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por Ricardo Musse
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A construção da candidatura de Jair Bolsonaro, um processo iniciado em 2013 com o giro à direita das manifestações convocadas inicialmente com uma pauta de ampliação de direitos e do Estado do bem-estar social, se deu em larga medida fora do espaço público tradicional. Habitué de programas de entretenimento de baixa audiência na TV, Bolsonaro adquiriu peso político por conta do apoio de grupos que organizaram as manifestações “amarelo canarinho” contra Dilma Roussef e, sobretudo – soube-se apenas depois – devido a um impulsionamento em massa nas redes sociais.
Jair Bolsonaro replicou no Brasil o modelo de organização da direita neofascista do hemisfério norte. Para tanto contou com o apoio explícito de alguns think tanks dos EUA como a rede Atlas Network e o Instituto Ludwig von Mises [4], de organizações como a American Conservative Union (ACU) [5] e de teóricos como Matt Schlapp e de Steve Bannon. Operador da empresa Cambridge Analytica, famosa pelas suspeitas de manipulação de dados na eleição de Donald Trump e no Brexit, Steve Bannon indicou Eduardo Bolsonaro para comandar a seção sul-americana do The movement, uma associação fundada com o objetivo de conduzir ao poder partidos favoráveis à pauta de combate ao “globalismo” e adeptos de formas autoritárias de governo.
A instalação simultânea de três investigações sobre a indústria de fake news – (a) uma CPI no Congresso Nacional, (b) um inquérito no STF conduzido pelo ministro Alexandre de Moraes e (c) outra no bojo de uma ação em trânsito no TSE – indica que a direita tradicional resolveu recorrer ao arsenal que evitou colocar em ação durante o período de construção da candidatura de Jair M. Bolsonaro e também em 2018, fator decisivo para a eleição do ex-militar.
Com o afastamento da direita clássica do governo, o conflito político assumiu as feições de um jogo de poker, no qual se ignoram as cartas do adversário, o blefe correndo solto. O estilo de Bolsonaro é bastante previsível. Procura ao mesmo tempo distrair e desorientar o “inimigo” por meio da produção incessante de ruídos – numa sucessão de decretos, Medidas Provisórias e declarações estapafúrdias afirmadas, negadas em seguida e reafirmadas adiante etc. – e atemorizá-lo com reiteradas ameaças, numa política de “intimidação”.
A direita tradicional, reconfigurada e revigorada pela incapacidade do presidente de demonstrar preocupação com a pandemia e de se solidarizar com as famílias dos mortos, resolveu como se diz na gíria dos jogadores de poker “pagar para ver”. Adotou, para tanto, procedimentos distintos para neutralizar cada uma das três armas que Bolsonaro ameaçava sacar sempre que suas decisões não eram implantadas, seja por serem inconstitucionais seja por não terem obtido apoio político suficiente para a sua tramitação ou aprovação no Congresso.
O inquérito em andamento no STF enquadrou as milícias digitais por meio da efetivação de mandatos de busca e apreensão nas residências de seus principais operadores e de alguns de seus mais notórios financiadores. Essa rede constitui um elemento essencial do bolsonarismo não só por circularem mensagens que reforçam o vínculo afetivo (libidinal) entre o líder e a massa, mas também por disseminarem massivamente fake news alvejando seus adversários políticos.
Não se trata apenas disso, porém. O aprofundamento das investigações sobre o funcionamento da indústria de fake news se recuado no tempo até 2018 poderá comprovar denúncias da época da eleição de que a montagem e a operação dessas redes foram implantadas com o auxílio de know how, mão de obra e capital estrangeiro.
O código eleitoral brasileiro, na seção VI do Capítulo II, diz: “É vedado aos partidos políticos e às sua fundações receber, direta ou indiretamente, sob qualquer forma ou pretexto, doação, contribuição ou auxílio pecuniário ou estimável em dinheiro, inclusive por meio de publicidade de qualquer espécie, procedente de: I – origem estrangeira”.
A punição prevista é estipulada no artigo 28: “O Tribunal Superior Eleitoral, após trânsito em julgado de decisão, determina o cancelamento do registro civil e do estatuto do partido contra o qual fique provado: I – ter recebido ou estar recebendo recursos financeiros de procedência estrangeira” [6].
As duas outras cartas que Bolsonaro alega ter em mãos, e que muitos ainda avaliam que podem impedir o aprofundamento das investigações, são o apoio do presidente norte-americano e a suporte das Forças Armadas brasileiras.
A intensidade da pandemia nos EUA, a que se soma uma onda recente de manifestações gigantescas contra o racismo, minou a popularidade de Donald Trump a tal ponto que se prevê que ele muito dificilmente obterá a reeleição. A burocracia estatal norte-americana (pouco simpática a Trump) e a maioria democrata na Câmera dos representantes têm conseguido impedir que alguns projetos de Trump sejam efetivados, como é o caso da sempre prometida intervenção militar na Venezuela.
O nevoeiro que impedia o conhecimento da posição das Forças Armadas em relação ao anunciado golpe de Jair M. Bolsonaro contra o STF parece estar se dissipando. O jornal Valor econômico noticiou que houve, no dia 10 de junho, um encontro reservado do ministro do STF Gilmar Mendes com o comandante do Exército, o general Edson Leal Pujol, intermediado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Filho e neto de generais, amigo pessoal do casal Clinton, FHC é inegavelmente homem de confiança do establishment do Partido Democrata. Continua sendo também talvez o principal “formulador” e ideólogo do que restou da classe empresarial brasileira.
Em entrevista concedida no dia 16 de junho a Bruno Lupion e postada no portal da Deutsche Welle Brasil, indagado sobre o encontro com o general, o ministro Gilmar Mendes afirmou: “Estão fazendo uma autocrítica. Recentemente saíram pesquisas que indicam que está havendo uma identificação entre as Forças Armadas e o governo Bolsonaro, em tom negativo”[7]. E emendou com sua característica voz peremptória: “Tenho dito que as Forças Armadas não são milícias do presidente da República, nem de força política que o apoie”.
A escalada capitaneada por STF, TSE, MP-Rio contra alvos ligados a Jair Bolsonaro pode se desdobrar em quatro cenários possíveis: (a) ser contida por acordos de cúpula; (b) reorganização do governo controlando os ímpetos autoritários e o mandonismo do presidente; (c) o impeachment de Bolsonaro; (d) a anulação da eleição por irregularidades da campanha da chapa Bolsonaro/Mourão.
Os desdobramentos jurídicos e políticos desse conflito têm por solo quase que exclusivamente o campo restrito da classe dominante. O destino do governo Bolsonaro e o futuro próximo do país encontra-se nas mãos deles.
A classe trabalhadora por meio de sua representação política, seus movimentos sociais e sua representação política (o leque de partidos de centro-esquerda), constitui a única força efetivamente comprometida com a democracia no país. Se ela não conseguir sair das cordas, do isolamento político e social ao qual foi coercitivamente confinada continuaremos, com ou sem a família Bolsonaro, numa democracia de fachada, num regime pseudoconstitucional.
Notas
[1] Para um relato histórico da gênese das teorias da pós-modernidade cf. Perry Anderson. As origens da pós-modernidade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999.
[2] Para uma súmula da bibliografia sobre o neoliberalismo cf. Estevão Cruz & Juarez Guimarães, no site A Terra é Redonda: “Neoliberalismo e dialética negativa”.
[3] Refiro-me aqui à vertente tradicional do pós-modernismo que tem em Jean-François Lyotard um de seus expoentes. Comento as teorias de esquerda sobre a pós-modernidade no artigo “O debate marxista sobre a pós-modernidade”. In: Z Cultural, Ano VII, n. 3. Riode Janeiro, UFRJ, 2012.
[4] Kátia Gerab Baggio relata com precisão e acuidade os vínculos do Atlas Network com os organizadores dos protestos contra o governo de Dilma Roussef no artigo, postado no site A Terra é Redonda, “Atlas Network e o ultraneoliberalismo” .
[5] Eduardo Bolsonaro organizou no Brasil, em outubro de 2019, a reunião anual para a América Latina da ACU, a Conservative Political Action Conference (CPAC), com financiamento da Fundação Índigo (Instituto de Inovação e Governança), ligada ao PSL. Para um relato do evento cf. o artigo de Otávio Dias de Souza Ferreira, publicado no site A Terra é Redonda, “A Internacional de extrema-direita”.
[6] Disponível aqui.
[7] Disponível aqui.