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O CORRESPONDENTE

Os melhores textos dos jornalistas livres do Brasil. As melhores charges. Compartilhe

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O CORRESPONDENTE

18
Nov23

Exclusivo DCM: Flávio Bolsonaro usa polícia e MP do Rio para tentar prender youtuber Thiago dos Reis

Talis Andrade

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Murilo Graça, promotor

por Vinicius Segalla, DCM

O promotor do Ministério Público do Rio de Janeiro Alexandre Murilo Graça, da 3ª Promotoria de Investigação Penal Especializada, denunciou no último dia 26 o youtuber Thiago dos Reis à Justiça pelo suposto cometimento de três crimes, todos contra a honra do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ). O membro do MP-RJ pede que Reis seja condenado a uma pena total de quatro anos e dois meses de prisão.

O motivo é um vídeo que o youtuber publicou em sua conta na plataforma digital, no dia 15 de maio deste ano, cujo título é: “AMIGO EXPÕE FLÁVIO BOLSONARO E ELO COM TERRORISTAS DE 8/1!! A CASA CAIU!!“

Assista ao vídeo abaixo, que a Justiça optou por não retirar do ar:

A publicação do vídeo, no qual Thiago dos Reis se limita a narrar fatos que haviam sido recentemente divulgados pela imprensa nacional, irritou o senador da República. 

No dia seguinte (no dia 16 de maio, portanto), dois advogados de Flávio Bolsonaro, Luciana B.P Pires e Alan Deodoro, foram à polícia e apresentaram uma extensa notícia crime, alegando que a honra do parlamentar havia sido irremediavelmente ferida pelo vídeo no Youtube.

Eles solicitaram investigações policiais e, ao final do consequente processo penal, que Thiago dos Reis fosse condenado por calúnia, injúria e difamação contra um servidor público, crimes que, juntos, geraram uma pena de quatro anos e dois meses de detenção do acusado.

Os advogados de Flávio escolheram o delegado Paulo Dacosta Sartori para apresentar a sua denúncia. Ele é o mesmo que, em 2020, abriu na Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática (DRCI) inquérito contra o influenciador digital Felipe Neto por “corrupção de menores”.

Pouco tempo depois, entretanto, a Justiça entendeu que a DRCI não possuía atribuição legal para investigar os supostos crimes e encerrou as investigações.

O mesmo delegado Sartori, em março de 2021, recebeu denúncia do vereador carioca Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) e instaurou inquérito policial contra o mesmo Felipe Neto, por ter chamado o então presidente Jair Bolsonaro (PL-RJ) de “genocida” em uma postagem em suas redes sociais. 

O vereador Carlos Bolsonaro tinha pedido investigação de Neto com base na Lei de Segurança Nacional, criada durante a ditadura militar. No dia 18 daquele mês, porém, novamente a Justiça encerrou a investigação encampada pelo delegado. 

Na ocasião, a juíza Gisele Guida de Faria, da 38ª Vara Criminal, ainda viu “flagrante ilegalidade” praticada por Carlos Bolsonaro, porque ele “não integra o Ministério Público, não é militar responsável pela segurança interna, nem é Ministro da Justiça”, portanto não poderia exigir investigação em nome do presidente da República.

Já no inquérito aberto pelo delegado contra Thiago dos Reis, o investigado sequer foi ouvido. Foram enviadas duas cartas precatórias à polícia de São Paulo, pedindo que o youtuber fosse ouvido, mas ele sequer chegou a ser contatado pelas autoridades policias paulistas, conforme constam nos autos do processo. 

Ainda assim, o delegado Sartori concluiu suas investigações e, no dia 10 de outubro deste ano, apresentou seu relatório final ao Ministério Público fluminense, de apenas uma página, recomendando a denúncia do influenciador por três crimes supostamente cometidos contra a honra de Flávio Bolsonaro. 

O promotor que recebeu a denúncia, no dia 11 de outubro, foi Alexandre Murilo Graça, da 3ª Promotoria de Investigação Penal Especializada. É o mesmo promotor que, em janeiro do ano passado, enquanto era responsável pelas investigações do suposto crime de “rachadinha” no gabinete de Carlos Bolsonaro, achou por bem ir a uma festa na casa da advogada de Flávio Bolsonaro, a mesma Luciana B. Pires, responsável pela denúncia agora protocolada contra Thiago dos Reis. Por lá, posou para fotografias com a advogada e outros convidados do festejo.

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À época, a investigação conduzida por Murilo Graça se arrastava na 3ª Promotoria de Justiça de Investigação Penal Especializada. Desde maio do ano anterior, quando o juiz Marcello Rubioli, da 1ª Vara Criminal Especializada do Tribunal de Justiça do Rio, quebrou o sigilo de Carlos, o promotor só havia colhido dois depoimentos, nos quais um dos ouvidos arguiu o direito de permanecer em silêncio e o outro negou a acusação. Murilo Graça até hoje não apresentou qualquer denúncia contra Carlos Bolsonaro.

Alexandre Murilo Graça é também o mesmo promotor que levou mais de um ano para denunciar os policiais acusados de matar a designer Kathlen Romeu, morta pela polícia do Rio em junho de 2021. 

Mesmo após investigações concluírem, em dezembro de 2021, que Kathlen Romeu, 24, foi morta enquanto estava grávida por um tiro que partiu de um PM e que policiais fraudaram a cena do crime, Alexandre Murilo Graça só resolveu denunciar após intensa pressão da sociedade e da família da vítima ter procurado a imprensa para denunciar o descaso do promotor.

Ao portal UOL, a mãe da vítima relatou como foi um de seus encontros com o promotor:

Vi o promotor agindo de forma totalmente diferente, parecia outro. Ele perguntou como poderia me ajudar e, quando eu comecei a falar, chorei. Chorei porque eu sou uma lágrima ambulante, uma tragédia ambulante. E a resposta dele foi: ‘Não adianta ficar chorando, porque eu não sou psicólogo.‘”

Mas, dessa vez, Alexandre Murilo Graça foi mais ágil em seu trabalho. Ele recebeu o relatório final do delegado Sartori no dia 11 de outubro, e levou nada mais e nada menos do que 15 dias para se convencer que Thiago dos Reis era culpado, e que tudo que a advogada Luciana Pires, cujas festas ele frequenta, estava 100% correta em suas argumentações.

A denúncia que o promotor apresentou à Justiça no dia 26 de outubro deste ano é praticamente uma cópia da representação que sua amiga encaminhou ao delegado Sartori.

Veja, aqui, trechos da denúncia, a que o DCM teve acesso.

Mas, como já está se tornando praxe nas ações do delgado Sartori e do promotor Murilo Graça, novamente a Justiça foi obrigada a intervir para que as autoridades públicas de investigações não fizessem as vezes de defensores de interesses privados. 

No dia 31 do mês passado, o juiz André Felipe Veras de Oliveira, da 2ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, explicou ao promotor amigo da advogada de Flávio que não cabia a ele  – como de resto não coube anteriormente ao delegado Sartori – investigar ou denunciar o caso em questão.

É que o suposto delito – se delito fora – ocorrera em São Paulo, sendo assim, tanto o delegado quanto o promotor amigos dos Bolsonaro, são incompetentes para investigar e denunciar o youtuber.

Resultado: o caso foi transferido para a Justiça e para a promotoria paulista. O caso foi redistribuído para a promotora Lauraní Assis de Figueiredo, da 4ª Promotoria de Justiça Criminal da capital.

Prontamente, menos de uma semana após receber os autos (que, em São Paulo, receberam o número 0023092-51.2023.8.26.0050), a promotora publicou seu primeiro despacho sobre o tema. Ela afirmou serem “prematuras as informações colhidas” até agora, rejeitou a denúncia apresentada pelo seu colega carioca e solicitou que a Polícia Civil de São Paulo retome as investigações. Thiago dos Reis, agora, terá direito a se defender antes de ser denunciado por três crimes. 

O advogado criminalista André Lozano, professor de Direito Penal e Processual Penal e autor do livro “Populismo Penal: Comunicação, Manipulação Política e Democracia”, afirma que há indícios de quebra do princípio da impessoalidade nos casos em questão: “A atitude de sempre pedir instauração de inquérito e, coincidentemente ou não, os inquéritos serem destinados ao memso promotor, causa uma certa estranheza. Principalmente levando em conta as decisões posteriores da Justiça, que reformam as decisões tanto do delegado quanto do promotor. Tanto o delegado quanto o promotor devem pautar seu agir pela impessoalidade, não levando em consideração nem que é o investigado, nem que é a vítima.”

Enquanto isso, parlamentares bolsonaristas estão nos Estados Unidos para “denunciar” o atual governo federal por fazer uso de aparatos da Justiça para perseguir seus adversários políticos. Então, tá. 

05
Out23

Sem incluir cor nem gênero nas decisões não há democracia

Talis Andrade

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EM MANIFESTAÇÃO NA AVENIDA PAULISTA, SÃO PAULO, EM FEVEREIRO DE 2022, MOVIMENTOS SOCIAIS PROTESTARAM CONTRA O ASSASSINATO DO IMIGRANTE CONGOLÊS MOÏSE KABAGAMBE, DE 24 ANOS, QUE TRABALHAVA NO RIO DE JANEIRO

Luiz Inácio Lula da Silva vai mesmo perder a oportunidade de fazer um gesto decisivo contra o racismo no primeiro ano de seu terceiro mandato como presidente do Brasil? Parece que sim. Lula vai mesmo perder a oportunidade de fazer um movimento de real impacto a favor da igualdade de gênero e de raça num momento em que retomar o caminho dos direitos é tão emergencial? Parece que sim. Lula poderia já no primeiro ano de governo assegurar a presença no Supremo Tribunal Federal de duas pessoas negras, preferencialmente duas mulheres negras – ou de uma mulher negra e uma pessoa indígena –, o que seria um gesto histórico que faria enorme diferença também na qualidade das decisões da Corte. É imperdoável que não o faça.

Ao que tudo indica – em especial o próprio presidente – Lula vai cometer a irresponsabilidade de colocar o segundo homem branco no Supremo Tribunal Federal em apenas um ano. Mas não é Lula que perde uma oportunidade, é o Brasil que, em vez de se refundar, como prometido, mais uma vez reforça sua fundação sobre os corpos de negras e negros, empilha tijolos nas ruínas de um país em que cresce o número de estupros e feminicídios.

É importante lembrar. Na segunda-feira (25/9), acuado pelas pressões da sociedade para indicar uma mulher ou uma pessoa negra – preferencialmente uma mulher negra – para substituir a ministra do STF Rosa Weber, que se aposentará em 2 de outubro, quando completa 75 anos, o presidente fez duas afirmações que poderiam ter saído da boca do ex-presidente Jair Bolsonaro ou de qualquer outro extremista de direita:

“O critério não será mais esse [referindo-se a cor e gênero]. Eu estou muito tranquilo, por isso estou dizendo que vou escolher uma pessoa que possa atender aos interesses e expectativas do Brasil. Uma pessoa que possa servir ao Brasil. Uma pessoa que tenha respeito com a sociedade brasileira. Uma pessoa que tenha respeito mas não medo da imprensa. Uma pessoa que vote adequadamente sem ficar votando pela imprensa”, declarou. Em seguida, acrescentou: “Não precisa perguntar essa questão de gênero ou de cor, eu já passei por tudo isso. No momento certo, vocês vão saber quem eu vou indicar”.

O comentário de Lula é perigoso de várias maneiras diferentes. Para começar, muito pouco (ou talvez nada) seja mais importante para “atender aos interesses e expectativas do Brasil” do que enfrentar a brutal, vergonhosa, desigualdade de raça e de gênero no país. E isso só se faz com divisão de poder, isso só se faz indicando mulheres e pessoas negras para cargos estratégicos, isso só se faz dando paridade a mulheres e pessoas negras – gênero e cor da maioria da população, mas nem de longe com a mesma representatividade e acesso dos homens brancos, que dominam as posições de poder e a tomada de decisões.

Lembro de uma conversa com um brilhante advogado negro, num café após horas de discussão num instituto cultural em São Paulo para debater como ampliar o acesso das pessoas negras. Quando tudo acabou, ele concluiu que a longa reunião poderia ter sido reduzida a uma frase/uma ação: “É óbvio que só se combate o racismo dividindo poder, colocando negras e negros nos cargos de poder, em todas as esferas do país”.

EM AGOSTO, A LÍDER QUILOMBOLA MÃE BERNADETE FOI ASSASSINADA EM SUA CASA, COM 22 TIROS, O QUE GEROU REAÇÃO NO PAÍS (À ESQ.). GENIVALDO SANTOS, NEGRO, FOI MORTO EM MAIO DE 2022 POR AGENTES DA POLÍCIA RODOVIÁRIA FEDERAL – ELES O ASFIXIARAM DENTRO DA VIATURA (À DIR.). FOTOS: CRIS FAGA/NURPHOTO/NURPHOTO VIA AFP E REPRODUÇÃO

 

Sim, é óbvio. Mas ao indicar Cristiano Zanin, homem e branco, para substituir Ricardo Lewandowski, Lula traiu seu compromisso não apenas com as minorias, mas também com todos os setores da sociedade brasileira comprometidos com um país mais justo e menos desigual. Sem contar a mistura flagrante do público com privado ao indicar seu advogado pessoal. Essa segunda indicação seria – e ainda pode ser – a chance de não errar de novo e, ao mesmo tempo, respeitar os compromissos éticos que o elegeram. Ainda há tempo para Lula fazer o que o momento histórico exige de um presidente democrata.

A imagem simbólica volta como um bumerangue a cada vez que o governo dela se afasta. Em 1 de janeiro, Lula subiu a rampa de braço com o cacique Raoni Metuktire e acompanhado de representantes de minorias para sinalizar que o Brasil retomava o rumo do respeito aos direitos humanos, o Brasil se refundava. Se Lula deixar o país com um Supremo mais masculino e tão branco quanto no dia da posse, a imagem-símbolo de seu terceiro mandato, numa vitória só possível com o apoio de amplas camadas da sociedade que queriam – e querem – derrotar o fascismo, se tornará apenas marketing político – algo inaceitável no momento grave, de enorme atraso humanitário, vivido pelo Brasil.

Em seus primeiros dois mandatos, Lula fez ações importantes para diminuir a desigualdade racial e de gênero. Criou os ministérios das Mulheres e da Igualdade Racial – e agora recriou-os, com o acréscimo inédito do Ministério dos Povos Indígenas, com uma mulher indígena, Sonia Guajajara, à frente. Também escolheu uma mulher – Dilma Rousseff – como sua sucessora. Nas gestões do PT se consolidaram o Estatuto da Igualdade Racial e as cotas raciais nas universidades. Foi Lula quem indicou a terceira pessoa negra – Joaquim Barbosa – ao Supremo Tribunal Federal, após 66 anos de total branquitude. Tudo isso foi decisivo para parte da sociedade brasileira apoiá-lo na eleição para um terceiro mandato – e sinalizava uma retomada do processo de escuta, reconhecimento e acolhimento das pressões dos movimentos negros, feministas, de direitos humanos e socioambientais, brutalmente atacados durante o governo fascista de Bolsonaro. Que Lula recue tanto antes do final do primeiro ano do atual governo tem preocupado muita gente.

Em 19 de setembro, Lula fez da desigualdade o tema de seu discurso na abertura da 78ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Mas não há combate à desigualdade sem enfrentar as questões de gênero, raça e classe. Não há como fazer isso sem aumentar a presença negra no STF – hoje inexistente, apesar de os negros serem maioria da população brasileira –, e sem a presença feminina, que com a aposentadoria de Rosa Weber será reduzida a uma mulher (Cármen Lúcia) para dez homens.

Em toda a história do Supremo só houve três mulheres, todas brancas, e três negros, todos homens, o que mostra como a lógica do patriarcado persiste, tanto quanto o racismo estrutural do Brasil. Isso sem contar a necessidade nunca contemplada de incluir indígenas e pessoas LGBTQIAPN+. Nenhuma Corte, num país como o Brasil, é capaz de julgar com competência sem representar a população em sua composição. A representatividade das identidades e das experiências melhora radicalmente a qualidade da Justiça.

 

LULA NA CERIMÔNIA DE POSSE DE CRISTIANO ZANIN, SEU ADVOGADO, QUE INDICOU PARA O CARGO DE MINISTRO DO STF; ROSA WEBER, A ÚLTIMA PRESIDENTA DO SUPREMO, AGORA SE APOSENTA, AOS COMPLETAR 75 ANOS. FOTO: SERGIO LIMA/AFP

 

Hoje, a composição do STF é insustentável, exatamente porque tem uma cor só – branca – e majoritariamente um gênero – masculino. Se Lula está tentando manter contentes os parlamentares e senadores do Congresso mais predatório e moralmente conservador desde a redemocratização, é lamentável, porque combater o racismo e a desigualdade de gênero são princípios de base – e princípios não são negociáveis. Se ele de fato acredita no que disse, acabamos de descobrir que aquele que fez avanços significativos nos dois primeiros mandatos, ao voltar ao poder, 12 anos depois, passou a defender que questões de raça e de gênero são menores. E isso num país em que 83% das vítimas de mortes em intervenções policiais são pessoas negras; num país onde, nos últimos sete anos, pelo menos 616 crianças e adolescentes, a maioria deles negros, foram baleados somente na região metropolitana do Rio de Janeiro, 48% deles em ações policiais. E isso no país em que as estimativas mostram que 822 mil pessoas são estupradas a cada ano, mais de 80% delas mulheres.

SUMAÚMA sustenta desde o primeiro dia o que está explícito em nosso manifesto: a democracia tem que ser para todas, todos, todes – ou não é. Só entendemos e somos capazes de enfrentar o colapso climático se enfrentarmos as questões de gênero, raça, classe e espécie – elas determinam a destruição da Amazônia e dos demais biomas, a corrosão da vida na casa-planeta.

Cada evento extremo nos mostra quais são o gênero, a cor e a classe social dos mais afetados, dos que perdem casas e territórios – vidas. Nossa cobertura a partir da Amazônia e de seus povos aponta qual é o gênero de quem faz a resistência à destruição da natureza, qual é a cor das pessoas que morrem por proteger a vida na linha de frente. Essa compreensão determina nosso jornalismo – como está explícito em todas as reportagens e artigos desta newsletter.

Na afirmação de Lula, só tem um acerto: “cor e gênero não são mais critérios [de escolha]”. São imperativos. Para defender o contrário, não precisamos de Lula – temos Bolsonaro e os golpistas de 8 de janeiro.


Checagem: Clara Glock e Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquiria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Julieta Sueldo Boedo
Tradução para o inglês: Sarah J. Johnson
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Montagem da página: Érica Saboya
 
02
Out23

Maioria apoia criminalizar Bolsonaro por pandemia

Talis Andrade
 
 
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• Povo quer prisão para Bolsonaro • Crimes da pandemia não devem ficar impunes • Epidemia de suicídios no Brasil

 

por Gabriel Brito

Num tempo em que muito se fala de jóias roubadas, a sociedade terá esquecido o grande crime do ex-presidente: sua negligência e sabotagem à Saúde Pública durante a pandemia? O Instituto Sou Ciência, ligado à Unifesp, realizou pesquisa para saber até que ponto os brasileiros responsabilizam Bolsonaro pelo desastre sanitário e defendem sua criminalização. Resultado: 62% dos brasileiros consideram o ex-presidente e o ministério da Saúde — chefiado na maior parte do período pandêmico pelo general Eduardo Pazuello — diretamente responsáveis pela alta taxa de infecções e mortes que assolaram o país. Ainda de acordo com o levantamento, 51% defendem sua responsabilização jurídica e penal, com base nos encaminhamentos do relatório final da CPI da pandemia, que para boa parte dos entrevistados serviu como plataforma de esclarecimento sobre os crimes contra a saúde pública do governo anterior.

Vale lembrar um dos estudos marcantes a respeito. Ainda em 2021, o trabalho Linha do tempo da estratégia federal de disseminação da covid-19,coordenado por Deisy Ventura, documentou centenas de decisões administrativas da gestão Bolsonaro que tiveram o claro viés de facilitar a disseminação do coronavírus em território nacional. A autora é , jurista e professora da Faculdade de Saúde Pública da USP.

 

Sabotagem, justiça e reparação

Na pesquisa do Sou Ciência, os cidadãos também foram inquiridos a respeito de quais seriam as melhores alternativas de compensação à sociedade pelos danos causados pelo governo negacionista. Como mostra matéria da Agência Brasil, os três itens mais mencionados foram: “criar uma Comissão da Verdade para apurar os crimes (44,7%); indenizar as vítimas, crianças que perderam pai e/ou mãe (39%); criar um Tribunal Especial para acelerar os julgamentos (38,3%)”. Outro aspecto importante da pesquisa é a diferença de adesão a vacinas entre eleitores de Bolsonaro e Lula, indício indireto da influência do ex-presidente na sabotagem da devida política sanitária para a pandemia. O relatório final da CPI da pandemia, encerrada em novembro 2021, pediu o indiciamento de 80 pessoas e imputou nove diferentes crimes a Jair Bolsonaro. Cabe à Procuradoria Geral da República dar seguimento ao processamento jurídico dos imputados. Em caso de omissão, a tarefa cabe ao conjunto do Ministério Público Federal. Caso nada seja feito por tais instituições, o tema pode parar no STF.

 

Um lado oculto da tragédia: suicídios aumentam no Brasil

Pesquisadores do Instituto Leônidas & Maria Deane, da Fundação Oswaldo Cruz no Amazonas (ILMD/Fiocruz Amazônia), analisaram dados de óbitos durante a pandemia a fim de analisar as taxas de suicídio do período e descobriram mais uma faceta invisível da tragédia: o aumento do número de suicídios no Brasil. “Houve 28% de suicídios além do esperado em mulheres com 60 anos ou mais da região sudeste”. No Norte e Nordeste, o aumento foi ainda maior — 32% e 61%, respectivamente, entre mulheres na faixa de 30 a 59 anos, informou a Agência Brasil. A pesquisa aponta que, num período particularmente grave da pandemia — entre os meses de julho e outubro de 2021–, registrou-se o ‘alarmante excesso de suicídios de 83% em mulheres com 60 anos e mais do Nordeste’”, agrega a reportagem. Neste mês, o ministério da Saúde promove a campanha Setembro Amarelo, que visa a prevenção do suicídio e orienta pessoas que pensam em tirar a própria vida a buscarem ajuda na Rede de Atenção Psicossocial do SUS, além de estratégias de acolhimento e ajuda ofertadas por outras ações e instituições.

 

As causas e as novas estratégias contra o suicídio

No final do mês, a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) promoverá a 60ª reunião de seu Conselho Diretor. Participarão do encontro gestores e autoridades de saúde dos países do continente. Segundo o presidente da OPAS, Jarbas Barbosa, a elaboração de novas políticas acerca do suicídio serão prioridade. A pandemia da COVID-19 exacerbou ainda mais os fatores de risco para o fenômeno, incluindo desemprego, insegurança financeira e isolamento social. “Continuaremos a apoiar a educação e o treinamento de profissionais de saúde e o fortalecimento dos sistemas nacionais de vigilância para informar o desenvolvimento de estratégias de prevenção ao suicídio adaptadas localmente”, afirmou Barbosa. Nos anos 2000, o continente americano é o único do mundo que observou aumento das taxas de suicídio na população, com alta de 17%.

 

Aborto livre: o México atrairá as norte-americanas?

Os movimentos feministas das América Latina comemoraram, na última quarta-feira (6/9), a descriminalização do aborto no México, por decisão da Suprema Corte. Mas vale acompanhar um possível desdobramento importante — e curioso. Acossadas pela justiça de seu próprio país (onde a Corte Suprema recuou da garantia do mesmo direito), mulheres norte-americanas cruzarão a fronteira para interromper a gravidez indesejada? Nos EUA, certos estados agora proíbem o procedimento mesmo em casos de violência sexual. Diante dos retrocessos sociais e culturais na maior economia do mundo, o antigo “quintal” será a alternativa? Vale conferir. Enquanto isso, a Igreja Católica do México usou de um argumento inusitado contra a decisão da Suprema Corte. Falou em “discriminação contra as mulheres que decidiram ter filhos”, supostamente preocupada com as possíveis chantagens dos empregadores, ou desvantagens das mães no mercado de trabalho.

 

Clima: diante dos desastres, governos omissos

Após mais um fracasso nos debates sobre políticas de contenção do colapso ambiental, desta vez na cúpula do G-20, na Índia, o mundo segue a contabilizar tragédias. Enquanto o Brasil se depara com os imensos desafios de reconstrução das cidades gaúchas destruídas pelo ciclone extratropical, a Líbia conta 150 mortes provocadas pela tempestade Daniel. Na abertura da 54a. Reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU, Volker Turk, comissário das Nações Unidas para o tema, lamentou o vazio de decisões da cúpula de Nova Déli e afirmou que, em relação aos efeitos do aquecimento global, “o futuro distópico já começou”. Enquanto isso, o Brasil, que celebrou o Dia do Cerrado nesta segunda, 11, vive intensamente os embates entre setores que visam a criação de uma economia sustentável com aqueles que ainda tentam reproduzir práticas cada vez mais destrutivas, como se pode ver na entrevista de Marina Silva à Agência Pública publicada no dia 6.

01
Out23

Especialistas em ética jornalística denunciam problemas na cobertura da Lava Jato

Talis Andrade
 
Em determinadas conjunturas, o interesse público é ameaçado pelos interesses políticos e econômicos das empresas
Em determinadas conjunturas, o interesse público é ameaçado pelos interesses políticos e econômicos das empresas - Charge: Carlos Latuff

 

Concentração dos meios de comunicação nas mãos de poucas famílias interfere no noticiário sobre a operação

Daniel Giovanaz
 

O artigo Considerações sobre a mani pulite, escrito por Sérgio Moro em 2004, é um elogio à operação Mãos Limpas, investigação judicial que aconteceu na Itália na década de 1990. Principal inspiração da Lava Jato, a Mãos Limpas teve um resultado desastroso sob os pontos de vista político e econômico: a Itália tem um dos índices de corrupção mais altos da Europa, e o PIB é praticamente o mesmo de 12 anos atrás. Naquele texto, o juiz paranaense afirma que a mídia teve um papel decisivo durante a operação: “minar” a imagem dos réus junto à opinião pública, deslegitimando os argumentos da defesa.
“A investigação da mani pulite [Mãos Limpas] vazava como uma peneira. Tão logo alguém era preso, detalhes de sua confissão eram veiculados no L’Expresso, no La Republica e outros jornais e revistas simpatizantes”, descreve Moro na terceira página do artigo. “Os vazamentos serviram a um propósito útil. O constante fluxo de revelações manteve o interesse do público elevado e os líderes partidários na defensiva. (...) O processo de deslegitimação foi essencial para a própria continuidade da operação mani pulite”.


Olhos abertos
A exemplo do que Sérgio Moro constatou sobre a operação Mãos Limpas, a imprensa brasileira também contribui para o avanço da operação Lava Jato. Ao alimentar boatos sem a devida checagem, promover vazamentos seletivos e “condenar” os réus antes mesmo da sentença judicial, o noticiário brasileiro têm sido um prato cheio para pesquisadores especializados em ética jornalística.
Professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (UFF) aposentada em 2016, Sylvia Moretzsohn estuda as relações entre a ética e os dilemas do jornalismo. Segundo ela, é natural que os interesses das empresas de comunicação interfiram nas coberturas, mas os jornais deveriam preservar o senso crítico e a checagem rigorosa das informações.
“O jornalismo não se justifica se não defender causas. O problema é como as defende, se é panfletário ou não. É preciso conciliar isso com uma postura rigorosa na apuração, na divulgação, e não é isso que a gente está vendo”, analisa a pesquisadora. “A mídia passou a reproduzir a ideia de que ‘nunca se roubou tanto’ quanto nos governos PT. E a intenção foi clara: derrubar o governo [Dilma] e fazer um acordo em favor de interesses [econômicos] que estavam sendo suavemente contrariados”, completa.


Superficialidade
Questionada sobre a cobertura da Lava Jato após o golpe de 2016, Moretzsohn afirma que a “fórmula” é a mesma desde 2005, quando veio à tona o caso Mensalão. “É a partir daí que a coisa começa a degringolar de maneira escandalosa: a espetacularização da Justiça, a proeminência do Judiciário como ator político”, critica. “O Mensalão já tem a figura do juiz ‘salvador da pátria’, que foi o Joaquim Barbosa, mas a Lava Jato radicaliza isso, principalmente devido ao juiz de primeira instância, que mais de uma vez optou por condenar sem provas – como no caso do [José] Dirceu. Ele [Moro] está seguindo rigorosamente o script que descreveu no artigo em 2004, de usar a mídia em favor da operação”.
Em meio ao “fla-flu” ideológico, a pesquisadora lamenta que o jornalismo brasileiro apenas reforce o senso comum, apostando em colunistas políticos que associam a Lava Jato a uma luta “do bem contra o mal” – que supostamente levaria ao fim da corrupção. “A responsabilidade de qualquer jornal que não seja fascista é não dar espaço a essas vozes superficiais, que só reproduzem ódio”, acrescenta a pesquisadora. “O respeito à ética é importante, mas não temos um conselho de ética com poder efetivo. Seria interessante se houvesse uma legislação de imprensa que garantisse a liberdade e punisse gravemente essas práticas, que se avolumam na nossa história recente”.
O Observatório da Ética Jornalística (ObjETHOS), vinculado ao Departamento de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), possui uma equipe de vinte pesquisadores, responsáveis por publicar dossiês, artigos e comentários semanais sobre a cobertura da imprensa brasileira e internacional. A operação Lava Jato é um tema recorrente no portal do Observatório, justamente por ocupar a maior parte do noticiário político do país desde 2015.
Um dos professores responsáveis pelo ObjETHOS, Rogério Christofoletti afirma que os jornais brasileiros estão “perdidos” na cobertura da Lava Jato. “O tempo da mídia é diferente do tempo do Judiciário. A checagem dos fatos, das informações, é algo que atrasa a publicação. Mas essa é a função do jornalismo”, ressalta. “A mídia precisa questionar o que são provas e o que são indícios, precisa questionar o porquê de todos esses vazamentos”.

Problema estrutural
No dia 11 de maio, Christofoletti publicou um texto crítico à cobertura do jornal paranaense Gazeta do Povo sobre o depoimento do ex-presidente Lula (PT) em Curitiba. Dois dias antes de Moro receber o petista na sede da Justiça Federal, o jornal havia chamado atenção para a importância do evento que estava por vir; na edição de véspera, porém, a capa anunciava que era “muito barulho por (quase) nada”. “É muito cinismo da imprensa!”, descreve o pesquisador no título do artigo.
As revistas semanais de circulação nacional também deslizaram naquela cobertura, segundo Christofoletti, estampando na capa um suposto duelo entre Sérgio Moro e o ex-presidente. A analogia é incorreta porque juiz e réu não são adversários em um tribunal. “Eu não acredito que uma revista como a Veja desconheça a função de um juiz em um processo. Mesmo assim, eles reproduzem essa lógica adversarial porque é algo que chama a atenção do público”, analisa. “Problemas técnicos muitas vezes são, também, desvios éticos”.
Sylvia Moretzsohn compartilha dessa interpretação e reafirma que, desde 2005, a mídia brasileira tem violado princípios básicos do jornalismo, como a checagem das informações antes da publicação de uma manchete: “Os títulos são desmentidas pelo próprio texto. E isso não é só erro de revisão”, concorda.  Para Christofoletti, “a queda da Dilma e a Lava Jato são questões conjunturais, mas o problema do jornalismo brasileiro é estrutural: a mídia brasileira é oligopolizada [está nas mãos de poucas pessoas]”.
O pesquisador do ObjETHOS explica que seis famílias são donas da maior parte das empresas de comunicação do país, cujos vínculos políticos e econômicos nem sempre estão evidentes para o público: “Os meios de comunicação são atores políticos. Se a gente não esquecer disso, será bom para a democracia, bom para o jornalismo, e bom para o público”. Afinal, os interesses das empresas que apoiam a Lava Jato nem sempre coincidem com o interesse da maioria da população: “A gente não pode esquecer que, na Itália, um dos resultados da operação Mãos Limpas foi o [ex-primeiro ministro Silvio] Berlusconi, que, além da questão do autoritarismo e da corrupção, tinha uma relação muito próxima com a mídia corporativa”.
Paralelamente a um processo de democratização da propriedade dos meios de comunicação no Brasil, Christofoletti aposta na transparência como compromisso ético: “O leitor precisa saber de que lado o jornal está, quais os interesses que estão jogo em uma cobertura, saber onde está pisando. Mas a mídia brasileira tem dificuldade de abandonar o discurso da isenção, mesmo que na prática as coisas se mostrem bem diferentes, como no caso da Lava Jato”.


Seis anos de oposição
Em março de 2010, na sede da Fecomércio, a então diretora-superintendente da empresa Folha da Manhã S.A. – que edita o jornal Folha de S. Paulo –, Maria Judith de Brito, declarou: “Na situação atual, em que os partidos de oposição estão muito fracos, cabe a nós dos jornais exercer o papel dos partidos”. Maria Judith de Brito presidia, na ocasião, a Associação Nacional dos Jornais (ANJ). Seis anos depois, Dilma Rousseff (PT) sofreu um golpe de Estado legitimado pela mídia comercial.
A pesquisadora Sylvia Moretzsohn interpreta a declaração de março de 2010 como uma síntese dos desvios éticos cometidos pelos jornais brasileiros nos últimos anos. “Isso é realmente escandaloso, porque os jornais assumem através de sua porta-voz máxima que estão fazendo oposição”, afirma Moretzsohn. “Não estão fiscalizando os três poderes, como seria até desejável dentro do conceito de ‘quarto poder’, para impedir abusos, mas se colocam na luta política como um partido”, completa. “E fazer oposição é muito diferente de fazer crítica”. In Brasil de Fato, 16 de Junho de 2017

Vídeo: "Lógica da Lava Jato era a mesma das milícias e do esquadrão da morte" 
 

Vídeo: O jornalista e escritor Mário Magalhães disse, em entrevista ao "Jornalistas e Etc" publicada no canal UOL, que a cobertura da Operação Lava Jato foi um dos piores momentos da imprensa brasileira. "Acho que foi feito pouco jornalismo e muita propaganda. Um dos piores momentos do jornalismo brasileiro, que veio sucedido de um grande momento, que foi a cobertura da pandemia, contra um governo de comensais da morte [nome dado aos seguidores de Lord Voldemort, vilão da série Harry Potter]", analisou.
 
 

Vídeo: O ex-procurador e ex-deputado Deltan Dallagnol negociou em sigilo com as autoridades norte-americanas um acordo para dividir o dinheiro que seria cobrado da Petrobras em multas e penalidades por causa da corrupção. Procurado, Deltan não respondeu aos pedidos da reportagem, realizada em uma parceria entre o UOL e a newsletter A Grande Guerra, conta a reportagem de Jamil Chade e Leandro Demori
 
12
Set23

Documentário: ”Vozes do silêncio. Nem perdão nem esquecimento”. Assista, legenda em português

Talis Andrade

 

Jair de Souza traduziu e legendou o documentário ”Vozes do silêncio: Nem perdão, nem silêncio”, da RT. A legendas em português podem ser acionadas no canto inferior direito, em configurações.

 

Vozes do silêncio: Nem perdão, nem esquecimento

por Jair de Souza

VioMundo

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Estamos chegando ao dia 11 de setembro.

Para os mais jovens, queria retroceder 50 anos na história, pois exatamente neste mesmo dia no ano de 1973, a América Latina e o mundo sofreram um dos mais destruidores golpes de parte das forças mais retrógradas, mais anti-humanas, mais pró-imperialistas que a humanidade já tinha tido o horror de conhecer: o golpe militar comandado por Augusto Pinochet que derrubou o governo socialista de Salvador Allende no Chile.

Foi o marco de uma nova etapa da monstruosidade do grande capital no intuito de extirpar pela raiz toda e qualquer ameaça proveniente das maiorias populares que pudesse ameaçar os privilégios das classes dominantes.

Foi a primeira iniciativa orquestrada pelas instituições capitalistas a nível planetário de implantar o neoliberalismo de maneira organizada e permanente.

Depois de muitos anos de sofrimento e luta, o povo chileno ainda está engajado numa luta ferrenha na busca de sanar as mazelas que os anos de ditadura cravaram em sua sociedade.

Como lição muito importante, precisamos entender que os efeitos nocivos deixados pela passagem de um governo deste tipo não se limitam aos anos em que essas forças permanecem visivelmente no comando do aparelho de Estado.

Até hoje, as maiorias populares do Chile estão padecendo as agruras surgidas com a tomada de poder pelos militares em 1973.

As forças democráticas chilenas estão empenhadas na luta para que os crimes cometidos por essa ditadura não venham a ser esquecidos e, muito menos, os criminosos perdoados.

Esquecer e perdoar fatos e criminosos que tantas desgraças causaram significa abrir a porta para a repetição dos mesmos.

Para nós brasileiros o documentário acima, Vozes do silêncio: Nem perdão, nem esquecimento,  tem um valor adicional, pois ele nos remete à nossa própria realidade e aos nossos embates com as forças do bolsonarismo. Conforme os próprios próceres bolsonaristas deixam patente, o modelo pinochetista lhes serviu de inspiração em nosso país.

Em outras palavras, o pinochetismo é a fonte de inspiração para o bolsonarismo.

Assim, entender bem o que está por trás do pinochetismo nos leva a compreender melhor nossa própria realidade.

No documentário Vozes do silêncio: Nem perdão, nem esquecimento vamos observar que as classes dominantes recorrem a forças de extrema direita do tipo do pinochetismo e do bolsonarismo naquelas fases da história em que eles sentem que as estruturas de dominação tradicionais já não estão dando conta de manter os movimentos populares subjugados.

O pinochetismo não vacilou em matar para se fazer impor, assim como o nazismo também não.

E, devemos ter clareza, o bolsonarismo é fruto da mesma árvore. Em outras palavras, tanto o pinochetismo como o bolsonarismo se inspiraram sempre em seus antecessores da Alemanha hitlerista.

Neste muro, está escrito: ‘Mesmo que os passos toquem este local por mil anos, não vão apagar o sangue dos que aqui caíram’. Entre eles, o do compositor, músico e ativista político chileno Victor Jara, que aí foi fuzilado, em 16 de setembro de 1973. Fotos: Reprodução de imagem do documentário ”Vozes do silêncio” e Wikipedia

 

Muitos argumentam que não é correto equiparar bolsonarismo e pinochetismo com o nazismo, o qual teve seus campos de concentração e suas câmaras de gás. O que podemos responder quanto a isto é que se o bolsonarismo não chegou a tanto foi porque não encontrou condições para ali chegar.

Não há limites de tipo humanitário para as tropas de choque do grande capital.

Aqueles que diante da morte de mais de 700.000 pessoas não se sentem perturbados já que não são coveiros não teriam nenhuma reticência em aplicar métodos similares de extermínio aos de seus inspiradores germânicos. Não tenhamos dúvidas disso.

Espero que aproveitemos a comemoração (comemorar não é celebrar) deste novo aniversário da tragédia chilena para estudar e tirar lições desse acontecimento.

Foi com este espírito que me dediquei a traduzir e legendar este vídeo-documentário, que considero uma das peças mais bem-feitas para retratar em pouco tempo o significado daquele trágico acontecimento.

10
Set23

É preciso passar a limpo os crimes e o legado nefasto da Lava Jato

Talis Andrade

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Responsável pela queda de até 85% do faturamento das construtoras brasileiras e perda de mais de quatro milhões de empregos diretos e indiretos em todo o país

 

por Milton Alves

A decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, na última quarta-feira (6), abriu um novo capítulo no processo em curso sobre a operação Lava Jato ao anular todas as provas obtidas a partir do acordo de leniência com a empreiteira Odebrecht. O ministro Toffoli declarou “em definitivo e com efeitos erga omnes [vale para todos], a imprestabilidade dos elementos de prova obtidos a partir do acordo de leniência, celebrado pela Odebrecht”.

Segundo o ministro do STF, a prisão de Lula foi um dos maiores erros judiciários da história do país. “Uma armação fruto de um projeto de poder de determinados agentes públicos em seu objetivo de conquista do Estado por meios aparentemente legais, mas com métodos e ações contra legem [contrário à lei]”, escreveu Toffoli em sua decisão de 135 páginas.

Toffoli registrou ainda que os membros da força-tarefa violaram o devido processo legal, descumpriram decisões judiciais superiores, subverteram provas, agiram com parcialidade e fora da área de competência, atropelando, em toda linha, os ditames do Estado de Direito.

A decisão de Dias Toffoli representa a mais séria e profunda revisão do STF sobre a natureza e o caráter da Lava Jato, um salto qualitativo na compreensão do papel criminoso da operação e da monstruosa farsa judicial, que criminalizou a atividade política e empresarial, atingindo parlamentares, partidos políticos e empresas.

Uma das consequências práticas da decisão do STF, é a possibilidade da responsabilização criminal de Sergio Moro, atual senador do União Brasil, e do ex-deputado Deltan Dallagnol e dos demais integrantes da força-tarefa, que foi sediada em Curitiba.

Lavajatismo’ é o fascismo de toga - Ao traçarmos uma linha do tempo da operação iniciada em março de 2014, é inevitável a constatação de que a Lava Jato contribuiu de forma decisiva para a subversão da institucionalidade pactuada na Assembleia Nacional Constituinte de 1988, praticando um modelo importado de justiça, de caráter punitivista, autoritário, de exceção – violando todas as regras consagradas no chamado estado de direito.

Uma avaliação mais geral do contexto do surgimento da operação Lava Jato aponta para uma ação sintonizada com a política implementada pelo Departamento de Estado (DoS) norte-americano: Após o colapso do estado soviético e o fim das guerrilhas marxistas em El Salvador e Guatemala, os Estados Unidos iniciaram na América Latina e no Caribe, nos anos 90, a “guerra contra as drogas”, uma operação de interferência direta nos países da região.

Em um novo giro na política imperialista, depois da chamada “guerra contra o terror” dos anos 2000, a agenda de combate à corrupção também pautou as ações do Departamento de Estado e demais agências norte-americanas de inteligência e espionagem, um instrumento a serviço da desestabilização de governos democráticos e progressistas do continente. Brasil, Equador, Argentina e Peru, em graus diferenciados, foram os alvos de campanhas “anticorrupção”, com o estímulo, suporte e participação direta de agências estadunidenses.

Portanto, um dos maiores crimes praticados no curso da operação Lava Jato foi a colaboração clandestina com agências e autoridades dos EUA e da Suíça, uma grave lesão aos interesses do país que precisa ser devidamente apurada.

Os danos institucionais, econômicos e sociais gerados pela Lava Jato devem ser examinados cuidadosamente pela lupa do Supremo Tribunal Federal (STF), do Congresso Nacional, PGR, Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pelo próprio Ministério Público Federal, definindo os crimes e a responsabilização dos envolvidos.

Legado nefasto - Órgãos da mídia corporativa – TV Globo e Folha de São Paulo – tentam relativizar os crimes e impactos negativos da Lava Jato na vida nacional. O esforço atual da mídia pró-Lava Jato é apresentar os crimes como simples desvios da “rota positiva” da operação no combate à corrupção no interior do estado brasileiro.

Segundo os órfãos da Lava Jato, a experiência foi positiva e que um balanço da operação não pode abrir caminho para a volta da impunidade dos agentes públicos. Ou seja, o mesmo discurso favorável ao lavajatismo, reciclado por um tom mais defensivo diante das montanhas de denúncias, que revelam os métodos criminosos praticados pelo ex-juiz e senador Sérgio Moro e por Deltan Dallagnol, deputado cassado e ativista da extrema direita.

Além disso, é impossível não estabelecer o nexo entre Operação Lava Jato e a vitória eleitoral, em 2018, do cleptofascista e genocida Jair Bolsonaro, que conduziu um governo desastroso. O lavajatismo foi um importante estuário para ação política da extrema direita, que com muita demagogia e o apoio da imprensa dominante, empolgou vastos setores da população e do eleitorado.

Os métodos da Lava Jato desembocaram na criminalização dos partidos e de lideranças políticas, que teve como maior expressão a campanha inédita de lawfare contra um líder político brasileiro – o atual presidente Lula -, condenado e preso sem provas por 580 dias. O encarceramento “preventivo” de executivos de empresas privadas e públicas, as delações forjadas, as conduções coercitivas ilegais, as prisões filmadas, os vazamentos seletivos para a Rede Globo, a falsificação de documentos e a espionagem de advogados de defesa dos acusados foram alguns dos mecanismos criminosos utilizados pela operação.

A Lava Jato também legou um enorme passivo na economia do país. Sob o pretexto do combate à corrupção, provocou a implosão de setores inteiros da economia nacional, afetando a indústria da construção civil e de infraestrutura pesada, a indústria naval, o setor químico e a cadeia produtiva de petróleo e gás.

Segundo estudo do Corecon [Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro], a Lava Jato foi um fator importante no agravamento do quadro de recessão na economia entre os anos de 2015 a 2018 e foi a responsável pela queda de até 85% do faturamento das construtoras brasileiras, o que acabou gerando a perda de mais de quatro milhões de empregos diretos e indiretos em todo o país.

A eliminação dos mecanismos criminosos do lavajatismo no interior do Sistema de Justiça, é fundamental para abrir caminho na direção de uma reforma profunda das instituições judiciais e do próprio Ministério Público.

28
Ago23

A questão militar

Talis Andrade
PRI-2808-OPINI -  (crédito: Maurenilson Freire)
PRI-2808-OPINI - (crédito: Maurenilson Freire)
 
 

O Imperador, D. Pedro II, tinha uma ideia de Exército baseado na experiência dos países europeus. A força terrestre deveria ser organizada para a necessidade de fazer a guerra. Depois dela, a instituição seria extinta

por André Gustavo Stumpf

Correio Braziliense

A relação dos militares com o poder civil no Brasil é tumultuada desde a Proclamação da República. Os dois primeiros presidentes foram marechais, Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto. A queda da monarquia foi um golpe de estado gerado nas escolas militares que haviam descoberto as ideias de Augusto Comte, defensor de um regime forte chamado por ele de ditadura republicana. Além disso, o Imperador, D. Pedro II, tinha uma ideia de Exército baseado na experiência dos países europeus. A força terrestre deveria ser organizada para a necessidade de fazer a guerra. Depois dela, a instituição seria extinta.

Em 5 julho de 1922, houve o episódio dos 18 do forte. Foram os revoltosos reunidos no Forte de Copacabana que desafiaram o governo Epitácio Pessoa e o vencedor da eleição presidencial, Artur Bernardes. Vários deles saíram a pé para enfrentar as tropas do governo na altura da rua do Matoso, hoje Siqueira Campos. Dos revoltosos, 16 morreram, inclusive o civil Otávio Correia. Eduardo Gomes e Siqueira Campos foram gravemente feridos, mas sobreviveram. Dois anos depois os tenentes fizeram outro 5 de julho, dessa vez em São Paulo.

Chegaram a dominar a cidade, mas decidiram recuar até Foz do Iguaçu. Chamada de coluna Miguel Costa ou coluna Prestes, esse movimento militar, com apoio de civis, percorreu cerca de 25 mil quilômetros no sentido diagonal no território brasileiro desde as barrancas do rio Paraná até Natal no Rio Grande do Norte. Andaram pelas grandes capitais nordeste. Conheceram a realidade do Brasil. Mas foram duramente reprimidos. Tiveram que fugir. Parte pediu asilo no Paraguai, outros seguiram para Bolívia. O movimento cessou em 1927.

Em 1930, Getúlio Vargas assumiu o poder, depois de derrubar o presidente Júlio Prestes, amparado pelos mesmos tenentes que fizeram a coluna. Eles, afinal, chegaram ao poder. E ficaram ao longo de todo o período da ditadura de Vargas, inclusive quando ele além de reprimir as liberdades individuais, criou o departamento de censura. E ficaram com ele na dúvida entre optar pelos fascistas que nos anos quarenta estavam ganhando a guerra e os comunistas que enalteciam um regime ditatorial em nome de promover a igualdade entre seus cidadãos.

Getúlio balançou entre um lado e outro, mas optou por um terceiro depois que Força Expedicionária Brasileira, a FEB, lutou na Itália contra os fascistas ao lado das forças do Exército norte-americano. Esse grupo, com suas ramificações no país, faria o golpe de 1964. O presidente brasileiro se reuniu com Franklin Roosevelt em Natal e permitiu que os norte-americanos construíssem em 1942 a base aérea em Parnamirim. Foi a maior base militar dos Estados Unidos fora do país antes da invasão da Europa.

Está claro, para todos os analistas e observadores da política nacional, que o ex-presidente Bolsonaro tentou realizar um golpe por intermédio dos militares. Ele é um inconsequente, não é um político. Nada garante que ele seria guindado ao poder se o golpe tivesse sido vitorioso. A disputa entre os generais é feroz. Em 1964, quem assumiu o poder, não foi aquele que colocou as tropas na rua. O duelo entre os liberais e a linha dura dentro da instituição não economiza adjetivos, nem poupa reputações. É luta pesada.

Diante de tudo o que aconteceu na política brasileira com relação a atuação dos militares este é o momento ideal de rever tudo isso. Na Espanha, depois da democratização, os governos civis trataram de modificar o currículo das escolas do meio militar. Acabou o conceito de inimigo interno, uma vez que as forças armadas visam defender o país de eventual ameaça externa. Suas capacidades não devem ser utilizadas como poder de polícia. Jamais seus chefes devem se envolver em assuntos políticos. No caso brasileiro, é importante modificar a redação do famoso artigo 142 da Constituição Federal. E reformular tanto o Exército, quanto a Marinha e a Aeronáutica. São forças que têm grandes gastos com pessoal e possuem reduzida mobilidade.

Este é um aspecto muito pouco discutido no Brasil. Não há plano nacional de defesa. A Marinha de Guerra atende o Rio de Janeiro. Há muitos anos se especula sobre a criação da Segunda Armada, cuja sede ficaria em Belém ou em São Luís do Maranhão. A costa norte do país é completamente desprotegida, paraíso de piratas e contrabandistas de vários matizes. A Aeronáutica está em todo território nacional. Mas só agora descobriu o poder de ação de drones na guerra moderna. E o Exército precisou de um hacker para tentar descobrir segredos da Justiça Eleitoral. Mostrou não ter competência para executar o serviço, nem respeitar as leis do Brasil.

29
Jul23

Quase 800 indígenas foram assassinados durante governo Bolsonaro

Talis Andrade

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Documento do Conselho Indigenista Missionário quer Comissão da Verdade para investigar mortes e conflitos armados


Bruna Bronoski

Agëncia Pública


* Maioria das mortes foi no Mato Grosso do Sul, Amazonas e Roraima
* No Mato Grosso do Sul, documento registra indígenas comendo lixo

 

Ao sair para buscar lenha numa fazenda vizinha à reserva de Taquaperi, no Mato Grosso do Sul, um jovem indígena Guarani-Kaiowá de 18 anos foi morto por cinco disparos de arma de fogo. No Amazonas, a cacique do povo Kulina denunciou o assassinato de ao menos sete indígenas das aldeias da região, entre eles o de um adolescente de 15 anos, decapitado. Em Roraima, a tentativa de assassinato de um grupo de cinco indígenas Xirixana por garimpeiros resultou na morte de uma liderança. Para fugir dos disparos, as vítimas se jogaram no rio Uraricoera. Todos os crimes ocorreram em 2022. Ao todo, quase 800 indígenas foram assassinados entre 2019 e 2022.

Os três estados citados acima — Mato Grosso do Sul, Amazonas e Roraima — são os mais letais para indígenas no Brasil, conforme o relatório anual do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), divulgado nesta quarta-feira (26) ao qual a Agência Pública teve acesso. Os dados do período de 2019 a 2022, sob o governo de Jair Bolsonaro (PL), são da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) e das secretarias estaduais de saúde.

Nos estados de Roraima e Amazonas, onde está a Terra Indígena Yanomami (TIY), houve 208 e 163 assassinatos de indígenas no período, respectivamente. Em terceiro lugar no ranking de mortes violentas contra indígenas aparece o Mato Grosso do Sul, com 146 casos. Juntas, as três unidades federativas foram responsáveis por 65% dos assassinatos no período. Em todo o país, foram registrados 795 homicídios nos quatro anos.

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Christian Braga/Greenpeace. No Amazonas e Roraima, onde está a Terra Yanomami, foram registrados 371 assassinatos de indígenas

 

As mortes por assassinato não são a única causa de extermínio indígena. Invasão de terras, negligência ou negativa de assistência médica, redução de verba pública para órgãos de proteção, racismo, ameaças e violência física e sexual são causas apontadas para o extermínio de indígenas. Outro ponto levantado pelo relatório é a falta de políticas públicas contra o suicídio.

O documento também pontua a necessidade de criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade (CNIV), a exemplo da comissão instalada para investigar crimes da ditadura civil-militar brasileira.

 

Governo negligencia fome, doenças e mortes evitáveis

 

O governo Bolsonaro não demarcou nenhum centímetro de Terra Indígena no Brasil, como prometido antes da posse. Sua política indigenista é considerada “genocida” e promotora da “naturalização da morte indígena”. O governo Bolsonaro foi o primeiro desde a redemocratização a não homologar nenhuma TI, o que, para o CIMI, contribuiu para a desassistência à saúde e à morte indígena.

O relatório indica que, sem a demarcação de suas áreas, há grupos que não possuem terras ou águas suficientes para produzir os próprios alimentos. Eles ficam assim dependentes de políticas de assistência social.

O cerco, segundo o relatório, ocorreu dos dois lados sob o governo Bolsonaro. De um lado, não houve andamento dos estudos de Grupos Técnicos (GTs) da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), nem daqueles criados por determinação judicial, para que qualquer território indígena reivindicado fosse reconhecido no Brasil. De outro, o governo federal interrompeu o fornecimento de cestas básicas entre agosto e dezembro de 2022, antes e depois do período eleitoral, entre outras desassistências.

Segundo o documento, ao menos 800 indígenas das etnias Avá-Guarani, do oeste do Paraná, e Mbya Guarani, do Rio Grande Sul, vivenciaram situações de fome, principalmente entre crianças. Segundo o CIMI, os “espaços diminutos” em que vivem impedem qualquer forma de sobrevivência pela terra. 

Em Dourados (MS), houve registros de indígenas se alimentando de lixo para comer. O relatório traz o depoimento da liderança indígena Erileide Domingos, da aldeia Guyraroka, que denunciou o caso à Organização das Nações Unidas em agosto de 2022. “A fome é resultado da desorientação do Estado brasileiro. É muita falta de piedade com o outro, de olhar os pobres, sem condições, sem emprego, sem possibilidade de plantar, não conseguimos produzir nada, não conseguimos ser ninguém”, relata Erileide no documento.

 

Omissão na saúde matou mais de três mil crianças indígenas, diz relatório

 

A omissão na área da saúde é outro ponto que levou à morte centenas de indígenas em todo o país.

Mais de 3.550 crianças de até 4 anos de idade morreram entre 2019 e 2022 em territórios indígenas. Os estados de Roraima e Amazonas carregam a maior quantidade de casos, desta vez seguidos pelo Mato Grosso. 

Uma em cada três mortes infantis registradas pela Sesai eram evitáveis, conforme análise de dados do CIMI a partir da Nota Técnica do Ministério da Saúde. Falta de acompanhamento da gestação, casos de gripe e pneumonia, desnutrição, diarreias e doenças infecciosas tratáveis estão entre os motivos que evitaram que 1.504 crianças pudessem chegar à fase adulta.

Para o CIMI, a desassistência médica é fator diretamente ligado à política indigenista empregada pelo governo federal nos últimos quatro anos. O caso de maior repercussão foi a falta de acesso às políticas públicas de saúde por parte dos indígenas Yanomami, denunciado pela Pública em diversas reportagens. O Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami e Ye’kwana (Dsei-YY) registrou, só em 2022, 134 mortes de crianças entre 0 a 4 anos.

Na TI Yanomami, a invasão do garimpo estrangula serviços públicos indigenistas, entre eles os de saúde, denuncia a Hutukara Associação Yanomami (HAY) no relatório. “A captura da estrutura de saúde por garimpeiros gerou uma situação de desassistência generalizada no território”, afirma o documento sobre os postos de saúde que fecharam no território pela sensação de insegurança com a presença da atividade ilegal e armada.

 

Governo atrasou vacina e não reforçou políticas para prevenir o suicídio

 

Entre os adultos, a maior quantidade de mortes foi no Mato Grosso, com 136 casos. Entre as causas estão o atraso da chegada da vacina aos territórios, estadias em más condições quando grupos de indígenas se dirigem aos centros urbanos em busca de serviços, infecções gastrointestinais causadas por poluição da água, consumo de agrotóxicos pela água, entre outros.

Se crianças e adultos indígenas morrem por desassistência médica, a omissão estatal entre os jovens indígenas ocorre pela falta de outra política pública: a de prevenção ao suicídio. Novamente, estados já citados em outras estatísticas negativas lideram a causa da morte por suicídio entre indígenas. A cada cinco registros no quadriênio 2019-2022, dois ocorreram no estado do Amazonas e um no Mato Grosso do Sul. Ao todo, 535 indígenas tiraram a própria vida no período. Destes, 35% eram jovens menores de 19 anos.

 

Destruição de bens indígenas

 

O Conselho das Aldeias Wajãpi-Apina denunciou, em fevereiro de 2022, a poluição dos rios pela invasão garimpeira na Terra Indígena (TI) Waiãpi, no Amapá: “Fotos e vídeos de várias aldeias mostram as águas com muita lama e como dependemos dos rios para beber água e tomar banho, isto gerou muita preocupação para os nossos chefes e famílias.”

O registro afirma que os garimpeiros provocam danos aos bens naturais essenciais que afetam o modo de vida indígena no entorno e dentro da TI.

Mais ao oeste, outro caso de invasão ao maior patrimônio indígena, a floresta. A autorização para abrir um ramal dentro da TI Jaminawá/Iguarapé Preto, ligando dois municípios, partiu do Instituto de Meio Ambiente do Acre. Por se tratar de Terra Indígena, o licenciamento ambiental da obra deveria passar pelo órgão federal competente, o Ibama, e não pelos órgãos estaduais.

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Hellen Loures/CimiHellen Loures/Cimi. Relatório denuncia impactos de desmatamento, criação de gado, agrotóxicos e obras de infraestruturas nas terras indígenas

 

A lista de danos aos territórios, demarcados ou não, é grande. Construção de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs), criação de gado, arrendamento de terras, uso de agrotóxicos, construção de presídios estaduais e federais, desmatamento de área sagrada, contaminação das águas e animais por mercúrio, loteamento e outras formas de invasão e destruição ao patrimônio indígena ocupam algumas páginas do relatório.

As maiores estatísticas ocorreram com casos de desmatamento, registrados em 74 TIs, segundo dados do Prodes. Em seguida, aparece a extração ilegal de madeira, areia, castanha e outros recursos naturais, com 65 ocorrências. Já as atividades ilegais de garimpo e mineração, assim como a de caça e pesca ilegais, atingiram, cada uma, ao menos 45 TIs, segundo o relatório. Uma TI pode constar em um, dois ou mais tipos de ocorrência.

De acordo com o CIMI, os danos ao patrimônio indígena têm como consequência o aumento de conflitos por direitos territoriais. O assassinato do jovem Guarani-Kaiowá com cinco disparos de arma de fogo que abre esta reportagem foi seguido de conflitos por território. 

O documento relembra que o crime incitou ações de retomada indígena, como são chamadas as manifestações e acampamentos para reivindicar uma área ancestral. Conforme documenta o CIMI, as manifestações no município de Coronel Sapucaia (MS) foram “reprimidas com violentas e ilegais operações policiais e emboscadas contra lideranças, que deixaram mortos e feridos”.

 

Sinal “verde” para violar direitos

 

Nomeado em julho de 2019 para presidir a Funai e exonerado só no penúltimo dia do governo Bolsonaro, em 29 de dezembro de 2022, o delegado da Polícia Federal Marcelo Xavier defendeu um ex-coordenador regional da fundação em Mato Grosso do Sul, preso por operação da PF pelo envolvimento no esquema de arrendamento de Terras Indígenas e cobrança de propina para aluguel de pastos. O ex-presidente da Funai disse, em ligação interceptada pela PF, que estava tentando intervir nas investigações que incriminavam o ex-servidor.

“As ações e discursos do governo federal e da Funai, sob a presidência de Marcelo Xavier, serviram como sinalizações que criaram nos invasores a expectativa de que suas posses ilegais dentro de terras indígenas seriam legalizadas em breve”, destaca o CIMI sobre as tentativas de Xavier, via normativas da Funai, de legalizar o garimpo e a extração de madeira em TIs.

O governo agiu em diversas frentes contra os direitos indígenas, aponta o CIMI. Na pasta da Justiça sob Bolsonaro, o então ministro Sérgio Moro definiu, com base da tese do marco temporal, uma relação de áreas indígenas que poderiam ser demarcadas. Proposta pela bancada ruralista, a tese retiraria amplamente os direitos indígenas, afirmam os povos originários e especialistas.

29
Jul23

‘Kit covid’ de Bolsonaro eleva risco de morte, alerta médico

Talis Andrade

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Diretores de UTIs apontam que uso de cloroquina e ivermectina está associado ao aumento de óbitos de pacientes em estado grave

 

A utilização do chamado ‘kit covid’, propagandeado por mais de um ano por Jair Bolsonaro como tratamento para pacientes infectados pelo vírus da Covid-19, está associado ao aumento do risco de mortes de doentes em estado grave.

Apelidado de modo irresponsável por Bolsonaro e pelo ministro da Saúde Eduardo Pazuello de ‘tratamento precoce’, o kit é composto de hidroxicloroquina e ivermectina, dois medicamentos de uso não recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

Para anular a propaganda genocida de Bolsonaro, a Agência de Medicamentos Europeia (EMA) emitiu, em 2021, um comunicado desaconselhando o uso de ivermectina na prevenção e tratamento da doença.

Segundo reportagem da BBC , diretores de UTIs de hospitais constataram que o coquetel tem contribuído, por motivos diferentes, para aumentar os óbitos. “A preocupação maior é com os 15% que desenvolvem a forma grave da doença e acabam vindo para a UTI”, adverte o coordenador da UTI do Hospital do Servidor Público do Estado, em São Paulo, Ederlon Rezende. “É nesses pacientes que os efeitos adversos dessas drogas ocorrem com mais frequência e esses efeitos podem, sim, ter impacto na sobrevida”.

E não é só: o tratamento precoce pode levar o paciente ao óbito também pela demora na internação, resultado da espera do doente pelos efeitos de drogas. Além disso, sustentam médicos intensivistas ouvido pela reportagem, o ‘kit covid’ suga dinheiro público que poderia ir para a compra de medicamentos para intubação e confunde a população com uma mensagem dominante prejudicial ao combate à pandemia.

“Alguns prefeitos distribuíram saquinho com o ‘kit covid’. As pessoas mais crédulas achavam que tomando aquilo não iam pegar covid nunca e demoravam para procurar assistência quando ficavam doentes”, relata Carlos Carvalho, diretor da Divisão de Pneumologia do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas, em São Paulo, à BBC News.

“Muitos têm sido salvos no Brasil com esse atendimento imediato”, mentiu Bolsonaro no início do mês. E continuou a girar sua roleta russa da morte: ”Neste prédio mesmo (Palácio do Planalto), mais de 200 pessoas contraíram a Covid e quase todas, pelo que eu tenha conhecimento, inclusive eu, buscaram esse tratamento imediato com uma cesta de produtos como a ivermectina, a hidroxicloroquina, a Azitromicina”.

 

 

Transplante de fígado

 

De acordo com reportagem do Estado de S. Paulo, cinco pacientes que utilizaram os medicamentos em São Paulo foram parar na fila de transplante de fígado. Destes, três morreram por causa de um quadro de hepatite. Entre os efeitos observados por profissionais de saúde estão hemorragias, insuficiência renal e arritmias.

Ainda de acordo com o jornal, dados do Conselho Federal de Farmácia (CFF) apontam que a venda das duas drogas cresceu até 557% em 2021, comparada às vendas do ano anterior.

 

 

29
Jul23

Humberto pede ao MP que investigue nova denúncia contra crimes de Bolsonaro na pandemia

Talis Andrade

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Senador pediu a abertura de investigação contra o ex-presidente após reportagem da Folha de S. Paulo mostrar que Bolsonaro manteve postura negacionista mesmo com alertas de seu governo para a gravidade da Covid-19

 

O senador Humberto Costa (PT-PE) acionou nesta sexta-feira (28/7) o Ministério Público Federal no Distrito Federal (MPF-DF) e o Ministério Público de Contas junto ao Tribunal de Contas da União (MPTCU) solicitando, de ambos, a abertura de investigação do ex-presidente Jair Bolsonaro com base em revelações trazidas pelo jornal Folha de S. Paulo.

De acordo com a reportagem, Bolsonaro ignorou mais de mil relatórios produzidos pela área de inteligência com alertas sobre a seriedade da crise sanitária promovida pelo avanço da Covid-19.

Os elementos apresentados pela reportagem, aponta o senador Humberto Costa, consolidam os indícios da prática de atos de improbidade administrativa que geraram prejuízo ao erário público, além das possíveis infrações criminais dolosas praticadas por ex-presidente e assessores que ignoraram os alertas e orientações recebidos.

“Inadmissível que mesmo tendo Jair Bolsonaro recebido de órgãos de Estado alertas e orientações sobre a preocupante e mortífera pandemia da Covid-19, simplesmente as ignorou solenemente, com ações e omissões deliberadas, gerando sem dúvida alguns milhares de mortes e agravos à saúde dos brasileiros”, destaca Humberto Costa em trecho das ações.

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