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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

23
Ago23

Um Brasil de margaridas e mães bernadetes

Talis Andrade
Mulheres agricultoras realizam a 7ª Marcha das Margaridas. O evento, que é feito de quatro em quatro anos, traz para a capital federal as pautas políticas das mulheres do campo, da floresta, das águas e das cidades. A última edição foi em 2019. Desta vez, o lema é “Pela Reconstrução do Brasil e pelo Bem Viver”. Foto: Ricardo Stuckert / PR

 

por Susana Prizendt

OutrasPalavras

Em seu poema mais famoso, Drummond afirma que havia uma pedra no meio do caminho. É uma constatação que todos nós fazemos e refazemos continuamente, já que é comum encontrarmos obstáculos nas trilhas que percorremos ao longo da vida. Só que as tais pedras costumam ser mais duras e pesadas nas trilhas de quem já nasceu em áreas de conflito, como é o caso dos territórios em que a concentração fundiária e a exploração de seres humanos e da natureza são práticas seculares.

No Brasil, país continental em que quase 50% das áreas agrícolas se situam em menos de 1% das propriedades, a realidade de quem nasce em uma família sem um pedaço de terra para chamar de seu é descobrir desde cedo como encontrar um caminho no meio de tantas pedras pesadas. E é nessa busca diária pela sobrevivência, que muitas pessoas encontram motivos poderosos pelos quais lutar: justiça social, direitos, sacralidade da vida em todas as suas instâncias. Conceitos que parecem abstratos, mas que, se o que representam não está presente de fato – como é o caso do que ocorre na maioria das comunidades humanas – geram consequências muito concretas na realidade de quem está do lado menos favorecido.

Sim, há dois lados na estrada. O lado de quem detém o poder e a posse de bens, dos que são acometidos por uma ganância constante, que leva à tentativa de se apropriar mais e mais do que deveria ser de outrem. E, embora nem todos os homens se encontrem desse lado, ele é, sem dúvida, masculino. Se você tem alguma dúvida, basta olhar para as pessoas que estão em cargos de tomada de decisão nas grandes empresas, no poder público nacional ou nos organismos internacionais; para quem detém os maiores patrimônios; para os que são obedecidos e temidos pela população em geral. Sim, são majoritariamente homens e, também, majoritariamente brancos.

Do outro lado da estrada – o lado mais pedregoso – se encontra a população cuja cor de pele destoa das tonalidades expressas pela branquitude. São os descendentes dos povos indígenas, que habitavam milenarmente nosso território e foram acuados, a partir de 1500, vítimas da ambição, das armas e das doenças que chegaram junto com os invasores. São os descendentes dos povos africanos, dos que foram trazidos para cá à revelia, forçados a trabalhar até a morte para alimentar um sistema de brutal exploração que só beneficiou uma minoria de origem europeia.

Mas, ao usar o termo “os”, no masculino, estamos passando por cima de um fato essencial: o fato de que, mesmo em meio aos desfavorecidos, há diferenças; o fato de que, na parte mais empedrada desse caminho, quem nós iremos encontrar, invariavelmente, somos nós, as mulheres. Uma prova irrefutável disso é a insegurança alimentar que assola as casas sustentadas por mulheres. De acordo com o II Vigisan – 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil – realizado pela Rede PENSSAN, o nível considerado grave chega a 39,5% nas famílias sustentadas por mulheres negras, enquanto nas famílias sustentadas por homens negros ele é de 34,3%. No topo do ranking das famílias com mais acesso à uma alimentação considerada suficiente estão as que são sustentadas por homens brancos, como já era mais do que esperado, frente à história secular de domínio que eles vêm exercendo no país. 

 

Transformar a Praça dos Três Poderes em um Jardim

 

Num outro poema celebrado de sua obra, nosso querido Drummond menciona que uma flor brotou no asfalto. Em meio a uma superfície árida, endurecida, embrutecida, algo tão delicado – e surpreendentemente vivo! – conseguiu brotar. Rompeu as camadas densas que isolavam terra e céu. Revelou que, se há a dureza da pedra, também há a resiliência da planta, também há a ousadia da flor. É a natureza manifestando seu impulso de sobrevivência, sua capacidade de superar os obstáculos que a civilização humana, conduzida por uma elite de homens brancos, tenta nos impor.

Mas, se no caso do verso do nosso poeta, o que brota é uma criatura quase intangível – que ele classifica como feia –, na realidade brasileira podemos encontrar muitas outras manifestações de resistência (e até de pujante fertilidade) que irradiam vigor e beleza. E é justamente uma explosão da energia mobilizada por um conjunto crescente desses seres que pudemos testemunhar no dia 16 de agosto. A capital do país, lugar marcado pela imponência do concreto e pelo exercício do controle masculino sobre a vida de tudo que em nossos territórios habita, recebeu a 7ª edição da Marcha das Margaridas

Região central de um território multiétnico, espaço de aparência sóbria em que homens de ascendência predominantemente branca circulam de terno escuro em seus carros oficiais ou em seus jatinhos, cidade das utopias e das distopias do ontem e do hoje, a nossa Brasília, sempre tão apartada das massas populares, se encheu de cores, texturas, cheiros e sons, antecipando a chegada da primavera. Foram mais de 100 mil mulheres que vieram dos campos, das cidades, das florestas e das águas para unir suas vozes em um clamor por sua liberdade de existir de forma digna e plena, rompendo com a opressão que o patriarcado lhes impõe há tantos séculos. 

De todos os cantos do Brasil – e até de fora dele, pois o encontro contou com representantes de 33 outros países –, surgiram bandeiras, estandartes, vestidos, colares… mas também mãos calejadas, rostos curtidos pelo sol, cicatrizes de partos e de lutas, memórias de dor e de gozo de quem se manteve de pé em meio aos furacões erguidos nos ares pelos preconceitos, pela discriminação, pela misoginia, pela exploração de sua força de trabalho e pela negação de direitos fundamentais até sobre seus próprios corpos. De quem nunca se resignou frente às várias formas de violência – explícitas ou silenciosas.

A ação política feminina de maior amplitude da América Latina mostrou a que veio, reafirmando o compromisso assumido pela mulher que a ela deu o nome, a líder camponesa Margarida Maria Alves, que há 40 anos atrás foi assassinada pela oligarquia agrária do Nordeste. Trata-se de um crime que está longe de ter sido um caso isolado ou único, mas que já se repetiu muitas vezes e segue se repetindo e tingindo nosso solo de sangue, como deixa nítido outra brutal demonstração de violência, ocorrida no dia 17 deste mês, apenas um dia após a Marcha se espraiar pela nossa capital, o assassinato de Mãe Bernardete Pacífico, ialorixá e líder da Comunidade Remanescente de Quilombo Pitanga de Palmares, à frente da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas.

Nas quatro décadas decorridas entre um crime e o outro, nosso país seguiu imerso em uma verdadeira guerra civil, em que corpos negros e indígenas são constantemente tombados pela polícia, pelas milícias rurais e urbanas, pela miséria e pela fome. Com o golpe ocorrido em 2016, esse tipo de violência contra a vida se ampliou, ganhou apoio governamental e uniu forças com os setores que praticam a intolerância religiosa, como as igrejas fundamentalistas neopentecostais, em um processo de opressão e perseguição a todxs que não se enquadram nos estreitos padrões que o conservadorismo prega.

Mãe Bernardete foi morta dentro do terreiro em que era ialorixá. No espaço sagrado no qual praticava sua fé junto com sua comunidade quilombola. Ela era negra, ela era de uma religião de matriz africana, ela era uma liderança social e política. Por tudo isso, foi vista como uma pedra no caminho dos que querem manter privilégios e alimentar preconceitos. Através das mãos destes, foi brutalmente removida da estrada.

Mas o que os donos dessas mãos não compreendem é que, muito longe de serem um pedaço de rocha, embora tenham revelado imensa força em suas posturas, seres como Margarida Alves e Mãe Bernardete são feitas de material vivo, pulsante, que pode até tombar, mas que rebrota. São feitas dos mesmos ingredientes que compõem as flores. Assim, são capazes de romper a dureza do mundo e conseguir brotar em plena aridez. E, quando as pétalas se vão, vêm os frutos e as sementes, em um processo de renovação da vida que nunca poderá ser contido.

É o impulso ancestral de Gaia, de nossa Pachamama, das orixás e das cunhatãs. É com esse impulso vivo dentro de nós que seguiremos brotando. Exigimos não apenas justiça pelos crimes sofridos, exigimos o reconhecimento de tudo o que somos, de todos os direitos que nossa existência no mundo nos assegura, seja qual for nossa cor de pele, nossa crença, nossa herança. Somos flores e, como diz o poema, furamos o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

Setembro virá e a fertilidade da Mãe Terra encherá novamente os caminhos de pétalas coloridas, mesmo onde as pedras forem densas. Não, eles não vão deter a primavera.

20
Mai23

Consciência negra

Talis Andrade

 

Foto de Christiana Carvalho
 
 

Em vias públicas, mãos, fuzis e revólveres policiais levam a cabo a perfuração que verte o sangue negro no asfalto quente, em becos e vielas nos quais jorram a vida preta entre os ralos da miséria e do esquecimento

 

por Diego dos Santos Reis /A Terra É Redonda

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Passadas as celebrações do novembro negro e do mês que, em nome de Zumbi e Dandara dos Palmares, rememora, denuncia e exige reparações históricas à população negra brasileira, parece vigorar certo silêncio após a efeméride, no que diz respeito à (in)consciência negra nacional. Reinam, todavia, as imagens associadas à violência, ao genocídio, ao caos e aos casos nunca isolados de racismo que, de norte a sul, cortam o território amefricano. Casos que dilaceram famílias e comunidades, aniquilam sujeitos e arrasam possibilidades de vida plena e digna, tal como garantido na Carta Constitucional brasileira.

Imagens de controle, como enunciadas por Patricia Hill Collins, que reforçam práticas de dominação, criminalização e violência, física e simbólica, voltadas à estigmatização e à legitimação de suas próprias operações de morte. Se a morte ocupa um lugar fundamental nessa produção imagética é na medida em que se constitui como ponto de partida, sob a perspectiva do supremacismo branco, do que seja o destino natural e original do corpo negro, que da morte-em-vida à morte factual passaria de um estado de não-ser ao desaparecer, como o desvanecer da imagem de um fantasma – entre mundos, medos e modos de ser pautados pelo negativo.

Em vida, porém, a consciência retinta de ser, de viver e a teimosia tomam forma, rosto, nome e figura do que, sendo, insiste em desarticular os mundos de morte da branquitude e seus mecanismos de sufocamento, acionados por vias diversas. Em vias públicas, mãos, fuzis e revólveres policiais levam a cabo a perfuração que verte o sangue negro no asfalto quente, em becos e vielas nos quais jorram a vida preta entre os ralos da miséria e do esquecimento; em vias privadas, pelas mãos de algozes e feitores que chamam de amor (?) a doença que extirpa, subjuga e liquida as vidas de mulheres, sobretudo negras, encontradas em sacos pretos, rios, azulejos frios, imobilizadas em fotos que estampam, cotidianamente, pequenos retângulos de jornais sanguinolentos (até quando?).

Ceifadas, entre promessas de amor eterno e o eterno pedido de desculpas das forças policiais e chefes de Estado, desaparecem, em preto e branco, histórias, narrativas e memórias daquelas que, chacinadas, são condenadas sem inquérito, enquanto co-mandantes são condecorados em cerimônias oficias e oficiosas.

Penso nesses rostos enquanto escrevo e vejo o sorriso, os sulcos da pele, as marcas e linhas longas da vida – interrompidas. Penso nas vidas negras que importam, dizem, e, todavia, seguem conscientemente exterminadas por mãos apocalípticas enquanto, nas escolas, tentamos fazer valer a lei da vida, a lei da justiça e do ensino de história e cultura daquelas que, antes de nós, em diáspora, fizeram valer com seu suor a contra-lei do mundo dos homens injustos.

Passados 20 anos de promulgação da Lei 10.639/03, silentes ou complacentes, a conveniência segue esbranquiçando itinerários formativos. Mas o poder do brado negro desafia o silêncio reinante. Peleja, retumba, sacoleja e desarranja os ritos (fúnebres) de histórias lineares, pomposas e heroicas que não mencionam Dandara, Aqualtune, Marielle, Lélia e Sueli, porque, ali, o pacto sa(n)grado é branco, no masculino.

A consciência nossa é ciência, suor e roda. É repente, desafio e capoeira, ginga com os arranjos, institucionais ou não, há séculos organizados para transportar os corpos em tumbeiros, caveirões e rabecões, para quem a morte passa a ser pena capital e não parte da existência e do mundo compartilhado com a ancestralidade. Até a morte foi saqueada. E soterrada em covas rasas, sem nome, placa ou documento de identificação, para que a indigência devorasse, com o bico afiado, a carne putrefata de quem sonhava com casa própria, formatura e família grande, como Kethlen Romeu e seu filho, assassinado no ventre.

Vingar ainda é desafio na diáspora. Vingar até a última gota de vida, o desafio nas 52 semanas e 1 dia de consciência negra, que perfazem um ano. Nele, todos os dias são voltados ao desfazimento do pacto funesto. Todos os dias são voltados à lembrança do que, recalcado, não pode contentar-se com um único dia ou mês do ano. Emerge, dia a dia, porque nascido em zona de emergência. Contra a virulência, insurgente, gesta resistência na negra consciência da luta pelo que é, foi e será. Todos os dias do ano.

 

19
Mai22

Racismo na igreja

Talis Andrade
Lubaina Himid, Entre os dois meu coração está equilibrado, 1991


O vereador Renato de Freitas é mais um negro vítima do racismo cristão
 
 
por Simony dos Anjos

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Renato Freitas, frente à violência das mortes de Moïse Kabamgabe e de Durval Teófilo Filho, se juntou a outras pessoas negras em uma manifestação em frente à Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Benedito, na capital do estado do Paraná. Por ser um sábado havia uma missa em curso e após o encerramento da missa, os manifestantes adentraram à Igreja. Em uma cidade conservadora e cristã, como Curitiba, isso soou como “vilipêndio da religião alheia”, nas palavras de um dos vereadores que propuseram a cassação do mandato de vereador de Renato Freitas (PT).

Temos aqui muitos elementos a serem discutidos em relação a toda a violência e racismo que envolvem essa situação: (i) a entrada de manifestantes em uma igreja revolta mais os “cidadãos de bem” do que a própria morte de Moïse e Durval; (ii) a oportunidade de acusar um parlamentar negro de quebra de decoro e, assim, cassar seu mandato e (iii) a indiferença ao que a população negra tem a dizer sobre esse acontecimento.

O que torna a questão ainda mais complexa é que a Igreja que foi então ocupada por manifestantes é nada mais, nada menos, que uma igreja que mobilizou muitas pessoas negras no decorrer da história da cidade de Curitiba. Portanto, a igreja tem uma simbologia na luta negra e antirracista da cidade. Fundada em 1737, a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Benedito teve a sua primeira construção – que foi demolida em 1931 –, feita por escravizados e para que os escravizados pudessem frequentar a missa.

Ora, nada mais justo que uma manifestação desse porte e conteúdo acontecesse em um local historicamente pertencente às pessoas negras e que serviu de cenário para articulação de pessoas escravizadas na resistência à escravidão brasileira. Como pessoa negra cristã, o que me chama a atenção nesta história toda é que ao invés de cristãs e cristãos se arrependerem do pecado do racismo e se colocarem na trincheira da luta por reparação histórica, se resignam e ainda se ofendem ao serem confrontados com seu próprio racismo.

Sim, esse caso se trata de racismo das igrejas cristãs, pois afirmam que houve desrespeito com o espaço religioso, mas não admitem nunca o papel crucial da Igreja Católica na justificação moral e religiosa da escravização, no Brasil. Lembro-me do quadro do Debret, Jovens negras indo à Igreja para serem batizadas (1821), no qual as mulheres sequestradas em África vão para a igreja antes de serem estupradas, exploradas e torturadas nas mãos dos senhores de engenho. Portanto, frente às atrocidades que a Igreja Católica (e muitas protestantes) cometeram e apoiaram contra negros e indígenas brasileiros, ceder seus templos para que o movimento negro faça denúncias é o mínimo!

O fato é esse, as mãos dos cristãos estão cheias de sangue, e não há cassação que faça essas mãos se limparem. E o próprio fato de certos cidadãos ditos de bem se incomodarem mais com um ato antirracista dentro de uma Igreja que historicamente é referência do movimento negro curitibano, do que com as mortes de Moïse e Durval, mostra que esses cidadãos querem silenciar o movimento negro.

O segundo ponto é fulcral neste debate: a cassação de Renato. A própria diocese de Curitiba se pronunciou contrária a esse absurdo e em nota disse que essa punição é desproporcional. Contudo, a pena de cassação foi proposta por Sidnei Toaldo por “realização de ato político no interior da igreja”. Sabemos do que se trata na verdade: uma vez que entramos nos espaços de poder, a branquitude faz de tudo para que saíamos. Seja por manobras institucionais, como esta, ou com a nossa própria morte – como ocorreu com Marielle Franco.

Deve ser muito desconfortável ouvir todos os dias que seus ideais são racistas, não? Ver que o espaço de poder não é mais hegemonicamente branco e masculino. Quando Renato abre sua boca para dar voz aos movimentos sociais de Curitiba, ele enfia uma faca no âmago das estruturas racistas, machistas e lgbtfóbicas que sustentam os “homens de bem”. E é por isso que qualquer motivação será o suficiente para arrancar o mandato de uma liderança popular eleita pelo povo e para o povo.

Por fim, a pergunta que fica é: o que pensa a população negra sobre essa cassação absurda? Dos 38 vereadores da casa, apenas 3 são negros. A cidade mais negra do sul, tem 24% de pessoas negras na sua população, mas não tem 24% de vereadores negros na câmara. Será que essa população aprova o movimento negro pedindo misericórdia na Igreja Nossa Senhora do Rosário para as vidas negras perdidas para a violência racista em nossas cidades? Eu acredito que sim. Esse comitê de ética composto por pessoas brancas que não têm qualquer empatia com a causa negra, não está apta para julgar a dor e a denúncia das pessoas negras, que têm seus corpos e direitos vilipendiados todos os dias.

Para os cidadãos de bem cristãos, eu digo, é tempo de arrependimento do pecado do racismo. Pecado esse que garantiu a construção de um país por meio da justificação religiosa do trabalho escravo. É tempo de assumir o lado certo da história e repensar como nossas igrejas dia a dia têm contribuído para o racismo brasileiro. Tenho certeza que neste caso, Jesus estaria não só com os manifestantes, como diria: a casa de Deus é a casa do povo, venham e tomem assento. Racistas, não passarão!

04
Nov21

O que é racismo estrutural?

Talis Andrade

calos latuff consciencia negra.jpg

 

 

Entenda o termo e como combater o problema na prática

19
Jul21

Registros mostram 400 filhas pensionistas de militares como sócias de empresas milionárias

Talis Andrade

BAILE DA ILHA FISCAL? NÃO! É AGORA!

 

Levantamento mostra filhas de ex-integrantes das Forças Armadas que são sócias em companhias com capital social acima de R$ 1 milhão. Parasitas de luxo. Em 2020, foram destinados R$ 19,3 bilhões para todos os grupos de dependentes de militares

 
 
Sócias de empresas com capital social acima de R$ 1 milhão, 400 mulheres recebem pensões [do governo brasileiro] por serem filhas solteiras – ao menos no papel – de militares no Brasil.
 
No total, a União pagou R$ 3,62 milhões para essas beneficiárias em fevereiro deste ano, último mês com dados disponíveis sobre o pagamento aos pensionistas militares no país.
 

Mantida essa média, em um ano, R$ 43 milhões seriam desembolsados pelo governo apenas para esse grupo [de mulheres, a maioria amancebadas, ou casadas apenas no religioso, e muitas vezes com filhas que também receberão pensões vitalías] . 

Em 2020, foram destinados R$ 19,3 bilhões para todos os grupos de dependentes de militares.

Cada uma das beneficiárias recebeu, em média, R$ 9.052,06 em fevereiro. A maior pensão paga dentro desse grupo pertence a Janette Braga Sampaio de Queiroz. Viúva e filha de militar, ela acumula os benefícios e recebeu R$ 36.198,18 brutos. Janette aparece como sócia na Laq Participações LTDA, empresa baseada no bairro do Leblon, na cidade do Rio de Janeiro, que consta com capital social de R$ 2,8 bilhões.

Além dessa empresa, ela é sócia de outras 11 com capital social menor. Um pedido de contato com Janette foi enviado ao e-mail registrado junto à Laq Participações LTDA, mas até a publicação desta reportagem nenhuma resposta foi dada.

Realizada pelo (M)Dados, núcleo de análise de grande volume de informações do Metrópoles, a análise contou com o cruzamento de duas bases de dados públicas: de pensionistas militares e de sócios de empresas brasileiras.

Publicada no Portal da Transparência no último dia 27, a base de pensionistas no Brasil só foi divulgada após a Fiquem Sabendo, agência de dados especializada na Lei de Acesso à Informação (LAI), cobrar a publicidade do conteúdo ao Tribunal de Contas da União (TCU). A relação de sócios de empresas brasileiras está disponível no Brasil.Io, iniciativa colaborativa que libera dados públicos.

Autor de livros jurídicos sobre direito previdenciário militar, o professor Maurício Fariña explica que a pensão é um “direito adquirido” e dentro da legalidade. Segundo o docente, a questão de manutenção das pensões, entretanto, pode ser reavaliada: “A natureza que originou esse benefício foi o desejo de proteção a essas filhas. Esse direito é legal, constitucional, porém, diante do cenário atual, nós precisamos avaliar se é moralmente aceito”, analisa.

[Veja aqui os nomes das filhas pensionistas militares sócias em empresas milionárias. Parasitas de luxo de um Brasil com milhões de miseráveis e pobres, os sem teto, os sem terra, os sem nada da vida severina.

Para manter tais privilégios de casta, nada republicanos, as constantes ameaças de golpe militar]

Ilustração: Baile da Ilha Fiscal? Não! É agora. Totonho

14
Jun21

Poema holandês do início do século 20 sobre elite brasileira vira samba na Europa

Talis Andrade

A sambista carioca Maíra Freitas, filha de Martinho da Vila, também assina a tradução da letra de "Despreocupados" para o português.

A sambista carioca Maíra Freitas, filha de Martinho da Vila, também assina a tradução da letra de "Despreocupados" para o português. © Mario Rocha

A música “Despreocupados” é interpretada pela brasileira Maíra Freitas e pela belga Eléonor. A letra é baseada no poema “Passageiros de Barcos Brasileiros” (“Braziliaanse Kust Passagiers”), do holandês Slauerhoff, escrita no início do século 20 e que retrata o comportamento da elite brasileira em um navio.

A música em ritmo de samba “Geen Van Allen Zorgen” foi lançada inicialmente no ano passado, em holandês, na Bélgica e na Holanda pela cantora Eléonor e pelo produtor e músico Gerry De Mol. Como o poema foi escrito e falava do Brasil, surgiu a ideia de fazer a versão brasileira. Jolan Huygens, empresário e filho da cantora belga Eléonor, assistiu a um show de Maíra Freitas durante uma temporada no Rio de Janeiro em 2018 e propôs o nome da carioca para essa parceria.

“O ritmo é um samba e pensamos que seria legal fazer alguma coisa junto com artistas brasileiros. Fiquei muito impressionado quando ouvi a Maíra pela primeira vez. Ela estava grávida, tinha uma energia incrível, cantou e tocou piano. Uma cantora maravilhosa. Achei que ela seria uma boa parceira e ela topou fazer a tradução do poema e cantar”, lembra o jovem belga, em um português afiado.

A versão brasileira, criada este ano para celebrar o Dia Internacional da Diversidade e do Diálogo Cultural (21 de maio), está disponível nas plataformas digitais desde o final de maio. O autor do poema original, Jan Jacob Slauerhoff (1898-1936), é um dos poetas holandeses mais importantes do início do século 20. Ele era médico a bordo de navios, admirador de Camões, e fez várias poesias sobre o Brasil, que ele conheceu. Apesar de ter sido escrito há quase um século, “Passageiros de Barcos Brasileiros” é muito atual.

Mesma elite há 500 anos

“O poema fala muito da aristocracia, da burguesia brasileira. É muito atual porque não evoluímos muito nesse sentido de branquitude. A elite hoje não é muito diferente, no século 19, 20. É a mesma há 500 anos, infelizmente”, avalia Maíra Freitas.

Ao fazer a tradução, a carioca fez algumas adaptações para tornar a letra de “Despreocupados” mais contemporânea e canta “esses senhores são ministros/ sempre os mesmos/ velhos golpistas/ tem gente de alta patente/ não tem quem se preocupe com nossa história”.

“Teve uma certa liberdade, claro. É poesia. Eles estão falando de senhores, de ministros — tinha essa palavra no original, e eu coloquei essa coisa dos golpistas que estão aqui até hoje. (...) Fazendo o que querem, ganhando seus dinheiros, arrancando nossas riquezas. Totalmente ‘despreocupados’ (risos) com nossa história, com quem trabalha, com os brasileiros que têm essa história incrível, miscigenada, que não é uma miscigenação boa, mas forçada”, explica. Ela garante que foi um desafio falar “dessa história complexa” justamente para que as pessoas parem e pensem sobre “esse caminho histórico”.

Filha de Martinho da Vila

Pianista de formação clássica, Maíra Freitas tem o samba no sangue. A filha de Martinho da Vila, já cantou e tocou com grandes nomes da música brasileira e agora participa dessa parceira com a belga Eléonor. A gravação foi feita à distância por causa da pandemia.  “Despreocupados” é um samba “fusion” que agrada à jovem cantora.

“Não vou dizer que um samba genuíno brasileiro. O samba é isso, um pouquinho de cada um. Ficou super gostoso de ouvir, de cantar, a melodia, o swing e colocar os instrumentos daqui. Colocaram o nosso tempero. É também o olhar belga, holandês do Brasil, da paisagem sonora brasileira. Tem um pouco da Bélgica/Holanda no ritmo, na melodia. Tem um pouco de brasileiro na melodia, na letra. Essa é a mágica, a beleza da canção”, acredita a sambista.

A percussão de “Despreocupados” é assinada pelos brasileiros Pedro Amparo e Pablo Carvalho. O single já integra algumas listas nas plataformas musicais e a receptividade, tanto na Bélgica quanto no Brasil, está sendo boa. Maíra Freitas e Jolan Huyhens não veem a hora da pandemia ser controlada no Brasil e as fronteiras da Europa reabrirem para viajantes brasileiros, para poder reunir no palco as cantoras carioca e belga interpretando a música.

 

15
Dez20

Pacto racial da branquitude começa a ruir em Curitiba?

Talis Andrade

Carol Dartora na praça Zumbi dos Palmares: primeira negra eleita vereadora em Curitiba

A eleição da primeira vereadora negra em Curitiba é um sinal animador de que o pacto racial da branquitude começa a ruir em um de seus principais bastiões

24
Nov20

Pessoas negras são apenas 3% dos servidores de nível superior do Rio Grande do Sul

Talis Andrade

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A engenheira civil Josi Beatriz Viegas Cunha, servidora do Estado há vinte anos, hoje trabalha na Secretaria de Obras /Foto Ivan Pereira/Sintergs
 
 

Curitiba e Joinville elegeram suas primeiras vereadoras negras. No Rio de Janeiro a negra Benedita da Silva perdeu a eleição para prefeita. No Rio Grande do Sul 3 por cento dos servidores negros possuem nível superior

 

Jornal Já - Pesquisa realizada pela PUCRS com associados do Sindicato dos Servidores de Nível Superior do Rio Grande do Sul (Sintergs) mostra que apenas 3% dos funcionários públicos com graduação são pretos. Entre os 366 participantes, 5,7% são pardos e 0,3%, indígenas. Brancos chegam a 91%. Os dados fazem parte de estudo realizado em 2020 e serviram de base para a cartilha lançada pelo Sintergs em outubro.

A baixa representatividade de negros no serviço público, especialmente em cargos de nível superior, demonstra a dificuldade de acesso à educação de qualidade. Angela Antunes, diretora do Sintergs, frisa a  importância de questionar a desigualdade e assumir que há privilégios em ser branco, como primeiro passo para uma mudança.

“Entender a necessidade das cotas, da dívida histórica do Brasil com os afrodescendentes e indígenas e desmitificar a meritocracia, como se todos tivessem acesso às mesmas condições, é fundamental”, avalia Angela. Ela lembra que o Dia Nacional da Consciência Negra tem sua raiz em solo gaúcho, no Grupo Palmares, em Oliveira Silveira, Antonio Carlos Côrtes e outros militantes negros e negras. “Que o 20 de novembro conscientize também a branquitude”, apela.

Educação contra racismo

Abidemi significa “aquela que chegou antes”. O nome que rebatizou Josi Beatriz Viegas Cunha no batuque traduz o sentido que ela tem para sua comunidade. Mulher preta forte e pioneira, abriu caminhos para si pela educação. Mas revela que não cresceu sozinha – teve a força de sua ancestralidade e o apoio de pai, mãe e irmãs. As guias no pescoço e o dread nos cabelos há 21 anos são marcas de Josi. Mais do que mudar paradigmas, ela diz que carrega suas referências como forma de assumir seu estilo e sua crença na religião afrobrasileira.

Formada em Engenharia Civil pela PUCRS como aluna destaque da turma de 1993, é servidora estadual há 20 anos. Começou sua trajetória na Secretaria de Educação e hoje trabalha na Secretaria de Obras. Desde que ingressou no serviço público, ela tem consciência de seu papel para ajudar a melhorar a vida das pessoas. “O posto de saúde vai para a comunidade preta, a escola estadual vai para a comunidade preta”, conta, motivada pelo trabalho que realiza.

Na carreira, os desafios são grandes. “Minha posição não é de inferioridade, mas estou atrás até de quem entrou agora. Vejo que colegas brancas que fizeram faculdade já chegam em patamar superior, mesmo eu ganhando financeiramente mais, elas têm mais acesso. Tive de ser melhor do que homem branco e que mulher branca, ser a melhor das melhores, pois, além de ser mulher, sou preta”, explica.

“Às vezes, olham pra mim e dizem que as cotas não são necessárias: se tu conseguiste, outros também conseguem. Mas um dos meus anjos, homem preto que conseguiu meu primeiro estágio, não se formou. Faltou suporte familiar e econômico. Meus pais abriram mão de conquistas para eu me formar, eu abri mão. Meu pilar era de madeira, não era de concreto. Não havia estrutura, por isso a necessidade de reparação.”

23
Nov20

Beto estava ‘marcado’ e morte não foi ‘casual’

Talis Andrade

PM de São Paulo imobiliza homem negro que participava de manifestação contra a morte de um jovem da comunidade do Moinho.

PM de São Paulo imobiliza homem negro que participava de manifestação contra a morte de um jovem da comunidade do Moinho.ROVENA ROSA / AGÊNCIA BRASIL

por Fernando Brito

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O novo vídeo obtido pela Gaúcha ZH, divulgado na noite de ontem, mostra que o assassinato de João Alberto Freitas Silveira não foi provocado por uma confusão fortuita. Sem cena, tá? A gente te avisou da outra vez“, diz um outro segurança, de um total de pelo menos cinco funcionários do Carrefour presentes na cena do crime, três dos quais participaram da imobilização fatal da vítima.

Isto induz a uma grande possibilidade de que a primeira agressão física, a de João aos seguranças do supermercado ter sido uma reação ao popular “esculacho”, prática de humilhação nada rara entre policiais e assemelhados diante de alguém sobre quem percebem ter superioridade na situação.

O uso de técnicas perigosas de imobilização – joelho no pescoço do suposto oponente – também deixa claro que os seguranças tinham preparo para essa prática, usada por diversas organizações policiais, como você pode ver na foto de uma ação da PM de São Paulo publicada pelo El País. Também está na página 80 do manual oficial da polícia de Minas Gerais, sem nenhum comentário sobre seu risco fatal.

O famoso “eu não consigo respirar” é, assim, uma ação que faz parte dos treinamentos de agentes de segurança.

Há, portanto, muito mais gente envolvida no caso do que os dois seguranças autuados pelo crime: os que os treinaram para este tipo de comportamento, abordagem e ação e os que, com visível posição de chefia nas cenas que assistimos permitiram que um homem já nitidamente dominado continuasse a ser brutalizado sem defesa possível.

Que, ao menos, a morte daquele homem desencadeie uma rejeição social àquilo que, durante anos, foi aceito e estimulado por mídia e governantes: as ações desnecessariamente violentas de agentes de segurança, que, agora, pela profusão de câmeras e de vídeos, aparecem diante dos olhos de todos, enquanto ficava antes apenas flagrante quendo se vivia nas periferias e comunidades pobres.

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26
Ago20

Democracia não é só um regime político, é um modo de vida, é uma forma de estar em sociedade

Talis Andrade

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III - Governo Bolsonaro é "estado de golpe"

Giulia Afiune entrevista Lilia Schwarcz

 

Sendo uma intelectual branca que pesquisa a escravidão e o racismo no Brasil, como você entende o seu lugar de fala dentro desse tema?

Eu penso que todo mundo tem lugar de fala. Eu falo como uma pesquisadora branca, tanto que no livro “O Espetáculo das Raças” eu mostro como o darwinismo racial foi uma criação das escolas de Medicina, de Direito, dos institutos históricos, dos museus. Eu falo como uma intelectual branca que tem acesso à documentação e que a oferece a todos. O lugar do qual eu falo é esse de uma professora, acadêmica, pesquisadora, que se dedica a isso há muitos anos. E eu falo como aliada também. Se foram os brancos que criaram o racismo, a escravidão, o darwinismo racial, as teorias de branqueamento e o mito da democracia racial, há de se estudar não só a escravidão, mas também a branquitude. É desse lugar que eu falo, como uma intelectual branca, da Universidade de São Paulo, de Princeton. E me orgulho de ser uma aliada nessa luta antirracista.

 

No livro “Brasil: Uma biografia“, você fala que a história do Brasil e o brasileiro se definem pela “mestiçagem”, por elementos contraditórios que convivem. A diversidade de raças que existe no Brasil hoje é uma coisa positiva, mas tem como origem um processo violento de invasão dos territórios indígenas, de tráficos de pessoas negras. Essa contradição é um traço inerente do Brasil?

A mestiçagem não é um termo neutro, é um termo que foi sendo construído como uma coisa boa, uma grande mistura. Como cientista social, me interessa entender por que a mestiçagem é mistura, mas por que ela também é separação. Heloisa e eu dissemos no livro que o Brasil não é uma sociedade do “ou”, é do “e”. Não é ou mestiçada ou violenta, é as duas coisas. Boa parte das sociedades são assim, elas se movem na contradição. 

Nós temos contradições básicas que não foram solucionadas e que continuam presentes na nossa pauta. Uma delas é que o Brasil se construiu como um país da não-liberdade. A gente não pode esquecer que, durante quase quatro séculos, boa parte da população não tinha acesso à educação, à liberdade. 

Essa também é uma sociedade de muitas contradições entre representação e realidade. Como é que o brasileiro se reconhece nessa imagem do povo pacífico, cordial, tendo permitido que o sistema escravocrata fosse vigente durante tanto tempo? Isso só poderia gerar uma sociedade muito violenta e profundamente desigual. O fato do país se acomodar com essa desigualdade tão gritante, na minha opinião, é um ato de violência. Nós vínhamos melhorando esses índices e esses índices caíram novamente de uma maneira gritante. Nós não atacamos o círculo vicioso da desigualdade, da pobreza. Enquanto nós não atacarmos, seremos esse país de grandes contradições.

 

Outro aspecto disso é como o Brasil frequentemente busca “esquecer” o que foi a ditadura e a escravidão e, com isso, naturalizar a violência que caracterizou esses dois períodos.

Todas as sociedades buscam esquecer. Há quem diga que a função do historiador é lembrar, mas é também esquecer. O brasileiro tem problemas com a questão dos ressarcimentos, por exemplo. Não me refiro só a ressarcimentos pecuniários, mas a ressarcimentos da memória. Durante muitos anos nós esquecemos de uma determinada memória para falar só da memória das pessoas brancas desse país. Nós não tratamos da memória dos indígenas, dos quilombolas, dos ribeirinhos, como se só existisse uma fonte de memória. Eu acho que essa política de esquecimento e o direito à memória são questões muito sérias no Brasil.

 

No livro “Brasil: uma biografia” você fala sobre esse traço da nossa cultura que sempre espera um futuro melhor e espera algum tipo de milagre para resolver a situação atual. Por que isso acontece? 

O Brasil é um país do futuro há muito tempo. O problema é que se os brasileiros continuarem a ter esse pé no milagroso, continuarem a delegar essa função para o presidente e não fizerem um planejamento melhor, essa situação vai se postergar. A gente precisa de planejamento, de políticas públicas, econômicas, políticas na área da saúde, na área de cultura, e que sejam coerentes. Nós não temos isso há muito tempo. 

E isso é verdade no macro e vai para o micro. Eu concordo com o [jurista e filósofo] Silvio Almeida quando ele diz que nós não teremos uma democracia enquanto formos tão racistas. Esses passos podem ser dados no nosso cotidiano, não é preciso só cobrar lá em cima. 

Na empresa em que eu trabalho, por exemplo, como é a composição em termos de região, geração, raça, gênero? Como avaliamos e criamos processos de recrutamento não a partir das nossas relações pessoais, mas a partir de um critério racional, que também é generoso e plural? Como é que cada um pode assumir as suas responsabilidades, determinando objetivos, práticas, métricas [de diversidade] nos lugares que ocupa? Como podemos aumentar a conscientização da população? 

Enquanto a gente não conseguir mudar esses processos visando mais transparência, mais justiça, maiores oportunidades, nós vamos ser condenados a repeti-los. Eu sou historiadora e acho que a História ajuda muito, mas como eu digo no meu livro, ela não é bula de remédio. Ou seja, se as pessoas não realizarem, não adianta nada. Está na hora de construir outros processos.


Apesar do brasileiro ter a fama de ser um povo dócil e cordial, os brasileiros já lutaram contra o autoritarismo em muitos momentos no passado, desde a escravidão até a ditadura. Que lições podemos aprender com essas lutas para enfrentar a situação que vemos hoje?

Como historiadora eu penso que em vários momentos da história do Brasil a sociedade civil compareceu. Eu cito um que é muito claro: quando Getúlio Vargas cometeu suicídio, os brasileiros foram às ruas, clamaram por direitos e retardaram em pelo menos 10 anos a ditadura que já estava sendo montada. 

Nesse momento em que estamos vivendo agora com a pandemia, a gente também pode ver a sociedade civil se manifestando através das ONGs, do trabalho voluntário. É o suficiente? Não, mas eu penso que o Brasil precisa de mais cidadania e de menos exemplos como o do desembargador, do casal de engenheiros – que falaram “cidadão não, engenheiro” –, ou mesmo do caso terrível de maus tratos ao entregador. O que fará de nós uma democracia melhor é se nós trabalharmos com duas noções que distinguem governos democráticos, que são justamente igualdade e liberdade.

A democracia se sustenta nesses dois princípios e depende deles. Eu penso que democracia não é só um regime político, é um modo de vida, é uma forma de estar em sociedade. Ela carrega esse ideal de extensão da cidadania, do direito de participar, e se orienta, por sua vez, pela inclusão, pelo pluralismo – são valores que devem nos guiar. 

O Brasil carrega agora dois espelhos diferentes. Um espelho muito odioso, muito violento, um espelho do familismo e da velha política, e, um outro espelho do Brasil que a gente quer ter, um Brasil mais generoso, mais cidadão. Nesse sentido que a democracia é um modo de vida, porque depende de nós também.

 

Em um texto recente publicado no Nexo você conta que em 1918, durante a pandemia de gripe espanhola, os brasileiros já apostavam em remédios e receitas “milagrosas” para curar uma doença que não tem cura – desde caipirinha até sal de quinino. Na pandemia do novo coronavírus, os “milagres” são a cloroquina, ivermectina, e outros remédios. Por que o brasileiro insiste em milagres para coisas que não tem cura? 

Eu estou estudando a pandemia da gripe espanhola. Desde a Idade Média quando você tem esses fenômenos pandêmicos, você tem os santos curadores, os santos da peste que são aqueles a quem você vai recorrer na hora da peste. Momentos de pandemia são momentos em que a população fica muito insegura, não sabe projetar o futuro. Nessas situações, não há nada como apostar em um milagre. Eu entendo que a população faça isso, mas não que o presidente faça isso e com outros objetivos – porque nós sabemos como os militares estão envolvidos na distribuição da cloroquina.

Algumas diretrizes da OMS já estavam dadas em 1918: o isolamento, as escolas foram fechadas, as igrejas foram fechadas, os campeonatos adiados. São procedimentos mínimos para conter ao máximo uma pandemia. Quando você não faz isso, como o presidente não faz, quando você não exalta a população que pode ficar isolada a fazer isso, você se transforma não em um presidente, mas em um milagreiro. Isso não é só no Brasil.

 

Na semana passada ultrapassamos a marca de 100 mil mortes pela Covid-19, ou seja, somos o segundo país em que mais pessoas morreram nessa pandemia. Sem dúvida a inépcia do governo federal para lidar com essa crise é um dos principais motivos para isso. Mas há também comportamentos do próprio povo brasileiro que favorecem isso, por exemplo a falta de adesão ao isolamento. Que elementos do nosso comportamento enquanto pessoas contribuíram para isso?

Não foi sempre assim. Não foi assim em 1918, não teve esse desquite entre o Executivo e o seu ministro da Saúde. Esse é um lado da questão. As atitudes do presidente têm claro impacto na sua população. Se você tem um presidente que se opõe ao uso de máscara, que se opõe a ideia de que não devem existir aglomerações, é claro que os seus eleitores copiarão esse tipo de comportamento.

Não dá pra gente dizer que o brasileiro é assim, dá pra gente dizer que o brasileiro está assim. Eu não gosto desse tipo de ideia, “ah, os brasileiros são assim, ou assado”, porque  muita gente dirá, “se nós somos assim, o que há pra fazer? Vamos em frente”. Nós não somos assim, nós estamos assim. [Agência Pública]

 

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