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“A alternativa ao isolamento é muito mais gente morrer, não tem outra”
Marina Amaral entrevista Natália Pasternak
Agência Pública - A Fiocruz lançou uma nota técnica alertando para a contra indicação para o uso de hidroxicloroquina ou de cloroquina com azitromicina, que é exatamente o que já está sendo prescrito em hospitais com ensaios clínicos registrados ou não. Isso representa um risco para a população?
Sim, porque há um risco cardíaco aumentado. Tanto a hidroxicloroquina como a azitromicina aumentam o risco de arritmia. E essas arritmias são sérias, podem levar até a uma parada cardíaca. Foi isso que o pessoal da Fiocruz de Manaus, do Instituto de Medicina Tropical, observou. Eles fizeram um trabalho comparando doses diferentes, no caso eles usaram cloroquina e azitromicina, e viram que aumentava o risco cardíaco – tiveram até que interromper o estudo no meio porque o grupo que estava com a dose mais alta apresentou muita alteração cardíaca.
Tem vários outros estudos que estão saindo pelo mundo que estão mostrando também o risco dessa combinação de hidroxicloroquina e azitromicina. A gente tem um hospital em Nice (França) que parou de usar essa combinação porque, acompanhando os pacientes com eletrocardiograma várias vezes por dia, eles perceberam a arritmia e pararam de usar esses medicamentos. A mesma coisa aconteceu na Suécia e em um hospital em Michigan. Agora, é importante destacar que eles estavam acompanhando os pacientes com eletrocardiograma, por isso perceberam as alterações e pararam de usar. Por acaso a gente tem no SUS condição de monitorar todos os pacientes com eletrocardiograma 2, 3 vezes por dia pra ver se está tendo arritmia? No Einstein talvez eles possam fazer mas e no SUS?
Eu acho bastante complicado.
Também está sendo muito usado na rede Prevent Senior que atende muitos idosos.
Sim. E o protocolo da Prevent Senior não é hospitalar. O protocolo deles é atendimento por telemedicina e eles mandam entregar os medicamentos na casa da pessoa: hidroxicloroquina + azitromicina. Daí, eu fico com mais medo ainda. Imagina o idoso, recebe o remédio em casa, vai tomar sozinho, com acompanhamento só por telefone, e ele tem uma parada cardíaca!
Perdeu a chance de se recuperar. Porque outro ponto que eu queria destacar é exatamente a alta probabilidade de cura da doença.
Sim! É incômoda, é difícil, mesmo as pessoas que têm sintomas e não são hospitalizadas falam que é complicado, é uma doença bem debilitante. Mas a grande maioria se recupera. E a gente começar a dar esse remédio, que tem esse risco cardíaco, e se a gente estiver realmente atrapalhando em vez de ajudar? Não é algo inócuo, não é uma coisa que você possa falar ‘se não deu certo, não deu’. Pode atrapalhar, tem um risco ali, principalmente usando essa combinação.
Por que então insistir nessa combinação?
Olha, eu já ouvi vários argumentos. Do tipo ‘danem-se os efeitos colaterais o que importa é salvar a vida do paciente’, como se isso também estivesse comprovado, ou que ‘nós estamos em guerra então vale tudo’, até que se não der nada, ‘o paciente vai morrer de qualquer jeito’. Basicamente acho que as pessoas estão confundindo muito e pensando: ‘pegou coronavírus o jeito é tomar cloroquina ou morrer’. E isso não é verdade. Primeiro que o coronavírus não é uma sentença de morte, tem 90% de taxa de cura; depois, até agora, a cloroquina não salvou ninguém. As pessoas falam ‘tá todo mundo usando, está salvando vidas’. Justamente, está todo mundo usando. Vocês não acham que se estivesse salvando vidas a gente estaria vendo? Por exemplo, quando se percebeu que os marinheiros que comiam frutas cítricas não tinham escorbuto, isso era tão evidente que não precisava fazer teste clínico. O efeito era tão claro que mesmo no século 18 eles perceberam. Se a cloroquina fosse assim a gente ia perceber!
E por que essa pressão política para o uso da cloroquina?
Essa não é minha área, minha área é ciência, tudo que eu disser aqui é um belo dum palpite. Mas pelo que observo, com essa pressão do governo para a volta ao trabalho, poder dizer que existe um remédio facilita muito esse discurso. Mas é um discurso muito perigoso, que dá uma falsa sensação de segurança para as pessoas. A gente tem um presidente falando ‘é só uma gripezinha e tem remédio’, o pessoal fica pensando ‘por que não vou voltar pro trabalho então? É só tomar o remédio, tem 100% de cura, por que eu tenho que ficar em casa?” Tenho muito medo disso.
O Bolsonaro fez várias declarações, chegou a dizer que poderia ter tido o vírus e agora estaria imunizado, e que o melhor seria que 60, 70% da população fosse imunizada pelo contágio. O que aconteceria se a gente liberasse os mais jovens para trabalhar, por exemplo?
O que aconteceria é que ia morrer um monte de gente e o resto ia ficar imunizado. O problema é o monte de gente que ia morrer de uma vez. O que o Bolsonaro falou é muito parecido com o que disse o Boris Johnson na Inglaterra, mas o conceito da imunidade de rebanho está distorcido na cabeça dos dois líderes. Quando uma grande parte da população fica infectada e desenvolve anticorpos, a gente de fato atinge a imunidade de rebanho. A gente atinge essa imunidade de rebanho também com vacina por isso a gente faz campanha de vacinação. Você garantindo que uma grande parte da população está vacinada, você garante que os vulneráveis, aqueles que não puderam tomar a vacina porque são muito jovens ou imunossuprimidos, estão protegidos. Por isso que a gente chama de imunidade de rebanho, porque o rebanho faz com que a doença pare de circular. Como a gente não tem vacina, a única maneira de atingir a imunidade de rebanho é uma grande parcela da população se infectar, adquirir anticorpos, e isso vai acontecer. O que o isolamento social faz é garantir que isso aconteça bem devagar pra dar tempo da gente cuidar dos nossos doentes, para ter leito, respirador pra todo mundo. Se relaxa, vai ficar um monte de gente doente ao mesmo tempo, a gente não dá conta, e vai morrer um monte de gente por falta de atendimento. A alternativa ao isolamento é morrer muito mais gente, não tem outra.
Mesmo que isso fosse combinado com o isolamento vertical que o presidente também sugeriu?
Não funciona. A gente não consegue isolar totalmente as pessoas e não é uma doença em que os vulneráveis estejam tão bem localizados assim. A gente está vendo muita gente jovem se infectar. A gente está vendo muita gente das mais variadas idades, se infectar e progredir para casos severos da doença. Então a gente não tem como fazer essa previsão e esse isolamento vertical.
E a senhora já conseguiu observar o efeito do isolamento na curva de propagação do coronavírus? Conseguimos achatar a curva?
No momento a gente está com a curva bem exponencial, bem inclinada. E como a gente tem muita subnotificação no Brasil, a situação deve ser bem pior. Eu acho que é cedo ainda pra gente ver os efeitos do isolamento social. E vendo os números do Estado de S. Paulo, do isolamento, a gente vê que o pessoal deu uma relaxada o que acho bem preocupante. Porque as pessoas começam a achar que não está acontecendo nada, mas está. Eu espero que a gente não precise chegar em um ponto em que as pessoas só vão perceber o valor do isolamento social quando estiverem perdendo as pessoas próximas, isso é muito triste. Pra muita gente, a doença parece longe, mas ela está batendo aqui na porta.
E temos pessoas ligadas ao governo, como o Osmar Terra, que estão anunciando nas redes sociais que a epidemia já chegou ao pico em São Paulo e que logo tudo vai melhorar.
Ele não tem como prever isso. É uma informação até perversa nos dias de hoje porque dá uma esperança pras pessoas que, daqui a 15 dias, a vida vai voltar ao normal. Não é verdade, a curva ainda está subindo, ainda está exponencial. Mesmo na Itália, que foi um dos primeiros países afetados, só agora que parece que o número de casos está estabilizando, está parando de crescer. Então pra dizer que chegou no pico, a gente precisa fazer o platô. Os casos têm que ter parado de crescer por dias seguidos, não é 2 ou 3 dias que basta. Aí poderemos dizer que chegamos no pico. Mas, prever quando esse platô vai chegar agora, é impossível. A gente não tem nem o número real de casos. Como eu disse, a subnotificação é um fato e como a gente não tem condição de testar, então a gente tem que valer dos poucos testes que tem e do diagnóstico. E multiplicar os números que a gente tem por dez para chegar a realidade, inclusive o número de mortos. Temos muitas mortes por sintomas respiratórios e não confirmadas para Covid-19.
A coluna da Mônica Bergamo na Folha noticia que um grupo de pesquisadores da USP, Fiocruz, Universidade de Brasília e Instituto Butantan fez um estudo, cruzando mobilidade de pessoas no Rio e SP com a velocidade de transmissão do coronavírus, que teria concluído que a taxa de isolamento social para conter o vírus no Brasil é de 40%, e que com os 55% de isolamento, em média, já atingidos no Rio e em SP , “vamos passar bem pela epidemia”. Qual sua opinião sobre isso?
Eu vejo alguns problemas nessa informação. Primeiro, que a gente não sabe de onde eles tiraram esse número, qual foi o modelo matemático usado. Segundo que a epidemia está em progressão, e como temos aquele problema sério de subnotificações, não sei se eles corrigiram esses números, se calcularam 10 vezes mais casos porque é o que estudos internacionais estão mostrando que a gente tem. Então não sei que números eles usaram nem que modelo.
Em relação à ocupação de hospitais, e aquela explicação meio esquisita [que aparece na mesma notícia], de que a Covid-19 atacou primeiro os ricos e aí os hospitais particulares deram conta, eu acho que, se a epidemia ainda está a progressão, a gente ainda não viu como ela está atingindo a periferia. E outras reportagens já mostraram que 70% dos leitos dos SUS estão ocupados. Então, se ela ainda está crescendo e temos 70% dos leitos do SUS ocupados, acho bastante preocupante. É um pouco precoce anunciar em uma reportagem que 40% de isolamento seria razoável, sendo que em São Paulo o governador gostaria que a gente chegasse a 70%, e pode levar as pessoas a relaxarem ainda mais o isolamento. Então acho difícil comentar sem ter acesso aos dados que eles usaram, mas acho a afirmação precoce.
E a vacina? Que esperança temos de ter uma vacina em breve?
Tem um monte de estratégias vacinais sendo desenvolvidas pelo mundo e eu sou apaixonada por cada uma delas. As estratégias vacinais feitas com biotecnologia elas são muito bem feitas e muito seguras e nós temos uma história muito bonita de vacinas no Brasil. Mas vai demorar, porque o difícil não é desenvolver a tecnologia, é testar. Demora muito tempo. Tem que testar em animais pra ver se está desenvolvendo anticorpo e, depois que a gente começa em testar em humanos, tem várias fases, tem que testar segurança, eficácia, tem que saber quanto de anticorpo está produzindo, se tem efeito colateral, tem que chegar a testar um grande número de pessoas. Então pelo menos uns dois anos; normalmente é mais, mas a gente está com pressa pra ter essa vacina no mercado. E não pode apressar. Vacina, a gente vai dar pra bilhões de pessoas, a gente não pode errar. Se você errar, mesmo que seja em um efeito colateral, você perde a credibilidade de todas as outras vacinas. Não podemos esquecer que a gente tem um grupo anti-vacina muito forte. Então ter ser feito com muita seriedade. A única arma que a gente tem por enquanto é o isolamento social, os cuidados com higiene, e a paciência. A gente vai ter que ter paciência de saber que a gente está fazendo isso para cuidar uns dos outros porque não tem alternativa boa. A alternativa é morrer muito mais gente porque a gente não consegue tratar. A alternativa é forçar nossos médicos a escolher quem vai viver e quem vai morrer. Eu não desejo essa escolha pra nenhum médico. Não custa a gente ficar em casa e fazer a nossa parte por mais angustiante que seja.
E por falar em ciência, a senhora acha que os cientistas brasileiros vão conseguir desenvolver pesquisas relevantes para essa pandemia?
A gente vem mostrando que tem toda capacidade intelectual e técnica para contribuir, mas o que a ciência não tem no Brasil é investimento e aí não se faz milagre. E a falta de investimento em ciência não é de hoje, faz muitos anos. A gente não consegue fazer ciência sem equipamento adequado, sem insumos, sem bolsa de estudos para os nossos alunos, a gente não vai tirar do chapéu. Por mais que a gente tenha capacidade intelectual, capacidade técnica e muita vontade de fazer. Veja os testes diagnósticos. As universidades, os institutos de pesquisa que trabalham com biologia molecular têm condições técnicas de fazer os testes diagnósticos. Mas não tem reagente! Não tem laboratório de segurança em número suficientes, não tem máquinas de PCR em número suficiente. Sem investimento não dá. Eu acho que a gente tem um papel importante para contribuir intelectualmente, mas não vai dar pra fazer.
Uma pergunta-provocação pra finalizar. A gente está vivendo essa pandemia 100 anos depois da gripe espanhola e às vezes temos a sensação que continuamos tão indefesos quanto naquela época. A ciência está nos protegendo de fato?
Não é verdadeira essa sensação, as coisas mudaram muito. Em 1918, na época da gripe espanhola, além de morrer de gripe as pessoas morriam por infecções secundárias bacterianas porque não tinha antibiótico. A ciência evoluiu muito. O tratamento de suporte que a gente pode dar, ventiladores, anestésicos para poder entubar a pessoa, todos os medicamentos de suporte, anti-inflamatórios, imunomoduladores. Acho que tem também uma confusão muito grande, que eu vejo muito quando falo do problema da cloroquina, que as pessoas dizem ‘ah, não vai dar nada então? Vai deixar morrer’ e não é deixar morrer, as pessoas estão recebendo um tratamento de suporte que é extremamente complexo. Não é porque não tem um medicamento específico, que as pessoas não estão sendo tratadas. Elas estão recebendo ventilação, oxigênio, sendo entubadas quando necessário, recebendo outros medicamentos de suporte que cem anos atrás a gente não tinha. Certamente naquele tempo haveria uma taxa de letalidade muito maior e de sofrimento humano. A ciência é a única coisa que temos. Espero que a gente confie cada vez mais na ciência para ter maior sucesso em uma próxima pandemia.
E virá uma próxima pandemia?
Olha, tem muita gente e o mundo é muito conectado então qualquer tipo de doença que transmite pelo ar ou de pessoa a pessoa vai conseguir circular muito rápido. E tem a questão ambiental, quando a gente interage muito com ambientes que antes não eram o nosso habitat, a gente acaba se deparando com viroses de outros animais que a gente não se depararia se não estivesse invadindo o território deles, então faz parte do desenvolvimento da civilização. Por exemplo, tem um monte de espécies de coronavírus em morcego, a gente sabe, o azar de um desses vírus se adaptar para infectar humanos é um azar. Mas é uma azar que tem probabilidade de acontecer porque tem um monte de coronavírus em morcego. Vírus transmitidos por mosquitos, também tem um monte. É uma azar a gente ter dengue transmitida por mosquito? Sim, mas um azar com probabilidade de acontecer. Quando a gente interfere em outros territórios, a gente começa a encontrar patógenos que podem se adaptar para nos infectar. Não é uma grande surpresa a gente ter um outro coronavírus da síndrome respiratória, a gente já teve a Sars e o primeiro surto de Sars foi em 2002. Por que ninguém desenvolveu uma vacina pra Sars? Um medicamento pra Sars? Se a gente tivesse hoje uma vacina para trás, seria muito mais fácil fazer um reposicionamento, adaptar uma vacina que já existe. Mas por que ninguém desenvolveu? Porque passou o surto e todo mundo desencanou, não se investiu em ciência. Aqui, no Brasil, por que até hoje a gente não tem uma vacina contra dengue do Butantan? Por que até hoje ela não foi para o mercado? Porque não teve investimento. E é dengue, uma doença que é nossa, que é endêmica, deveria ter investimento. Então eu espero que a gente aprenda que a gente tem que investir em pesquisa em doenças que a gente sabe que tem probabilidade de acontecer, e que a gente precisa investir em ficar mais autossuficiente em insumos e reagentes. O que a gente percebeu agora? Que todos os nossos reagentes são importados. E os países que exportam estão retendo, então não é nem mais uma questão de dinheiro, a gente não consegue comprar os reagentes. Isso mostrou como nossa ciência está longe de ser autossuficiente, a gente precisa de produção local também.