América Latina, que se alimenta de roedores e carniça.
Os agentes repressivos, à frente das forças armadas na época da ditadura civil-militar, estavam atentos ao símbolo e batizaram de Operação Condor a colaboração instituída entre os regimes ditatoriais da América Latina. Essa aliança político-militar, levada a cabo nos anos 1970 e 1980, era coordenada pela Agência Central de Inteligência (CIA) dos Estados Unidos.
Inúmeros documentos divulgados anos mais tarde pelo serviço secreto estadunidense apontavam essa ação conjunta com o propósito de eliminar os grupos de oposição às ditaduras, simbólica e até fisicamente, da maneira que fosse necessário, seja com ações terroristas do próprio Estado ou exílios forçados. A Operação Condor aproveitava para trocar informações sobre os prisioneiros de diferentes países e fragilizar as organizações de luta pela resistência.
Cortamos desse contexto para o ano de 2020. Momento em que nos deparamos com uma rearticulação e avanço de grupos de extrema-direita na América Latina e nos Estados Unidos, estabelecidos na sociedade civil e chegando ao comando dos Estados. Alguns desses grupos, como no caso brasileiro, chegaram ao comando da nação através das eleições, mesmo que para isso fosse necessário deturpar a democracia, articulada por fake news e por outra novidade dos tempos atuais, o lawfare.
Esse último termo em inglês significa o uso de instituições jurídicas, de forma abusiva, para perseguir adversários políticos. Dessa forma, a atividade política de grupos que estavam no comando do Estado poderia ser criminalizada.
Da mesma forma que a bandeira da corrupção foi usada com sucesso na ditadura militar, ela foi repaginada para o convencimento da opinião pública e a sustentação do lawfare. A corrupção, apesar de termo forte, seu significado é facilmente maleável pelos grupos que estão no poder. Esses grupos políticos podem, com um ato legislativo, transformar o que era legal em ato corrupto e o que era corrupção em ato legal. Vide a legalização das “pedaladas fiscais” semanas depois de condenarem politicamente a ex-presidenta Dilma pelo ato.
Uma nova colaboração carreada pela extrema-direita na América Latina e coordenada pelos Estados Unidos foi articulada. As operações de lawfarecumpriam o papel que já foi operacionalizado pela Operação Condor, de troca de informações entre esses países latino-americanos com o intuito de difundir uma nova tática antidemocrática de aniquilamento das forças opositoras.
O vazamento de informações pelo Intercept e as diversas viagens do ex-juiz Sérgio Moro aos Estados Unidos para capacitação nos órgãos de estado são provas cabais e de conhecimento público dessa articulação.
Os resultados do lawfare foram imediatos, conforme se aproximavam os pleitos eleitorais:
Equador: Em fevereiro de 2021 está programada a eleição presidencial, que teria como candidato à vice-presidente, o ex-presidente Rafael Correa. Em setembro de 2020, a Justiça equatoriana confirma a condenação de Rafael Correa, exilado na Bélgica, a oito anos de prisão e perda de direitos políticos por 25 anos. Fundamento: casos de corrupção no governo, recebimento de “contribuições indevidas” não demonstradas.
Bolívia: No fim de 2019, ocorreu um golpe com direito a milícia ameaçando de morte alguns políticos, inclusive o ex-presidente, ação de grupos militares, invasão dos prédios públicos, e caso não seja novamente adiada, ocorrerão eleições em outubro de 2020. Além de tentarem impugnar a candidatura de Luis Arce a presidência, em setembro de 2020, o Supremo Tribunal Eleitoral do país impugna a candidatura ao Senado do ex-presidente Evo Morales, exilado na Argentina por perseguição política. Fundamento: o candidato a senador mora na Argentina.
Argentina: Em outubro de 2019 ocorreram as eleições presidenciais. Em maio de 2019 iniciou-se o primeiro, de vários, julgamentos contra Cristina Kirchner, ex-presidenta. Fundamento: casos de corrupção no governo como fraudes através da concessão de obras públicas, não demonstradas em juízo.
Brasil: A operação de lawfare mais exitosa até agora, sem sombra de dúvidas, foi a operação Lava-Jato, sobretudo, se considerarem o seu resultado político: a inabilitação/prisão do ex-presidente Lula antes das eleições de 2018, único candidato capaz de vencer Bolsonaro.
Na época, já saltava aos olhos de qualquer jurista com formação mediana as violações procedimentais grotescas (conduções coercitivas, aceleração de etapas processuais, delações premiadas, etc.), que se consubstanciaram em sentenças sem lastro probatório, formalmente legitimadas por ratificação em instâncias superiores de uma estrutura Judicial carcomida eticamente, em que o corporativismo e a ideologia política falam mais alto que o senso de justiça e o respeito ao Estado Democrático de Direito.
Derrotar o caráter autoritário do que representa a Lava-Jato e o lawfare na América Latina é um imperativo absoluto para o reestabelecimento de princípios razoavelmente democráticos para a direita e para a esquerda.
Vide a postura da maioria dos jornalistas que cobrem essa operação desde Glenn Greenwald à Reinaldo Azevedo. Setores de ambos os lados já entenderam isso, apesar da grande emissora de telecomunicações brasileiras ainda não ter dado o “braço a torcer”, mas logo sentirá na “própria carne”, pois a criatura gerada já começou a engolir seus criadores.
O que um dia foi Condor, hoje tem nome em inglês, mas o propósito é semelhante: destruir as instituições e as organizações populares, fazer do povo carne barata e como a ave, se alimentar da carcaça que persistirá em resistir na América Latina.